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Capítulo 3 Reprodução comparativa Morten Vejlsted Este capítulo oferece uma introdução sobre os sistemas regulatórios envolvidos na reprodução, com um enfoque particular nas fêmeas e nos hormônios da prenhez que possuem relação direta com a embriologia. Para mais detalhes sobre aspectos mais gerais da biologia reprodutiva, especialmente no macho, sugestões de leituras adicionais estão listados no final deste capítulo. Puberdade e ciclo estral Os sistemas endócrino e nervoso atuam em conjunto na cascata de eventos que levam à formação e maturação dos gametas, à fertilização, ao estabelecimento e manutenção da prenhez, ao nascimento e, finalmente, aos cuidados com a prole. Esses processos iniciam-se na puberdade. Na fêmea, a puberdade é marcada pelo início da atividade cíclica regular dos ovários, o que afeta o comportamento de todo o sistema genital: o ciclo estral nos animais domésticos. O sistema reprodutivo nas fêmeas consiste em um par de ovários, nos quais os ovócitos desenvolvem-se, e em um trato genital tubular constituído pelos ovidutos, útero, vagina e vestíbulo (Fig. 3-1). O oviduto é dividido em uma porção larga em forma de funil em sua extremidade, o infundíbulo, que recebe o(s) ovócito(s) na ovulação, uma porção tubular e mais grossa, a ampola, e uma porção longa e mais fina, o istmo, que se conecta ao útero. Acredita-se que a fertilização ocorra na transição entre ampola e istmo. O ovário, exceto na égua, é encontrado dentro da bursa ovariana – uma cavidade formada pela mesossalpinge. Nos animais domésticos o útero é bicornual, contendo dois cornos uterinos, o corpo uterino e a cérvix. O corpo uterino é curto na maioria das espécies, mas relativamente longo em éguas. A cérvix apresenta um ou mais óstios internos voltados ao corpo uterino e um óstio externo voltado à vagina. O óstio externo forma a proeminente porção vaginal em ruminantes e em éguas. O canal cervical apresenta pregas longitudinais. Pregas circulares adicionais são encontradas em ruminantes, e protusões, os pulvini cervicales, intercalam-se entre si na cérvix da porca. O orifício 57 uretral marca a transição entre a vagina e o vestíbulo, o qual está em continuidade externamente com a vulva. Na vaca e na égua adultas, os ovários e o útero podem ser facilmente manipulados por palpação retal, um método extensivamente usado para o monitoramento do status reprodutivo dos ovários, particularmente em vacas. Na égua, e menos extensivamente em outras espécies, o status ovariano e o início da prenhez podem ser facilmente monitorados por ultrassonografia transretal. Fig. 3-1 Órgãos genitais da porca em aspecto dorsal. O quadro ‘B’ em A é apresentado em magnificação em B. 1: Corpo uterino; 2: Corno uterino; 3: Pulvini cervicales; 4: Ovário com folículos antrais; 5: Infundíbulo; 6: Ampola; 7: Ístmo; 8: Ápice do corno uterino. O bastão de madeira aponta para o óstio abdominal do oviduto. Antes da puberdade, o desenvolvimento inicial dos gametas femininos, os ovócitos, dentro dos folículos ovarianos, é regulado mais ou menos de forma autônoma. Contudo, como será explicado no Capítulo 4, alguns ovócitos pré-púberes nunca atingem o estágio de desenvolvimento no qual eles estão aptos para serem 58 fertilizados. Depois do início da puberdade, sinais provenientes de certas áreas do cérebro, incluindo a glândula pineal, hipotálamo e hipófise, estimulam a produção ovócitos fertilizáveis. Da hipófise anterior (adeno-hipófise), as gonadotrofinas (i.e., hormônios estimuladores das células gonadais) FSH (hormônio folículo estimulante) e LH (hormônio lutenizante) são liberadas. Esta liberação é controlada pelos GnRHs (hormônios liberadores de gonadotrofinas) que são secretados pelo hipotálamo e levados para a hipófise anterior pelo sistema porta hipotalâmico-hipofisário. A secreção de GnRHs, e então FSH e LH, é influenciada por estímulos visuais, olfatórios, auditivos e táteis do ambiente e também por sistemas de retroalimentação homeostáticos no próprio animal. O sistema nervoso central somente estará maturo suficientemente para permitir a integração complexa de todos esses sinais com o advento da puberdade. O advento da puberdade