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ROSÉLIA BEZERRA PAPARELLI Psicólogos em formação: vivências e demandas em plantão psicológico Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, para obtenção do Título de Mestre. SÃO PAULO 2005 ROSÉLIA BEZERRA PAPARELLI Psicólogos em formação: vivências e demandas em plantão psicológico Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, para obtenção do Título de Mestre. Área de Concentração: Saúde Coletiva Orientador: Prof(a). Dr(a). Maria Cezira Fantini Nogueira-Martins SÃO PAULO 2005 FICHA CATALOGRÁFICA Preparada pelo Centro de Documentação – Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo �reprodução autorizada pelo autor Paparelli, Rosélia Bezerra Psicólogos em formação: vivências e demandas em plantão psicológico / Rosélia Bezerra Paparelli. – São Paulo, 2005. Dissertação (mestrado)—Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Área de concentração: Saúde Coletiva Orientador: Maria Cezira Fantini Nogueira-Martins 1. Recursos Humanos em Saúde 2. Psicologia Aplicada/ética 3. Aprendizagem 4. Serviços Comunitários de Saúde Mental/recursos humanos 5. Acesso aos Serviços de Saúde 6. Prática Profissional SES/CCD/CD-062/04 Por fazerem a diferença... Dedico aos meus pais, ao Lau meu porto seguro, meus filhos Henrique, Fernando, Marcelo, e Tico meu irmão mais querido. Agradecimentos Minha gratidão... À Profa. Dra. Maria Cezira Fantini Nogueira-Martins pela orientação segura na condução deste trabalho e principalmente pela confiança depositada. À Universidade Camilo Castelo Branco, destacando a Coordenação da Faculdade de Psicologia - Profa. Alessandra Martinez e equipe que atendeu a todas as minhas necessidades para a realização deste trabalho. Ao Prof. Antonio de Pádua Serafim – Chefe do Depto de Pesquisa da Faculdade de Psicologia pela simplicidade para resolver grandes questões. Ao Departamento de Pesquisa da Unicastelo, representado pela Profa. Zenaide Galvão sempre tão disponível a auxiliar-me. À Equipe Técnica e Administrativa do Centro de Formação de Psicólogos – Priscila Gonçalves, Christianne Jacob Silva e Renata R. Lima pelo carinho, companhia e cuidado em me ouvir. Às Profas. Maria de Fátima Tomé, Jacqueline Mazzoni e Suely Garcia que junto comigo desbravaram novos fazeres. Aos Alunos e Alunas que me impulsionam a melhorar sempre. Aos Pacientes que atendi diretamente e indiretamente, dando-me a certeza de que muito há para se fazer por nossa “saúde mental”. Ao colega Francisco Coienca que foi alguém decisivo para minha entrada na Pós graduação. À querida e sempre amiga Priscila Gonçalves, por me acompanhar em vários momentos importantes desta jornada, sofrendo e se alegrando junto comigo. Às experiências vividas e aprendidas no Hospital Santa Marcelina, especialmente no Ambulatório de Saúde Mental. Minha gratidão aos meus pacientes, colegas, companheiros de trabalho e Amigos mais queridos Lúcio Ferracine, Teresa Fernandes, Orlando Almeida, João Medeiros, Liliam Lourenço. Aos mestres da Pós, com ênfase àqueles que fizeram a diferença: Profª Dra. Belkis Trench, Profª Dra. Wilza Vilela, Profª Dra. Ausônia F. Donato, Prof Dr. Carlos Botazzo. Às componentes da minha Banca de Qualificação – Profª Dra. Eliana Herzberg, Profª Dra. Sandra Maria Tavares Greger e Profª Dra. Cláudia Maria Bógus, pela leitura crítica e recomendações oferecidas, transformando este difícil momento de um mestrando em uma agradável fonte de saber, que, com certeza, puderam ecoar e repercutir na etapa mais difícil deste trabalho - minha Defesa. Aos Psicólogos tão queridos que participaram desta pesquisa na condição de ex-alunos, transformando este trabalho num passeio por um imenso jardim, reforçando em mim a certeza de que vale a pena semear... PAPARELLI, RB. Psicólogos em formação: vivências e demandas em Plantão Psicológico. Resumo Este trabalho buscou refletir sobre a formação do psicólogo, a partir da institucionalização da psicologia enquanto ciência e profissão em nossa sociedade, traçando-se um paralelo entre a inserção histórica e social da ciência psicológica e o reflexo desta na formação e atuação profissional do psicólogo, nas quais se verifica a prevalência de um modelo hegemônico baseado nos valores de indivíduo abstrato e a-histórico da sociedade ocidental moderna. Examinou-se a consolidação profissional através das práticas clínicas que, naturalizando o fenômeno psicológico, privilegiam a doença e se tornam acessíveis e restritas a alguns segmentos sociais, configurando-se numa atuação elitista, descontextualizada e pouco sintonizada com as necessidades das classes menos favorecidas, aprovisionando-lhe uma abrangência social diminuta, que coopera para uma idéia de profissão de utilidade social prescindível. Tomou-se como recorte um estágio desenvolvido em plantão psicológico, realizado numa clínica escola de uma universidade particular da zona leste de São Paulo, cujo atendimento é voltado às necessidades da comunidade. O objetivo do trabalho foi, por meio da abordagem qualitativa de pesquisa, conhecer o impacto desta realidade nas vivências do aluno de quinto ano de Psicologia enquanto plantonista, e verificar se esta inserção favoreceria a instalação de uma consciência crítica de nossa realidade social. Utilizou-se a técnica de Grupo Focal, com uma amostra de 38 alunos egressos; o material obtido foi submetido à Análise Temática. Os resultados mostram que a inserção do graduando no Plantão Psicológico possibilitou desilusões e rupturas das certezas instituídas nos fazeres e saberes psicológicos, contribuindo para uma nova construção na maneira de olhar para antigas questões, legitimando a necessidade de revisão e questionamento de nossas práticas cotidianas. O aspecto vivencial mostrou- se fundamental, seja para o psicólogo em formação que, mobilizado reflete sobre valores, posturas e convicções, seja para o agente formador, isto é, a universidade, na gestação dos saberes e práticas, conferindo às clínicas- escola a tarefa de sustentar e nutrir o tripé da formação - pesquisa, ensino e serviço - no cumprimento de sua função social, configurada num cenário de investigação e construção de novos saberes, geradores de práticas contextualizadas na realidade de nossas populações. Palavras chave – Recursos humanos em saúde; Psicologia aplicada/ética; aprendizagem; Serviços comunitários de saúde mental/Recursos humanos; Acesso aos serviços de saúde; Prática profissional. PAPARELLI RB. Graduating psychologists: experiences and requirements in Psychological Duty. Abstract This work aims at reflecting over the preparation of a psychologist based on the institutionalization ofpsychology as sciences and profession in our society,drawing a line between the historical and social insertion of the psychological sciences and the reflects of this kind of preparation and the psychologist`s performance, on which one verifies the predominance of a homogeneous pattern based on the abstract individual and non-historical values in the western modern society. I was taken into consideration the professional consolidation through the clinical practices , which, by making the psychological phenomenon more natural, give full attention to the disease and become more accessible and restrict to some social segments, fitting thus into an elitist, decontextualized and little sintonized performance in relation to the less favored classes,confering a diminished social importance, which cooperate with the idea of social not essencial utility profession. A training program, developed during psychological duties was taken as a model, performed in a school clinic of a private university in the east side of Säo Paulo, whose attendance is turned to the needs of the community. The objective of this work was,according to the qualitative approach of the research, acknowledging the impact of this reality through the student`s life experience in the 5th year of their psychology courses, while they were on duty, and verifying if this insertion would favor the instalation of a critical awareness of our social reality. The Focusing group technic was used as a sample of 38 egressed students .The obtained material was submitted to thematic analysis. The results show that the insertion of the graduating student on psychologic duty shed light on the uncertainty instituted in the psychological knowledge and practices, thus, contributing to a new construction in the way we look into the old questions, legitimating the need for a revision and questioning of our daily practices. The daily aspect presented itself as fundamental, either to the graduating psychologist,touched by this, reflecting over the values, postures and convictions to the facilitator of this process, that is, the university , which by conveying the knowledge and practices perform the role of sustaining and nourishing the trinity of the preparation - research, teaching and services - in the accomplishments of its social functions, fitting in an investigative scenerio and constructions of the knowledge, reservoir of practices contextualized in the reality of our population. Keywords - Health manpower , Psychology applied/ethics; Learning; Community mental health services/manpower; Health services Accessibility; Professional Practice. Lista de Abreviaturas e Siglas SUS – Sistema Único de Saúde UNICASTELO - Universidade Camilo Castelo Branco PUC - Pontifícia