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0 PROCESSO DE APRENDIZAGEM VIVENCIAL SEMEANDO O DESENVOLVIMENTO HUMANO Marina Halpern-Chalom A oscilação entre saber e não saber, o certo e o incerto, o conhecido e o desconhecido é uma condição natural da existência humana. Numa linguagem fenomenológica, diz-se que esta é fundada em um fluxo de alojamentos e desalojamentos c que este é um movimento inerente ao modo de ser do homem no mundo (Critelli, 1996). A sociedade tecnológica contemporânea valoriza o conhecimento que c produzido cientificamcntc, através de métodos rigorosos, desconsiderando este fluxo natural do existir. Este conhecimento c acumulado por especialistas, estudiosos que buscam verdades universais, unívocas e fixas. O homem, imerso nesta cultura, acaba tendo pouco suporte e modelo para lidar com sua natural oscilação, e procura as respostas para as suas questões fora de si, nos “profissionais competentes”. A singularidade fica escamoteada e emudecida em estatísticas e a capacidade de elaborar as experiências vividas fica prejudicada. Esta cisão entre a experiência vivida e a compreensão da mesma, bem como a falta de espaços para troca de experiências, alimentam a solidão e a carência de reflexibilidade, definida por Figueiredo (1996:42) como “uma relação de si para consigo, um auto-comprometimento do sujeito, implicados na conduta ética”, também comuns na sociedade atual (Benjamin, 1994; Schmidt, 1999; Halpern-Chalom, 2001). 38 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA “Algumas psicologias”, neste contexto, surgem com uma proposta de dar lugar e voz àquilo que fica à margem na sociedade contemporânea (Halpern-Chalom, 2001). Digo algumas psicologias, pois, como os homens, são bastante heterogêneas as formas de se trabalhar e compreender o campo psicológico (Figueiredo, 1996). As Oficinas de Criatividade, tal qual as venho realizando, surgem, portanto, como uma estratégia que, unindo o conhecimento psicológico à possibilidade expressiva e criativa individual e grupai, procura promover um espaço para troca e elaboração de experiências em contato com o fluxo existencial inerente à vida. Oficinas de criatividade: uma proposta Tudo isso é movimento. Aragem que desconcerta a estagnação do dia-a-dia, do costumeiro, do já sabido, do que repete as lições que não ensinam. (Machado, 2004:72) A Oficina de Criatividade é uma proposta de trabalho vivencial, cm grupo, que utiliza recursos variados, visando ampliar a abertura c fluidez diante da existência. Metodologicamente, procura-se criar dinâmicas que coloquem os participantes em vivências que os mobilizem em torno do tema proposto, instaurem a possibilidade de emergência do novo e um clima de reflexibilidade. Cuida-se de que haja espaço para reflexão e trocas, com o objetivo de despertar os participantes para lembranças, sentimentos, sensações, pensamentos ou intuições que não costumam receber atenção na relação pessoal e na intersubjetiva. Desta forma, favorecem-se trocas de cada um consigo e com os outros, ajudando-os a desmanchar padrões repetitivos, sair do “automático” e acessar novas possibilidades. “Somos criados dentro de certos padrões e ficamos acomodados naquilo. Por isso é preciso desestruturar [...]; sem essa desestruturação, não surge nada de novo” (Vianna, 1990:62). Christina M. B.Cupértino (organizadora) 39 Vivência: aprender com Dependendo do contexto em que as Oficinas são realizadas, adquirem características peculiares. No âmbito de formação de profissionais (Cupertino, 2001), ajuda a estabelecer uma ligação entre a formação teórica e a prática. Oferecida como disciplina eletiva no 5° ano do curso de psicologia da UNIR propicia aos alunos a possibilidade de refletir sobre vivências e processos psicológicos a partir da experiência compartilhada em sala e vivida por eles. Ultrapassando a discussão teórica, possibilita a apropriação de um fazer psicológico conectado à reflexão de experiências existenciais e interpessoais, tão importante e necessária à prática profissional do psicólogo. Pois, como diz Cupertino (2001:16) “nossa prática depende, em grande medida, daquilo que somos, além daquilo que sabemos”. Ao mesmo tempo, ajuda a abrir a possibilidade de instaurar uma atitude de abertura ao inesperado, necessária diante da singularidade do outro. Diferentemente do pensamento cientifico onde, como