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As vozes do mundo: ouvir para entender Magda Dourado Pucci Texto baseado na comunicação proferida durante a 3ª Jornada de Estudos em Música e Mídia [...] nenhuma língua utiliza tudo que a garganta pode produzir, enquanto, no canto, as capacidades da voz se expandem. O canto visa preencher todo o espaço acústico da voz. Paul Zumthor, Escritura e nomadismo Minha curiosidade pelas vozes do mundo já ganhou a maioridade. Já há mais de 18 anos, ouvi pela primeira vez o canto das mulheres búlgaras e as polifonias dos pigmeus da África Central e percebi que existem no mundo muitos outros timbres vocais, que me abririam portas para um imaginário sonoro que era inteiramente novo para mim. A partir de então, me dediquei a conhecer as músicas de outros povos, numa pesquisa autônoma, sem vínculo acadêmico. Esse trabalho ganhou fôlego em 1995, quando criei o grupo Mawaca, onde desenvolvi um trabalho de etnomusicologia informal, buscando criar e experimentar arranjos baseados em distintas práticas musicais, o que me possibilitou colocar em prática os sons que eu vinha ouvindo. A voz em suas múltiplas expressões foi o elemento propulsor da minha pesquisa. Ao ouvir pela primeira vez o canto das mulheres búlgaras, percebi que ali havia algo mais do que apenas um timbre diferente. Por trás daquela cortina sonora, havia rito, corpo, performance, história – um conjunto de valores fundantes de uma certa cultura (Zumthor, 1999, p. 61). Igualmente, quando ouvi uma gravação do canto dos pigmeus da África Central, fiquei intrigada: como era possível alinhavar tantas linhas vocais sem um regente ou uma partitura? Aquela sofisticada polifonia me revelava uma paisagem sonora única e me proporcionava a sensação de um “teletransporte” através do som. Por mais natural que fosse para os pigmeus, aquele jeito de fazer música me soava tão estranho e encantador que me instigou a procurar entender como se dava aquele processo. Mais do que simplesmente tentar reproduzir o timbre de “vozes estranhas e desconhecidas‟, busquei, com o Mawaca, buscar compreender o contexto histórico, social e antropológico. A prática musical vem me inspirando perguntas que são como pistas para “tirar o pó” da história e, buscando respostas na Antropologia, estabelecer conexões que aprofundem a performance do grupo e ultrapassem a mimese puramente técnica. Assim, o trabalho do Mawaca é o resultado de uma prática aliada à pesquisa, que abarca parte da riqueza dos diferentes registros e timbres vocais existentes em diferentes tradições de várias partes do mundo. ------------------------------------------------------------------------------------------------------- Narradores e cantores de países do Oriente, da África, da Ásia e do Mediterrâneo têm muito a nos mostrar em relação à exploração sonora da voz, seja nos timbres, nas ornamentações, nos efeitos sonoros, nas formas de respiração, pois estamos presos aos padrões vocais da música comercial. A audição desses exemplos musicais proporciona a compreensão de outros referenciais vocais, desenvolvendo a consciência de que não é possível restringir o canto a uma única técnica. O ser humano – conforme suas necessidades cotidianas, estéticas e ambientais – se imbui de técnicas que dão à voz diferentes aspectos e sonoridades, e o resultado estético é a prova do entrelaçamento entre cultura e voz. Valho-me aqui de alguns dos parâmetros de classificação propostos pelo Centre National de la Recherche Scientifique e do Museé de L´Homme,1 pelos quais a voz é apresentada em seu amplo espectro sonoro, incluindo chamados, gritos e interjeições; a voz aerada, que usa a respiração como ritmo e recurso tímbrico; as vozes caricatas; as vozes que imitam instrumentos musicais; as vozes ornamentadas (de caráter estrutural); os tipos de vibrato e o canto difônico, além, é claro, dos registros conhecidos como voz de cabeça, falsete, voz de peito, voz mista, yodel; os timbres nasais, guturais, etc. Ainda assim, percebemos quão pobre é o nosso vocabulário para definir as diferentes formas de produção vocal no mundo – estamos ainda atrelados aos termos da música clássica europeia e da fonoaudiologia. Segundo Alan Lomax, é possível