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894-Tese_CCD_SC_Paparelli,_Roselia_Bezerra_2005

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ROSÉLIA BEZERRA PAPARELLI 
 
 
 
 
Psicólogos em formação: 
vivências e demandas em plantão psicológico 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-Graduação em Ciências da 
Coordenadoria de Controle de Doenças da 
Secretaria de Estado da Saúde de São 
Paulo, para obtenção do Título de Mestre. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SÃO PAULO 
2005 
ROSÉLIA BEZERRA PAPARELLI 
 
 
 
 
Psicólogos em formação: 
vivências e demandas em plantão psicológico 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de 
Pós-Graduação em Ciências da 
Coordenadoria de Controle de Doenças da 
Secretaria de Estado da Saúde de São 
Paulo, para obtenção do Título de Mestre. 
Área de Concentração: Saúde Coletiva 
Orientador: Prof(a). Dr(a). Maria Cezira 
Fantini Nogueira-Martins 
 
 
 
 
 
 
SÃO PAULO 
2005 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FICHA CATALOGRÁFICA 
Preparada pelo Centro de Documentação – Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo 
 
 
�reprodução autorizada pelo autor 
 
 Paparelli, Rosélia Bezerra 
 Psicólogos em formação: vivências e demandas em plantão psicológico 
/ Rosélia Bezerra Paparelli. – São Paulo, 2005. 
 
 
 Dissertação (mestrado)—Programa de Pós-Graduação em Ciências da 
Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde 
de São Paulo. 
 
 
 
 Área de concentração: Saúde Coletiva 
 
 Orientador: Maria Cezira Fantini Nogueira-Martins 
 
 
 
 
 1. Recursos Humanos em Saúde 2. Psicologia Aplicada/ética 3. 
Aprendizagem 4. Serviços Comunitários de Saúde Mental/recursos 
humanos 5. Acesso aos Serviços de Saúde 6. Prática Profissional 
 
 
 
 SES/CCD/CD-062/04 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Por fazerem a diferença... 
 Dedico aos meus pais, 
ao Lau meu porto seguro, 
meus filhos Henrique, Fernando, Marcelo, 
e Tico meu irmão mais querido. 
 
Agradecimentos 
 
 
Minha gratidão... 
À Profa. Dra. Maria Cezira Fantini Nogueira-Martins pela orientação 
segura na condução deste trabalho e principalmente pela confiança 
depositada. 
À Universidade Camilo Castelo Branco, destacando a Coordenação da 
Faculdade de Psicologia - Profa. Alessandra Martinez e equipe que atendeu 
a todas as minhas necessidades para a realização deste trabalho. 
Ao Prof. Antonio de Pádua Serafim – Chefe do Depto de Pesquisa da 
Faculdade de Psicologia pela simplicidade para resolver grandes questões. 
Ao Departamento de Pesquisa da Unicastelo, representado pela Profa. 
Zenaide Galvão sempre tão disponível a auxiliar-me. 
À Equipe Técnica e Administrativa do Centro de Formação de Psicólogos 
– Priscila Gonçalves, Christianne Jacob Silva e Renata R. Lima pelo carinho, 
companhia e cuidado em me ouvir. 
Às Profas. Maria de Fátima Tomé, Jacqueline Mazzoni e Suely Garcia 
que junto comigo desbravaram novos fazeres. 
Aos Alunos e Alunas que me impulsionam a melhorar sempre. 
Aos Pacientes que atendi diretamente e indiretamente, dando-me a 
certeza de que muito há para se fazer por nossa “saúde mental”. 
Ao colega Francisco Coienca que foi alguém decisivo para minha entrada 
na Pós graduação. 
À querida e sempre amiga Priscila Gonçalves, por me acompanhar em 
vários momentos importantes desta jornada, sofrendo e se alegrando junto 
comigo. 
Às experiências vividas e aprendidas no Hospital Santa Marcelina, 
especialmente no Ambulatório de Saúde Mental. Minha gratidão aos meus 
pacientes, colegas, companheiros de trabalho e Amigos mais queridos Lúcio 
Ferracine, Teresa Fernandes, Orlando Almeida, João Medeiros, Liliam 
Lourenço. 
Aos mestres da Pós, com ênfase àqueles que fizeram a diferença: Profª 
Dra. Belkis Trench, Profª Dra. Wilza Vilela, Profª Dra. Ausônia F. Donato, 
Prof Dr. Carlos Botazzo. 
Às componentes da minha Banca de Qualificação – Profª Dra. Eliana 
Herzberg, Profª Dra. Sandra Maria Tavares Greger e Profª Dra. Cláudia 
Maria Bógus, pela leitura crítica e recomendações oferecidas, transformando 
este difícil momento de um mestrando em uma agradável fonte de saber, 
que, com certeza, puderam ecoar e repercutir na etapa mais difícil deste 
trabalho - minha Defesa. 
Aos Psicólogos tão queridos que participaram desta pesquisa na 
condição de ex-alunos, transformando este trabalho num passeio por um 
imenso jardim, reforçando em mim a certeza de que vale a pena semear... 
 
 
 
 
PAPARELLI, RB. Psicólogos em formação: vivências e demandas em 
Plantão Psicológico. 
 
Resumo 
 
Este trabalho buscou refletir sobre a formação do psicólogo, a partir da 
institucionalização da psicologia enquanto ciência e profissão em nossa 
sociedade, traçando-se um paralelo entre a inserção histórica e social da 
ciência psicológica e o reflexo desta na formação e atuação profissional do 
psicólogo, nas quais se verifica a prevalência de um modelo hegemônico 
baseado nos valores de indivíduo abstrato e a-histórico da sociedade 
ocidental moderna. Examinou-se a consolidação profissional através das 
práticas clínicas que, naturalizando o fenômeno psicológico, privilegiam a 
doença e se tornam acessíveis e restritas a alguns segmentos sociais, 
configurando-se numa atuação elitista, descontextualizada e pouco 
sintonizada com as necessidades das classes menos favorecidas, 
aprovisionando-lhe uma abrangência social diminuta, que coopera para uma 
idéia de profissão de utilidade social prescindível. 
Tomou-se como recorte um estágio desenvolvido em plantão psicológico, 
realizado numa clínica escola de uma universidade particular da zona leste 
de São Paulo, cujo atendimento é voltado às necessidades da comunidade. 
O objetivo do trabalho foi, por meio da abordagem qualitativa de pesquisa, 
conhecer o impacto desta realidade nas vivências do aluno de quinto ano de 
Psicologia enquanto plantonista, e verificar se esta inserção favoreceria a 
instalação de uma consciência crítica de nossa realidade social. Utilizou-se a 
técnica de Grupo Focal, com uma amostra de 38 alunos egressos; o material 
obtido foi submetido à Análise Temática. 
Os resultados mostram que a inserção do graduando no Plantão Psicológico 
possibilitou desilusões e rupturas das certezas instituídas nos fazeres e 
saberes psicológicos, contribuindo para uma nova construção na maneira de 
olhar para antigas questões, legitimando a necessidade de revisão e 
questionamento de nossas práticas cotidianas. O aspecto vivencial mostrou-
se fundamental, seja para o psicólogo em formação que, mobilizado reflete 
sobre valores, posturas e convicções, seja para o agente formador, isto é, a 
universidade, na gestação dos saberes e práticas, conferindo às clínicas-
escola a tarefa de sustentar e nutrir o tripé da formação - pesquisa, ensino e 
serviço - no cumprimento de sua função social, configurada num cenário de 
investigação e construção de novos saberes, geradores de práticas 
contextualizadas na realidade de nossas populações. 
 
 
Palavras chave – Recursos humanos em saúde; Psicologia aplicada/ética; 
aprendizagem; Serviços comunitários de saúde mental/Recursos humanos; 
Acesso aos serviços de saúde; Prática profissional. 
 
 
 
PAPARELLI RB. Graduating psychologists: experiences and requirements in 
Psychological Duty. 
 
Abstract 
 
This work aims at reflecting over the preparation of a psychologist based on 
the institutionalization ofpsychology as sciences and profession in our 
society,drawing a line between the historical and social insertion of the 
psychological sciences and the reflects of this kind of preparation and the 
psychologist`s performance, on which one verifies the predominance of a 
homogeneous pattern based on the abstract individual and non-historical 
values in the western modern society. 
I was taken into consideration the professional consolidation through the 
clinical practices , which, by making the psychological phenomenon more 
natural, give full attention to the disease and become more accessible and 
restrict to some social segments, fitting thus into an elitist, decontextualized 
and little sintonized performance in relation to the less favored 
classes,confering a diminished social importance, which cooperate with the 
idea of social not essencial utility profession. 
A training program, developed during psychological duties was taken as a 
model, performed in a school clinic of a private university in the east side of 
Säo Paulo, whose attendance is turned to the needs of the community. 
The objective of this work was,according to the qualitative approach of the 
research, acknowledging the impact of this reality through the student`s life 
experience in the 5th year of their psychology courses, while they were on 
duty, and verifying if this insertion would favor the instalation of a critical 
awareness of our social reality. The Focusing group technic was used as a 
sample of 38 egressed students .The obtained material was submitted to 
thematic analysis. 
The results show that the insertion of the graduating student on psychologic 
duty shed light on the uncertainty instituted in the psychological knowledge 
and practices, thus, contributing to a new construction in the way we look into 
the old questions, legitimating the need for a revision and questioning of our 
daily practices. 
The daily aspect presented itself as fundamental, either to the graduating 
psychologist,touched by this, reflecting over the values, postures and 
convictions to the facilitator of this process, that is, the university , which by 
conveying the knowledge and practices perform the role of sustaining and 
nourishing the trinity of the preparation - research, teaching and services - in 
the accomplishments of its social functions, fitting in an investigative scenerio 
and constructions of the knowledge, reservoir of practices contextualized in 
the reality of our population. 
 