precede o desenvolvimento da maturidade física. No entanto, mesmo sendo fértil, a fêmea na puberdade (sexualmente madura e capaz de reproduzir) ainda não atingiu sua máxima fertilidade. Os fatores que influenciam o advento da puberdade incluem idade, peso corporal, raça, nutrição, doenças e, em algumas espécies, estação do ano e proximidade ao macho. As idades as quais as espécies domésticas mais comuns atingem a puberdade são listadas na Tabela 3-1. Tabela 3-1 Idade da puberdade de algumas espécies de animais domésticos Espécies Idade na puberdade Bovina 8-18 meses Equina 10-24 meses Suína 6-8 meses Ovina 6-15 meses Caprina 4-8 meses Canina 6-20 meses Felina 5-12 meses O FSH liberado pela hipófise atinge o ovário pela circulação sistêmica. No ovário, ele estimula um grupo de folículos em crescimento a desenvolver-se (Cap. 4). Os estrógenos, que são produzidos pelas células da granulosa e da teca que delimitam o folículo e circundam o ovócito, exercem retroalimentação positiva na secreção hipotalâmica de GnRH. Outro efeito principal dos estrógenos é a indução dos sintomas de estro, e o advento da puberdade nas fêmeas é sempre sinalizado pela primeira ocorrência de estro ou cio (receptividade sexual). Depois da puberdade, as fêmeas domésticas entram em uma fase da vida caracterizada por repetidos ciclos estrais. O ciclo estral é subdividido em proestro, estro, metaestro e diestro (Tabelas 59 3-2, 3-3). Tabela 3-2 Características das diferentes fases do ciclo estral e anestro Fase1 Características Proestro Fase que precede imediatamente o estro. Os principais hormônios produzidos pelos ovários são os estrógenos. Estro O período (em condições naturais) de aceitação do macho. A ovulação ocorre durante esta fase em todas as espécies domésticas, com a exceção da vaca onde a ovulação ocorre logo após o término do estro. Os principais hormônios produzidos pelos ovários, em resposta ao FSH e ao LH, são os estrógenos. Metaestro Fase subsequente ao estro quando o macho não é mais aceito. Período de formação do corpo lúteo. O principal hormônio produzido nos ovários é a progesterona. Diestro Período da maturidade funcional do corpo lúteo. O principal hormônio produzido nos ovários é a progesterona. Anestro Fase prolongada de descanso sexual na qual o estro é interrompido em algumas espécies. O sistema reprodutivo está em fase quiescente. 1 As fases de proestro e estro podem ser coletivamente chamadas como fase folicular e as fases de metaestro e diestro podem ser chamadas de fase luteal. Tabela 3-3 Características do ciclo estral e do momento da ovulação em espécies de animais domésticos Na maioria das espécies, a elevação dos níveis de estrógenos produzidos pelos folículos ovarianos durante o proestro atinge uma concentração limiar que faz com que ocorra uma maior secreção de GnRH pelo hipotálamo durante o estro. Atingindo a hipófise anterior, o GnRH estimula principalmente um pico de secreção de LH (Fig. 3-2; Tabela 3-4). No ovário, o LH é necessário para a finalização do processo de maturação do(s) ovócito(s) (Cap. 4) e a liberação dele(s) pelo processo de ovulação. Entre as espécies domésticas, a gata e a camela sãos as únicas em que o pico de GnRH que possibilita a ovulação é induzido pela cópula. Além disso, a gata pode 60 continuar apresentando comportamento de estro e aceitando o macho mesmo tendo entrado na fase de metaestro (veja a seguir). Fig. 3-2 Eventos ovarianos e concentrações dos hormônios reprodutivos no plasma sanguíneo durante o ciclo estral em vacas. Durante o estro (E), a produção de estrógenos pelos folículos em desenvolvimento resultam no pico de LH e, em menor extensão, FSH pela hipófise levando à ovulação do ovócito (1). Os folículos não ovulados entram em atresia (2) e as células foliculares do folículo ovulado desenvolvem-se no corpo lúteo (3) secretandoprogesterona. Uma nova onda de folículos desenvolve-se (4), mas entra em atresia (5). Uma outra onda de crescimento folicular produz então o folículo ovulatório (6) para o próximo estro. Se o ovócito ovulado não for fertilizado não resultando em prenhez, a prostaglandina é liberada pelo endométrio causando a regressão do corpo lúteo e eventual formação do corpo albicans (7). O ciclo estral é dividido em estro (E), metaestro (ME), diestro (DE) e proestro (PE). Tabela 3-4 Hormônios reprodutivos importantes, sua origem e funções principais Hormônio Origem Função principal Melatonina Glândula pineal Responsável pela sazonalidade em equinos, ovinos, caprinos e felinos. GnRH Hipotálamo Estimula a secreção de FSH e LH pela hipófise anterior. FSH Hipófise Estimula o desenvolvimento de folículos no ovário. 