diz Bachelard (2000), uma nova idéia se integra em um corpo de idéias já aceitas, ainda que para promover um remanejamento grande. No trabalho com o outro e nas oficinas, a disposição é de poder lidar com o que é imprevisível para nós mesmos e para os outros, morada muitas vezes inóspita, porém comum no trabalho psicológico. A intenção é fomentar um modelo de aprendizagem que ultrapasse a reprodução de conceitos que, para Bachelard (2000:88), desindividualizam conhecimentos vividos ao categorizar e classificar. “Para cada conceito há uma gaveta no móvel das categorias. O conceito é um pensamento morto, já que é, por definição, pensamento classificado”. A aprendizagem pode ameaçar a criatividade e crescimento, se chegar cheia de explicações e pronta, ou manter-se cheia de vida, se interagir com a experiência do aprendiz e transformá- lo (Halpern-Chalom, 2001), possibilitando a ele aprender “com” ao invés dc aprender “sobre” (Cupertino, 2001). Benjamin (1994) apresenta dois conceitos de história: o materialismo histórico e o historicismo, que permitem refletir sobre diferentes formas de se apropriar de experiências. O primeiro traz uma forma do homem se relacionar com a história procurando apropriar-se dela e presentificá-la, fazendo do passado uma experiência única, 40 ESPAÇOS DE CRIAÇÃO EM PSICOLOGIA: OFICINAS NA PRÁTICA fechada em significados já definidos e explicados. O historicismo, por sua vez, entra em contato com a história como um tempo saturado de “agoras”, inesgotavelmente pleno de significados a serem visitados. Neste sentido, o historicista aproxima-se da história deixando-se tocar pela experiência que transcende os fatos objetivos e verificáveis, aproximando- se do fluxo existencial. Enquanto o historicismo prima por caminhar por dentro do ouvinte ou pelos fatos históricos por onde houver brechas, possibilitando aprender com, o materialismo histórico, como as informações, só permitem aprender sobre, ao chegar explicado e “endereçado”, com um trajeto definido de partida e chegada. AS ATIVIDADES Visando facilitar a aprendizagem a partir da experiência, são definidos temas que visam remeter os participantes a se perceberem afctivamcntc cm questões como auto-imagcm, identidade, preferências, escolhas, história de vida, dentre outras. O que construíram e o que podem construir; o que sentem que receberam e o que gostariam de deixar para os outros; o que podem mudar na própria vida e história e o que não podem; o que valorizam e o que escolhem; como sc vêem c como são vistos pelo outro, são alguns dos temas trabalhados, que promovem com que eles olhem para si e visitem memórias, sentimentos, percepções e compreensões. Pretendem promover com que saiam dos lugares conhecidos ou impressões pouco elaboradas e debrucem-se sobre as próprias concepções, olhando-as novamente, de forma nova e singular. Machado (2004:88) fala da posição de flexibilidade imaginativa como uma “disposição interna para encontrar algo que poderá ser” e que instiga a sair do lugar conhecido c poder olhar de forma flexível, investigativa, experimentando diferentes pontos de vista. Com o intuito de ampliar o alcance do olhar ao propiciar aproximações diferentes das habituais do que é focalizado, usam-se recursos facilitadores da expressão e da elaboração simbólica. Como o próprio nome diz, são recursos que ajudam na expressão, compartilhamento e elaboração simbólica individual e grupai. Elaboração simbólica é entendida como um Christina M. B. Cupertino (organizadora) 4 I processo contínuo e dinâmico de simbolização que envolve a consciência, simultaneamenteabalando sua estabilidade e despertando-a para novas possibilidades de ampliação. A consciência por um lado sofre este processo e a ele se adequa, e por outro, tem uma participação ativa, ao interagir e mesmo suscitar novos símbolos. Estes podem se apresentar como imagens, significados, emoções, percepções sensoriais, idéias ou reflexões. A elaboração simbólica implica em relacionar e conter numa totalidade diferentes aspectos da vivência. (Halpern-Chalom, M. e Freitas, L. V, no prelo). Usando-se esses recursos, os participantes são convidados a reconhecer e apresentar a sua forma de estar e compreender o mundo, bem como a se relacionar com as apresentações feitas pelos colegas. Uma estratégia adotada é criar atividades que promovam estranhamento diante da consigna. Pedir