Keywords - Health manpower , Psychology applied/ethics; Learning; 
Community mental health services/manpower; Health services Accessibility; 
Professional Practice. 
 
 
Lista de Abreviaturas e Siglas 
 
 
 
 
SUS – Sistema Único de Saúde 
 
UNICASTELO - Universidade Camilo Castelo Branco 
 
PUC - Pontifícia Universidade Católica 
 
SAP - Serviço de Aconselhamento Psicológico 
 
IPUSP - Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo 
 
CFP – Conselho Federal de Psicologia 
 
CRP – Conselho Regional de Psicologia 
 
EPM - Escola Paulista de Medicina 
 
UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo 
 
 
Lista de Tabelas e Figuras 
 
 
 
 
Tabela 01- Distribuição Populacional Zona Leste 2 página 67 
 
Tabela 02 - Índices de Exclusão Social Zona Leste 2 página 68 
 
Tabela 03 - Formação de Grupos Focais página 82 
 
Fluxograma de Serviços do Centro de Formação de Psicólogos Anexo A 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
Apresentação 
 
1. Introdução 4 
1.1. Histórico da profissão de Psicologia 4 
1.1.1. Das primeiras idéias psicológicas à regulamentação 
da profissão 4 
1.1.2. Os primeiros passos da Psicologia que temos hoje 7 
1.1.3. A Psicologia Clínica 12 
1.1.4. A relevância do contexto social 17 
1.1.5. A Psicologia da Saúde 27 
 
1.2. A formação em Psicologia 30 
1.2.1. O papel da supervisão na formação 33 
1.2.2. As Clínicas-Escola 42 
1.2.3. O plantão psicológico 50 
1.2.4. O plantão psicológico e demanda social 57 
 
2. Justificativa 60 
 
3. Objetivos 62 
 
4. Material e Método 63 
4.1 Abordagem qualitativa 63 
4.2. O campo de trabalho 64 
4.2.1. Contexto do campo de trabalho 65 
4.2.2. O papel da universidade 70 
4.2.3. O Plantão Psicológico da Unicastelo 74 
4.2.3.1. Características e pressupostos 74 
4.2.3.2. Metodologia 75 
4.2.3.3. Funcionamento 76 
4.2.3.4. Objetivos 77 
4.3. A Técnica de Grupo Focal 79 
4.4. Os sujeitos 80 
4.5. Os procedimentos 81 
4.6. O desenvolvimento da pesquisa 83 
4.7. Considerações éticas 84 
4.8. A análise do material 84 
4.9. Reflexões sobre a metodologia 85 
 
5. Resultados e Discussão 87 
5.1. A realidade da população 89 
5.1.1. Expectativas 89 
5.1.2. Necessidades 95 
5.2. A experiência no Plantão Psicológico 101 
5.2.1. Dificuldades 102 
5.2.2. Aspectos facilitadores 107 
5.3. O papel do psicólogo 114 
5.4. A psicologia e a saúde mental 119 
 
6. Considerações Finais 126 
 
Referências Bibliográficas 
 
Anexos 
 
 1 
APRESENTAÇÃO 
 
 
Este trabalho é originário das inquietações que surgiram em dois 
momentos de minha vida profissional: quando iniciei minha trajetória como 
psicóloga, em um ambulatório de saúde mental, atendendo a população de 
baixa renda, em uma instituição privada que mantinha convênio com o 
Sistema Único de Saúde (SUS) e, posteriormente, ao ingressar na 
universidade, como psicóloga clínica em uma Clínica-Escola de Psicologia, 
onde atuava na estreita fronteira entre o “formar e o atender”, isto é, 
trabalhando com a assistência e, ao mesmo tempo, tendo um papel de 
agente formador para os alunos. Para assumir estas novas atribuições na 
Clínica-Escola, foi necessário um certo desprendimento da ótica profissional 
que mantinha até então (como psicóloga clínica em consultório particular), 
no sentido de reconhecer as defasagens do meu saber e a pouca 
instrumentalização técnica, científica e política para dar conta desta 
demanda excessivamente diferente daquela do consultório. 
Se no ambulatório de saúde mental esta prática estava longe de ser 
alterada, por limitações determinadas pela organização, funcionamento e 
objetivos do próprio serviço, que priorizam o atendimento em detrimento da 
pesquisa, na universidade, ao contrário, percebia um terreno fértil para 
inovações; nesse sentido, fui aperfeiçoando alguns trabalhos e serviços com 
a ajuda e o incentivo de docentes, discentes e técnicos que partilhavam 
desta posição inovadora. O engajamento acadêmico abriu as portas à 
carreira docente e, como professora, aumentaram minhas reflexões e 
críticas sobre a prática da psicologia. Junto com estas, indagava-me sobre o 
porquê do profissional psicólogo, salvaguardado por algumas exceções, 
manter-se tão apartado das necessidades sociais, confortável no seu 
desconhecimento daquilo que eu só pudera perceber após anos de formada, 
quando meu universo teórico e técnico não supria as necessidades que 
observava nas demandas das chamadas classes menos favorecidas. 
Diante destas constatações, empenhei-me na busca de um instrumental 
teórico que respondesse minha defasagem; neste questionamento, descobri 
 2 
o discurso de alguns autores contemporâneos que já se ocupavam destas 
questões: formação do psicólogo, necessidades da população demandante, 
papel social do agente formador, função social da psicologia, compromisso 
ético. 
Tais questões têm uma expressão significativa na atuação do 
profissional; porém, não as percebia implicadas na formação, contexto em 
que, a meu ver, mereciam discussão mais ampla. 
Atualmente, como coordenadora da Clínica-Escola da UniversidadeCamilo Castelo Branco (Unicastelo), observo que as chamadas 
“psicoterapias profundas1” nem sempre representam o ideal de ajuda para 
todos, pois percebo que mesmo aqueles que conseguem atendimento 
imediato, muitas vezes abandonam o processo após as primeiras sessões. 
Essas desistências levam a pensar que os solicitantes buscam nossos 
serviços, para “dar conta” de suas queixas imediatas, às vezes transitórias, 
mas ao mesmo tempo insuportáveis no momento em que são vividas, não 
implicando, necessariamente, em uma “psicoterapia” de prazo 
indeterminado, mas, sim, em um espaço para serem divididas, 
compartilhadas, repensadas, em uma perspectiva temporal breve. 
Empiricamente, observo um distanciamento entre o “ideal psicoterápico” da 
população que solicita nossos serviços e do profissional de saúde mental. 
De alguma forma, este distanciamento estaria determinado pelo “projeto 
psicoterápico2” que cada indivíduo tem e que se desenvolve dentro de um 
certo esquema de representações para justificar um tratamento psicológico, 
sendo este portanto, diferente daquele de representação do profissional da 
saúde mental. 
Nessa perspectiva, o Plantão Psicológico, atividade desenvolvida por 
alunos do quinto ano de Psicologia, sob supervisão, foi criado na Unicastelo 
por ser tanto uma tentativa de atender mais adequadamente as demandas 
 
1
 Este trabalho considera psicoterapias profundas aquelas cujo objetivo principal é a reestruturação da 
personalidade pela dissolução dos conflitos intrapsíquicos, num período de tempo longo. 
2
 Projeto Psicoterápico é um termo criado e utilizado por Jurandir Freire Costa para referir-se às 
noções, certezas, expectativas, modus operandi de um tratamento psicoterápico e que é específico 
para cada indivíduo. 
 3 
da sua comunidade, como também um meio de os alunos se desenvolverem 
enquanto profissionais vinculados à realidade da população. 
A prática na universidade deve ser um ponto de intersecção ou uma 
forma de ligação entre o social e o científico, enriquecendo o “saber oficial”, 
a partir de contribuições determinadas pelo “saber popular”, alinhavados e 
tecidos pelo futuro profissional psicólogo. Penso que, para que se possa 
estabelecer um conhecimento pautado numa realidade próxima, cabe à 
universidade a oferta deste espaço em que o aluno em formação possa se 
embrenhar em “tarefas” especificamente voltadas à compreensão do 
conceito saúde/doença numa dimensão ampliada, construindo-se um 
profissional consciente, competente, ético, comprometido e embasado na 
realidade e, por isso, flexível na sua atuação. 
Para isso, urge que a universidade, como o principal agenciador da 
produção do conhecimento e da formação dos profissionais, abandone sua 
zona de conforto, que cristaliza o ensino reprodutivo e, desvendando as 
tramas do instituído através da investigação e da pesquisa, rompa uma 
mentalidade reducionista que enxerga a universidade como o locus 
tecnicista de aplicação e treino de modelos e técnicas psicológicas. Somente 
mobilizada por este espírito investigativo e inventivo, a universidade poderá 
assumir seu verdadeiro lugar na saúde mental, reafirmando seu papel de 
gerador e promotor de mudanças significativas nos espaços da formação, 
não só em sua ação formativa, mas principalmente na transformação de 
indivíduos em sujeitos que, nesta condição, tornam-se psicólogos, 
despertando-os para seu engendramento em projetos que definam o lugar 
da ciência psicológica na compreensão do sofrimento humano, refletindo 
uma subjetividade que singulariza o compromisso social do profissional de 
saúde. 
 4 
1. Introdução 
 
 
 
1.1. Histórico da profissão de Psicologia 
 
 
Ao considerarmos as críticas feitas à atuação do psicólogo e sua 
desarticulação com a realidade, somos remetidos a pensar que, de certa 
forma, aquilo que temos realizado em nossa prática profissional reflete a 
maneira pela qual a psicologia institucionalizou-se em nossa sociedade. 
 