reconhecer a origem de uma canção ouvindo apenas um pequeno trecho dela, seja pelo timbre vocal, pela maneira de cantar ou pelo tipo de entonação, mas nem sempre é possível explicar com palavras o que ouvimos. Nem os termos técnicos como “nasal” e “gutural” dão conta da diversidade existente no mundo. Há vozes nasais e nasais, guturais e guturais... Por exemplo, o canto gutural flamenco não soa do mesmo modo que o canto gutural do povo Xhosa ou do da Bretanha. Conseguimos perceber que são timbres diferentes, mas não há termos musicais ou técnicos para distinguir essas características de nasalidade ou 1 O projeto dirigido pelo etnomusicólogo Hugo Zemp gerou um CD triplo Les Voix du Monde, Une Anthologie des Expressions Vocales produzido em 1996 cujo conteúdo foi extraído do material das expedições sonoras promovidas pelos dois institutos. Alguns exemplos musicais presentes no CD podem ser ouvidos no Youtube gratuitamente (indicados nas referências NR deste artigo quando existente) e também no site da Indiana University (http://www.cs.indiana.edu/rhythmsp/archive_promo.html). guturalidade. “A voz escapa às apreensões parciais das várias disciplinas e técnicas que dela se ocupam: fonética, literatura oral, acústica musical, canto, etnomusicologia, fonoaudiologia e psicanálise”, explica Elisabeth Travassos (2008), em seu importante artigo Objeto fugidio: voz e musicologias. E Zumthor complementa o pensamento da etnomusicóloga: A voz possui não apenas qualidades materiais – timbre, altura, tessitura e tom –, mas também qualidades simbólicas. As mitologias exploraram ao extremo as virtualidades da voz. A voz ultrapassa a língua, ultrapassa a palavra. A Antropologia – somada à Fonologia, à Psicologia, à Fonética e a História – seria uma ferramenta fundamental para propiciar uma reflexão científica sobre a voz (Zumthor). A ciência da voz passa por perguntas muito difíceis: como classificá-la? Como descrevê-la? Como situá-la? Como distinguir o racional do emocional? Como definir os aspectos subjetivos, se eles são relativos? Escolhi trechos de algumas expressões vocais2 que mostram a diversidade e algumas conexões entre cultura e voz. Audição de exemplos vocais Canto aspirado Burundi3 Whispering song accompanied by inanga – Burundi musiques traditionnelles (http://youtu.be/MHVNx_7WIgA) O canto aspirado do homem do Burundi nos mostra uma voz semifalada que usa a respiração como recurso timbrístico. Fica na fronteira entre o suspirado, o falado e o cantado e está completamente sincronizada com a harpa inanga, que dá um importante apoio rítmico. É uma performance para entretenimento de poucas pessoas da corte real. Em geral, os temas são relacionados a fatos históricos, épicos pastorais contados de forma moralizante ou bem-humorada. Pertence à categoria „Voz Mesclada com Respiração‟, que também contempla outros exemplos como o canto dos tuaregues do deserto do Marrocos 2 Alguns exemplos musicais presentes no CD podem ser ouvidos gratuitamente no Youtube (indicados nas referências NR deste artigo, quando existem) e também no site da Indiana University (http://www.cs.indiana.edu/rhythmsp/archive_promo.html). 3 Faixa 13 do CD Burundi: musiques traditionelles. Ocora Radio France, 1988, C559003. e os cantos de cura de Madagascar, cuja hiperventilação leva ao transe. Não é possível afirmar categoricamente que esse tipo de técnica está relacionado apenas ao transe ou às práticas xamânicas de cura, mas é aí que mais se as observa, pois, mais do que projetar o som externamente, a função da respiraçãoforçada seria a de criar um estado mental alterado, dando subsídios para uma interação com os espíritos que porventura venham. Canto difônico: Overtone chant Vídeo com seis estilos de canto difônico (khoomei) da Mongólia (http://youtu.be/NNVrmW0VL2I) Canto difônico da Mongólia (http://youtu.be/HwANedEkqaY e http://www.youtube.com/watch?v=AxttAghqrv8&feature=related) O canto difônico é uma técnica vocal centro-asiática que toma como base um som fundamental (harmônico 1) que gera melodias usando os harmônicos ultra-agudos. Essa técnica – também conhecida como overtone – explora os harmônicos modificando o formato da boca e a posição da língua com vogais que se alternam. O som que