que eles se apresentem fazendo um anúncio sobre si através do recorte e colagem de figuras de revistas ou pedir que façam um gráfico de suas vidas são exemplos disto. O objetivo é suscitar aproximações diferentes das habituais dos temas trabalhados. Um comentário comumente feito pelos participantes “como eu vou fazer isso?” é um bom indicativo de que um novo trajeto de reflexão terá que ser “construído” para que a atividade possa ser executada. O tema acaba sendo olhado a partir de novas perspectivas. Tomando o exemplo de uma atividade de auto-apresentação, os participantes são convidados a fazerem um anuncio de si. Devem escolher figuras cm revistas, colá-las numa cartolina c dar um título para o anúncio. Deparam-se com a necessidade de eleger o que colocar no cartaz. Evidencia-se: 1. A multiplicidade constituinte da identidade: o que apresentar? 2. Uma reflexão sobre a auto-imagem: como me vejo? Como desejo ser visto? Qual faceta apresentarei ao grupo cm questão, naquele contexto, para os outros c para mim? 3. A complexidade da comunicação: como apresentar o que desejo? São muitas as questões que se colocam diante da proposta realizada, pois expressar algo é um processo que requer um exercício 42 ESPAÇOS DE CRIAÇÀO EM PSICOLOGIA: OFICINAS NA PRÁTICA de escolha, uma vez que toda expressão ao mesmo tempo em que é um recorte do todo e, portanto, incompleta, é um aspecto do mesmo, que permite uma aproximação e troca. Trata-se de um processo dinâmico, que vai se construindo e se transformando na medida em que é trilhado, sendo que o caminho que se faz entre a partida e a chegada, não é linear. Segundo Bachelard (2000:8), “a imagem toma-se um ser novo da nossa linguagem, expressa-nos tomando-nos aquilo que ela expressa - noutras palavras, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir do nosso ser. Aqui a expressão cria o ser”. O resultado final integra as habilidades manuais com um extenso trabalho de elaboração e criação. Neves (2004) faz uma reflexão sobre formas na dança, resultado de posturas repetidas e copiadas, desconectadas das imagens mentais e sensações que as constituem e propõe uma reconexão com a necessidade que está na raiz do movimento. A proposta das oficinas, como a entendo, tem este mesmo propósito de conexão, e as produções não repetem nenhum padrão conhecido, pelo contrário, promovem uma integração. Durante o trabalho dc confecção dos anúncios, o autor do trabalho - se estiver genuinamente envolvido com o mesmo - passa por um processo de autoconhecimento. Critelli (1996), refletindo sobre o processo de conhecer próprio do contato entre o homem e o mundo, ao qual ela chama de movimento de realização, apresenta 5 passos, dos quais os primeiros três é possível acompanharmos nos participantes das Oficinas: 1. desvelamento - quando algo é tirado do seu ocultamento por alguém; 2. revelação - quando o desocultado é acolhido e expresso através de uma linguagem; 3. testemunhado - quando o linguageado é visto e ouvido por outros. 4. veracizado - quando o reconhecido é referendado como verdadeiro por sua relevância pública; 5. autenticado - quando, por fim, esse algo é efetivado em sua consistência através da vivência afetiva e singular dos indivíduos. Os dois últimos passos referem-se ao conhecimento que é produzido socialmente, sendo que, depois de testemunhado, ele é veracizado - referendado como verdadeiro por sua relevância pública 44 ESPAÇOS DE CRIAÇÀO EM PSICOLOGIA: OFICINAS NA PRÁTICA Depois, o autor dos trabalhos se apresenta e compartilha aquilo que procurou “anunciar” sobre si e, para finalizar, cada um fala como foi realizar a atividade. Como lidam com isto é discutido entre os participantes que vão criando um continente, no qual o trabalho vai ser compreendido e seguir com as atividades que serão desenvolvidas nos encontros seguintes. A consciência vai sendo ampliada, vai agregando novas comprccnsõcs, tanto no momento individual - confecção dos cartazes - quanto no grupai - compreensão c compartilhamento das impressões sobre os cartazes e sobre a experiência vivida. A palavra tem um papel importante ao permitir nomear o vivido e “enfatizar, reincidir sobre o já expresso [...] mas de uma maneira nova” (Freitas, 1995:163). Ao mesmo tempo, convidar os participantes a falar sobre as produções, o que é feito em diferentes momentos e de formas variadas, vai