 
 
 
1.1.1. Das primeiras idéias psicológicas à regulamentação da profissão 
 
 
Bock (2003) destaca que, no percurso histórico, as “idéias psicológicas” 
estiveram determinadas pelo interesse das elites, pouco contribuindo à 
transformação social. Tais interesses promoveram a inserção histórica da 
psicologia, como ciência e profissão, em ações com fins de controle, higiene, 
diferenciação e categorização. 
Pessotti (1988) nomeia de pré-institucional o período do Brasil Colônia 
em que se iniciam algumas idéias psicológicas, ainda sem uma pretensão 
científica. Nesta fase, a principal marca foi o controle dos menos 
afortunados, já que a terra recém descoberta, para ser explorada, 
necessitava do controle e domínio sobre os indígenas. 
Com a passagem à condição de Império no século XIX, os interesses 
passam a ser higienistas, herança do pensamento europeu; a sociedade 
mantinha-se sob o domínio da ideologia de ordem e higienização. Esta 
tendência marcou a medicina, a educação e a psicologia. As idéias 
psicológicas naturalizavam a moral como valor intrínseco ao homem que, ao 
 5 
perdê-la, degenerava-se. Ao degenerado, restava uma educação rígida e 
moralista, uma medicina repressora e excludente e uma psicologia cujos 
objetivos eram de controle de comportamento dos inadequados e 
desajustados. 
Depois da Proclamação da República, de acordo com Maluf (1996), as 
elites dominantes promovem a reforma educacional, que determina o 
engajamento da psicologia na educação e na pedagogia através dos 
currículos das Escolas Normais. O começo do século XX é marcado por esta 
parceria entre educação e psicologia, orientadas “... por princípios do 
objetivismo científico, do academicismo e do individualismo, inerentes ao 
ideário liberal” (Maluf, 1996, p. 33). Com a industrialização (e pela 
experiência da psicologia aplicada à educação), houve uma demanda na 
qual o conhecimento psicológico favoreceu ações de diferenciação e 
categorização das pessoas às necessidades industriais (Bock, 2003). 
A primeira metade do século XX já mostrava uma demanda pela 
profissionalização e tornou acessível o ensino da psicologia como disciplina 
em cursos de filosofia, pedagogia, serviço social e outras instituições ou 
cursos de nível universitário, já que tinham existência legal, permitindo o 
ensino da Psicologia, bem como a difusão das idéias, atividades e práticas 
psicológicas. É um período bastante rico em produções, com no domínio das 
técnicas e no individualismo. A partir dos anos 50, por impossibilidade legal, 
os Cursos de Psicologia instalaram-se como cursos de especialização aos 
formados em filosofia e educação (Maluf, 1996; Maluf et al., 2003). 
Somente em 1934, atendendo à necessidade de uma estrutura 
acadêmica que considerasse os esforços, tendências e pesquisas da 
Psicologia no país, é criada a Universidade de São Paulo, marcando o início 
da terceira fase de nossa história. Este período denominado, “período 
universitário”, marcou o desenvolvimento da Psicologia como ciência 
autônoma, desvinculada da utilização médica e com certa independência de 
sua aplicação no âmbito escolar; nesta fase, faz-se sua passagem da 
condição de disciplina opcional para disciplina obrigatória de ensino superior 
 6 
em três anos nos cursos de Filosofia, Ciências Sociais, Pedagogia e em 
todos os cursos de licenciatura (Pessoti, 1988). 
A regulamentação da profissão ocorreu em 27 de agosto de 1962, com a 
Lei Federal nº 4119; com base nesta Lei, foi elaborado o Parecer do 
Conselho Federal de Educação 403/62, de 19 de dezembro de 1962, 
estabelecendo um currículo mínimo e duração do curso a ser obedecido na 
formação. 
Segundo Maluf (1996), este momento sócio-histórico de criação dos 
cursos mantinha o predomínio da psicologia experimental norte-americana,que determinaria as bases do currículo; os cursos criados se desenvolveriam 
inseridos num panorama de repressão política e cultural. Neste mesmo 
panorama, com a Reforma Universitária de 1971, a psicologia ficava 
comprometida com os ditames do regime econômico de então, definindo 
uma mão de obra para satisfazer e complementar as necessidades das 
classes dominantes. Neste mesmo ano, são criados os Conselhos Federal e 
Regional de Psicologia, com a finalidade de orientar e fiscalizar a profissão 
na oferta de serviços de qualidade à população. 
A psicologia desta fase, como ciência - articulada à cultura da 
racionalidade científica moderna - e como profissão recém regulamentada, 
insere-se em nossa sociedade atendendo às necessidades do regime 
capitalista, naturalizando a realidade psicológica e social, exercendo uma 
atuação prática normativa e autoritária, vinculada a certos padrões de 
normalidade e “...mascarando o papel de certas práticas humanas na 
construção dessa realidade” (Fonseca, 1998, p. 45). 
 7 
1.1.2. Os primeiros passos da Psicologia que temos hoje 
 
 
A abertura política e a redemocratização do país dos anos 80 sopram 
ares de mudança na posição calada e descomprometida que a psicologia 
brasileira ocupava: 
 
“... foi sendo reconhecida a insuficiência das 
abordagens tecnicistas e descontextualizadas 
para o tratamento das questões psicológicas. 
Multiplicaram-se as práticas de psicólogos 
voltadas à superação do psicologismo, com a 
consideração dos elementos concretos, sociais e 
históricos presentes nas necessidades e 
dificuldades dos indivíduos e instituições” (Maluf, 
1996, p.35). 
 
De acordo com Reis (1995), Andrade (1996), Maluf (1996) e Vilela 
(1996), abrem-se então discussões sobre os problemas do exercício da 
profissão através do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e das 
universidades, para o aprimoramento dos cursos no país, culminando, em 
1984, com a criação de um “Programa de Estudos e Debates sobre a 
Formação e Atuação do Psicólogo”, que objetivava obter informações que 
pudessem promover uma maior articulação entre a formação do psicólogo e 
as demandas impostas pela realidade social. Com o referido programa, foi 
realizada, nos anos de 84 e 85, uma ampla pesquisa nacional, cujo resultado 
foi publicado em 19883 no livro Quem é o Psicólogo Brasileiro? Tal pesquisa 
revelou dados até então desconhecidos, fornecendo um diagnóstico que 
descrevia a realidade e os problemas do exercício profissional. Em sua 
continuidade, o mesmo Programa de Estudos e Debates publicou, em 19924, 
sob o título Psicólogo Brasileiro: Construção de Novos Espaços, uma 
segunda pesquisa, realizada entre 80 e 92, oriunda de um levantamento e 
 
3
 Conselho Federal de Psicologia. Quem é o Psicólogo Brasileiro? São Paulo: Edicon; 1988. 
4
 Conselho Federal de Psicologia. Psicólogo Brasileiro: Construção de Novos Espaços. Campinas: 
Átono; 1992. 
 8 
análise da literatura produzida em nível nacional, com o objetivo de detectar 
publicações que revelassem propostas inovadoras da profissão. 
As discussões sobre o tema formação e atuação do psicólogo continuam 
e, em 1992, dão origem à Carta de Serra Negra5, a partir de encontros 
promovidos entre o CFP e os representantes dos cursos de formação no 
país. Esta carta se constitui em um documento de princípios, cuja síntese 
desenvolvida pelo conjunto de formadores, pesquisadores e profissionais, 
traz como idéia subjacente a mobilização por mudanças e transformações. 
De maneira sintetizada os principais pontos6 que fazem parte do documento 
são: 
� Desenvolver a consciência política de cidadania e o compromisso 
com a realidade social e a qualidade de vida; 
� Desenvolver a construção do conhecimento, fomento a pesquisa num 
contexto de ação-reflexão-ação; 
� Desenvolver o compromisso da ação profissional baseada em 
princípios éticos; 
� Desenvolver o sentido da universidade, pela interdisciplinaridade e 
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão; 
� Desenvolver a formação básica pluralista, fundamentada na 
discussão epistemológica e conforme a realidade sociocultural; 
� Desenvolver uma concepção de homem em sua integralidade e nas 
condições concretas de existência; 
� Desenvolver práticas de interlocução entre os diversos segmentos 
acadêmicos. 
Pela leitura destes princípios, pode-se perceber as preocupações dos 
envolvidos naquilo que se espera da Psicologia como ciência promotora de 
transformação, sinal do processo de descontentamento da jovem profissão, 
que começa a defrontar-se com necessidades de mudanças. De acordo com 
Vilela (1996), apesar de este documento ter importância significativa 
 
5
 Para obtenção do conteúdo descrito na Carta de Serra Negra foram consultados o Conselho 
Regional de Psicologia – 6ª região, o Conselho Federal de Psicologia, a Associação Brasileira de 
Ensino de Psicologia, que não têm disponível tal documento. As referências de seu conteúdo neste 
trabalho foram obtidas em Reis (1995), Moraes (1996) e Vilela (1996). 
6
 Conforme citado por Vilela (1996). 
 9 
enquanto construção coletiva e ter sido divulgado nas instituições de ensino 
superior da época, não ocorreram debates ou discussões em torno de suas 
propostas. 
Um terceiro trabalho publicado em 19947, realizado pela Câmara de 
Educação e Formação Profissional do Conselho Federal de Psicologia, 
buscou elementos para discutir a formação, através da identificação de 
ações inovadoras desenvolvidas nas práticas do exercício profissional, em 
resposta à demanda social. Esta pesquisa, em sua primeira vertente, revisou 
os dados gerados da pesquisa publicada em 1992, identificou e descreveu 
as atividades nas diversas áreas - clínica, organizacional, educacional e 
social - sendo que, nesta última, foram agregadas as áreas esportiva e 
jurídica. A outra vertente trabalhou questões e dilemas da formação. No que 
diz respeito à psicologia clínica, os dados coletados constituíram três 
categorias temáticas. (Lo Bianco et al., 1994): Concepções e tendências em 
desenvolvimento; Atividades e contextos; Implicações para o processo de 
formação. 
 