excita essa emissão pode ser externo (como a gaita de boca [jews harp], ou um arco, ou até mesmo um inseto!) ou interno, usando, neste caso, as próprias cordas vocais, como fazem os cantores da Mongólia, da Sibéria, de Tuva e também do povo Xhosa, na África. O exemplo que ouvimos é de Tuva, um minúsculo país da Ásia Central, encravado entre a Rússia e a Mongólia, onde o gênero musical khoomei (pronuncia-se “kulmei”) significa literalmente “garganta”. Antes restrita às montanhas centro-asiáticas – e proibida pelo governo soviético –, essa técnica milenar ganhou o mundo e é utilizada por muitos grupos de música tradicional e até de rock tuvano (como o grupo Huun Huur Tu4) que se apresentam em festivais. Em outros países europeus, algumas pessoas têm desenvolvido o canto difônico como terapia ou como um recurso extra na performance.5 O etnomusicólogo vietnamita Tran Quang Hai pesquisou diversas formas do canto difônico no mundo e adquiriu uma extraordinária habilidade a reproduzir essas diferentes técnicas, que podem ser vistas em diversos vídeos no Youtube em que ele usa um aparelho (sonagram) que 4 Huun Huur Tu (http://www.hhtmusic.com). 5 Há exemplos de canto tuvano em http://www.youtube.com/watch?v=tT2IJc4oZvI&feature=fvwrel. mostra o espectro sonoro da voz. Num deles,6 Hai canta a melodia de Ode à alegria, de Beethoven, com os harmônicos, mostrando total domínio do canto difônico. Entre o canto e a fala – característica do religare? A mescla entre a voz falada e cantada é observada em diferentes pontos do planeta. Segundo Zumthor, o limite ou a diferença entre o que é cantado e falado é tênue. No uso ordinário da língua, o falar só utiliza uma parte reduzida dos recursos da voz, enquanto nem a qualidade, nem a riqueza de timbre desta são linguisticamente pertinentes. Nenhuma língua, a meu ver, utiliza tudo o que a garganta pode produzir. Enquanto, ao contrário, no canto, as capacidades da voz se expandem. O canto visa encher todo o espaço acústico da voz. Quando é falada, a linguagem subjuga a voz. Falo para dizer um certo número de coisas; o que predomina (exceto na poesia) é a linguagem na sua função referencial. Pelo contrário, no canto, a linguagem serve principalmente para exaltar a potência da própria voz, ainda que sob pena de um obscurecimento do sentido. Tomo mundo pode observar, desse modo, como a linguagem, nos longos solos de ópera, acaba por tornar-se incompreensível, e, não obstante, isso não diminui em nada o prazer do ouvinte (Zumthor, 1990, p. 71). Na maioria dos casos, esse recurso está relacionado ao religare, palavra latina que significa “religação” [com o divino], relação dos seres humanos com o que eles consideram sagrado, espiritual, santo ou divino. Ouçamos três exemplos que fundem o canto e a fala de diferentes formas: uma recitação corânica, uma declamação do texto indiano Rig Veda e um excerto de um sermão de uma reverenda estadunidense. Entre eles, há um ponto comum: a função religiosa. E apenas isso, pois os resultados sonoras são completamente diferentes. Recitação corânica Alcorão – Capítulo 2 – Versículos 55-73 (http://youtu.be/8sIJLdPjLVA) A qira’ah – recitação do Alcorão –, para nós, ocidentais, poderia ser considerada música, porque as palavras ganham contornos melódicos, e a voz do orador (adhan) 6 http://www.youtube.com/watch?v=uFJQfe0UVHE&feature=related apresenta recursos potentes, pois, antigamente, esses oradores ficavam nas torres das mesquitas e tinham que ser ouvidos por toda a cidade sem o auxílio de amplificadores. No entanto, para os muçulmanos, o qira’ah é uma apenas oração, e não música. A palavra é a essência plena que dá significados aos mandamentos de Alá. O significado literal da palavra qira’ah é “leitura”, mesmo porque o Islã, na sua origem, condena o uso da música nas cerimônias religiosas (Bohlman, 2002, p. 56). Já o termo “música” (musiqa), na história da música árabe, está relacionado ao mundo externo e pagão, onde são utilizados instrumentos musicais, marcando uma distinção entre a música estritamente vocal profana (ghina‟) e a instrumental, para entretenimento das pessoas.7 O que soa como música para ouvidos ocidentais é inquestionavelmente secundário para efeitos de projeção do texto e