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A filosofia sai para as ruas 
Nos bares, livrarias e empresas, está de volta o hábito da reflexão. 
Álfio Beccari 
Não é uma invasão brusca, mas uma infiltração mansa e delicada. Com a elegância 
dos mais sutis produtos do intelecto humano, a filosofia se espalha sobre os 
espíritos materialistas dos nossos tempos. Sem cerimônia, senta à mesa dos bares, 
intromete-se nas conversas, ganha as ruas. Deixa para trás os frios muros da 
academia. Volta a ser ensinada nas escolas – as mesmas que a tinham expulsado 
anos atrás, atendendo à cruel sentença de que “filosofia não serve para nada...” 
Como se o valor de algo estivesse intrinsecamente condicionado à sua utilidade 
prática – o que, de resto, já é uma questão filosófica. Chega até a ganhar a mente 
dos empresários, que vêem na formação filosófica uma virtude inestimável para o 
desempenho de certas funções administrativas. Por fim, reluz nas vitrinas das 
livrarias, na forma de obras de popularização de excelente qualidade. 
O grande retorno da filosofia começou em Paris – claro -, em 1992, um pouco por 
acaso. Mais exatamente no Café des Phares, onde um certo professor de filosofia 
chamado Marc Sautet costumava encontrar seus amigos para alentados bate-papos 
onde não raro eram citados desde os gregos Sócrates, Platão e Aristóteles, até 
contemporâneos como Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty. Aos poucos, a excelência 
da conversa passou, primeiro, a atrair a atenção dos circunstantes, depois, sua 
animada participação. Não demorou e toda a capital francesa estava tomada pela 
mais nova e excitante moda intelectual, o Café Filosófico – ou apenas Café Filô. 
Outros países europeus também logo entraram na dança. 
Tempos de penúria 
 
Entre nós, a idéia chegou pelas mãos da historiadora e jornalista Sônia Goldfeder. 
Em agosto de 1997 ela criou, com a devida autorização de Sautet, no mezanino da 
Livraria Cultura, em São Paulo, o primeiro café filosófico brasileiro, comandado pela 
professora Olgária Matos, da Universidade de São Paulo. A escolha não poderia ter 
sido mais feliz. Olgária, além de brilhante pensadora, sempre defendeu com 
entusiasmo a popularização desse tipo de debate, que teve sua origem na Atenas 
do século 5 antes de Cristo. Fiel ao estilo de Sócrates, que andava pelas ruas a 
propor questões filosóficas às pessoas, Olgária deu início ao primeiro encontro 
perguntando o essencial para aquela situação: “Por que a filosofia em tempos de 
penúria?” Ou seja, por que, afinal, estamos hoje aqui? Esta é, na verdade, também 
a pergunta para esta triunfante volta da filosofia nesses tempos de penúria 
humanística. 
Poucas vezes se verá uma forma mais estimulante de começar a fazer filosofia 
como aquela proposta por Olgária. Não tardou para que todos na sala 
mergulhassem de cabeça na deliciosa aventura de filosofar. E a cada questão 
levantada, Olgária fazia questão de discorrer sem nunca fechar o discurso, porque, 
afinal, filosofar é fazer perguntas. Respondê-las, nem tanto. Ou, como prefere a 
professora, em certo sentido “a resposta é a traição da questão”. Ainda como 
Sócrates, que foi condenado à morte, entre outras acusações, por seduzir os jovens 
atenienses, Olgária encantou a platéia. Não por coincidência, no andar inferior do 
debate, os donos da livraria comemoravam um insólito sucesso de vendas: era o 
delicioso O Mundo de Sofia, do escritor norueguês Jostein Gaarder, que teimava em 
manter-se na primeira colocação dos mais vendidos, categoria ficção. Como um 
Monteiro Lobato nórdico, Gaarder conseguiu a proeza de fazer da austera 
problemática filosófica um quitute adocicado para o paladar delicado dos jovens. 
Ele provou que não há veículo mais adequado para tornar um tema palatável do 
que uma história bem contada. 
Criança curiosa 
 