propiciando uma reflexão sobre a experiência. Segundo Schmidt (1990:1), “a reflexão opera sobre a vivência como o artífice sobre o diamante bruto (...) elaborando aquilo que vivemos, vemos ou ouvimos, correlacionando dados diversos obtidos na trajetória de nossas vidas, a reflexão cria elos de sentido”. Ver-se; ser visto; rever-se; ver os outros; ver-se vendo e ver os outros sendo vistos; vcr-sc com e cm grupo. No processo com as oficinas, dá-se um movimento de retro-alimentação entre ouvir-se, comunicar e ouvir. Os participantes vão se percebendo na trama de relações que estabelecem na sua interação com o mundo e com isto, novas perspectivas se abrem. Múltiplas são as possibilidades. Outras oficinas dão seqüência a esta, nas quais outros recursos facilitadores da expressão como recursos plásticos, dramáticos, corporais, dentre outros, são utilizados, sempre seguidos de troca acerca do que foi vivido por cada um. Compartilhar é um recurso facilitador da elaboração simbólica, que tem se mostrado bastante importante. Trocas no grupo: a palavra circula Para essa aventura meus mapas não lhe bastam. Todos os diplomas são inúteis. E inútil todo o saber aprendido. Você terá que navegar dispondo de uma coisa apenas: os seus sonhos. Os sonhos são os mapas dos navegantes que procuram novos Christina M. B. Cupertino (organizadora) 43 e, posteriormente autenticado - efetivado em sua consistência, através da vivência afetiva e singular dos indivíduos. Durante as oficinas, depois do processo de escolha do que será apresentado a partir do contato do participante com o tema - desvelamento - e depois das produções feitas - revelação - chega o momento de compartilhá-las, quando elas são testemunhadas. As produções são apresentadas ao grupo sem a divulgação do seu autor. Diante de cada uma delas, os participantes são convidados a se deixarem “tocar” e atentarem para os sentimentos, emoções, pensamentos ou impressões que estas despertam. Subseqüentemente, para notarem o que recebeu destaque no cartaz, o jogo de cores, como as informações foram dispostas no papel. Trabalha-se procurando discriminar sentimentos e percepções, impressões e julgamentos que fazemos automaticamente diante de um estímulo e, de uma forma mais ampla, procurando discriminar as experiências. Arnheim (1996) diz que o que as obras de arte criam - e eu amplio para os mais diversos tipos de expressão - são experiências. Estas consignas sugerem perspectivas para o olhar sair do padrão conhecido c poder vislumbrar além do habitual. E deixado um tempo para que um sentido se construa para cada um ou, como disse Cupertino (2001), mantém-se um estado de suspensão para não se cair na tentação de um nomear precipitado, que devolvería o estranho para a segurança do conhecido. Destaforma, é possível aprender com. O espaço para falar sobre estas impressões é aberto. Cada participante fala o que está vendo no cartaz e o que lhe parece que o seu autor quis comunicar. Em alguns casos, sentidos são apreendidos e surpreendem o seu produtor. Este percebe que algumas comunicações escapam à sua vontade e se fazem independente de sua intenção. Há trabalhos que são mais, outros menos compreendidos, conforme o projetado pelo seu realizador. Na sequência, é pedido que tentem adivinhar o autor do cartaz/ anúncio (independente de se conhecerem anteriormente). Os participantes costumam olhar para os cartazes e tentam associar as impressões que têm das imagens ali dispostas com qualidades percebidas nos colegas. Quando as pessoas não se conhecem, evidenciam-se as impressões que evocam as aparências, maneira como cada um se veste, se movimenta, fala e ocupa o espaço - a comunicação não-verbal. Christina M. B. Cupertino (organizadora) 45 mundos. Na busca dos seus sonhos você terá que construir um novo saber, que eu mesmo não sei... E os seus pensamentos terão de ser outros, diferentes daqueles que você agora tem. Rubem Alves (2000:85) Nas Oficinas de Criatividade, o conhecimento é gerado a partir da vivência. Cada indivíduo é fundamental, na medida em que, dispondo-se a participar e oferecer o seu modo de ver e sentir ajuda a ampliar a compreensão de todos. Ao mesmo tempo, as contribuições individuais formam composições singulares ao serem compartilhadas, tecendo uma trama única, ainda que a proposta seja reproduzível. A partir desta composição, o grupo vai se constclando