da expressão religiosa no contexto muçulmano (Bohlman, 2002, p. 57). Rig Veda Rig Veda – 1 (http://youtu.be/-q2NBavpY-c) Já na recitação do Rig Veda,8 o texto é semicantado e semifalado, e o resultado sonoro é diferente da recitação corânica. Os vedas indianos foram transmitidos oralmente, em forma de verso, muitos séculos antes de ser escritos. Assim, transformar o Rig Veda em versos com rimas (isto é, com ritmo) facilitou a memorização desses longos textos milenares. Em geral, o Rig Veda é recitado em coro masculino, segue uma rítmica semilenta – conduzida pelo ritmo da palavra – e tem uma entonação característica quase monocórdia. Sermão protestante Gospel A sermon by Reverend Audrey F. Bronson, pastor of the Church of the Open Door, with accompaniment at the Hammond Organ. In: CD Les voix du Monde9 7 Esses conceitos foram discutidos no Congresso do Cairo da Música Árabe, em 1932 8 O Rig Veda contém a parte mais antiga dos textos sagrados indianos e consiste de 1.028 hinos. Ao longo dos séculos, os mestres e sábios refinaram esses ensinamentos e procuraram dar mais importância aos significados éticos e metafóricos que deles derivam do que ao sentido literal das palavras (N.A.). 9 Faixa 15 do CD 1 do CD Les voix du Monde Recorded by Jean Schwarz (1978). Archive n. BM 982.024 As palavras da reverenda são acompanhadas pela congregação, que a segue entusiasticamente com exclamações e interjeições que dão ritmo à cerimônia protestante. É interessante observar como, aos poucos, a reverenda vai passando com maestria do “modo falado” ao “modo cantado”, fazendo-nos entender como se deu esse processo ao longo dos séculos. A fala que vira canto está intimamente relacionada ao mundo religioso, como se fossem os deuses, os espíritos que, não diferenciando o canto da fala, transitam naturalmente entre eles. Nos três exemplos, a fala se intercala com o canto – ora mais declamada, ora cantada, ora mais monódica, com resultados sonoros completamente diferentes. Então, não deveríamos ter outros termos mais específicos para designar cada uma dessas expressões? Segundo Hugo Kemp,10 a classificação para esse tipo de expressão vocal que alterna canto e fala estaria dentro da categoria “Gritos, Chamadas e Interjeições”, que abriga também as ululações árabes berberes (li-li-li), os choros fúnebres dos povos indígenas brasileiros Kayapó, Nambiquara e Suyá, os gritos de trabalho, as exclamações do teatro Nô,11 os cantos de caçada dos pigmeus africanos e o Kecak balinês12 – expressões que, embora soem muito diferentes umas das outras, são alocadas numa única categoria. Como poderíamos distingui-las? Pelo aspecto cultural ou pela fonoaudiologia? É evidente que há uma relação intrínseca entrea voz e o corpo, entre a voz e o espaço físico e com situações culturais que são fundamentais na compreensão dessas diferentes expressões. Mas por onde começar? Ouçamos outros exemplos. Canto romeno Lautari Alexandru Cercel – Vara, vara, primavara (http://youtu.be/HArIk82JMR8) Taraf de Haidouks – Cantec batranesc de haiduc (http://youtu.be/bdjT_FrHbAg) 10 ZEMP, Hugo. Libreo to CD Les Voix du Monde, p. 114-75. 11 Kashu-Juku Noh Theater (http://youtu.be/o--VbWf6M0c). 12 Kecak Baraka (http://youtu.be/aGXcnWUqV-Y). Na cultura cigana romena, há um estilo musical que mistura as três formas: cintece batrinesci (canção dos tempos antigos), vulgarmente conhecida como “balada” e interpretada pelos lautari, músicos profissionais que animam casamentos ciganos com histórias dramáticas, alternando passagens faladas com trechos cantados com frases descendentes. O exemplo do CD Les Voix du Monde relata a sagaz vitória de um herói que depara um monstro mítico.13 Nesse caso, mais uma vez, o resultado sonoro é bem diferente dos exemplos anteriores, o que confirma a inexistência de termos adequados para descrever vozes que falam e cantam com maestria. Esse senhor que “canta/conta/declama” essa “canção/mito/épico” romeno desenvolveu uma técnica que é particular, mas revela uma forma de expressão característica de um determinado grupo cigano da Romênia. O mesmo ocorre com os cantos xamânicos de povos indígenas americanos, em que a fala cantada, ou o canto falado, é uma característica predominante, embora se