Universidade Católica SAP - Serviço de Aconselhamento Psicológico IPUSP - Instituto de Psicologia da Universidade São Paulo CFP – Conselho Federal de Psicologia CRP – Conselho Regional de Psicologia EPM - Escola Paulista de Medicina UNIFESP - Universidade Federal de São Paulo Lista de Tabelas e Figuras Tabela 01- Distribuição Populacional Zona Leste 2 página 67 Tabela 02 - Índices de Exclusão Social Zona Leste 2 página 68 Tabela 03 - Formação de Grupos Focais página 82 Fluxograma de Serviços do Centro de Formação de Psicólogos Anexo A SUMÁRIO Apresentação 1. Introdução 4 1.1. Histórico da profissão de Psicologia 4 1.1.1. Das primeiras idéias psicológicas à regulamentação da profissão 4 1.1.2. Os primeiros passos da Psicologia que temos hoje 7 1.1.3. A Psicologia Clínica 12 1.1.4. A relevância do contexto social 17 1.1.5. A Psicologia da Saúde 27 1.2. A formação em Psicologia 30 1.2.1. O papel da supervisão na formação 33 1.2.2. As Clínicas-Escola 42 1.2.3. O plantão psicológico 50 1.2.4. O plantão psicológico e demanda social 57 2. Justificativa 60 3. Objetivos 62 4. Material e Método 63 4.1 Abordagem qualitativa 63 4.2. O campo de trabalho 64 4.2.1. Contexto do campo de trabalho 65 4.2.2. O papel da universidade 70 4.2.3. O Plantão Psicológico da Unicastelo 74 4.2.3.1. Características e pressupostos 74 4.2.3.2. Metodologia 75 4.2.3.3. Funcionamento 76 4.2.3.4. Objetivos 77 4.3. A Técnica de Grupo Focal 79 4.4. Os sujeitos 80 4.5. Os procedimentos 81 4.6. O desenvolvimento da pesquisa 83 4.7. Considerações éticas 84 4.8. A análise do material 84 4.9. Reflexões sobre a metodologia 85 5. Resultados e Discussão 87 5.1. A realidade da população 89 5.1.1. Expectativas 89 5.1.2. Necessidades 95 5.2. A experiência no Plantão Psicológico 101 5.2.1. Dificuldades 102 5.2.2. Aspectos facilitadores 107 5.3. O papel do psicólogo 114 5.4. A psicologia e a saúde mental 119 6. Considerações Finais 126 Referências Bibliográficas Anexos 1 APRESENTAÇÃO Este trabalho é originário das inquietações que surgiram em dois momentos de minha vida profissional: quando iniciei minha trajetória como psicóloga, em um ambulatório de saúde mental, atendendo a população de baixa renda, em uma instituição privada que mantinha convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS) e, posteriormente, ao ingressar na universidade, como psicóloga clínica em uma Clínica-Escola de Psicologia, onde atuava na estreita fronteira entre o “formar e o atender”, isto é, trabalhando com a assistência e, ao mesmo tempo, tendo um papel de agente formador para os alunos. Para assumir estas novas atribuições na Clínica-Escola, foi necessário um certo desprendimento da ótica profissional que mantinha até então (como psicóloga clínica em consultório particular), no sentido de reconhecer as defasagens do meu saber e a pouca instrumentalização técnica, científica e política para dar conta desta demanda excessivamente diferente daquela do consultório. Se no ambulatório de saúde mental esta prática estava longe de ser alterada, por limitações determinadas pela organização, funcionamento e objetivos do próprio serviço, que priorizam o atendimento em detrimento da pesquisa, na universidade, ao contrário, percebia um terreno fértil para inovações; nesse sentido, fui aperfeiçoando alguns trabalhos e serviços com a ajuda e o incentivo de docentes, discentes e técnicos que partilhavam desta posição inovadora. O engajamento acadêmico abriu as portas à carreira docente e, como professora, aumentaram minhas reflexões e críticas sobre a prática da psicologia. Junto com estas, indagava-me sobre o porquê do profissional psicólogo, salvaguardado por algumas exceções, manter-se tão apartado das necessidades sociais, confortável no seu desconhecimento daquilo que eu só pudera perceber após anos de formada, quando meu universo teórico e técnico não supria as necessidades que observava nas demandas das chamadas classes menos favorecidas. Diante destas constatações, empenhei-me na busca de um instrumental teórico que respondesse minha defasagem; neste questionamento, descobri 2 o discurso de alguns autores contemporâneos que já se ocupavam destas questões: formação do psicólogo, necessidades da população demandante, papel social do agente formador, função social da psicologia, compromisso ético. Tais questões têm uma expressão significativa na atuação do profissional; porém, não as percebia implicadas na formação, contexto em que, a meu ver, mereciam discussão mais ampla. Atualmente, como coordenadora da Clínica-Escola da UniversidadeCamilo Castelo Branco (Unicastelo), observo que as chamadas “psicoterapias profundas1” nem sempre representam o ideal de ajuda para todos, pois percebo que mesmo aqueles que conseguem atendimento imediato, muitas vezes abandonam o processo após as primeiras sessões. Essas desistências levam a pensar que os solicitantes buscam nossos serviços, para “dar conta” de suas queixas imediatas, às vezes transitórias, mas ao mesmo tempo insuportáveis no momento em que são vividas, não implicando, necessariamente, em uma “psicoterapia” de prazo indeterminado, mas, sim, em um espaço para serem divididas, compartilhadas, repensadas, em uma perspectiva temporal breve. Empiricamente, observo um distanciamento entre o “ideal psicoterápico” da população que solicita nossos serviços e do profissional de saúde mental. De alguma forma, este distanciamento estaria determinado pelo “projeto psicoterápico2” que cada indivíduo tem e que se desenvolve dentro de um certo esquema de representações para justificar um tratamento psicológico, sendo este portanto, diferente daquele de representação do profissional da saúde mental. Nessa perspectiva, o Plantão Psicológico, atividade desenvolvida por alunos do quinto ano de Psicologia, sob supervisão, foi criado na Unicastelo por ser tanto uma tentativa de atender mais adequadamente as demandas 1 Este trabalho considera psicoterapias profundas aquelas cujo objetivo principal é a reestruturação da personalidade pela dissolução dos conflitos intrapsíquicos, num período de tempo longo. 2 Projeto Psicoterápico é um termo criado e utilizado por Jurandir Freire Costa para referir-se às noções, certezas, expectativas, modus operandi de um tratamento psicoterápico e que é específico para cada indivíduo. 3 da sua comunidade, como também um meio de os alunos se desenvolverem enquanto profissionais vinculados à realidade da população. A prática na universidade deve ser um ponto de intersecção ou uma forma de ligação entre o social e o científico, enriquecendo o “saber oficial”, a partir de contribuições determinadas pelo “saber popular”, alinhavados e tecidos pelo futuro profissional psicólogo. Penso que, para que se possa estabelecer um conhecimento pautado numa realidade próxima, cabe à universidade a oferta deste espaço em que o aluno em formação possa se embrenhar em “tarefas” especificamente voltadas à compreensão do conceito saúde/doença numa dimensão ampliada, construindo-se um profissional consciente, competente, ético, comprometido e embasado na realidade e, por isso, flexível na sua atuação. Para isso, urge que a universidade, como o principal agenciador da produção do conhecimento e da formação dos profissionais, abandone sua zona de conforto, que cristaliza o ensino reprodutivo e, desvendando as tramas do instituído através da investigação e da pesquisa, rompa uma mentalidade reducionista que enxerga a universidade como o locus tecnicista de aplicação e treino de modelos e técnicas psicológicas. Somente mobilizada por este espírito investigativo e inventivo, a universidade poderá assumir seu verdadeiro lugar na saúde mental, reafirmando seu papel de gerador e promotor de mudanças significativas nos espaços da formação, não só em sua ação formativa, mas principalmente na transformação de indivíduos em sujeitos que, nesta condição, tornam-se psicólogos, despertando-os para seu engendramento em projetos que definam o lugar da ciência psicológica na compreensão do sofrimento humano, refletindo uma subjetividade que singulariza o compromisso social do profissional de saúde. 4 1. Introdução 1.1. Histórico da profissão de Psicologia Ao considerarmos as críticas feitas à atuação do psicólogo e sua desarticulação com a realidade, somos remetidos a pensar que, de certa forma, aquilo que temos realizado em nossa prática profissional reflete a maneira pela qual a psicologia institucionalizou-se em nossa sociedade. 