61 anterior LH Hipófise anterior Estimula o desenvolvimento e maturação de folículos e ovócitos e suporta a formação e manutenção do corpo lúteo no ovário. Induz os sintomas de estro. Estrógenos Folículo ovariano Estimula a secreção de GnRH pelo hipotálamo e o número de receptores de GnRH na hipófise anterior. Progesterona Corpo lúteo Prepara o endométrio para a prenhez, mantém a prenhez e diminui a secreção de GnRH pelo hipotálamo. Prostaglandina F2α Útero Induz a regressão do corpo lúteo. Em seguida à ovulação, as células que delimitavam o folículo antes da ruptura dele iniciam o processo de luteinização para a formação do corpo lúteo, e mantêm esse processo de luteinização sob o efeito contínuo do LH durante o metaestro. O desenvolvimento do corpo lúteo inicia-se gradualmente algumas horas antes da ovulação e é marcado pela síntese de progesterona, em vez de estrógenos, pelas células foliculares. O corpo lúteo formado por estas células depois da ovulação é bem definido, algumas vezes um pouco cavitário, esférico e de cor amarelada em vacas, razão pela qual é denominado corpo lúteo. Durante o diestro, a produção de progesterona pelo corpo lúteo atinge o seu máximo. As funções principais da progesterona são: primeiro, exercer o efeito de retroalimentação negativa no hipotálamo, inibindo a liberação de GnRH e, então, um novo recrutamento de ovócitos para uma nova ovulação; e, segundo, preparar o endométrio para a prenhez. Se for realizada uma inseminação e a concepção ocorrer, a progesterona é o principal hormônio responsável pela manutenção da prenhez. No animal não prenhe (excluindo a gata e a cadela), a vida média do corpo lúteo é relativamente curta; na ausência do embrião dentro do útero, o endométrio libera prostaglandina-F2α promovendo a luteólise (regressão do corpo lúteo). O consequente declínio da progesterona resulta na remoção do bloqueio hipotalâmico da secreção de GnRH e possibilita o retorno ao ciclo estral. No útero gestante, a liberação de prostaglandina F2α na corrente sanguínea é bloqueada, permitindo a persistência do corpo lúteo. Esta inibição na liberação de prostaglandina é o componente do “reconhecimento materno da gestação” o qual depende de sinais espécie-específicos produzidos pelo(s) embrião(s) e reconhecido pelo endométrio (Tabela 3-5; Cap. 9). Em caninos e felinos, o útero aparenta não ter nenhum efeito na meia vida do corpo lúteo, e o processo de regressão dele nestas espécies ainda não foi elucidado. Na cadela, o corpo lúteo pode permanecer funcional por até mais que dois meses. No final da gestação, a progesterona é também produzida pela placenta (Cap. 9), dando ao corpo lúteo uma função de certa forma supérflua em algumas espécies. 62 Tabela 3-5 Duração da gestação, período do reconhecimento materno da gestação e número médio de nascidos em espécies de animais domésticos As raças domésticas de suínos e bovinos são animais policíclicos não estacionais, o que significa que porcas e vacas experimentam uma atividade cíclica recorrente durante o ano, interrompida somente com a prenhez, lactação e condições patológicas. Em contraste, a égua, a ovelha, a cabra e a gata são animais policíclicos estacionais; a atividade cíclica deles é profundamente influenciada pela quantidade e duração da luminosidade do dia. A percepção das alterações dos períodos diários de luz é mediada pela glândula pineal que, através da síntese de melatonina e outros hormônios, influenciam a liberação de GnRH. A égua é um animal com reprodução em dias longos, o que significa que o período de mais alta atividade cíclica é entre a primavera e o outono na maioria dos indivíduos. Durante o inverno, as éguas normalmente entram em anestro. Do mesmo modo, a gata está em anestro no outono e inicia sua atividade cíclica