Gaarder, o filósofo das crianças, diria mais tarde que não vê nenhuma mágica 
nisso. Para ele, basta que as pessoas continuem a fazer perguntas para fazer o seu 
cérebro funcionar saudavelmente. “O ser humano nasce curioso e, ainda criança, já 
faz perguntas”, observa. “Depois, deixa esse hábito morrer, e tenta suprir essa 
falta estudando filosofia numa faculdade. Não é preciso nada disso, basta continuar 
perguntando.” Perguntar é a mola do pensamento. Mas não se trata de qualquer 
pensamento, e sim do pensamento crítico, aquele que pergunta pelo valor das 
coisas, propõe o autor. “Uma sociedade de jovens acríticos é algo perigoso e, 
infelizmente, essa é uma realidade em franca expansão”, adverte Gaarder. 
Espírito crítico 
 
A ânsia de perguntar (ou pensar criticamente) está em todos os seres humanos. E, 
por alguma razão especial, essa comichão resolveu aflorar neste final de século. E 
de milênio. Por quê? Entre os freqüentadores do Café Filô de Sônia e Olgária – e 
dezenas de outros que pipocam agora em outras cidades do Brasil – é possível 
perceber claramente essa inquietação. Anderson de Almeida, um pintor de placas 
de 25 anos, de São Paulo, é um desses espíritos irrequietos. 
Ele começou a ir ao café porque sentiu que lá poderia ouvir e discutir as questões 
que mais o afligiam. Que questões são essas? “Moro na periferia, num bairro 
violento”, lembra. “Quando era garoto, logo pela manhã, no caminho da escola, via 
corpos de pessoas mortas nos tiroteios da noite anterior e me perguntava: “Por que 
tudo isso acontece?” Comecei a procurar respostas nos livros de filosofia, e a partir 
daí não parei mais de pensar.” 
Engana-se, porém, quem pensa que fazer filosofia resume-se ao simples perguntar, 
ao mero pensar. Não se trata do pensar ingênuo, como a tola conclusão do burguês 
fidalgo, da clássica comédia de Molière, que por falar desde pequenino achava que 
“fazia prosa sem o saber”. A pergunta filosófica quer saber o que está por detrás 
das coisas, oculto sob a capa do óbvio. Ou, como diz Olgária, não se trata de 
perguntar que horas são, mas o que é o tempo. Nem querer saber onde está esse 
livro, mas o que é o espaço. 
Arma de especulação 
 
O filosofar tampouco condiz com a falsa imagem do pensador recolhido no silêncio 
de sua torre de marfim, frio e distante contemplador da barbárie de seu tempo. Ao 
contrário, a volta da filosofia, nestes tempos bicudos, tem tudo a ver com a ação. O 
médico homeopata pernambucano Mozart Cabral, outro assíduo participante dos 
debates do café, sabe bem do que se trata. O saber adquirido em sua profissão não 
é suficiente para explicar tudo que o inquieta, admite. “Há certas perguntas que a 
ciência não responde e para as quais a religião não satisfaz. A filosofia é uma 
poderosa arma de especulação, uma forma de enfrentar um mundo que 
supervaloriza o ter em detrimento do ser. Apesar de toda a tecnologia, as pessoas 
não são felizes. É bom ouvir a Olgária levando idéias complexas, de forma simples, 
para as pessoas comuns. A filosofia estava restrita à universidade, é bom vê-la 
sendo derramada pelas ruas.” 
Pelas ruas, cafés, livrarias – mas também pelos escritórios das grandes empresas. 
Hoje, não são poucas as companhias, de todos os tipos, que insistem em ter, no 
seu quadro de funcionários, pessoas com formação filosófica. E não se trata apenas 
de aproveitar delas essa virtude humanística, mas também da condição que os 
estudiosos detêm de indicar com clareza qual o caminho mais conveniente a tomar 
– do ponto de vista ético e político. Nesse ponto, a filosofia se torna uma aliada do 
empresário moderno, que descobriu – finalmente – que de nada vale o lucro a 
qualquer custo, se não se salvaguardam os valores humanos. 
Esta pode ser uma descoberta nova, mas não é de todo surpreendente, pelo menos 
para dois professores de filosofia: Paulo Roberto Monteiro de Araújo, diretor da 
faculdade de filosofia da Universidade Mackenzie, de São Paulo, e Maria Cecília 
Coutinho de Arruda, da Fundação Getúlio Vargas. Para Paulo Roberto, estão 
terminados os dias da filosofia como prática confinada na academia. “Isso terminou 
no século 18”, anuncia. “Hoje, Hegel tem que ser compreendido pelas crianças. A 
filosofia está nocotidiano, no óbvio, cabe-nos compreender isso.” 
Criados para o bem 
 