1.1.1. Das primeiras idéias psicológicas à regulamentação da profissão Bock (2003) destaca que, no percurso histórico, as “idéias psicológicas” estiveram determinadas pelo interesse das elites, pouco contribuindo à transformação social. Tais interesses promoveram a inserção histórica da psicologia, como ciência e profissão, em ações com fins de controle, higiene, diferenciação e categorização. Pessotti (1988) nomeia de pré-institucional o período do Brasil Colônia em que se iniciam algumas idéias psicológicas, ainda sem uma pretensão científica. Nesta fase, a principal marca foi o controle dos menos afortunados, já que a terra recém descoberta, para ser explorada, necessitava do controle e domínio sobre os indígenas. Com a passagem à condição de Império no século XIX, os interesses passam a ser higienistas, herança do pensamento europeu; a sociedade mantinha-se sob o domínio da ideologia de ordem e higienização. Esta tendência marcou a medicina, a educação e a psicologia. As idéias psicológicas naturalizavam a moral como valor intrínseco ao homem que, ao 5 perdê-la, degenerava-se. Ao degenerado, restava uma educação rígida e moralista, uma medicina repressora e excludente e uma psicologia cujos objetivos eram de controle de comportamento dos inadequados e desajustados. Depois da Proclamação da República, de acordo com Maluf (1996), as elites dominantes promovem a reforma educacional, que determina o engajamento da psicologia na educação e na pedagogia através dos currículos das Escolas Normais. O começo do século XX é marcado por esta parceria entre educação e psicologia, orientadas “... por princípios do objetivismo científico, do academicismo e do individualismo, inerentes ao ideário liberal” (Maluf, 1996, p. 33). Com a industrialização (e pela experiência da psicologia aplicada à educação), houve uma demanda na qual o conhecimento psicológico favoreceu ações de diferenciação e categorização das pessoas às necessidades industriais (Bock, 2003). A primeira metade do século XX já mostrava uma demanda pela profissionalização e tornou acessível o ensino da psicologia como disciplina em cursos de filosofia, pedagogia, serviço social e outras instituições ou cursos de nível universitário, já que tinham existência legal, permitindo o ensino da Psicologia, bem como a difusão das idéias, atividades e práticas psicológicas. É um período bastante rico em produções, com no domínio das técnicas e no individualismo. A partir dos anos 50, por impossibilidade legal, os Cursos de Psicologia instalaram-se como cursos de especialização aos formados em filosofia e educação (Maluf, 1996; Maluf et al., 2003). Somente em 1934, atendendo à necessidade de uma estrutura acadêmica que considerasse os esforços, tendências e pesquisas da Psicologia no país, é criada a Universidade de São Paulo, marcando o início da terceira fase de nossa história. Este período denominado, “período universitário”, marcou o desenvolvimento da Psicologia como ciência autônoma, desvinculada da utilização médica e com certa independência de sua aplicação no âmbito escolar; nesta fase, faz-se sua passagem da condição de disciplina opcional para disciplina obrigatória de ensino superior 6 em três anos nos cursos de Filosofia, Ciências Sociais, Pedagogia e em todos os cursos de licenciatura (Pessoti, 1988). A regulamentação da profissão ocorreu em 27 de agosto de 1962, com a Lei Federal nº 4119; com base nesta Lei, foi elaborado o Parecer do Conselho Federal de Educação 403/62, de 19 de dezembro de 1962, estabelecendo um currículo mínimo e duração do curso a ser obedecido na formação. Segundo Maluf (1996), este momento sócio-histórico de criação dos cursos mantinha o predomínio da psicologia experimental norte-americana,que determinaria as bases do currículo; os cursos criados se desenvolveriam inseridos num panorama de repressão política e cultural. Neste mesmo panorama, com a Reforma Universitária de 1971, a psicologia ficava comprometida com os ditames do regime econômico de então, definindo uma mão de obra para satisfazer e complementar as necessidades das classes dominantes. Neste mesmo ano, são criados os Conselhos Federal e Regional de Psicologia, com a finalidade de orientar e fiscalizar a profissão na oferta de serviços de qualidade à população. A psicologia desta fase, como ciência - articulada à cultura da racionalidade científica moderna - e como profissão recém regulamentada, insere-se em nossa sociedade atendendo às necessidades do regime capitalista, naturalizando a realidade psicológica e social, exercendo uma atuação prática normativa e autoritária, vinculada a certos padrões de normalidade e “...mascarando o papel de certas práticas humanas na construção dessa realidade” (Fonseca, 1998, p. 45). 7 1.1.2. Os primeiros passos da Psicologia que temos hoje A abertura política e a redemocratização do país dos anos 80 sopram ares de mudança na posição calada e descomprometida que a psicologia brasileira ocupava: “... foi sendo reconhecida a insuficiência das abordagens tecnicistas e descontextualizadas para o tratamento das questões psicológicas. Multiplicaram-se as práticas de psicólogos voltadas à superação do psicologismo, com a consideração dos elementos concretos, sociais e históricos presentes nas necessidades e dificuldades dos indivíduos e instituições” (Maluf, 1996, p.35). De acordo com Reis (1995), Andrade (1996), Maluf (1996) e Vilela (1996), abrem-se então discussões sobre os problemas do exercício da profissão através do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e das universidades, para o aprimoramento dos cursos no país, culminando, em 1984, com a criação de um “Programa de Estudos e Debates sobre a Formação e Atuação do Psicólogo”, que objetivava obter informações que pudessem promover uma maior articulação entre a formação do psicólogo e as demandas impostas pela realidade social. Com o referido programa, foi realizada, nos anos de 84 e 85, uma ampla pesquisa nacional, cujo resultado foi publicado em 19883 no livro Quem é o Psicólogo Brasileiro? Tal pesquisa revelou dados até então desconhecidos, fornecendo um diagnóstico que descrevia a realidade e os problemas do exercício profissional. Em sua continuidade, o mesmo Programa de Estudos e Debates publicou, em 19924, sob o título Psicólogo Brasileiro: Construção de Novos Espaços, uma segunda pesquisa, realizada entre 80 e 92, oriunda de um levantamento e 3 Conselho Federal de Psicologia. Quem é o Psicólogo Brasileiro? São Paulo: Edicon; 1988. 4 Conselho Federal de Psicologia. Psicólogo Brasileiro: Construção de Novos Espaços. Campinas: Átono; 1992. 8 análise da literatura produzida em nível nacional, com o objetivo de detectar publicações que revelassem propostas inovadoras da profissão. As discussões sobre o tema formação e atuação do psicólogo continuam e, em 1992, dão origem à Carta de Serra Negra5, a partir de encontros promovidos entre o CFP e os representantes dos cursos de formação no país. Esta carta se constitui em um documento de princípios, cuja síntese desenvolvida pelo conjunto de formadores, pesquisadores e profissionais, traz como idéia subjacente a mobilização por mudanças e transformações. De maneira sintetizada os principais pontos6 que fazem parte do documento são: � Desenvolver a consciência política de cidadania e o compromisso com a realidade social e a qualidade de vida; � Desenvolver a construção do conhecimento, fomento a pesquisa num contexto de ação-reflexão-ação; � Desenvolver o compromisso da ação profissional baseada em princípios éticos; � Desenvolver o sentido da universidade, pela interdisciplinaridade e indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão; � Desenvolver a formação básica pluralista, fundamentada na discussão epistemológica e conforme a realidade sociocultural; � Desenvolver uma concepção de homem em sua integralidade e nas condições concretas de existência; � Desenvolver práticas de interlocução entre os diversos segmentos acadêmicos. Pela leitura destes princípios, pode-se perceber as preocupações dos envolvidos naquilo que se espera da Psicologia como ciência promotora de transformação, sinal do processo de descontentamento da jovem profissão, que começa a defrontar-se com necessidades de mudanças. De acordo com Vilela (1996), apesar de este documento ter importância significativa 5 Para obtenção do conteúdo descrito na Carta de Serra Negra foram consultados o Conselho Regional de Psicologia – 6ª região, o Conselho Federal de Psicologia, a Associação Brasileira de Ensino de Psicologia, que não têm disponível tal documento. As referências de seu conteúdo neste trabalho foram obtidas em Reis (1995), Moraes (1996) e Vilela (1996). 6 Conforme citado por Vilela (1996). 9 enquanto construção coletiva e ter sido divulgado nas instituições de ensino superior da época, não ocorreram debates ou discussões em torno de suas propostas. Um terceiro trabalho publicado em 19947, realizado pela Câmara de Educação e Formação Profissional do Conselho Federal de Psicologia, buscou elementos para discutir a formação, através da identificação de ações inovadoras desenvolvidas nas práticas do exercício profissional, em resposta à demanda social. Esta pesquisa, em sua primeira vertente, revisou os dados gerados da pesquisa publicada em 1992, identificou e descreveu as atividades nas diversas áreas - clínica, organizacional, educacional e social - sendo que, nesta última, foram agregadas as áreas esportiva e jurídica. A outra vertente trabalhou questões e dilemas da formação. No que diz respeito à psicologia clínica, os dados coletados constituíram três categorias temáticas. (Lo Bianco et al., 1994): Concepções e tendências em desenvolvimento; Atividades e contextos; Implicações para o processo de formação. Concepções e tendências em desenvolvimento Evidenciou-se uma ênfase na valorização do “contexto social”, seja nas práticas ou nas pesquisas desenvolvidas. Esta inclusão do social na prática profissional provocou alteração no entendimento do sujeito, que passa a ser tomado em relação ao seu contexto, provocando mudanças na atuação clínica e disparando para a abrangência de sua ação, que pelas solicitações embutidas nas demandas coletivas, exigem nova reflexão e prática. Com a incorporação do contexto social, os psicólogos convergem sua preocupação ao compromisso social, independentemente da abordagem teórica. Outra tendência apontada foi o reconhecimento e valorização da multiplicidade fenomênica na atuação, valorizando as referências das ciências da cultura em oposição à hegemonia das ciências naturais, ampliando a possibilidade de desenvolvimento de referenciais teóricos originados. Uma última 7 Conselho Federal de Psicologia. “Psicólogo Brasileiro – Práticas emergentes e desafios para a Formação” São Paulo: Casa do Psicólogo; 1994. 