Concepções e tendências em desenvolvimento 
Evidenciou-se uma ênfase na valorização do “contexto social”, seja nas 
práticas ou nas pesquisas desenvolvidas. Esta inclusão do social na prática 
profissional provocou alteração no entendimento do sujeito, que passa a ser 
tomado em relação ao seu contexto, provocando mudanças na atuação 
clínica e disparando para a abrangência de sua ação, que pelas solicitações 
embutidas nas demandas coletivas, exigem nova reflexão e prática. Com a 
incorporação do contexto social, os psicólogos convergem sua preocupação 
ao compromisso social, independentemente da abordagem teórica. Outra 
tendência apontada foi o reconhecimento e valorização da multiplicidade 
fenomênica na atuação, valorizando as referências das ciências da cultura 
em oposição à hegemonia das ciências naturais, ampliando a possibilidade 
de desenvolvimento de referenciais teóricos originados. Uma última 
 
7
 Conselho Federal de Psicologia. “Psicólogo Brasileiro – Práticas emergentes e desafios para a 
Formação” São Paulo: Casa do Psicólogo; 1994. 
 10 
tendência foi a necessidade de integração da psicologia em um 
conhecimento multidisciplinar. 
 
Atividades e contextos 
Dentre as práticas cotidianas, o destaque é a saída do profissional da clínica 
privada para a “área da saúde” e, nesta perspectiva, a inserção do psicólogo 
nas instituições públicas, com todas as implicações do pouco espaço de 
ocupação decorrente de sua mínima tradição na saúde pública. Entre as 
áreas analisadas, estão: a inserçãodo psicólogo nos hospitais psiquiátricos 
e, deslocando-se da saúde mental à psicologia na saúde, a psicologia 
hospitalar, a psicologia ambulatorial; os contextos destacados são a rede 
básica de saúde e instituições outras, que não as de saúde. 
 
Implicações para o processo de formação 
Esta categoria permitiu estruturar dois aspectos importantes à formação: 
 
1. Requisitos e competências necessárias 
� Conhecimento clínico contextualizado; 
� Leitura das demandas específicas postas pelo contexto institucional; 
� Conjunto de habilidades interpessoais, atitudes e capacidades; 
� Uma base sólida de conhecimentos em psicologia e disciplinas 
associadas ao fazer clínico. 
 
2. Características e estrutura da formação 
Constata-se a necessidade na mudança estrutural do vínculo entre as 
universidades e a comunidade, refletindo um compromisso com a realidade 
brasileira: 
� Graduação básica e generalista; 
� Graduação mais formativa do que informativa; 
� Mudança nos modos de ensinar; 
� Necessidade de especialização. 
 
 11 
O estudo citado parte da realidade experimentada pelo psicólogo em seu 
trabalho e tece algumas das preocupações que embasam nosso trabalho, 
especificamente quando se refere às implicações do ensino da psicologia 
clínica, nas quais está subjacente a possibilidade de ampliar sua aplicação a 
populações que não têm acesso a ela. 
Historicamente, a psicologia brasileira começa a incomodar-se pela 
limitação imposta ideologicamente, para enveredar pelas insuficiências de 
uma crise paradigmática. 
Como podemos observar, a consolidação da profissão em nossa 
sociedade deu-se principalmente pela atuação clínica, configurada numa 
prática elitista, acessível a uma população bastante reduzida, de pouca 
inserção e abrangência social. Esta atuação, como a forma mais 
reconhecida do trabalho do psicólogo em nossa sociedade, não conseguiu 
atingir todas as camadas da população e, por conseqüência, não permitiu à 
profissão uma “atuação abrangente” no sentido definido por Carvalho (1988): 
uma atuação que refletisse “... o potencial de utilidade e de contribuição da 
profissão à sociedade” (Carvalho, 1988, p.235) destaques no original. 
Já que o caminho escolhido neste trabalho foi o de retomar a história da 
inserção da psicologia em nossa sociedade, com o intuito de entendermos 
como esta inserção determinaria nossas práticas atuais e seu reflexo na 
formação do profissional, pensamos ser necessário discorrermos um pouco 
mais sobre esta forma de atuar consolidada pela psicologia clínica. 
 12 
1.1.3. A Psicologia Clínica 
 
 
O termo “clínica”, em seu sentido etimológico, vem do grego kliné, que 
significa estender-se, deitar-se, reclinar-se, estar de cama, que pode ser 
compreendido como “cuidado médico ao indivíduo acamado” (Castro, 1998, 
p.137). 
Com relação aos seus múltiplos sentidos, pode ser entendida como um 
ramo da psicologia, um campo de trabalho, um lugar de trabalho, um tipo de 
atividade ou ainda um método de trabalho (Bock, 1998). 
Silva (1992) destaca a confusão que se faz pela identificação da prática 
psicoterápica como sinônimo de atuação clínica e complementa: “a atuação 
psicoterápica que é apenas um dos braços da clínica, é muitas vezes 
vivenciada, pelos profissionais da área, como sinônimo dela” (Silva, 1992, 
p.31) destaques no original. 
Desta maneira, a consolidação da prática clínica, através do método 
clínico, independente da área disciplinar, se faz por meio do direcionamento 
ao indivíduo acometido de doença, distúrbio ou transtorno, cuja expressão 
revela uma situação concreta e particular, que necessita uma solução 
imediata (LoBianco et al., 1994). 
Segundo Cunha (1993), a utilização do termo psicologia clínica ocorreu 
pela primeira vez em 1896, associado a procedimentos diagnósticos de 
observação, descrição e classificação de deficientes mentais e físicos, junto 
à clínica médica. Estas influências marcaram a identidade profissional do 
psicólogo clínico, que buscou através da adoção do modelo médico-clínico, 
preservar a objetividade, efetividade e neutralidade de sua atuação 
profissional, como evidenciam Ocampo e Arzeno (1987), ao discutirem o 
papel do psicólogo no processo psicodiagnóstico, como um mero aplicador 
de testes. 
 
“... o psicólogo freqüentemente agia assim – e 
ainda age – por carecer de uma identidade sólida 
que lhe permita saber quem é e qual é seu 
 13 
verdadeiro trabalho dentro das ocupações ligadas 
à saúde mental”. (Ocampo e Arzeno, 1987, p.14). 
 
 E acrescentam que, por tomar emprestada uma pseudo-identidade, o 
psicólogo nega as diferenças de sua atuação e não questiona o sistema 
comunicacional dinâmico presente nesta e, para se proteger, recorre ao uso 
dos testes, com o objetivo principal de psicodiagnóstico, utilizando-os como 
um escudo entre o profissional e o paciente, tentando, assim, se assegurar 
de seu papel. 
A psicologia clínica tradicional, atuando nas esferas da psicopatologia e 
psicometria, consolidou atividades que acabaram por defini-la como “um 
trabalho curativo, desenvolvido predominantemente em consultórios 
particulares (trabalho autônomo)” (Bastos, 1988, p.165). 
 Lo Bianco et al. (1994) nomeiam este tipo de atuação como “tradicional” 
ou “clássica”, caracterizando-a como uma atividade centrada no indivíduo 
abstrato e a-histórico, de caráter reestruturante e curativo, baseada no 
modelo médico inquestionável, exercida no consultório particular e dirigida a 
determinados segmentos sociais. 
Este modelo, que privilegia a doença e a naturalização do fenômeno 
psicológico, não só restringe o espectro de ação da psicologia enquanto 
ciência como também impede que esta seja reconhecida e utilizada nas 
áreas de prevenção e promoção a saúde, obstruindo em parte sua 
abrangência social. Seria este um dos motivos da chegada tardia da 
psicologia no campo da saúde? 
Esta será uma idéia que discutiremos mais adiante. Contudo, vale 
lembrar que é esse modelo que impera ainda na formação, quando são 
oferecidos estágios em condições semelhantes às acima descritas, não 
considerando a medida das necessidades da população a que se destina o 
atendimento. 
 
“A questão da formação profissional, no entanto, 
não é um objetivo isolado e independente do 
atendimento que se oferece à população. É 
exatamente o tipo de prática que o aluno realiza 
 14 
na graduação que irá funcionar como primeiro 
modelo de atuação. Neste sentido, ela tem papel 
importante na definição de que tipo de 
profissional se está formando, e para que 
aspectos da realidade ele estará voltado” 
(Oliveira IT., 1999, p. 6). 
 
De acordo com Macedo (1986), Silva (1992), Ancona-Lopes (1995), 
Yehia (1996 a), Yehia (1996 b), Morato (1999 a), Morato (1999 b), Oliveira 
I.T. (1999), Oliveira V. (1999), autores que reconhecidamente atuam e 
pesquisam a formação do psicólogo, há uma oposição entre a clínica 
“tradicional” e a inserção real do psicólogo; há necessidade de novas formas 
de atuação, alterando a concepção da prática clínica, já que este modelo 
tradicional não está adequado à realidade das populações atendidas numa 
Clínica-Escola e deixa escapar sua riqueza maior. 
As discussões sobre esta questão resultaram na atualização da 
descrição da atividade clínica do psicólogo, feita pelo Conselho Federal de 
Psicologia em atendimento à solicitação do Ministério do Trabalho, em uma 
concepção mais ampla, não restrita ao espaço geográfico da clínica. 
 
“De forma sintética, assim é definido o psicólogo 
clínico: ‘Atua na área específica da saúde, 
colaborando para a compreensão dos processos 
intra e interpessoais, utilizando enfoque 
preventivo ou curativo, isoladamente ou em 
equipe multiprofissional em instituições formais e 
informais. Realiza pesquisa, diagnóstico, 
acompanhamento psicológicoe atenção 
psicoterápica individual ou em grupo, através de 
diferentes abordagens teóricas’.“ (Lo Bianco et 
al., 1994, p.8). 
 