Para ele, a filosofia cabe como uma luva nos dias de hoje, como uma forma de 
fundamentar e justificar a existência das pessoas e dar qualidade às relações 
pessoais, sociais e políticas. “A filosofia está de volta como uma forma de melhorar 
a vida das pessoas. Ela nos faz refletir, exercitar nossa consciência crítica, 
apresenta-se na forma de reflexão ética e política.” Foi para cumprir esse papel, por 
sinal, que o Mackenzie criou, no ano passado, seu curso de filosofia, voltado para a 
formação de profissionais para atuar na área que Paulo Eduardo chama de ética 
aplicada. 
Maria Cecília atua no mesmo campo. Ela é professora de ética nas empresas e ética 
no marketing, duas áreas onde a filosofia começa a falar alto. E aqui, onde se 
poderia supor que os empresários exerceriam algum tipo de resistência, Cecília 
conta que acontece exatamente o oposto. “Eu comecei a trabalhar com ética 
empresarial quando descobri, estarrecida, que o desenvolvimento das técnicas e da 
tecnologia levaram a abusos graves. Casos de manipulação da propaganda – 
inclusive com o uso de recursos subliminares – se sucediam criminosamente. Sem 
falar em assédio sexual e todo tipo de corrupção. Era preciso restaurar o respeito 
aos valores mais comezinhos, pois de nada vale o desenvolvimento científico e 
tecnológico se não houver uma forte preocupação com o ser humano. Já não faz 
sentido a filosofia do lucro a qualquer custo.” 
Os empresários se convenceram facilmente disso. Tanto que a presença deles em 
congressos, cursos, seminários e palestras, organizados pela professora, vem 
superando todas as expectativas. É cada vez mais comum, também, Cecília ser 
procurada para ministrar cursos de ética dentro das empresas. A razão disso? 
Cecília responde candidamente: “Eu acredito que as pessoas tendem naturalmente 
para o bem. Somos criados para o bem. O que até hoje era visto como o bem 
supremo – a riqueza material, o dinheiro, o lucro, independente da forma de 
consegui-lo – já não mais satisfaz. As pessoas estão se dando conta de que mais 
importante é ser feliz.” 
Mais que tudo, porém, a volta da filosofia se explica, segundo Olgária Matos, 
porque ela “representa hoje a possibilidade efetiva da interdisciplinaridade, numa 
sociedade altamente especializada. Como dizia Hegel, a filosofia é a apreensão de 
uma época em pensamento”. 
A crise do amor 
 
Este é um momento, diz a professora, no qual o pensamento tecnocrático é 
hegemônico, em que as determinações econômicas se impõem como única maneira 
de pensar e de ser. “Todas as necessidades do homem se reduzem a bens 
materiais. Vivemos um mundo de intolerância, de fragmentação política, de 
fundamentalismos religiosos e ódios étnicos. A filosofia chega bem a tempo, para 
evocar outros valores, sonhar outros sonhos, inventar outras razões para os 
homens poderem estar juntos. A palavra filosofia guarda em sua etimologia (do 
grego philo, amor, e sophia, sabedoria) a memória de seu significado originário. Se 
a filosofia é, antes de tudo, o amor pelo conhecimento, podemos concluir que a 
atual crise da cultura é uma crise da capacidade de amar.” 
Fonte: Galileu nº 98

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