apresente sob diferentes formas. Contação de mito no mundo indígena Mito contado por Iawakedi - Faixa 6 do CD do livro Why Suyá Sing (Seeger) Ouvindo o mito Suyá14 do Xingu contado por Iawakedi e gravado pelo antropólogo e etnomusicólogo Anthony Seeger, deparamos um misto entre canto e fala com uma cadência sonora peculiar. Seeger descreve com detalhes os gêneros vocais dos Suyá e seus diferentes aspectos. Um deles, a narrativa mítica, ganha sílabas alongadas que garantem ao fraseado um efeito especial, além de proporcionar um contorno melódico. A performance de Iawakedi apresenta formas arcaicas da fala a que o tom de voz e o fraseado cadenciado de cantores/narradores experientes garantem uma boa audiência. One of the obvious differences among genres is the phrasing. As speech forms (kapérni) become more and more public, the phrases become longer and more regular – hence the name “slow speech” (kapérni kahrido). In addition to their length, the oratorical phrases are more melodic than everyday speech. Subject changes are also marked by lengthening a syllable, providing a cadence (Seeger, 2004, p. 48). 13 Faixa 2 do CD Ballads and Festivals in Rumania, Collection CNRS; Musée de l´Homme, Le chant du monde LDX 748416.47, e também na faixa 24 do CD 1 do Voix du Monde. 14 Povo indígena brasileiro que vive no Alto Xingu também conhecido como Kĩ sêdjê (N.A.). Na sua performance, a narradora, uma senhora de mais de 60 anos, utiliza longos glissandos de voz para dar ênfase ao tempo remoto de sua narrativa (algo como naquele teeeempo, muito antiiiigo), carregando a fala de sentidos. Essa fala cadenciada, com contornos que sobem e descem do agudo para o grave, apresenta-se aos nossos ouvidos como musicalidade. A verbalidade da sua “contação” é musical. E essa parece ser uma característica básica das narrativas indígenas (Pucci, 2004, p. 30). Registros vocais, mais de dois! No Ocidente, fala-se na existência de apenas dois registros: a voz de cabeça e a voz de peito, embora haja ainda o strohbass, também conhecido como mecanismo zero, e o assovio (mecanismo 3). Os monges budistas e os xamãs tuvanos usam a voz strohbass e, ao mesmo tempo, conseguem fazer soarem os harmônicos agudos, transformando-os em melodias (canto difônico). Os cantores da Nova Guiné e alguns povos indígenas brasileiros usam o segundo registro (nasal e agudo) evitado pela técnica do canto lírico. Essa nasalidade indígena impregnou a musicalidade brasileira, fato já constatado por Mário de Andrade, que não considerava a técnica do bel canto – praticada no Brasil (e no mundo!) – adequada às canções brasileiras. Para ele, a emissão vocal soava “encasacada” (Andrade, 1965, p. 126) e empobrecia nossa musicalidade (Herr, 2004). No canto lírico, ou no bel canto, a passagem entre um registro vocal e outro deve ser disfarçada ao máximo, pois os padrões cultos europeus reprovam a “quebra” da voz que se produz aí. Contudo, algumas culturas têm técnicas que utilizam os dois registros vocais como, por exemplo, o yodel, encontrado não só nos Alpes, mas também na Oceania, no Irã, na Albânia e na África. O yodel pode usar intervalos de sexta e sétimas com sílabas específicas para cada registro. O exemplo que ouvimos é do Malawi, do povo Mang‟anja15 de Nsanje,16 e o nome da técnica é chigolingo, caracterizada pela sincronização da respiração e pela alternância da voz de peito com a de cabeça. Os sons são feitos continuamente, inspirando e expirando o ar, mudando os timbres com a língua em formato de U, para obter o som flautado. O estilo interpretado chama-se mangolongozi e é feito como uma atividade lúdica ou um canto de trabalho como descascar milho ou fazer a argamassa para construir casas. 15 Também conhecido como Mang‟anja, o Maravi (Nyanja) é um povo do sul do Malawi que vive principalmente em Chikwawa, no vale do rio Shire (N.A.). 