O reconhecimento das críticas sobre a atuação do psicólogo no mundo 
concreto e real desloca a Psicologia para a necessidade de rever seus 
modelos teóricos e metodológicos. 
Apesar de esta revisão encontrar ressonância entre alguns, Vilela (1996) 
aponta o quanto este é um conhecimento que precisa ficar oculto na 
universidade, enquanto agente formador. Entretanto, Silva (1988), Silva 
 15 
(1992), Campos (1992) e Spink (1992) ousam denunciar o despreparo do 
psicólogo em sua atuação, em sua saída do ambiente protegido do 
consultório. 
Figueiredo (2002) estabelece uma articulação entre o processo histórico 
determinante de transformações sociais e sua influência na constituição e 
consolidação da Psicologia que, por sua vez, favoreceriam sua dispersão e 
sua multiplicidade. Este autor reconstitui a invenção do espaço psicológico, 
no século XIX, determinado por três pólos, que traduzem formas de 
organização social e valores de cunho liberais, românticos e disciplinares, 
cuja repercussão é a de modelagem das subjetividades modernas e 
contemporâneas. Denomina o espaço do psicológico como território da 
ignorância, que fora criado pela separação público-privado e que se mantém 
como interditado e excluído; disto decorre que estes três eixos suscitariam 
uma cisão entre o campo fenomenal – das representações e identidades e 
seus metafenomenais – aquilo que não se encaixa nas representações, mas 
apresenta outras possibilidades e sentidos, que transparecem no campo das 
experiências como estranho, sintoma ou mal estar. Para Figueiredo (2004), 
cabe à clínica psicológica a escuta destes interditos e excluídos. Assim, 
define a clínica psicológica “... por um dado ethos...”, e completa “o que 
define a clínica psicológica como clínica é sua ética: ela está comprometida 
com a escuta do interditado e com a sustentação das tensões e conflitos” 
(Figueiredo, 2004, p.63) destaques no original. 
A idéia de psicologia clínica reduzida ao espaço do consultório privado 
parece esvaziar a ascendência desta forma de atuação para outros 
contextos e situações. Contudo, ela é permeada por uma postura ética, na 
qual existe implicada a noção de sujeito constituído e tomado a partir de um 
contexto. 
A questão da descontextualização da clínica fica bem explícita no 
comentário que se segue: 
 
“clínica é uma psicologia que se faz dentro de 
todas as instituições que tenham vínculos com o 
campo da saúde, quer dizer, sejam hospitais, 
 16 
sejam postos de saúde, sejam unidades básicas, 
aquilo que a gente chama de unidade de 
cuidados primários de atendimento, ou até 
mesmo em associações comunitárias que, de 
repente, necessitem de um trabalho no campo da 
saúde.” (Lo Bianco et al., 1994, p.14). 
 
A contextualização da clínica não pode ser reduzida pela consideração 
apenas das questões mais próximas da clientela, pela diversificação dos 
locais de atendimento e pelo tipo de clientela atendida; isto seria determinar 
o fazer clínico a partir da psicopatologização de sua clientela. Contextualizar 
a clínica envolve a reflexão acerca do trabalho inserido no “ato clínico”, 
orientado por um conhecimento mais amplo do indivíduo em seu 
desenvolvimento e em sua realidade pessoal; envolve também o 
entendimento do contexto da saúde pública e do contexto institucional do 
trabalho (Silva, 1992; Lo Bianco et al., 1994). 
 17 
1.1.4. A relevância do contexto social 
 
 
O reconhecimento da falência do modelo hegemônico da clínica no final 
da década de 70 e início dos anos 80 implementa sério questionamento em 
torno da formação do psicólogo, advinda dos profissionais preocupados com 
a função social da psicologia, assim como com as mudanças da sociedade 
brasileira, que se refletem no trabalho destes profissionais, apontando para a 
necessidade de rever os modelos de formação, como afirma Ferreira Neto 
(2004). 
A pressão gerada pela entrada do psicólogo em um ambiente de trabalho 
em instituição pública ou comunitária, com uma clientela, para quem o 
modelo de consultório privado não respondia satisfatoriamente, exigiu deste 
profissional muito mais do que a adaptação de um instrumental técnico; para 
este trabalho, era necessária a ampliação do conhecimento sobre as 
condições de vida desta população, que envolvem e são permeadas por um 
contexto social, cultural, histórico. 
Esta noção de contexto social da clínica, como advertem LoBianco et al. 
(1994), Andrade (1996) e Ferreira Neto (2004), envolve uma revisão na 
concepção de subjetividade e não a simples preocupação e transposição de 
uma dimensão geográfica, em um jogo adaptativo e não reflexivo que não 
contempla a complexidade do que se entende por social. Entendemos o 
social numa função constitutiva e constituída do homem e neste sentido, o 
contexto social é também parte integrante na construção da identidade do 
profissional psicólogo. 
Pela naturalização do fenômeno psicológico, a Psicologia ficou impedida 
de refletir sobre o universo social que determina o homem, encontrando 
oposição na Psicologia Sócio-Histórica, que considera o homem como 
alguém permeado de sua condição humana (e não de uma “natureza”), que 
constrói sua existência na interação com outros homens, enquanto ser ativo, 
social e histórico, negando, portanto, a idéia de homem enquanto ser 
autônomo. O distanciamento da realidade norteia os princípios 
 18 
paradigmáticos da jovem ciência psicológica. Fonseca (1998), ao discutir os 
pilares epistemológicos que privilegiavam a objetividade científica, nos diz: 
 
“Em princípio, a Psicologia considera como 
separados a realidade e o conhecimento desta, 
fundando uma tradição representacional do 
conhecimento, que simultaneamente é 
desimplicado dos valores do sujeito cognoscente 
e dos efeitos do saber sobre a realidade.” 
(Fonseca, 1998, p.44) 
 
A crise da Psicologia Social no Brasil ocorre no final dos anos 70 e delata 
a dependência teórico-metodológica, a descontextualização, a simplificação 
e a superficialidade nas análises dos temas de estudo, a individualização no 
social e a não preocupação política com as relações sociais (Bernardes, 
1998), ou seja, critica primordialmente o individualismo e o positivismo da 
cultura científica determinando o conjunto de regras da racionalidade na 
construção metódica de leis e conceitos, fazendo surgir a Psicologia Sócio 
Histórica e a adoção da ótica construtivista. 
Na ótica construtivista, o processo de construção do conhecimento é 
ativo, o personagem principal é o próprio homem, dando sentido aos objetos 
sociais; a partir deste sentido, expresso simbolicamente em representações 
ou teorias, cria o mundo através de sua atividade. “A perspectiva 
construtivista privilegia, portanto, tanto a relação dialética entre a esfera 
individual e social quanto a relação dialética entre pensamento e atividade” 
(Spink, 2003, p.42). 
Ao assumirmos a relevância do social na área da saúde, não podemos, 
contudo, desembocar em um reducionismo sociologizante, mas resgatar a 
história do indivíduo mediada pela história da sociedade (Lane, 1984). 
Assim, ao abordarmos a clínica contextualizada, estamos considerando 
não só os aspectos psíquicos do indivíduo que interferem em sua saúde, 
mas também o ambiente social de sua inserção. 
Bleger (1984) defende a idéia de uma clínica contextualizada pelo 
manejo do método clínico, que o psicólogo pode desenvolver em uma 
perspectiva mais ampla, em atendimento de nível primário, em atividade que 
 19 
passe da psicoterapia (com enfoque na doença e cura) para a psico-higiene, 
cujo foco é a população sadia, contemplando a área de promoção da saúde. 
Na saúde pública, sua função seria, portanto, não de psicoterapeuta,mas de 
agente público de saúde. Para fazer frente a esta tarefa, utiliza-se dos 
fundamentos da Psicanálise e Psicologia Social, defendendo a necessidade 
de uma psicologia que se insira cada vez mais em sua realidade social. 
Sugere, para isso, o estudo dos grupos, das instituições e da comunidade, já 
que em todos eles há, voluntária ou involuntariamente, a participação do ser 
humano. Trabalhando com a psicologia institucional, ressalta a necessidade 
de que o psicólogo utilize o conhecimento teórico e técnico da psicologia, 
para compreender os aspectos psicológicos da saúde e doença, recorrendo 
a instrumentos desenvolvidos a partir de sua inserção profissional no 
contexto do campo de trabalho. 
O principal instrumento de uso do psicólogo num trabalho de orientação 
psicanalítica é sua própria pessoa. O psicólogo tem, em si mesmo, através 
do conhecimento de seu mundo interno, o melhor instrumento para a 
compreensão dos fenômenos psicológicos implicados em um dado contexto. 
A atitude clínica, indispensável ao seu trabalho, fundamenta-se na 
observação dos fenômenos, na construção de hipóteses e na intervenção. O 
psicólogo deverá, para tanto, utilizar o recurso da dissociação instrumental, 
que requer uma identificação e, simultaneamente, um distanciamento do 
evento, para não se misturar a ele, definindo o enquadre de seu trabalho e 
configurando seu campo de atuação específico (Bleger, 1998). 
 