10 tendência foi a necessidade de integração da psicologia em um conhecimento multidisciplinar. Atividades e contextos Dentre as práticas cotidianas, o destaque é a saída do profissional da clínica privada para a “área da saúde” e, nesta perspectiva, a inserção do psicólogo nas instituições públicas, com todas as implicações do pouco espaço de ocupação decorrente de sua mínima tradição na saúde pública. Entre as áreas analisadas, estão: a inserçãodo psicólogo nos hospitais psiquiátricos e, deslocando-se da saúde mental à psicologia na saúde, a psicologia hospitalar, a psicologia ambulatorial; os contextos destacados são a rede básica de saúde e instituições outras, que não as de saúde. Implicações para o processo de formação Esta categoria permitiu estruturar dois aspectos importantes à formação: 1. Requisitos e competências necessárias � Conhecimento clínico contextualizado; � Leitura das demandas específicas postas pelo contexto institucional; � Conjunto de habilidades interpessoais, atitudes e capacidades; � Uma base sólida de conhecimentos em psicologia e disciplinas associadas ao fazer clínico. 2. Características e estrutura da formação Constata-se a necessidade na mudança estrutural do vínculo entre as universidades e a comunidade, refletindo um compromisso com a realidade brasileira: � Graduação básica e generalista; � Graduação mais formativa do que informativa; � Mudança nos modos de ensinar; � Necessidade de especialização. 11 O estudo citado parte da realidade experimentada pelo psicólogo em seu trabalho e tece algumas das preocupações que embasam nosso trabalho, especificamente quando se refere às implicações do ensino da psicologia clínica, nas quais está subjacente a possibilidade de ampliar sua aplicação a populações que não têm acesso a ela. Historicamente, a psicologia brasileira começa a incomodar-se pela limitação imposta ideologicamente, para enveredar pelas insuficiências de uma crise paradigmática. Como podemos observar, a consolidação da profissão em nossa sociedade deu-se principalmente pela atuação clínica, configurada numa prática elitista, acessível a uma população bastante reduzida, de pouca inserção e abrangência social. Esta atuação, como a forma mais reconhecida do trabalho do psicólogo em nossa sociedade, não conseguiu atingir todas as camadas da população e, por conseqüência, não permitiu à profissão uma “atuação abrangente” no sentido definido por Carvalho (1988): uma atuação que refletisse “... o potencial de utilidade e de contribuição da profissão à sociedade” (Carvalho, 1988, p.235) destaques no original. Já que o caminho escolhido neste trabalho foi o de retomar a história da inserção da psicologia em nossa sociedade, com o intuito de entendermos como esta inserção determinaria nossas práticas atuais e seu reflexo na formação do profissional, pensamos ser necessário discorrermos um pouco mais sobre esta forma de atuar consolidada pela psicologia clínica. 12 1.1.3. A Psicologia Clínica O termo “clínica”, em seu sentido etimológico, vem do grego kliné, que significa estender-se, deitar-se, reclinar-se, estar de cama, que pode ser compreendido como “cuidado médico ao indivíduo acamado” (Castro, 1998, p.137). Com relação aos seus múltiplos sentidos, pode ser entendida como um ramo da psicologia, um campo de trabalho, um lugar de trabalho, um tipo de atividade ou ainda um método de trabalho (Bock, 1998). Silva (1992) destaca a confusão que se faz pela identificação da prática psicoterápica como sinônimo de atuação clínica e complementa: “a atuação psicoterápica que é apenas um dos braços da clínica, é muitas vezes vivenciada, pelos profissionais da área, como sinônimo dela” (Silva, 1992, p.31) destaques no original. Desta maneira, a consolidação da prática clínica, através do método clínico, independente da área disciplinar, se faz por meio do direcionamento ao indivíduo acometido de doença, distúrbio ou transtorno, cuja expressão revela uma situação concreta e particular, que necessita uma solução imediata (LoBianco et al., 1994). Segundo Cunha (1993), a utilização do termo psicologia clínica ocorreu pela primeira vez em 1896, associado a procedimentos diagnósticos de observação, descrição e classificação de deficientes mentais e físicos, junto à clínica médica. Estas influências marcaram a identidade profissional do psicólogo clínico, que buscou através da adoção do modelo médico-clínico, preservar a objetividade, efetividade e neutralidade de sua atuação profissional, como evidenciam Ocampo e Arzeno (1987), ao discutirem o papel do psicólogo no processo psicodiagnóstico, como um mero aplicador de testes. “... o psicólogo freqüentemente agia assim – e ainda age – por carecer de uma identidade sólida que lhe permita saber quem é e qual é seu 13 verdadeiro trabalho dentro das ocupações ligadas à saúde mental”. (Ocampo e Arzeno, 1987, p.14). E acrescentam que, por tomar emprestada uma pseudo-identidade, o psicólogo nega as diferenças de sua atuação e não questiona o sistema comunicacional dinâmico presente nesta e, para se proteger, recorre ao uso dos testes, com o objetivo principal de psicodiagnóstico, utilizando-os como um escudo entre o profissional e o paciente, tentando, assim, se assegurar de seu papel. A psicologia clínica tradicional, atuando nas esferas da psicopatologia e psicometria, consolidou atividades que acabaram por defini-la como “um trabalho curativo, desenvolvido predominantemente em consultórios particulares (trabalho autônomo)” (Bastos, 1988, p.165). Lo Bianco et al. (1994) nomeiam este tipo de atuação como “tradicional” ou “clássica”, caracterizando-a como uma atividade centrada no indivíduo abstrato e a-histórico, de caráter reestruturante e curativo, baseada no modelo médico inquestionável, exercida no consultório particular e dirigida a determinados segmentos sociais. Este modelo, que privilegia a doença e a naturalização do fenômeno psicológico, não só restringe o espectro de ação da psicologia enquanto ciência como também impede que esta seja reconhecida e utilizada nas áreas de prevenção e promoção a saúde, obstruindo em parte sua abrangência social. Seria este um dos motivos da chegada tardia da psicologia no campo da saúde? Esta será uma idéia que discutiremos mais adiante. Contudo, vale lembrar que é esse modelo que impera ainda na formação, quando são oferecidos estágios em condições semelhantes às acima descritas, não considerando a medida das necessidades da população a que se destina o atendimento. “A questão da formação profissional, no entanto, não é um objetivo isolado e independente do atendimento que se oferece à população. É exatamente o tipo de prática que o aluno realiza 14 na graduação que irá funcionar como primeiro modelo de atuação. Neste sentido, ela tem papel importante na definição de que tipo de profissional se está formando, e para que aspectos da realidade ele estará voltado” (Oliveira IT., 1999, p. 6). De acordo com Macedo (1986), Silva (1992), Ancona-Lopes (1995), Yehia (1996 a), Yehia (1996 b), Morato (1999 a), Morato (1999 b), Oliveira I.T. (1999), Oliveira V. (1999), autores que reconhecidamente atuam e pesquisam a formação do psicólogo, há uma oposição entre a clínica “tradicional” e a inserção real do psicólogo; há necessidade de novas formas de atuação, alterando a concepção da prática clínica, já que este modelo tradicional não está adequado à realidade das populações atendidas numa Clínica-Escola e deixa escapar sua riqueza maior. As discussões sobre esta questão resultaram na atualização da descrição da atividade clínica do psicólogo, feita pelo Conselho Federal de Psicologia em atendimento à solicitação do Ministério do Trabalho, em uma concepção mais ampla, não restrita ao espaço geográfico da clínica. “De forma sintética, assim é definido o psicólogo clínico: ‘Atua na área específica da saúde, colaborando para a compreensão dos processos intra e interpessoais, utilizando enfoque preventivo ou curativo, isoladamente ou em equipe multiprofissional em instituições formais e informais. Realiza pesquisa, diagnóstico, acompanhamento psicológicoe atenção psicoterápica individual ou em grupo, através de diferentes abordagens teóricas’.