16 Faixa 1 do CD B Opeka Nyimbo. Musiker-Komponisten aus dem südlichen Malawi, gravado por Gerhard Kubik, 1980. Museum Collection Berlin, MC15 e também faixa 33 do CD 1 Les Voix du Monde, Une Anthologie des Expressions Vocales. Le Chant du Monde e Harmonia Mundi, Alemanha, 1996. Esses exemplos mostram o quanto a voz se molda às necessidades da expressão humana, seja ela coletiva ou individual, e como a criatividade e o ambiente conduzem a possibilidades variadas. Ornamentação Mais do que um mero adorno sem função, a ornamentação é um traço fundamental em muitas formas de canto, integrando a estrutura musical e definindo seu estilo. Na música árabe em geral, usam-se muito os melismas (fórmulas melódico-rítmicas sobre uma sílaba), além de trinados e vibratos, que dão uma tonalidade totalmente diferente às vozes características da cultura de origem persa. Para um artista árabe, a ornamentação não é um complemento ou um elemento que se possa suprimir, mas “la materia misma a partir de la cual se fabrican los infinitos motivos (...) La ornamentación es la sustancia de la improvisación (...) y los melismas son el tejido del que está hecha la progresión tonal” (Faruqi, 1978, p. 17-28). A própria matéria a partir da qual se produzem os infinitos motivos (...) A ornamentação é a essência da improvisação (...) e os melismas são o tecido de que é feita a progressão tonal. Seria ocioso buscar uma linha melódica depurada num mawwal,17 pois essa forma se baseia uma sucessão de melismas, e, tal como na arte decorativa muçulmana, há um desejo de criar uma divisão infinita entre espaço e tempo, o taqsim. Assim, o ornamento é uma criação espontânea e uma organização do tempo. La ornamentación es un vocabulario, un conjunto de técnicas de emisión del sonido, vocal o instrumental, de juegos de timbre, de ritmo, de relleno del fraseo, de recargamiento sonoro formando motivos utilizables a placer18 (Lagrange, 1997 p. 97). 17 O mawwal é um termo genérico que designa vários tipos de poemas em dialetos que podem ser declamados ou cantados. É costume preceder o texto com uma melodia improvisada sobre expressões que sempre se repetem. Há mawwal políticos, de amor feliz, de sofrimento, outros com narrativas longas que fazem partetanto do repertório erudito ou rural. É comum também o jogo de palavras codificadas que fazem a alegria da plateia ao tentar decifrá-los (Lagrange). 18 “A ornamentação é um vocabulário, um conjunto de técnicas de emissão sonora, vocal ou instrumental, de jogos de timbre, de ritmo, de recheio do fraseado, de recarga sonora formando motivos utilizáveis à vontade” (Lagrange, 1997, p. 97. Dhrupad – Gundecha Brothers Dhrupad vocal performance (http://youtu.be/Y5DOy3qkeDU) Na música do norte da Índia (Hindustani), o dhrupad é uma forma clássica e denota tanto o verso como a forma poética e o estilo em que é cantado. O ornamento do dhrupad19 usa a glote e interrompe o som alguns segundos. Austera e cheia de regras, a forma de cantar do dhrupad exige do cantor uma sonoridade vocal especial que explora os tons graves e nasais e que tem a palavra como eixo da improvisação, em que os ornamentos fazem toda a diferença. Vozes e instrumentos e a imitação de instrumentos na voz Há um número muito grande de técnicas em que a voz faz interessantes contrapontos e diálogos com instrumentos de sopro, de cordas ou de percussão. Bons exemplos são os didjeridus australianos20 (em que se canta dentro do instrumento) e os pigmeus Aka da África Central (com pequenas flautas).21 Mas há também o uso da voz imitando instrumentos, como no scatting canadense (comum no jazz dos EUA), nos cantos das mulheres berberes e no canto celta. Ouviremos agora a polifonia vocal dos pigmeus de Aka, que preservam um tesouro cultural que exerce grande fascínio em quem os ouve. 19 O termo dhrupad é a junção de duas palavras em sânscrito: dhruva (fixo) e pada (palavras ou poema) (http://spicmacay.com/articles/dhrupad). Fixo, por se tratar da forma vocal mais antiga e “pura” da Índia e por sua grande austeridade. Dos templos, o dhrupad foi parar nas ruas, cantado pelos menestréis errantes, e nas cortes reais, até chegar às salas de concerto. A apresentação do dhrupad segue três momentos: o alap (elaboração do raga), o jor (variações vocais sobre uma base rítmica) e o jhala (vocalização acelerada). Há eno site http://www.dhrupad.info/, a música está em http://www.myspace.com/dhrupad1. 