O homem contemporâneo, submerso numa sociedade globalizada, 
intrincada numa extensa rede de informações, apesar de toda modernidade, 
ainda se aliena e se subordina às leis da desigualdade, da miséria, da 
exclusão social, das formas de exploração e do desamparo. Com isto, torna-
se impotente e descompromissado de seu contexto social, impossibilitado de 
questionar, problematizar e pensar sua existência e vislumbrar alternativas, 
não por desconhecer suas misérias, mas por não saber como fazer um 
exame crítico de sua própria vida e, assim, lidar com estas misérias, 
 20 
adoecendo enquanto ser social e não podendo significar suas vivências, 
angústias e dores. Essa população, de alguma forma, situa-se em 
impedimento, impossibilitada do acesso à educação, à saúde, à cultura, a 
melhores condições e oportunidades de vida, numa condição de submissão 
e de exclusão, ocupando um posicionamento hierárquico que os situa à 
margem dos serviços e deveres sociais do Estado e que, por isso, busca nas 
instituições privadas, como as universidades, o amparo de que precisa. 
A esta impossibilidade de poder partilhar dos bens da sociedade e que 
conduz à privação, à recusa, ao abandono, à expulsão e à violência de uma 
parcela significativa da população, dá-se o nome de exclusão social 
(Sposati, 1996). Enquanto processo, é coletivo e inclui pobreza, 
discriminação, subalternidade, não eqüidade, não acessibilidade, não 
representação pública. Para a autora, há graus e formas de exclusão: 
estrutural, absoluta, relativa, da possibilidade de diferenciação, de 
representação e integrativa. 
Martins (2002) nos adverte da necessidade de uma reflexão crítica maior 
a respeito do tema exclusão, pois sem a devida compreensão a respeito da 
sociedade como “totalidade contraditória e crítica, como processo social e 
histórico” (Martins, 2002, p.12), somos remetidos à classificação de grupos e 
pessoas como “excluídos – incluídos” sem a complexidade que a questão 
exige. Para ele, o conceito de exclusão envolve uma compreensão mais 
ampla de seu lugar na dinâmica social uma vez que este nos coloca diante 
de incertezas em relação à sociedade contemporânea e somente pelo 
confronto da diversidade social desta sociedade atual é que conseguiremos 
compreender os aspectos materiais e ideológicos que transformam o 
excluído em um cúmplice do processo. 
O desenvolvimento econômico anômalo propagado em nossa sociedade 
exclui os indivíduos das chances de participação na produção e partilha dos 
bens, dando visibilidade às privações que este sistema produz e espalha no 
social, assim como confirma sua aparição nas estratégias de sobrevivência 
utilizadas por aqueles que teimam em fazer parte, inserindo-se num sistema 
que só lhes permite o lugar de vítimas e beneficiários residuais das 
 21 
possibilidades embutidas deste mesmo sistema. Estas estratégias de 
sobrevivência, às vezes incompatíveis com o bem comum, impelem suas 
vítimas a recorrer ao ilegal e ao anti-social, como alternativa de vida, 
incorrendo numa deformação que penaliza a todos, através de uma inserção 
que utiliza meios ilícitos e transgressivos de participação, resultando na 
rotina diária caracterizada pela violência que vivemos no nosso cotidiano, 
pois... “A sociedade que exclui é a mesma que inclui e integra, que cria 
formas também desumanas de participação, na medida em que delas faz 
condição de privilégios e não de direitos” (Martins, 2002, p.11). 
 É necessária a compreensão acerca da sociedade enquanto um 
processo contínuo de estruturação e reestruturação, para não ficarmos em 
descompasso com o mundo atual. Esta compreensão permite a reparação 
espontânea e contínua do que se chama “exclusão”, pois possibilita o 
entendimento do tema “exclusão” como a expressão de uma ideologia 
determinada pelos valores e práxis proclamados pela classe média, 
representando uma idéia pouco profunda sobre os “excluídos”. Entretanto, 
estes nem sempre vivem ou sentem-se como excluídos, e por sua vez, 
recorrem à realidade social como máscara, adotando o consumismo 
ostensivo como um meio de afirmação social e de definição de identidade, 
aderindo ao mundo que os fez “pobres”, numa substituição do pobre 
estereotipado – mal vestido e esfarrapado, pelo pobre disfarçado pela 
aparência e pelo aparente, tornando-se cúmplices do sistema. Há processos 
sociais excludentes e não exclusões definitivas e irremediáveis. Nossa 
sociedade, determinada pela prevalência da acumulação de capital, a qual 
se reflete pela privação social e cultural dos que não participam deste 
processo, propulsiona seu expurgo, isto é exclui, mas simultaneamente gera 
sua inclusão, ainda que perversa e degradada. Neste sentido... 
 
“O “excluído” é na melhor das hipóteses, a 
vivência pessoal de um momento transitório, 
fugaz ou demorado, de exclusão-integração, de 
“sair’ e “reentrar” no processo de reprodução 
social.”(Martins, 2002, p.46). 
 
 22 
 Esta é sem dúvida, uma advertência importante para que não caíamos na 
cilada de repetirmos aquilo que condenamos, pois afinal qual a perspectiva 
destes chamados excluídos, se destes só mantivermos a visão dos 
pesquisadores, cuja ótica utilizada na interpretação dos fatos não está 
submetida ao abismo social que marginaliza, exclui e situa seus integrantes 
no limite. 
 
Com relação às diferenças sobre as populações, importantes estudos 
têm se efetivado no campo científico; um deles é o de Costa (1989), que 
aponta a necessidade de ampliação do conhecimento dos profissionais que 
trabalham com populações de baixa renda, destacando o preconceito que 
permeia nossas concepções clínicas, que geraria certa apatia do profissional 
ao lidar com esta população; o autor destaca três formas dessas crenças, 
que serão exploradas a seguir. 
A primeira crença destacada refere-se à “essência da doença”; 
questionando as idéias essencialistas, que definem uma essência orgânica 
da doença, e o etnocentrismo, que imprime o caráter universal na noção de 
indivíduo, o autor parte para uma investigação das representações do ponto 
de vista psicológico e psiquiátrico: a doença dos nervos, como uma forma de 
adoecer mental das classes populares. Para explicar o significado de doença 
dos nervos, toma emprestado o termo “estratégia de sobrevivência” e 
completa: 
 
“... Neurose, sim! Mas com o selo inconfundível 
de um esquema cognitivo representacional típico 
das populaçõesde baixa renda, às voltas com 
problemas de sobrevivência física, psíquica e 
social” (Costa, 1989, p.20). 
 
Na continuidade de sua pesquisa, o autor observa particularidades 
destas representações; a primeira delas se refere à causa da doença, que 
desobedece a hegemonia do imaginário psicoterápico, já que o discurso dos 
pacientes traduz um pensamento popular expresso sem um compromisso 
com o pensamento intelectual acadêmico ou o pensamento cientificamente 
 23 
unificado. Este pensamento popular, embora não inferior ao científico, 
revela-se fragmentário, na tentativa que o paciente assume de construir uma 
possibilidade de naturalizar o estranhamento do mal que lhe acomete. 
Assim, os terapeutas, imersos neste imaginário psicoterápico, ao ouvirem, 
no discurso de seus pacientes, explicações sobre as causas de sua doença, 
a partir de racionalizações que não se incluem neste imaginário, sentem-se 
perdidos, desconsiderando que estes afetos e representações são 
pertinentes a um contexto cultural diferente dos seus, embora a matéria 
prima dos conflitos psíquicos seja a mesma. 
A segunda crença refere-se a se tomar todo indivíduo enquanto sujeito 
ideal e abstrato no enquadre psicoterápico, o que provoca um grande 
abismo entre terapeuta e paciente. O enquadre psicoterápico criado pela 
psicoterapia dual criou um modelo para toda e qualquer psicoterapia, que 
não se compatibiliza com a experiência cultural dos clientes, distanciando-se 
dos hábitos mentais de seu processo de socialização. 
 
“Desde o início, o cliente do serviço público, além 
da consciência de sua doença, tem bem clara a 
consciência de seu estatuto de cidadão doente e 
da diferença cultural que o separa do terapeuta: 
ele vai ao consultório para falar de seus 
problemas a alguém que usufrui mais direitos 
civis que ele; que pertence a uma classe social 
superior à sua; que se veste, fala e se porta de 
um modo que não é o seu; que ele não escolheu 
para ser seu médico e vice-versa” (Costa, 1989, 
p. 31) destaque no original. 
 
Os clientes sentem-se apartados do enquadre, até porque em sua vida 
prática não há familiaridade com o ritual psicoterápico e, de seu ponto de 
vista, “... o espaço psicoterápico funciona como uma referência, que pode 
ser alcançada quando sentem necessidade” (Costa, 1989, p. 33). 
A terceira crença descrita diz respeito à idéia de um único modelo de 
comunicação humana. O preconceito reside na idéia da universalidade, que 
não é observável na expressão verbal dos conflitos e dificuldades das 
classes trabalhadoras e que desencadeia no terapeuta certa impotência para 
 24 
sua atuação; esse único estilo de comunicação para com o paciente é 
baseado numa linguagem voltada à educação, às regras de civilização das 
elites urbanas e das comunicações científico-filosóficas, típicas de quem tem 
instrução de nível superior. 
Bezerra Júnior (1996), ao analisar questões básicas das terapias 
psicológicas, examina-as do ponto de vista da representação do profissional 
e do paciente, considerando nestas as diferenças culturais, sociais e 
econômicas contidas na complexidade do discurso e inerentes à 
estratificação social à qual pertencem. Discute a questão da universalidade e 
o quanto esta contribui para uma concepção a-histórica e abstrata do sujeito. 
Neste sentido, enfatiza como o uso da palavra indivíduo pode ser um 
descritivo da unidade física do ser humano ou o tipo de existência individual 
das sociedades modernas, generalizado a toda a espécie humana. Este será 
um elemento crucial numa relação psicoterápica, pois determinará um 
reducionismo etnocêntrico à escuta do terapeuta. 
Em se tratando das representações sobre saúde e doença, o mesmo 
autor refere que as classes sociais médias e altas compreendem a noção de 
saúde de uma maneira mais ampla, ligada à noção de bem estar que, se 
modificada ou diminuída, será considerada um risco mórbido e identificada 
como sintoma. De maneira menos exigente, a população trabalhadora 
restringe a idéia de saúde à possibilidade de trabalhar; com isso, amplia 
numa zona intermediária um “estado de carências”, que seria uma zona de 
desconforto naturalizada e com a qual se acostumou a conviver, apesar das 
misérias e mazelas da própria vida. Esta visão de saúde e doença 
determinará maneiras diferentes de decidir pela busca de tratamento, pelas 
expectativas sobre ele e sobre como é obtida a cura. Uma outra diferença a 
ser apontada é a de se expressa a idéia de causalidade da doença, pois as 
classes menos privilegiadas, munidas de um universo lingüístico que não 
estimula a introspecção e a análise de suas emoções, referirá a doença pelo 
viés do espaço corporal (Bezerra Junior, 1996). 
Ao abordar as psicoterapias individuais, o autor destaca como o “projeto 
psicoterápico” do terapeuta e do paciente irão determinar dissonâncias ao 
 25 
processo terapêutico. Um projeto psicoterápico considera as idéias e noções 
que compõem o imaginário de cada um dos envolvidos no processo - 
terapeuta e paciente - e este determinará as divergências quanto à noção de 
doença, expectativas e processo do tratamento. 
 