com uma identidade própria e singular. A atenção e o cuidado com a formação e desenvolvimento criativo do grupo são fundamentais para oferecer o suporte necessário para as diversas experiências de seus participantes, sendo uma das principais funções do oficineiro. O oficineiro, como um viajante, prepara as malas, levando a bagagem necessária: proposta da atividade, material e o grupo, e parte em direção a um desconhecido destino. O que acontecer durante este percurso, ainda que possa acontecer em desacordo com o planejamento ou intenção do mesmo, faz parte do trajeto e deve ser incluído nas reflexões e direcionamento do trabalho. Numa atividade na qual se busca trabalhar a integração do grupo, os participantes mostrarem-se incomodados e angustiados e relatarem não terem conseguido interagir com os outros pode sugerir ao condutor das atividades que as mesmas não foram bem sucedidas. Entretanto, este deve abrir-se para acompanhar o rumo que elas tomarem e desapegar-se de expectativas que possa ter acerca das mesmas, administrando e suportando o ritmo c possibilidades do grupo, para que novos caminhos possam se delinear. A imprevisibilidade e a possibilidade de trabalhar com o que aparecer, sem um destino certo ao qual chegar, são próprias de qualquer trabalho psicológico e caracterizam a abertura necessária ao oficineiro. Aliás, o previsível é justamente a ocorrência de imprevistos, entremeados com fatos previsíveis, por ambos fazerem parte de qualquer processo. Segundo Halpern-Chalom (2001:36) 46 ESPAÇOS DE CRIAÇÀO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA em se tratando de lançar-se ao desconhecido, ao não saber, há algo que se mantém comum e, neste sentido, pode ser ou tomar- se conhecido: o próprio estar em processo. O saber-se em processo é o que pode vir-a-ser conhecido no desconhecido e, neste sentido, dar-lhe suporte. Apesar de ser importante criar e realizar atividades que, em si, convidem à reflexão, a maneira como estas são conduzidas é fundamental para facilitar a apropriação do que foi vivido. O oficineiro sai do lugar de saber sobre o outro, para ajudar a facilitar que o outro acesse o seu próprio saber. Neste sentido, oferece um modelo de atuação composta por limite, abertura e acolhimento, proporcionando aos participantes a vivência da possibilidade de escuta do outro, a partir da abertura para escutar a si mesmo. Como diz Cupertino (2001:17) “o trabalho psicológico [...] exige do profissional um estado constante de atenção, simultaneamente endereçada a ouvir o outro e, ao mesmo tempo, a si mesmo”. Tem-se, portanto, que a condução das atividades c mais ampla do que o conhecimento e aplicação de técnicas. Há que haver abertura para acompanhar o caminho que vai se mostrando durante a jornada. Considerações: o novo se apresenta Se vou todos os dias pelo mesmo caminho, não olho para mais nada, não presto atenção em mim ou no ambiente. Mas se penetro numa rua desconhecida, começo a perceber as janelas, os buracos no chão, despertando para as pessoas que passam, os odores, os sons. (Vianna, 1990:62) Após apresentar e embasar alguns parâmetros da prática das Oficinas de Criatividade, apresentarei reflexões de participantes do trabalho, colhidas no final de um semestre de vivências, a partir das quais tecerei mais alguns comentários. Trata-se de alunos do 5o ano de psicologia da Universidade Paulista que, além de reflexões sobre o processo, representaram-no com uma imagem. A intenção é poder, de forma breve, apresentar alguma elaboração da experiência vivida. Christina M.B. Cupertino (organizadora) 47 A compreensão do trabalho como um processo com altos e baixos, pertinentes à condição existencial humana, garante a sustentação necessária para suportar o trajeto. Segundo os alunos, a seqüência de atividades propostas foi proporcionando vivências pessoais e intersubjetivas, que possibilitaram a compreensão da proposta das oficinas. Quando há uma seqüência de atividades (independente de quais sejam) é possível compartilhar o fluxo natural de transformação que ocorre com cada um. Apropriar-se deste fluxo ajuda na aproximação e possibilidade de lidar melhor com o processo de elaboração da vida que não é previsível, como diz Chico Buarque (1967) na música Roda Viva: A gente quer ter voz ativa No nosso destino mandar Mas eis que chega a roda viva E carrega o destino pra