20 No Youtube, há vários vídeos com o professor da Indiana University School of Music Andrew Dawson, trompetista e estudioso do didjeridoo australiano. Ele explica as diferentes formas de tocar trompete: como produzir o som básico, fazer a respiração circular, criar padrões rítmicos, mudar as notas e tocar determinadas canções com a boca e os lábios (http://youtu.be/HBaiiL17ai0; http://youtu.be/tOZPPlPvgfo; http://youtu.be/b8pFwSCEbAQ). 21 Ver vídeo Aka Peoples Music, Indigenous Africa, Hindewhu Flute/voice (http://youtu.be/TCmC8MK1z1k). Polifonia vocal dos pigmeus na floresta da África Central The Polyphonic Singing of the Aka Pygmies of Central Africa (http://wn.com/The_Polyphonic_Singing_of_the_Aka_Pygmies_of_Central_A frica) Five Aka Women Yodeling (yelli), Aka Peoples of the Forest (http://youtu.be/tHZe8mtqa3I) 2 'yelli' (yodeling) songs by the women, then a third song of large group singing with polyrhythm (http://youtu.be/HRVPieyKv8M) O caso dos pigmeus entraria em diferentes categorias da classificação de Zemp. Seria tanto um tipo de yodel, em que as vozes intercalam dois registros vocais (o de cabeça e o de peito), quanto um que vozes se alternam com flautas, como no canto que usa a respiração como recurso estilístico e no procedimento musical – a polifonia vocal. Por essa e outras razões, a música dos pigmeus é reconhecida por sua qualidade extraordinária e pelas harmonias modais sobrepostas à polifonia, dialogando com os sons dos insetos e com todo o ambiente sonoro da floresta. Cantam melodias baseadas em escalas pentatônicas que se cruzam de forma sofisticadíssima. E, mesmo entre os diferentes grupos de pigmeus (são vários), há diferenças estilísticas.22 Segundo José Miguel Wisnik: A música dos pigmeus Aka é uma joia do mundo modal. O mundo rítmico botando o pé no mundo melódico, o mundo melódico botando o pé no mundo rítmico. Percussões tomando a forma de alturas, as vozes tomando o caráter das percussões. (...) Os pigmeus realizam, em textura polifônica, o princípio da música modal que leva, em última instância, à superação da melodia pelo pulso: aqui não temos temas, nem mais movimentos de melodia; em vez disso, uma harmonia de ritmos que resulta de uma intensa e impressionante saturação melódica. As vozes se sobrepõem segundo o sentido original do contraponto: ponto contra ponto, nota contra nota. (...) A polifonia das alturas e durações, unida à granulação dos timbres rebatidos da voz, leva a uma estranha vertigem de tristezalegria (Wisnik, 1989, p. 86-7). Usamos o termo “polifonia” para designar um tipo de procedimento vocal dos pigmeus, assim como yodel23 para nos referirmos à modulação da voz de um registro para outro. No entanto, nenhum dos dois termos seria apropriado para dar nomes aos exemplos 22 Arom Simcha gravou os pigmeus Babenzelé numa savana do Norte nos anos 1960, revelando ao mundo europeu uma forma de fazer música até então nunca ouvida. Louis Sarno e Bernie Krause também fizeram gravações importantes da música dos pigmeus nos anos 1990 (N.A.). 23 De acordo com o dicionário Oxford, yodel é derivada da palavra alemã jodeln, que designa uma forma de cantar nos Alpes. vocais que ouvimos, pois nos remetem a outros estilos de música, bem diferentes, estética e tecnicamente falando. Coro das mulheres búlgaras The Mistery of Bulgarian Voices (http://themysteryofthebulgarianvoices.com/SOUNDNAILS.html) Le Mystere des voix Bulgares – Bulgarian choir 3 songs (http://www.youtube.com/watch?v=IZ4LCejQg8o) Durante o período da dominação soviética, várias mulheres búlgaras migraram do campo para as cidades e formaram num coro para cantar canções tradicionais. Ao invés dos procedimentos harmônicos dos corais europeus, elas cantavam usando o estilo da Trácia e de Rhodopes e a polifonia com pedal (drone) das regiões de Shop e Pirin, conhecida como Macedônia (Rice, 2004, p. 58). A melodia é acompanhada de um pedal vocal que imita o som da gaidar – gaita de foles búlgara –, criando “naturalmente” várias dissonâncias, principalmente intervalos de segundas menores e maiores que dão um efeito especial a esse estilo vocal. Os arranjos dos coros búlgaros são feitos para três até seis vozes diferentes, no estilo europeu por compositores contemporâneos, mas não soam nada europeus, pois o timbre vocal dessas mulheres é inconfundível e, somado aos ornamentos, faz a diferença e encanta o mundo. O que nasceu como um coral estatal sem