“O terapeuta verá a doença como resultado de 
um conflito psíquico que, não tendo encontrado 
solução satisfatória entre os recursos acumulados 
até o momento pelo indivíduo, resolve-se de 
modo canhestro através dos sintomas. Portanto, 
é na biografia pessoal que se encontram as 
raízes do mal-estar presente; há um sentido 
oculto no sintoma, e tratar significa revelar esta 
razão escondida da doença e assim permitir ao 
paciente encontrar soluções mais adequadas 
para seus conflitos; este processo terapêutico 
exige tomar a doença como expressão de 
conflitos internos que serão objeto de reflexão e 
que, através da palavra, serão esmiuçados e 
compreendidos em seu desenvolvimento 
(Bezerra Junior, 1996, p.154). destaque no 
original. 
 
Se o projeto psicoterápico do profissional está subscrito acima, o do 
paciente mostra-se bem diferente. No que se refere à doença, a visão do 
paciente em termos de espaço localizará esta doença no corpo ou a 
remeterá ao espírito; sua causa poderá ser de conteúdo orgânico, educativo, 
hereditário, sobrenatural, místico, entre outros; o momento será aquele que 
ameaça a consecução de suas atividades diárias. Com relação às 
expectativas, o paciente pode não ver o mesmo sentido de cura atribuído por 
seu terapeuta, mas efetivamente poderá sentir-se curado, voltando-se para 
uma dimensão mais imediata de retomada de sua vida. Por último, o 
processo terapêutico para o paciente não assume o caráter complexo da 
causalidade múltipla e pode ser visto como algo natural, um acidente, uma 
disfunção sem grandes reflexões (Bezerra Junior, 1996). 
Sobre as diferenças de representações de uma terapia bem sucedida, os 
bons resultados terapêuticos determinam um “reordenamento simbólico”. No 
entanto, para que este reordenamento simbólico se materialize, entra em 
 26 
cena a própria história de vida do paciente; estão envolvidos aspectos do 
passado e do futuro do paciente e, até nestas dimensões, verificam-se 
diferenças importantes. Se os aspectos do passado sofrem influência na 
forma como o aprendizado cultural permite-lhes o próprio retorno e 
disponibilidade para submergir ao mundo interiorizado e pessoal, o futuro 
influenciará pelas necessidades imediatas do paciente, uma ambição 
diminuída em relação àquela representação de psicoterapia que os 
profissionais têm. 
As questões apontadas por Bezerra Júnior (1996) em seus estudos de 
representação sobre saúde e doença possibilitam ao profissional da saúde 
mental uma flexibilidade em sua ótica, determinada por diferentes condições 
materiais, sociais e culturais de vida. Entretanto, este conhecimento 
manteve-se afastado do psicólogo, transformando-o em um profissional de 
visão reduzidapelo viés do psicologismo, retardando a chegada deste 
profissional na área da saúde. 
 27 
1.1.5. A Psicologia da Saúde 
 
 
A psicologia, enquanto uma disciplina jovem, demorou a inserir-se na 
área da saúde, ao contrário de outras disciplinas. Esta chegada é 
determinada pela inserção do psicólogo na saúde pública, revelando 
simultaneamente um profissional despreparado, sem o devido embasamento 
teórico–prático, já que o campo de atuação do psicólogo restringia-se a duas 
formas específicas: a primeira, nas atividades desenvolvidas em consultórios 
particulares, caracterizada por um trabalho autônomo, liberal e sem inserção 
no contexto dos serviços de saúde; a segunda, exercida em hospitais e 
ambulatórios de saúde mental, submetidas ao paradigma da psiquiatria, em 
um enfoque de medicalização e internação. Uma forma proporcionalmente 
diminuta em relação às outras se dava na inserção em Clínicas-Escola, 
favorecendo, pelos trabalhos desenvolvidos, reflexões sobre o conceito 
saúde mental e sobre as possibilidades de contribuição da psicologia. Em 
outros serviços, o psicólogo mantinha um trabalho dócil e isolado, inserindo-
se nas equipes como um facilitador do processo de tratamento e 
tranqüilizador dos pacientes diante de situações estressoras. 
Em 1982, a Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo adota através 
da Coordenadoria de Saúde Mental importante política de desospitalização e 
de extensão dos serviços de saúde mental à rede básica (Spink, 1992) e, 
com isso, em 1983, garante a formação de equipes multidisciplinares, 
teoricamente integradas, na qual o psicólogo era chamado a atuar nos 
centros de saúde do Estado, nos níveis primário, secundário e terciário, junto 
com outros profissionais da saúde em intervenções de “vigilância da saúde” 
Spink (1992). Mendes (1996) define intervenções de vigilância da saúde 
como aquelas intervenções concretas que combinam ações de promoção à 
saúde, prevenção da doença e de ações curativas. Esta inclusão trouxe a 
evidência do despreparo do psicólogo para esta atuação em níveis teóricos 
e práticos (Spink, 1985). 
 28 
A mudança na inserção profissional do psicólogo, efetivada nos serviços 
de saúde e em outras atuações práticas, gera a necessidade de se 
estabelecer marcos teóricos, estabelecendo, como afirma Spink (1992; p.11) 
“... a emergência de um novo campo do saber“, denominando-a como 
Psicologia da Saúde, enquanto um campo de especialização da Psicologia 
Social e em uma fase inicial de construção, caracterizado pela descoberta e 
abertura de novos campos de atuação, tal qual acontecera na constituição 
da Medicina Social. 
Em termos de atuação, a Psicologia da Saúde desenvolveu suas ações 
em três vertentes e, tradicionalmente, atuou muito mais na vertente do 
individual, agregando também tardiamente a dimensão social na explicação 
do processo saúde-doença. Esta não incorporação do social determinou 
atuações limitadas, na vertente intra-individual, situando o foco da doença no 
organismo doente, a origem da doença nas emoções e, na terapia, a 
possibilidade de cura. Uma segunda vertente tentava buscar conexões entre 
experiências de vida e adoecer como explicação da doença, estando a cargo 
da educação nas ações de promoção à saúde e prevenção da doença, as 
condições para a cura. Uma terceira vertente, na perspectiva 
construcionista, possibilitou a compreensão da doença como fenômeno 
psicossocial construído historicamente. Esta vertente aborda a doença como 
fenômeno coletivo influenciado pelo social e não só por seu caráter 
manifesto individual, valoriza a ótica do paciente e não mais o olhar médico 
como único legitimador. Nesta perspectiva, são enfatizadas as 
representações do processo saúde-doença, explicitando a construção social 
que permeia estas noções em certos grupos (Spink, 2003). 
Para a mesma autora, uma das implicações desta vertente ecoa na 
prática psicológica, exercida pelos profissionais nos serviços de saúde e que 
confrontam a insuficiência da formação, baseada na clínica tradicional. 
 
“Aqui também a perspectiva da construção social 
do conhecimento sobre saúde e doença pode 
trazer contribuições efetivas, diminuindo a 
distância social; possibilitando a compreensão da 
visão de mundo específica dos diversos grupos 
 29 
sociais e motivando os psicólogos a buscarem 
formas de atuação mais compatíveis com os 
objetivos do atendimento do nível primário” 
(Spink, 2003, p.50). 
 