lá. O momento em que “a roda viva carrega o destino pra lá” costuma vir acompanhado de desorganização, por sair fora do previsto. Entretanto, recuperar este momento posteriormente, ver para onde este desvio de percurso conduziu e situá-lo de uma nova forma dentro do contexto da vida, permite uma outra aproximação e apropriação do momento. Acompanhar o processo que se passa nas oficinas a partir da seqüência de atividades, portanto, é poder aproximar-se do fluxo natural da existência, de um processo, em processo,6 desfocalizando momentos e percebendo-os como parte de um todo. 6. Em trabalho anterior (Halpern-Chalom, 2001) fiz uma reflexão sobre a consciência do processo, cm processo, como um suporte importante nos trabalhos psicológicos. Entrar em contato com os sentimentos e lembranças de momentos difíceis (nos quais a roda viva carrega o destino pra lá) que estavam guardados, apesar de ter sido difícil num primeiro momento, trouxe alívio e ajudou a suavizar emoções sentidas. Uma aluna falou que era como se tivesse arrumado um armário, atividade que disse ter prazer em fazer, jogado fora coisas que já não serviam mais. Disse que foi como se este tivesse ficado mais organizada. Machado (1989) diz que a arre ajuda a ordenar as experiências e o mesmo pode ser pensado como fruto do trabalho com as oficinas. 48 ESPAÇOS DE CRIAÇÀO EM PSICOLOGIA: OFICINAS NA PRÁTICA Uma outra aluna disse que uma atividade - representar a própria vida em um gráfico - mexeu muito com ela. Relatou ter saído desconfortável da atividade, mas que rever situações que a haviam deixado magoada fez com que conseguisse percebê-las de uma forma diferente. Notou que vinha reagindo a algumas pessoas e situações a partir deste sentimento de mágoa e que este movimento todo implicou em mudanças na forma de lidar nestas situações: provocou uma ressignificação do que fora vivido. Jordão (1999:328) diz que “através de flashes do passado, novas construções podem ir se estabelecendo,tendo como criativa a possibilidade de reagrupar elementos já conhecidos, dando-se a estes conteúdos novas formas”. Outra analogia trazida foi com o livro “Olho Mágico”. Um aluno disse: Vocês já viram um livro chamado “Olho Mágico”? Ele é composto por figuras que se você olha, não vê nada. Você tem que desfocar o olhar, ficar olhando fixamente e achar a distância certa do olho. Aí, uma figura salta aos seus olhos e parece que dá para pegá-la. Fica tridimensional. Parece a mesma coisa aqui: a cada encontro eu vou percebendo coisas sobre mim que nunca tinha percebido. A imagem de uma metamorfose também foi trazida, junto com a reflexão de que as oficinas ajudaram a colocar em movimento sentimentos que anos de análise ainda não haviam feito. Refletiram, a partir desta afirmação, que as oficinas propõem tarefas que dirigem a atenção para aspectos que, na maioria das vezes, não são focalizados por nós. A proposta de dcscstabilizar, promover estranhamentos c o contato com o diferente a partir de temas pré-definidos, parece ter o potencial criativo mencionado. Alcm disso, o uso dc recursos facilitadores da elaboração simbólica e da expressão ajuda a acessar o vivido por caminhos incomuns, ajudando a perspectivar a experiência dc maneiras diferentes. Cupertino (2001:214) fala das oficinas como “campo para a vivência das diferenças, assumindo que só há experiência onde, desde o início, já se constituiu uma diferença desta para com a expectativa, para com o conhecido”. Outro tema que gerou reflexões foi o trabalho em grupo. Perceberam que as atividades afetam cada um de forma singular, porém, comum. Singular, pois as diferenças individuais se evidenciam nas diferentes histórias de vida que são, ali, divididas. Comum por explicitarem que, apesar das diferenças individuais, todos têm questões Christina M. B. Cupertino (organizadora) 49 a serem resolvidas. O encontro de singularidades e pluralidade, de pessoal e coletivo, ensejam um grande potencial de aprendizagem e desenvolvimento. Compartilhar as vivências trouxe um sentimento de pertença e ajudou a sair da sensação de solidão que alguns disseram viver. Ver que os outros também têm suas questões e estão, cada um à sua forma, tentando resolvê-las, acabou levando a pensar que é possível resolver as próprias questões de formas diversas às que vinham fazendo. Além disso, ouvir os outros, algumas vezes ajudou a dar