“ (Lo Bianco et al., 1994, p.8). O reconhecimento das críticas sobre a atuação do psicólogo no mundo concreto e real desloca a Psicologia para a necessidade de rever seus modelos teóricos e metodológicos. Apesar de esta revisão encontrar ressonância entre alguns, Vilela (1996) aponta o quanto este é um conhecimento que precisa ficar oculto na universidade, enquanto agente formador. Entretanto, Silva (1988), Silva 15 (1992), Campos (1992) e Spink (1992) ousam denunciar o despreparo do psicólogo em sua atuação, em sua saída do ambiente protegido do consultório. Figueiredo (2002) estabelece uma articulação entre o processo histórico determinante de transformações sociais e sua influência na constituição e consolidação da Psicologia que, por sua vez, favoreceriam sua dispersão e sua multiplicidade. Este autor reconstitui a invenção do espaço psicológico, no século XIX, determinado por três pólos, que traduzem formas de organização social e valores de cunho liberais, românticos e disciplinares, cuja repercussão é a de modelagem das subjetividades modernas e contemporâneas. Denomina o espaço do psicológico como território da ignorância, que fora criado pela separação público-privado e que se mantém como interditado e excluído; disto decorre que estes três eixos suscitariam uma cisão entre o campo fenomenal – das representações e identidades e seus metafenomenais – aquilo que não se encaixa nas representações, mas apresenta outras possibilidades e sentidos, que transparecem no campo das experiências como estranho, sintoma ou mal estar. Para Figueiredo (2004), cabe à clínica psicológica a escuta destes interditos e excluídos. Assim, define a clínica psicológica “... por um dado ethos...”, e completa “o que define a clínica psicológica como clínica é sua ética: ela está comprometida com a escuta do interditado e com a sustentação das tensões e conflitos” (Figueiredo, 2004, p.63) destaques no original. A idéia de psicologia clínica reduzida ao espaço do consultório privado parece esvaziar a ascendência desta forma de atuação para outros contextos e situações. Contudo, ela é permeada por uma postura ética, na qual existe implicada a noção de sujeito constituído e tomado a partir de um contexto. A questão da descontextualização da clínica fica bem explícita no comentário que se segue: “clínica é uma psicologia que se faz dentro de todas as instituições que tenham vínculos com o campo da saúde, quer dizer, sejam hospitais, 16 sejam postos de saúde, sejam unidades básicas, aquilo que a gente chama de unidade de cuidados primários de atendimento, ou até mesmo em associações comunitárias que, de repente, necessitem de um trabalho no campo da saúde.” (Lo Bianco et al., 1994, p.14). A contextualização da clínica não pode ser reduzida pela consideração apenas das questões mais próximas da clientela, pela diversificação dos locais de atendimento e pelo tipo de clientela atendida; isto seria determinar o fazer clínico a partir da psicopatologização de sua clientela. Contextualizar a clínica envolve a reflexão acerca do trabalho inserido no “ato clínico”, orientado por um conhecimento mais amplo do indivíduo em seu desenvolvimento e em sua realidade pessoal; envolve também o entendimento do contexto da saúde pública e do contexto institucional do trabalho (Silva, 1992; Lo Bianco et al., 1994). 17 1.1.4. A relevância do contexto social O reconhecimento da falência do modelo hegemônico da clínica no final da década de 70 e início dos anos 80 implementa sério questionamento em torno da formação do psicólogo, advinda dos profissionais preocupados com a função social da psicologia, assim como com as mudanças da sociedade brasileira, que se refletem no trabalho destes profissionais, apontando para a necessidade de rever os modelos de formação, como afirma Ferreira Neto (2004). A pressão gerada pela entrada do psicólogo em um ambiente de trabalho em instituição pública ou comunitária, com uma clientela, para quem o modelo de consultório privado não respondia satisfatoriamente, exigiu deste profissional muito mais do que a adaptação de um instrumental técnico; para este trabalho, era necessária a ampliação do conhecimento sobre as condições de vida desta população, que envolvem e são permeadas por um contexto social, cultural, histórico. Esta noção de contexto social da clínica, como advertem LoBianco et al. (1994), Andrade (1996) e Ferreira Neto (2004), envolve uma revisão na concepção de subjetividade e não a simples preocupação e transposição de uma dimensão geográfica, em um jogo adaptativo e não reflexivo que não contempla a complexidade do que se entende por social. Entendemos o social numa função constitutiva e constituída do homem e neste sentido, o contexto social é também parte integrante na construção da identidade do profissional psicólogo. Pela naturalização do fenômeno psicológico, a Psicologia ficou impedida de refletir sobre o universo social que determina o homem, encontrando oposição na Psicologia Sócio-Histórica, que considera o homem como alguém permeado de sua condição humana (e não de uma “natureza”), que constrói sua existência na interação com outros homens, enquanto ser ativo, social e histórico, negando, portanto, a idéia de homem enquanto ser autônomo. O distanciamento da realidade norteia os princípios 18 paradigmáticos da jovem ciência psicológica. Fonseca (1998), ao discutir os pilares epistemológicos que privilegiavam a objetividade científica, nos diz: “Em princípio, a Psicologia considera como separados a realidade e o conhecimento desta, fundando uma tradição representacional do conhecimento, que simultaneamente é desimplicado dos valores do sujeito cognoscente e dos efeitos do saber sobre a realidade.” (Fonseca, 1998, p.44) A crise da Psicologia Social no Brasil ocorre no final dos anos 70 e delata a dependência teórico-metodológica, a descontextualização, a simplificação e a superficialidade nas análises dos temas de estudo, a individualização no social e a não preocupação política com as relações sociais (Bernardes, 1998), ou seja, critica primordialmente o individualismo e o positivismo da cultura científica determinando o conjunto de regras da racionalidade na construção metódica de leis e conceitos, fazendo surgir a Psicologia Sócio Histórica e a adoção da ótica construtivista. Na ótica construtivista, o processo de construção do conhecimento é ativo, o personagem principal é o próprio homem, dando sentido aos objetos sociais; a partir deste sentido, expresso simbolicamente em representações ou teorias, cria o mundo através de sua atividade. “A perspectiva construtivista privilegia, portanto, tanto a relação dialética entre a esfera individual e social quanto a relação dialética entre pensamento e atividade” (Spink, 2003, p.42). Ao assumirmos a relevância do social na área da saúde, não podemos, contudo, desembocar em um reducionismo sociologizante, mas resgatar a história do indivíduo mediada pela história da sociedade (Lane, 1984). Assim, ao abordarmos a clínica contextualizada, estamos considerando não só os aspectos psíquicos do indivíduo que interferem em sua saúde, mas também o ambiente social de sua inserção. Bleger (1984) defende a idéia de uma clínica contextualizada pelo manejo do método clínico, que o psicólogo pode desenvolver em uma perspectiva mais ampla, em atendimento de nível primário, em atividade que 19 passe da psicoterapia (com enfoque na doença e cura) para a psico-higiene, cujo foco é a população sadia, contemplando a área de promoção da saúde. Na saúde pública, sua função seria, portanto, não de psicoterapeuta,mas de agente público de saúde. Para fazer frente a esta tarefa, utiliza-se dos fundamentos da Psicanálise e Psicologia Social, defendendo a necessidade de uma psicologia que se insira cada vez mais em sua realidade social. Sugere, para isso, o estudo dos grupos, das instituições e da comunidade, já que em todos eles há, voluntária ou involuntariamente, a participação do ser humano. Trabalhando com a psicologia institucional, ressalta a necessidade de que o psicólogo utilize o conhecimento teórico e técnico da psicologia, para compreender os aspectos psicológicos da saúde e doença, recorrendo a instrumentos desenvolvidos a partir de sua inserção profissional no contexto do campo de trabalho. O principal instrumento de uso do psicólogo num trabalho de orientação psicanalítica é sua própria pessoa. O psicólogo tem, em si mesmo, através do conhecimento de seu mundo interno, o melhor instrumento para a compreensão dos fenômenos psicológicos implicados em um dado contexto. A atitude clínica, indispensável ao seu trabalho, fundamenta-se na observação dos fenômenos, na construção de hipóteses e na intervenção. O psicólogo deverá, para tanto, utilizar o recurso da dissociação instrumental, que requer uma identificação e, simultaneamente, um distanciamento do evento, para não se misturar a ele, definindo o enquadre de seu trabalho e configurando seu campo de atuação específico (Bleger, 1998). O homem contemporâneo, submerso numa sociedade globalizada, intrincada numa extensa rede de informações, apesar de toda modernidade, ainda se aliena e se subordina às leis da desigualdade, da miséria, da exclusão social, das formas de exploração e do desamparo. Com isto, torna- se impotente e descompromissado de seu contexto social, impossibilitado de questionar, problematizar e pensar sua existência e vislumbrar alternativas, não por desconhecer suas misérias, mas por não saber como fazer um exame crítico de sua própria vida e, assim, lidar com estas misérias, 20 adoecendo enquanto ser social e não podendo significar suas vivências, angústias e dores. Essa população, de alguma forma, situa-se em impedimento, impossibilitada do acesso à educação, à saúde, à cultura, a melhores condições e oportunidades de vida, numa condição de submissão e de exclusão, ocupando um posicionamento hierárquico que os situa à margem dos serviços e deveres sociais do Estado e que, por isso, busca nas instituições privadas, como as universidades, o amparo de que precisa. A esta impossibilidade de poder partilhar dos bens da sociedade e que conduz à privação, à recusa, ao abandono, à expulsão e à violência de uma parcela