com o aumento do período diário de luz. Pequenos ruminantes, por sua vez, são animais com reprodução em dias curtos exibindo atividade cíclica durante o outono e início do inverno, seguido por um período de anestro. A cadela é monocíclica e apresenta longos períodos com um único estro. Normalmente, um ou dois (algumas vezes três) períodos estrais são observados por ano, separados por longos períodos de anestro, sem que uma sazonalidade óbvia seja identificada. Manutenção hormonal da prenhez 63 A fonte de progesterona, o principal hormônio responsável pela manutenção da prenhez, varia entre as espécies. Na vaca, a principal fonte é o corpo lúteo durante a primeira metade da gestação e a placenta entre aproximadamente os dias 120-150 até o dia 250. Na égua, vários corpos lúteos acessórios são formados durante o segundo mês de gestação e, juntamente com o corpo lúteo original ou “primário”, produzem progesterona até o final do terceiro mês. A partir desta data, a placenta assume essa produção até o parto. Na ovelha, os corpos lúteos são a maior fonte durante o primeiro terço da gestação, mas são substituídos pela placenta após isso. Em porcas, cabras, cadelas e gatas, os corpos lúteos são a maior fonte de progesterona durante toda a gestação. A produção de progesterona pelo corpo lúteo na ausência da prenhez é mais pronunciada na gata e na cadela na qual, como explicado anteriormente, o útero não gestante não induz a luteólise mediada por prostaglandina. A maioria das cadelas experimentam pseudoprenhezes com (exibindo) ou sem (não exibindo) sinais clínicos durante os períodos de metaestro e diestro. Outro hormônio da hipófise, a prolactina, é provavelmente responsável por este fenômeno. Na gata, o corpo lúteo também persiste por um período prolongado na ausência da prenhez. No entanto, durante a estação de atividade cíclica, a gata retorna ao estro. Os mecanismos regulando a meia-vida do corpo lúteo na cadela e na gata não são conhecidos. Resumo Os órgãos genitais femininos consistem em ovários, ovidutos, útero (subdividido em cornos, corpo e cérvix), vagina e vestíbulo. Na puberdade, a fêmea entra no ciclo estral que consiste em proestro, estro, metaestro e diestro. A vaca e a porca são animais policíclicos não estacionais, a égua, a ovelha, a cabra e a gata são policíclicos estacionais e a cadela é monocíclica. Nas espécies policíclicas estacionais e monocíclicas, a ciclicidade é interrompida por longos períodos de anestro. No proestro, folículos antrais em desenvolvimento sintetizam estrógenos que estimulam a liberação do pico pré-ovulatório de LH (hormônio luteinizante) e em menor intensidade a liberação de FSH (hormônio folículo estimulante) durante o estro subsequente, o qual é caracterizado pela aceitação do macho. O pico de LH estimula a maturação do ovócito e do folículo, culminando com uma ou mais ovulações, dependendo da espécie. Durante o período subsequente, o metaestro, o(s) folículo(s) ovulado(s) desenvolve(m)-se em um ou mais corpos lúteos que sintetizam progesterona, o hormônio responsável pela preparação do útero para a prenhez. A produção de progesterona atinge o seu máximo durante o diestro. Se a prenhez é estabelecida, o corpo lúteo (ou corpos lúteos) permanece(m) funcional(ais), mas se a 64 concepção falhar, a liberação de prostaglandina-F2α pelo endométrio causará a regressão do corpo lúteo (ou dos corpos lúteos) e o retorno do animalao proestro. Leitura adicional Allen W.R. Maternal recognition and maintenance of pregnancy in the mare. Anim. Reprod. 2005;2:209–223. Arthur’s Veterinary Reproduction and Obstetrics 2001, 8th edn. Noakes, D.E., Parkinson, T.J. and England, G.C.W. eds. W. B. Saunders. Concannon P., Tsutsui T., Shille V. Embryo development, hormonal requirements and maternal responses during canine pregnancy. J. Reprod. Fert. Suppl. 2001;57:169–179. Denker H.-W., Eng L.A., Hammer C.E. Studies on the early development and implantation in the cat. II. Implantation. Proteinases. Anat. Embryol. 1978;154:39–54. Denker H.-W., Eng L.A., Mootz U., Hammer C.E. Studies on the early development and implantation in the cat. I. Cleavage and blastocyst formation. 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