contornos àquilo que pensavam ou sentiam, mas não haviam formulado. Isto ocorre, pois freqüentemente a expressão alheia traz algo que havia sido percebido, mas não formulado ou que não havia sido destacado para ser compartilhado. Por este motivo, muitas vezes, ouvir a contribuição do outro provoca uma reação de satisfação por esta complementar, surpreender ou nomear algo que havia ficado por dizer. Esta é uma riqueza do trabalho em grupo no qual a palavra circula, ou seja, é proferida por cada um dos participantes a partir de suas experiências. Compartilhar é um recurso facilitador da elaboração simbólica. Recurso este que disseram que aumenta o respeito pelos outros, pois parar para ouvir o outro - como fizeram nas oficinas - mostrou que os outros têm bastante a acrescentar. Segundo Schmidt & Ostronoff (1999:337) “as oficinas suscitam o rompimento com estados de isolamento, ativam laços sociais e de comunicação, contribuindo para o desencadear de sentimentos de enraizamento e pertença social”. O potencial do grupo de dar suporte para questões individuais também foi mencionado como significativo por uma aluna que disse ter se sentido acolhida quando compartilhou uma vivência difícil. Ela acrescentou, procurando elaborar o papel do oficineiro, ter percebido que o grupo deu as respostas que ela precisava. O papel do oficineiro foi refletido como aquele que tem o cuidado para o estabelecimento de um grupo com potencial criativo que, por sua vez, é capaz de cuidar de cada membro. O lugar do oficineiro como profissional que ajuda o outro a acessar o seu próprio saber, ao invés de oferecer respostas, foi sendo compreendido a partir da experiência. A partir das atividades, elaboradas em um projeto com um número delimitado de encontros, percebe-se que um movimento criativo se constcla. Movimento este que instaura novas possibilidades de olhar a si mesmo e ao mundo, revendo visões pré-concebidas e podendo ver 50 ESPAÇOS DE CRIAÇÀO EM PSICOLOGIA:OFICINAS NA PRÁTICA além e reconfigurar o conhecido. Este movimento, necessário ao homem moderno, pode ajudá-lo a reinstaurar a auto-confiança e capacidade de ultrapassar momentos difíceis e disruptivos, através da aprendizagem da possibilidade de abertura para a vida, composta de momentos que se integram num todo. O PROCESSO DE ELABORAÇÃO SIMBÓLICA SEMEANDO NOVOS CAMPOS ...Deus é um grande Intervalo, Mas entre quê e quê? Entre o que digo e o que calo... Fernando Pessoa - ele mesmo. Num movimento em espiral, depois desta reflexão, retomo o tema das oficinas para olhá-lo a partir dc uma outra perspectiva: a processual. Tem-se, portanto, um trabalho cujo suporte encontra-se no processo de elaboração simbólica. O objetivo é instrumentalizar os participantes a olhar e suportar a dinâmica dos processos existenciais humanos para os quais não há receitas, senão a necessidade de abertura, disposição, paciência e confiança de que é das trevas que se faz a luz e vice-versa. Experimentar isso na prática é uma estratégia de formação que visa resgatar nos indivíduos a condição de lidar com as suas próprias experiências e, em termos de aprendizagem, envolver o aprendiz como um todo e não somente a sua disposição intelectual. Apesar do processo não ocorrer com todos os participantes e do tempo de amadurecimento desta possibilidade ser variado, para alguns fica plantada uma semente, enquanto para outros se mostra possível colher alguns frutos. O trabalho ajuda a abrir portas para o homem moderno se inserir na sociedade e contribuir com a mesma a partir de um outro lugar e a possibilidade de ação social se abre através de sementes que possam germinar em outros campos. Christina M.B. Cupertino (organizadora) 5 I Referências Bibliográficas ALVES, R. A arte de ensinar. São Paulo: Papirus, 2000. ARNHEIM, R. Arte e percepção visual. São Paulo: Pioneira: Universidade de São Paulo, 1996. BACIIELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Manins Fontes, 1993. BENJAMIN, W. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. BUARQUE, C. Letra e música I. São Paulo: Cia das Letras, 1989. CRITELLI, D. M. Analítica do Sentido: uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo: EDUC: Brasiliense, 1996. CUPERTINO, C. M. B. Criação e Formação: fenomenologia de uma oficina. São Paulo: Arte & Ciência, 2001. FIGUEIREDO, L. C. 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