significativa da população, dá-se o nome de exclusão social (Sposati, 1996). Enquanto processo, é coletivo e inclui pobreza, discriminação, subalternidade, não eqüidade, não acessibilidade, não representação pública. Para a autora, há graus e formas de exclusão: estrutural, absoluta, relativa, da possibilidade de diferenciação, de representação e integrativa. Martins (2002) nos adverte da necessidade de uma reflexão crítica maior a respeito do tema exclusão, pois sem a devida compreensão a respeito da sociedade como “totalidade contraditória e crítica, como processo social e histórico” (Martins, 2002, p.12), somos remetidos à classificação de grupos e pessoas como “excluídos – incluídos” sem a complexidade que a questão exige. Para ele, o conceito de exclusão envolve uma compreensão mais ampla de seu lugar na dinâmica social uma vez que este nos coloca diante de incertezas em relação à sociedade contemporânea e somente pelo confronto da diversidade social desta sociedade atual é que conseguiremos compreender os aspectos materiais e ideológicos que transformam o excluído em um cúmplice do processo. O desenvolvimento econômico anômalo propagado em nossa sociedade exclui os indivíduos das chances de participação na produção e partilha dos bens, dando visibilidade às privações que este sistema produz e espalha no social, assim como confirma sua aparição nas estratégias de sobrevivência utilizadas por aqueles que teimam em fazer parte, inserindo-se num sistema que só lhes permite o lugar de vítimas e beneficiários residuais das 21 possibilidades embutidas deste mesmo sistema. Estas estratégias de sobrevivência, às vezes incompatíveis com o bem comum, impelem suas vítimas a recorrer ao ilegal e ao anti-social, como alternativa de vida, incorrendo numa deformação que penaliza a todos, através de uma inserção que utiliza meios ilícitos e transgressivos de participação, resultando na rotina diária caracterizada pela violência que vivemos no nosso cotidiano, pois... “A sociedade que exclui é a mesma que inclui e integra, que cria formas também desumanas de participação, na medida em que delas faz condição de privilégios e não de direitos” (Martins, 2002, p.11). É necessária a compreensão acerca da sociedade enquanto um processo contínuo de estruturação e reestruturação, para não ficarmos em descompasso com o mundo atual. Esta compreensão permite a reparação espontânea e contínua do que se chama “exclusão”, pois possibilita o entendimento do tema “exclusão” como a expressão de uma ideologia determinada pelos valores e práxis proclamados pela classe média, representando uma idéia pouco profunda sobre os “excluídos”. Entretanto, estes nem sempre vivem ou sentem-se como excluídos, e por sua vez, recorrem à realidade social como máscara, adotando o consumismo ostensivo como um meio de afirmação social e de definição de identidade, aderindo ao mundo que os fez “pobres”, numa substituição do pobre estereotipado – mal vestido e esfarrapado, pelo pobre disfarçado pela aparência e pelo aparente, tornando-se cúmplices do sistema. Há processos sociais excludentes e não exclusões definitivas e irremediáveis. Nossa sociedade, determinada pela prevalência da acumulação de capital, a qual se reflete pela privação social e cultural dos que não participam deste processo, propulsiona seu expurgo, isto é exclui, mas simultaneamente gera sua inclusão, ainda que perversa e degradada. Neste sentido... “O “excluído” é na melhor das hipóteses, a vivência pessoal de um momento transitório, fugaz ou demorado, de exclusão-integração, de “sair’ e “reentrar” no processo de reprodução social.”(Martins, 2002, p.46). 22 Esta é sem dúvida, uma advertência importante para que não caíamos na cilada de repetirmos aquilo que condenamos, pois afinal qual a perspectiva destes chamados excluídos, se destes só mantivermos a visão dos pesquisadores, cuja ótica utilizada na interpretação dos fatos não está submetida ao abismo social que marginaliza, exclui e situa seus integrantes no limite. Com relação às diferenças sobre as populações, importantes estudos têm se efetivado no campo científico; um deles é o de Costa (1989), que aponta a necessidade de ampliação do conhecimento dos profissionais que trabalham com populações de baixa renda, destacando o preconceito que permeia nossas concepções clínicas, que geraria certa apatia do profissional ao lidar com esta população; o autor destaca três formas dessas crenças, que serão exploradas a seguir. A primeira crença destacada refere-se à “essência da doença”; questionando as idéias essencialistas, que definem uma essência orgânica da doença, e o etnocentrismo, que imprime o caráter universal na noção de indivíduo, o autor parte para uma investigação das representações do ponto de vista psicológico e psiquiátrico: a doença dos nervos, como uma forma de adoecer mental das classes populares. Para explicar o significado de doença dos nervos, toma emprestado o termo “estratégia de sobrevivência” e completa: “... Neurose, sim! Mas com o selo inconfundível de um esquema cognitivo representacional típico das populaçõesde baixa renda, às voltas com problemas de sobrevivência física, psíquica e social” (Costa, 1989, p.20). Na continuidade de sua pesquisa, o autor observa particularidades destas representações; a primeira delas se refere à causa da doença, que desobedece a hegemonia do imaginário psicoterápico, já que o discurso dos pacientes traduz um pensamento popular expresso sem um compromisso com o pensamento intelectual acadêmico ou o pensamento cientificamente 23 unificado. Este pensamento popular, embora não inferior ao científico, revela-se fragmentário, na tentativa que o paciente assume de construir uma possibilidade de naturalizar o estranhamento do mal que lhe acomete. Assim, os terapeutas, imersos neste imaginário psicoterápico, ao ouvirem, no discurso de seus pacientes, explicações sobre as causas de sua doença, a partir de racionalizações que não se incluem neste imaginário, sentem-se perdidos, desconsiderando que estes afetos e representações são pertinentes a um contexto cultural diferente dos seus, embora a matéria prima dos conflitos psíquicos seja a mesma. A segunda crença refere-se a se tomar todo indivíduo enquanto sujeito ideal e abstrato no enquadre psicoterápico, o que provoca um grande abismo entre terapeuta e paciente. O enquadre psicoterápico criado pela psicoterapia dual criou um modelo para toda e qualquer psicoterapia, que não se compatibiliza com a experiência cultural dos clientes, distanciando-se dos hábitos mentais de seu processo de socialização. “Desde o início, o cliente do serviço público, além da consciência de sua doença, tem bem clara a consciência de seu estatuto de cidadão doente e da diferença cultural que o separa do terapeuta: ele vai ao consultório para falar de seus problemas a alguém que usufrui mais direitos civis que ele; que pertence a uma classe social superior à sua; que se veste, fala e se porta de um modo que não é o seu; que ele não escolheu para ser seu médico e vice-versa” (Costa, 1989, p. 31) destaque no original. Os clientes sentem-se apartados do enquadre, até porque em sua vida prática não há familiaridade com o ritual psicoterápico e, de seu ponto de vista, “... o espaço psicoterápico funciona como uma referência, que pode ser alcançada quando sentem necessidade” (Costa, 1989, p. 33). A terceira crença descrita diz respeito à idéia de um único modelo de comunicação humana. O preconceito reside na idéia da universalidade, que não é observável na expressão verbal dos conflitos e dificuldades das classes trabalhadoras e que desencadeia no terapeuta certa impotência para 24 sua atuação; esse único estilo de comunicação para com o paciente é baseado numa linguagem voltada à educação, às regras de civilização das elites urbanas e das comunicações científico-filosóficas, típicas de quem tem instrução de nível superior. Bezerra Júnior (1996), ao analisar questões básicas das terapias psicológicas, examina-as do ponto de vista da representação do profissional e do paciente, considerando nestas as diferenças culturais, sociais e econômicas contidas na complexidade do discurso e inerentes à estratificação social à qual pertencem. Discute a questão da universalidade e o quanto esta contribui para uma concepção a-histórica e abstrata do sujeito. Neste sentido, enfatiza como o uso da palavra indivíduo pode ser um descritivo da unidade física do ser humano ou o tipo de existência individual das sociedades modernas, generalizado a toda a espécie humana. Este será um elemento crucial numa relação psicoterápica, pois determinará um reducionismo etnocêntrico à escuta do terapeuta. Em se tratando das representações sobre saúde e doença, o mesmo autor refere que as classes sociais médias e altas compreendem a noção de saúde de uma maneira mais ampla, ligada à noção de bem estar que, se modificada ou diminuída, será considerada um risco mórbido e identificada como sintoma. De maneira menos exigente, a população trabalhadora restringe a idéia de saúde à possibilidade de trabalhar; com isso, amplia numa zona intermediária um “estado de carências”, que seria uma zona de desconforto naturalizada e com a qual se acostumou a conviver, apesar das misérias e mazelas da própria vida. Esta visão de saúde e doença determinará maneiras diferentes de decidir pela busca de tratamento, pelas expectativas sobre ele e sobre como