muita graça se transformou num fenômeno na Europa, passou a ser tratado como Le mystère des voix bulgares24 e percorre os palcos do mundo. Como poderíamos classificar a voz das mulheres búlgaras, a não ser com o vago termo “gutural”? No entanto, há muito mais no timbre, na emissão vocal e nos procedimentos desse canto que o fazem tão peculiar. A polifonia sarda – Canto a tenori Tenores de Bitti Mialinu Pira (www.tenoresdibitti.com/cenniengl.htm) O canto a tenori, também conhecido como polifonia sarda, é a expressão musical mais arcaica da Sardenha e é prova da prática polifônica em tempos remotos. É composto por quatro cantores – bassu (baixo), contra (contralto), mesu oche (voz do meio), oche (voz 24 Site do coro búlgaro (http://themysteryofthebulgarianvoices.com/). principal) – dispostos em círculo, imitando a forma arquitetônica da antiga civilização nurágica da Sardenha. É uma maneira muito particular de cantar, sobretudo pela característica timbrística. Duas vozes guturais – o bassu e o contra – produzem graves profundos e um vibrato distintoe mantêm a nota fundamental da tríade sobre a qual se encaixa a polifonia e uma quinta acima, que se caracteriza por um som mais linear, metal e menos vibrato. Contra e bassu cantam em movimento paralelo, com sílabas sem sentido (bim bam boo). A voz do meio enriquece a música com floreios (giratta), num virtuosismo vocal que se integra às duas vozes guturais constituindo um acompanhamento harmônico para o solista, que lidera os tenores entoando e fazendo cadências com melodias silábicas e não melismáticas. O solista pode parar e esperar a resposta dos tenores ou continuar com o coro. É difícil determinar as origens do canto a tenori, provavelmente de cerca de quatro mil anos atrás. A natureza desse estilo parece enraizada na solidão da vida pastoral, em que as pessoas mantinham um estreito contato com os animais e com a natureza – que inspiram o timbre vocal desse estilo, com a imitação de ovelhas e vaca e do som do vento. Bitti é um lugar onde se pratica o canto a tenori, e o exemplo que ouvimos é interpretado pelo grupo Mialinu Pira,25 que, das ruas da Sardenha, passou a apresentar seu rico repertório de canções seculares e religiosas em festivais internacionais. Tanto timbre como procedimento vocal e estrutura musical criam uma sonoridade única, que não podemos definir precisamente. São vozes guturais? Mas são diferentes de outros exemplos de guturalidade que ouvimos. Que termo definiria melhor essa forma de cantar? ______________________________________________________ Eu poderia me estender com mais uma série de exemplos, para mostrar como ainda estamos carentes de estudos mais profundos das expressões vocais existentes no mundo. Fiz questão de colocar o maior número possível de links de sites onde se podem ouvir os exemplos comentados, pois acredito que só ouvindo esses fenômenos sonoros se poderá compreender realmente o que procurei dizer com palavras: definitivamente, nosso vocabulário carece de termos que definam melhor todas as características e propriedades da voz humana. Talvez num futuro próximo, consigamos classificar todas essas expressões vocais com palavras apropriadas. Por enquanto, há sobretudo que ouvi-las. 25 O nome do grupo é uma homenagem a Michelangelo “Mialinu” Pira, antropólogo e estudioso da cultura de Bitti na Sardenha. Bibliografia ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte: Villa Rica, 1965. BOHLMAN, 2002. World Music. A very short introduction. New York: Oxford, 2002 DANIELSON, ns Virgínia. “Musique Arabe: Le Congres du Caire de 1932 by Philippe Vigreux”. Yearbook for Traditional Music, vol. 26 (1994), p. 132-16. Musique arabe: Le congres du Caire de 1932. Cairo: Cedej, 1992. FARUQI, Lois Ibsen al. An annotated glossary of arabic musical terms. Connecticut, USA: Greenwood Press, 1981. FARMER, Henry George. A history of arabian music (to the 13th century). London: Luzac & Co., 1973. HERR, Martha. “Um modelo para interpretação de canção brasileira nas visões de Mário de Andrade e Oswaldo de Souza”. Música Hodie, n. 2, v. 4, 2004. p. 27-38. Disponível em: <ww.ia.unesp.br/.../Um%20modelo%20para%20interpretacao%20.pdf>. 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