 30 
1.2. A formação em Psicologia 
 
 
Os temas referentes à formação vêm, nos últimos anos, ocupando a 
proposta central de muitos trabalhos, nos quais as críticas se voltam a uma 
formação que não forma profissionais sensibilizados para uma atuação mais 
adequada de nossa população. Este é um efeito das discussões, 
anteriormente citadas, a respeito da profissão, em uma tentativa de avançar, 
no que diz respeito à orientação predominantemente técnica da profissão, 
quando de sua constituição legal, institucionalizada para atender as 
demandas das classes dominantes, de um sistema excludente, que formava 
profissionais a partir de interesses que não atendiam as necessidades da 
população, mas visavam o controle, a norma e a aplicação da técnica pela 
técnica. 
Baptista (1987) analisa o discurso de alunos do 5º ano do curso de 
psicologia e nele identifica um discurso reprodutivo e não questionador do 
sistema da ordem social e do processo histórico na formação, determinando 
um profissional “amorfo, silencioso e desprovido de singularizações” e 
conclui pela necessidade de uma maior ênfase em torno da discussão 
histórica do trabalho, enquanto processo, e do questionamento deste 
indivíduo fabricado – psicólogo, no contexto de uma ideologia, sobre a qual 
pouco se fala nos cursos de formação. Aponta ainda que, para transformar a 
sociedade, devemos ousar mais na formação deste psicólogo enquanto um 
agente de transformação desta, trazendo para dentro do espaço da 
supervisão o lugar histórico de surgimento da psicologia (por que e para que 
surgiu). Em sua crítica à formação, chama a atenção para o quanto o 
processo de supervisão pode simplesmente reproduzir um sistema de 
modelagem no qual o aluno se espelha de maneira a-crítica na figura de seu 
supervisor. 
Vilela (1996) questiona o modelo reprodutivo na formação, a partir da 
reflexão sobre a supervisão como dispositivo de produção de subjetividades. 
Conclui que, neste modelo, prevalece a hegemonia dos valores individuais 
 31 
das sociedades ocidentais modernas, produzindo um psicólogo tão 
naturalizado quanto seu cliente e que, enquanto profissional, exerce uma 
prática profissional normativa e técnica. O caráter pessoal da formação, 
transmitida por regras e modelos, numa condição não autoritária confirma-
lhe a “valoração de sua autonomia: são seres singulares, responsáveis, 
maduros” (Vilela, 1996, p.163), constituindo o ser psicólogo “uma proposta 
de estilo de vida, de modo de ser” (Vilela, 1996, p.163). Esta configuração o 
situa como um técnico para facilitar a emergência da normalidade e alguém 
a quem não cabe discutir ou contribuir à ciência. No entanto, a autora aponta 
algumas saídas rupturais do modo de subjetivação reprodutivo observado 
nos discursos de alunos e supervisores, destacando a não psicologização 
dos espaços, a priorização de possibilidade de produção de novos saberes e 
de experimentação de novas práticas e, por último, a busca de novos 
caminhos, afastados do especialismo e do lugar “destinado” ao psicólogo. 
Silva (1992), analisando a formação para o trabalho na saúde pública, 
apresenta criticas importantes, sendo uma delas referente à preparação do 
psicólogo, enfatizada para o trabalho autônomo; aponta que o profissional, 
quando inserido na instituição, necessita de um enquadramento da tarefa8, 
como clínico, sim, mas contextualizado numa especificidadesocial; a outra 
crítica recai no único modelo de atendimento que privilegia os atendimentos 
contínuos; com relação a estes, assinala o distanciamento e 
descontextualização do trabalho frente à população assistida. 
Mello (1996), considerando os problemas da formação, aponta como 
positivo o caráter de auto-exame que se faz periodicamente de nossa 
profissão, da formação e da própria ciência psicológica, pelos acadêmicos e 
órgãos de classe, no sentido de fotografarem o estado real da profissão – 
atuação e formação – o que revela nossos limites. Seu interesse está 
centrado nas relações da profissão com a sociedade; assim, afirma que a 
função dos cursos de psicologia é de “preencher o espaço das necessidades 
 
8
 O enquadre da tarefa é uma exigência à atuação do psicólogo institucional, para quem o 
desenvolvimento de uma atitude clínica, através do manejo técnico da dissociação instrumental, o 
identifica com o grupo, mas também o preserva com um certo distanciamento, permitindo-lhe uma 
leitura do evento em questão sem perder seu papel específico Bleger (1984). 
 32 
que a sociedade gerou” (Mello, 1996, p.12). Em seu ponto de vista, as 
maiores dificuldades da formação são: 
� A falta de unidade nos cursos, correspondente à ambigüidade 
característica do objeto do conhecimento da psicologia (o homem 
como máquina complexa ou produtor da cultura, da história e de 
símbolos); 
� Rigidez no consumo da ciência na universidade, instaurando divisões 
inseparáveis entre as áreas da psicologia; 
� Falta de recursos humanos para dinamizar os cursos que deveriam 
depender da pesquisa; 
� Discrepância entre o sabido e o vivido, acarretando um profissional 
inábil para tratar de situações não previstas. Neste aspecto destaca-
se o artificialismo da aprendizagem propriamente técnica, o estágio; 
� A ênfase excessiva nos procedimentos técnicos. 
 
A partir dessas considerações, fica evidente que, enquanto psicólogos, 
podemos e devemos buscar na investigação e na pesquisa o conhecimento 
da realidade individual, social, cultural de nossa população, sensibilizando-
nos à aproximação de nossos instrumentos e técnicas, a fim de sintonizar-
nos com estas necessidades. 
 33 
1.2.1. O papel da supervisão na formação 
 
 
A supervisão ocupa na formação do psicólogo uma função singular e 
definitiva para o tipo de profissional que queremos formar. 
De acordo com Aguirre et al. (2000), a supervisão pode ser entendida 
como um modelo de trabalho em que se atende indiretamente o paciente, 
através das informações que surgem no relato do aluno sobre o conteúdo 
das sessões, do material e das emoções despertadas no grupo. 
O trabalho de Vilela (1996) revela que a implantação do cargo de 
supervisor nas universidades foi marcada pelas influências das sociedades 
psicanalíticas oficiais. Segundo a autora, a instituição de um credenciamento 
para a condição de supervisor partiu do Conselho Federal de Psicologia - 
CFP, que só em 1985 redefiniu esta questão, isentando-se da 
responsabilidade de fiscalização das instituições de ensino superior. 
Contudo, a suspensão do credenciamento marcou este “lugar de 
supervisor”, como um lugar diferenciado, no sentido de que este, além do 
saber teórico, deverá agregar uma competência de atuação prática, capaz 
de garantir ao aluno visibilidade, confiabilidade e segurança no 
desenvolvimento de seus estágios, configurando-lhe uma posição distinta do 
“lugar de professor” que, aos olhos do alunado, o mantém com uma marca e 
qualidade distintas, situando-o “acima dos mortais” (Vilela, 1996). 
De qualquer forma, destaca-se a grande importância do supervisor para 
formação do futuro profissional, uma vez que sua experiência profissional 
servirá como um primeiro modelo de atuação ao aluno, que poderá ser 
seguido ou rechaçado. 
Na abordagem psicanalítica, o psicólogo tem em si mesmo seu principal 
instrumento de trabalho, por isso, o lugar da supervisão é fundamental para 
ampliar a compreensão do aluno-terapeuta em suas emoções e atitudes 
vividas na relação terapêutica. 
Aguirre et al. (2000), discutindo sobre a formação da atitude clínica nos 
primeiros estágios clínicos, afirmam que, nesta abordagem, o supervisor 
 34 
desempenha um elemento vital à constituição e ao desenvolvimento da 
atitude clínica no aluno; o aluno deverá compreender e apropriar-se de seu 
papel de psicólogo, conhecendo e utilizando suas possibilidades e limites 
rumo a uma construção da identidade profissional. Esta identidade 
compreende um complexo conjunto de experiências internalizadas: 
concepção de mundo, adoção de uma escala de valores, escolhas e 
comportamentos. A identidade profissional e o papel de psicólogo 
determinam o enquadramento do trabalho, que se configura como o campo 
de atuação do psicólogo e será sua referência de objetividade no trabalho 
clínico. Neste sentido, será o supervisor aquele que, permitindo a 
compreensão do aluno sobre o significado do enquadre, lhe possibilitará 
esta vivência. Contudo, esta vivência não é algo simples, sua complexidade 
pode ser atenuada e esta condição está diretamente relacionada à 
capacidade do supervisor em lidar com a persecutoriedade ou rivalidade a 
que esta relação pode desencadear. 
 
“A função do supervisor é acolher e orientar, 
favorecendo o aprendizado através da 
compreensão dos aspectos latentes e manifestos 
presentes, inclusive na situação de supervisão. 
No entanto, o supervisor pode, em certos 
momentos, representar o modelo idealizado com 
o qual o aluno rivaliza ou do qual tem muito 
medo. Pode ser difícil encarar o supervisor como 
um profissional com cuja experiência o estagiário 
pode contar para dar-lhe respaldo no atendimento 
e continência para as inseguranças” (Aguirre et 
al., 2000, p.6 -7). 
 
A questão da técnica é muito importante, mas cremos que o papel do 
supervisor vai muito além do preparo técnico, pois é um trabalho que exige 
amadurecimento profissional e pessoal, já que este também é um sujeito 
constituído de experiências internalizadas que norteiam e determinam sua 
própria identidade profissional e que, por muitas vezes, terão que ser 
refreadas em detrimento de seu papel e função de supervisor. 
 35 
A dimensão de uma supervisão poderá ser muito mais abrangente do 
que o simples acompanhamento técnico do estagiário no desenvolvimento 
de seu trabalho. Neste sentido, concordamos com as idéias defendidas por 
Coimbra (1989), quando atribui grande importância à supervisão na 
formação do psicólogo. Ela considera o grupo de supervisão como uma 
possibilidade de força instituinte e não um mero reprodutor do instituído, 
como conseqüência da abertura de espaço ao debate de questões que 
permitem ao estagiário perceber as implicações do lugar político e social 
ocupado pelo supervisor. A autora destaca duas posturas que, ainda que 
opostas, não contribuem para o desenvolvimento dos alunos: a do 
supervisor “autoritário”, que sabe, vê e percebe tudo e a do supervisor 
“liberal” que se afirma igual aos estagiários, mas que na verdade escamoteia 
relações de poder. Conclui que a falta de discussão intragrupo do lugar 
social e político que o supervisor ocupa, impede que se atinjam três pontos 
importantes, que a priori deveriam ser alcançados pela supervisão: o 
político, o social e o institucional; sem a consideração dessas dimensões, há 
a impossibilidade de criação de um espaço de reflexão na supervisão, 
redundando em mais um momento que reproduz o instituído (Coimbra, 1989, 
p. 27-28). 
Yehia (1996b), ao defender a qualidade do atendimento à comunidade, 
assume uma posição de maior disponibilidade e exigência do supervisor 
num papel mais ativo. Ela propõe que o supervisor seja o responsável pelos 
atendimentos aos clientes; neste sentido este ocuparia

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