é obtida a cura. Uma outra diferença a ser apontada é a de se expressa a idéia de causalidade da doença, pois as classes menos privilegiadas, munidas de um universo lingüístico que não estimula a introspecção e a análise de suas emoções, referirá a doença pelo viés do espaço corporal (Bezerra Junior, 1996). Ao abordar as psicoterapias individuais, o autor destaca como o “projeto psicoterápico” do terapeuta e do paciente irão determinar dissonâncias ao 25 processo terapêutico. Um projeto psicoterápico considera as idéias e noções que compõem o imaginário de cada um dos envolvidos no processo - terapeuta e paciente - e este determinará as divergências quanto à noção de doença, expectativas e processo do tratamento. “O terapeuta verá a doença como resultado de um conflito psíquico que, não tendo encontrado solução satisfatória entre os recursos acumulados até o momento pelo indivíduo, resolve-se de modo canhestro através dos sintomas. Portanto, é na biografia pessoal que se encontram as raízes do mal-estar presente; há um sentido oculto no sintoma, e tratar significa revelar esta razão escondida da doença e assim permitir ao paciente encontrar soluções mais adequadas para seus conflitos; este processo terapêutico exige tomar a doença como expressão de conflitos internos que serão objeto de reflexão e que, através da palavra, serão esmiuçados e compreendidos em seu desenvolvimento (Bezerra Junior, 1996, p.154). destaque no original. Se o projeto psicoterápico do profissional está subscrito acima, o do paciente mostra-se bem diferente. No que se refere à doença, a visão do paciente em termos de espaço localizará esta doença no corpo ou a remeterá ao espírito; sua causa poderá ser de conteúdo orgânico, educativo, hereditário, sobrenatural, místico, entre outros; o momento será aquele que ameaça a consecução de suas atividades diárias. Com relação às expectativas, o paciente pode não ver o mesmo sentido de cura atribuído por seu terapeuta, mas efetivamente poderá sentir-se curado, voltando-se para uma dimensão mais imediata de retomada de sua vida. Por último, o processo terapêutico para o paciente não assume o caráter complexo da causalidade múltipla e pode ser visto como algo natural, um acidente, uma disfunção sem grandes reflexões (Bezerra Junior, 1996). Sobre as diferenças de representações de uma terapia bem sucedida, os bons resultados terapêuticos determinam um “reordenamento simbólico”. No entanto, para que este reordenamento simbólico se materialize, entra em 26 cena a própria história de vida do paciente; estão envolvidos aspectos do passado e do futuro do paciente e, até nestas dimensões, verificam-se diferenças importantes. Se os aspectos do passado sofrem influência na forma como o aprendizado cultural permite-lhes o próprio retorno e disponibilidade para submergir ao mundo interiorizado e pessoal, o futuro influenciará pelas necessidades imediatas do paciente, uma ambição diminuída em relação àquela representação de psicoterapia que os profissionais têm. As questões apontadas por Bezerra Júnior (1996) em seus estudos de representação sobre saúde e doença possibilitam ao profissional da saúde mental uma flexibilidade em sua ótica, determinada por diferentes condições materiais, sociais e culturais de vida. Entretanto, este conhecimento manteve-se afastado do psicólogo, transformando-o em um profissional de visão reduzidapelo viés do psicologismo, retardando a chegada deste profissional na área da saúde. 27 1.1.5. A Psicologia da Saúde A psicologia, enquanto uma disciplina jovem, demorou a inserir-se na área da saúde, ao contrário de outras disciplinas. Esta chegada é determinada pela inserção do psicólogo na saúde pública, revelando simultaneamente um profissional despreparado, sem o devido embasamento teórico–prático, já que o campo de atuação do psicólogo restringia-se a duas formas específicas: a primeira, nas atividades desenvolvidas em consultórios particulares, caracterizada por um trabalho autônomo, liberal e sem inserção no contexto dos serviços de saúde; a segunda, exercida em hospitais e ambulatórios de saúde mental, submetidas ao paradigma da psiquiatria, em um enfoque de medicalização e internação. Uma forma proporcionalmente diminuta em relação às outras se dava na inserção em Clínicas-Escola, favorecendo, pelos trabalhos desenvolvidos, reflexões sobre o conceito saúde mental e sobre as possibilidades de contribuição da psicologia. Em outros serviços, o psicólogo mantinha um trabalho dócil e isolado, inserindo- se nas equipes como um facilitador do processo de tratamento e tranqüilizador dos pacientes diante de situações estressoras. Em 1982, a Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo adota através da Coordenadoria de Saúde Mental importante política de desospitalização e de extensão dos serviços de saúde mental à rede básica (Spink, 1992) e, com isso, em 1983, garante a formação de equipes multidisciplinares, teoricamente integradas, na qual o psicólogo era chamado a atuar nos centros de saúde do Estado, nos níveis primário, secundário e terciário, junto com outros profissionais da saúde em intervenções de “vigilância da saúde” Spink (1992). Mendes (1996) define intervenções de vigilância da saúde como aquelas intervenções concretas que combinam ações de promoção à saúde, prevenção da doença e de ações curativas. Esta inclusão trouxe a evidência do despreparo do psicólogo para esta atuação em níveis teóricos e práticos (Spink, 1985). 28 A mudança na inserção profissional do psicólogo, efetivada nos serviços de saúde e em outras atuações práticas, gera a necessidade de se estabelecer marcos teóricos, estabelecendo, como afirma Spink (1992; p.11) “... a emergência de um novo campo do saber“, denominando-a como Psicologia da Saúde, enquanto um campo de especialização da Psicologia Social e em uma fase inicial de construção, caracterizado pela descoberta e abertura de novos campos de atuação, tal qual acontecera na constituição da Medicina Social. Em termos de atuação, a Psicologia da Saúde desenvolveu suas ações em três vertentes e, tradicionalmente, atuou muito mais na vertente do individual, agregando também tardiamente a dimensão social na explicação do processo saúde-doença. Esta não incorporação do social determinou atuações limitadas, na vertente intra-individual, situando o foco da doença no organismo doente, a origem da doença nas emoções e, na terapia, a possibilidade de cura. Uma segunda vertente tentava buscar conexões entre experiências de vida e adoecer como explicação da doença, estando a cargo da educação nas ações de promoção à saúde e prevenção da doença, as condições para a cura. Uma terceira vertente, na perspectiva construcionista, possibilitou a compreensão da doença como fenômeno psicossocial construído historicamente. Esta vertente aborda a doença como fenômeno coletivo influenciado pelo social e não só por seu caráter manifesto individual, valoriza a ótica do paciente e não mais o olhar médico como único legitimador. Nesta perspectiva, são enfatizadas as representações do processo saúde-doença, explicitando a construção social que permeia estas noções em certos grupos (Spink, 2003). Para a mesma autora, uma das implicações desta vertente ecoa na prática psicológica, exercida pelos profissionais nos serviços de saúde e que confrontam a insuficiência da formação, baseada na clínica tradicional. “Aqui também a perspectiva da construção social do conhecimento sobre saúde e doença pode trazer contribuições efetivas, diminuindo a distância social; possibilitando a compreensão da visão de mundo específica dos diversos grupos 29 sociais e motivando os psicólogos a buscarem formas de atuação mais compatíveis com os objetivos do atendimento do nível primário” (Spink, 2003, p.50). 30 1.2. A formação em Psicologia Os temas referentes à formação vêm, nos últimos anos, ocupando a proposta central de muitos trabalhos, nos quais as críticas se voltam a uma formação que não forma profissionais sensibilizados para uma atuação mais adequada de nossa população. Este é um efeito das discussões, anteriormente citadas, a respeito da profissão, em uma tentativa de avançar, no que diz respeito à orientação predominantemente técnica da profissão, quando de sua constituição legal, institucionalizada para atender as demandas das classes dominantes, de um sistema excludente, que formava profissionais a partir de interesses que não atendiam as necessidades da população, mas visavam o controle, a norma e a aplicação da técnica pela técnica. Baptista (1987) analisa o discurso de alunos do 5º ano do curso de psicologia e nele identifica um discurso reprodutivo e não questionador do sistema da ordem social e do processo histórico na formação, determinando um profissional “amorfo, silencioso e desprovido de singularizações” e conclui pela necessidade de uma maior ênfase em torno da discussão histórica do trabalho, enquanto processo, e do questionamento deste indivíduo fabricado – psicólogo, no contexto de uma ideologia, sobre a qual pouco se fala nos cursos de formação. Aponta ainda que, para transformar a sociedade, devemos ousar mais na formação deste psicólogo enquanto um agente de transformação desta, trazendo para dentro do espaço da supervisão o lugar histórico de surgimento da psicologia (por que e para que surgiu). Em sua crítica à formação, chama a atenção para o quanto o processo de supervisão pode simplesmente reproduzir um sistema de modelagem no qual o aluno se espelha de maneira a-crítica na figura de seu supervisor. Vilela (1996) questiona o modelo reprodutivo na formação, a partir da reflexão sobre a supervisão como dispositivo de produção de subjetividades. Conclui que, neste modelo, prevalece a hegemonia dos valores individuais 31 das sociedades ocidentais modernas, produzindo um psicólogo tão naturalizado quanto seu cliente e que, enquanto profissional, exerce uma prática profissional normativa e técnica. O caráter pessoal da formação, transmitida por regras e modelos, numa condição não autoritária confirma- lhe a “valoração de sua autonomia: são seres singulares, responsáveis, maduros” (Vilela, 1996, p.163), constituindo o ser psicólogo “uma proposta de estilo de vida, de modo de ser” (Vilela, 1996, p.163). Esta configuração o situa como um técnico para facilitar a emergência da normalidade e alguém a quem não cabe discutir ou contribuir à ciência. No entanto, a autora aponta algumas saídas rupturais do modo de subjetivação reprodutivo observado nos discursos de alunos e supervisores, destacando a não psicologização dos espaços, a priorização de possibilidade de produção de novos saberes e de experimentação de novas práticas e, por último, a busca de novos caminhos, afastados do especialismo e do lugar “destinado” ao psicólogo. Silva (1992), analisando a formação para o trabalho na saúde pública, apresenta criticas importantes, sendo uma delas referente à preparação do psicólogo, enfatizada para o trabalho autônomo; aponta que o profissional, quando inserido na instituição, necessita de um enquadramento da tarefa8, como clínico, sim, mas contextualizado numa especificidadesocial; a outra crítica recai no único modelo de atendimento que privilegia os atendimentos contínuos; com relação a estes, assinala o distanciamento e descontextualização do trabalho frente à população assistida. Mello (1996), considerando os problemas da formação, aponta como positivo o caráter de auto-exame que se faz periodicamente de nossa profissão, da formação e da própria ciência psicológica, pelos acadêmicos e órgãos de classe, no sentido de fotografarem o estado real da profissão – atuação e formação – o que revela nossos limites. Seu interesse está centrado nas relações da profissão com a sociedade; assim, afirma que a função dos cursos de psicologia é de “preencher o espaço das necessidades 8 O enquadre da tarefa é uma exigência à atuação do psicólogo institucional, para quem o desenvolvimento de uma atitude clínica, através do manejo técnico da dissociação instrumental, o identifica com o grupo, mas também o preserva com um certo distanciamento, permitindo-lhe uma leitura do evento em questão sem perder seu papel específico Bleger (1984). 32 que a sociedade gerou” (Mello, 1996, p.12). Em seu ponto de vista, as maiores dificuldades da formação são: � A falta de unidade nos cursos, correspondente à ambigüidade característica do objeto do conhecimento da psicologia (o homem como máquina complexa ou produtor da cultura, da história e de símbolos); � Rigidez no consumo da ciência na universidade, instaurando divisões inseparáveis entre as áreas da psicologia; � Falta de recursos humanos para dinamizar os cursos que deveriam depender da pesquisa; � Discrepância entre o sabido e o vivido, acarretando um profissional inábil para tratar de situações não previstas. Neste aspecto destaca- se o artificialismo da aprendizagem propriamente técnica, o estágio; � A ênfase excessiva nos procedimentos técnicos. A partir dessas considerações, fica evidente que, enquanto psicólogos, podemos e devemos buscar na investigação e na pesquisa o conhecimento da realidade individual, social, cultural de nossa população, sensibilizando- nos à aproximação de nossos instrumentos e técnicas, a fim de sintonizar- nos com estas necessidades. 33 1.2.1. O papel da supervisão na formação A supervisão ocupa na formação do psicólogo uma função singular e definitiva para o tipo de profissional que queremos formar. De acordo com Aguirre et al. (2000), a supervisão pode ser entendida como um modelo de trabalho em que se atende indiretamente o paciente, através das informações que surgem no relato do aluno sobre o conteúdo das sessões, do material e das emoções despertadas no grupo. O trabalho de Vilela (1996) revela que a implantação do cargo de supervisor nas universidades foi marcada pelas influências das sociedades psicanalíticas oficiais. Segundo a autora, a instituição de um credenciamento para a condição de supervisor partiu do Conselho Federal de Psicologia - CFP, que só em 1985 redefiniu esta questão, isentando-se da responsabilidade de fiscalização das instituições de ensino superior. Contudo, a suspensão do credenciamento marcou este “lugar de supervisor”, como um lugar diferenciado, no sentido de que este, além do saber teórico, deverá agregar uma competência de atuação prática, capaz de garantir ao aluno visibilidade, confiabilidade e segurança no desenvolvimento de seus estágios, configurando-lhe uma posição distinta do “lugar de professor” que, aos olhos do alunado, o mantém com uma marca e qualidade distintas, situando-o “acima dos mortais” (Vilela, 1996). De qualquer forma, destaca-se a grande importância do supervisor para formação do futuro profissional, uma vez que sua experiência profissional servirá como um primeiro modelo de atuação ao aluno, que poderá ser seguido ou rechaçado. Na abordagem psicanalítica, o psicólogo tem em si mesmo seu principal instrumento de trabalho, por isso, o lugar da supervisão é fundamental para ampliar a compreensão do aluno-terapeuta em suas emoções e atitudes vividas na relação terapêutica. Aguirre et al. (2000), discutindo sobre a formação da atitude clínica nos primeiros estágios clínicos, afirmam que, nesta abordagem, o supervisor 34 desempenha um elemento vital à constituição e ao desenvolvimento da atitude clínica no aluno; o aluno deverá compreender e apropriar-se de seu papel de psicólogo, conhecendo e utilizando suas possibilidades e limites rumo a uma construção da identidade profissional. Esta identidade compreende um complexo conjunto de experiências internalizadas: concepção de mundo, adoção de uma escala de valores, escolhas e comportamentos. A identidade profissional e o papel de psicólogo determinam o enquadramento do trabalho, que se configura como o campo de atuação do psicólogo e será sua referência de objetividade no trabalho clínico. Neste sentido, será o supervisor aquele que, permitindo a compreensão do aluno sobre o significado do enquadre, lhe possibilitará esta vivência. Contudo, esta vivência não é algo simples, sua complexidade pode ser atenuada e esta condição está diretamente relacionada à capacidade do supervisor em lidar com a persecutoriedade ou rivalidade a que esta relação pode desencadear. “A função do supervisor é acolher e orientar, favorecendo o aprendizado através da compreensão dos aspectos latentes e manifestos presentes, inclusive na situação de supervisão. No entanto, o supervisor pode, em certos momentos, representar o modelo idealizado com o qual o aluno rivaliza ou do qual tem muito medo. Pode ser difícil encarar o supervisor como um profissional com cuja experiência o estagiário pode contar para dar-lhe respaldo no atendimento e continência para as inseguranças” (Aguirre et al., 2000, p.6 -7). A questão da técnica é muito importante, mas cremos que o papel do supervisor vai muito além do preparo técnico, pois é um trabalho que exige amadurecimento profissional e pessoal, já que este também é um sujeito constituído de experiências internalizadas que norteiam e determinam sua própria identidade profissional e que, por muitas vezes, terão que ser refreadas em detrimento de seu papel e função de supervisor. 35 A dimensão de uma supervisão poderá ser muito mais abrangente do que o simples acompanhamento técnico do estagiário no desenvolvimento de seu trabalho. Neste sentido, concordamos com as idéias defendidas por Coimbra (1989), quando atribui grande importância à supervisão na formação do psicólogo. Ela considera o grupo de supervisão como uma possibilidade de força instituinte e não um mero reprodutor do instituído, como conseqüência da abertura de espaço ao debate de questões que permitem ao estagiário perceber as implicações do lugar político e social ocupado pelo supervisor. A autora destaca duas posturas que, ainda que opostas, não contribuem para o desenvolvimento dos alunos: a do supervisor “autoritário”, que sabe, vê e percebe tudo e a do supervisor “liberal” que se afirma igual aos estagiários, mas que na verdade escamoteia relações de poder. Conclui que a falta de discussão intragrupo do lugar social e político que o supervisor ocupa, impede que se atinjam três pontos importantes, que a priori deveriam ser alcançados pela supervisão: o político, o social e o institucional; sem a consideração dessas dimensões, há a impossibilidade de criação de um espaço de reflexão na supervisão, redundando em mais um momento que reproduz o instituído (Coimbra, 1989, p. 27-28). Yehia (1996b), ao defender a qualidade do atendimento à comunidade, assume uma posição de maior disponibilidade e exigência do supervisor num papel mais ativo. Ela propõe que o supervisor seja o responsável pelos atendimentos aos clientes; neste sentido este ocuparia
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