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Lu ís C láudio Mendonça 
Figueiredo, em A inveru;ão do 
psico!ó,::ico - Quatro stculos de 
sul~;e tivação, problematiz.a o 
modo de s uh_ictivaçf1o contempo-
râneo, he m como as di versas 
concepçôcs contemporâneas da 
psicologia, como tendo se cons-
tituído num momento em que o 
ciclo d a rnodemidadc se encon-
t rd em pleno apogeu, ao mesmo 
tempo que já se anu nc ia sua <.t is-
solução. Para o autor, a expe-
riência suhjctiva pr6pria da mo-
dernidade deve sua emergênc ia a 
uma intensificação da vivência 
da diversidade e da mptura, que 
acontece desde o final do século 
XV, acompanhada de d iferentes 
tentativas de ordenação e de 
costura, que vão desembocar na 
formação daquilo que se con-
vencionou chamar de ·sujeito 
mode rno '. I~ este sujeito que, no 
fi nal do século XIX, vive seu 
apogeu e, ao mesmo tempo , o 
início de sua dissohu~ão : c omeça 
a desmoronar a ilusão de que o 
homem ocupa o centro do mun-
do e que, desde esse lugar, e le 
tudo vê c tudo pode, ilusão ali-
cen;ada no expurgo do cao~. O 
'psicológico', segu ndo o auto r. 
teria sido inventado e.x:namente 
a partir do que fo i expurgad o 
deste sujeito supostament~ unitá-
rio e soberano, e que se consti-
tuiu no objeto das psicologias. 
Para desenvolver estas idé-
ias, o autor rcalil.a uma instigan-
te investigação de fi!!uras que 
veiculam uma visão negativa do 
caos, rrodul.idas desde o século 
XVI ao XIX, na li teratura , na 
filosofia, na pintura e na música. 
Lu ís Cláudio \"lcndon<.;a 
Figueiredo, na.-.cido no R i o de 
Janeiro, em 1945, é psiçóloco 
mestre c doutor em ps icolo~i~ 
pela L:SP. C professor na L:niv~r­
sidadc deSão Pauloena f' l!C -SI', 
aonde coo rdena os cursos de 
Mestrado c Doutorado em Psi-
cologia Clínica: também diri <>e c- • 
na lJ]'.: Jr>, o Centro de Pesquisa 
em Psicologia e EducAção. F. 
autor de Psicologia, uma intro-
duçiW - Uma visão histórica da 
psicologia como cié11cia ( bluc, 
1991 ) c Matrizes do pensamento 
psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-J I 1, além 
de diversos trabalhos em rcvisl<ts 
cspcc i ai izadas. 
.'\ lista <:Gmp lcta Jas obra.-. pu-
hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e 
al~uns t írulos do <.:atálogo da 
E.duc enc<)ntr::un-sc no final 
deste I ivr0. 
Lu ís C láudio Mendonça 
Figueiredo, em A inveru;ão do 
psico!ó,::ico - Quatro stculos de 
sul~;e tivação, problematiz.a o 
modo de s uh_ictivaçf1o contempo-
râneo, he m como as di versas 
concepçôcs contemporâneas da 
psicologia, como tendo se cons-
tituído num momento em que o 
ciclo d a rnodemidadc se encon-
t rd em pleno apogeu, ao mesmo 
tempo que já se anu nc ia sua <.t is-
solução. Para o autor, a expe-
riência suhjctiva pr6pria da mo-
dernidade deve sua emergênc ia a 
uma intensificação da vivência 
da diversidade e da mptura, que 
acontece desde o final do século 
XV, acompanhada de d iferentes 
tentativas de ordenação e de 
costura, que vão desembocar na 
formação daquilo que se con-
vencionou chamar de ·sujeito 
mode rno '. I~ este sujeito que, no 
fi nal do século XIX, vive seu 
apogeu e, ao mesmo tempo , o 
início de sua dissohu~ão : c omeça 
a desmoronar a ilusão de que o 
homem ocupa o centro do mun-
do e que, desde esse lugar, e le 
tudo vê c tudo pode, ilusão ali-
cen;ada no expurgo do cao~. O 
'psicológico', segu ndo o auto r. 
teria sido inventado e.x:namente 
a partir do que fo i expurgad o 
deste sujeito supostament~ unitá-
rio e soberano, e que se consti-
tuiu no objeto das psicologias. 
Para desenvolver estas idé-
ias, o autor rcalil.a uma instigan-
te investigação de fi!!uras que 
veiculam uma visão negativa do 
caos, rrodul.idas desde o século 
XVI ao XIX, na li teratura , na 
filosofia, na pintura e na música. 
Lu ís Cláudio \"lcndon<.;a 
Figueiredo, na.-.cido no R i o de 
Janeiro, em 1945, é psiçóloco 
mestre c doutor em ps icolo~i~ 
pela L:SP. C professor na L:niv~r­
sidadc deSão Pauloena f' l!C -SI', 
aonde coo rdena os cursos de 
Mestrado c Doutorado em Psi-
cologia Clínica: também diri <>e c- • 
na lJ]'.: Jr>, o Centro de Pesquisa 
em Psicologia e EducAção. F. 
autor de Psicologia, uma intro-
duçiW - Uma visão histórica da 
psicologia como cié11cia ( bluc, 
1991 ) c Matrizes do pensamento 
psicoló,::ico (Vozc~. JI.J<-J I 1, além 
de diversos trabalhos em rcvisl<ts 
cspcc i ai izadas. 
.'\ lista <:Gmp lcta Jas obra.-. pu-
hlicadas pela Ld itor:1 Escuta e 
al~uns t írulos do <.:atálogo da 
E.duc enc<)ntr::un-sc no final 
deste I ivr0. 
~ by Luís Cláudio Mendon'? Figueiredo 
© by Editora Escuta e EDUC. para a edição em língua portuguesa 
7• edição: setembro/2007 
EnrroRES 
Manoel Tosta Bcrlinck 
Maria Cristina Rios Magalhães 
CAPA (ARTe HNAL) 
Yvotr ~acambira. com grafismo de Roberto Loeb 
PRODUÇÃO EotTOIUAL 
Araide Sanches 
Catalogação na Fonle - Biblioteca Central / PUC-SP 
Figueiredo, Luís Cláudio Mendonça 
A invenção do psicológico : quatro séculos de subjetivação 
( 1500-1900) I Luís Cláudio Mendonça Figueiredo. 7.ed. -São Paulo : 
Escuta, 2007. 
184 p. ; 21 em - (Coleção Linhas de fuga) 
Bibliografia. 
ISBN 85-7137-054-0 (Escuta) 
I . Psicologia- história. I. Título 
CDD 19• 150.9 
EDITORA ESCUTA L TDA. 
Rua Dr. Homem de Mello, 446 
05007-001 São Paulo, SP 
Telef 11x: (OI I) 3865-8950/3675- 1190 I 3672-8345 
e-mail: escuta @uol.com.br 
www .editoracscuta.com.br 
Luís Cláudio Mendonça Figueiredo 
A invenção do psicológico 
Quatro séculos de subjetivação 
1500- 1900 
• escuta 
~ by Luís Cláudio Mendon'? Figueiredo 
© by Editora Escuta e EDUC. para a edição em língua portuguesa 
7• edição: setembro/2007 
EnrroRES 
Manoel Tosta Bcrlinck 
Maria Cristina Rios Magalhães 
CAPA (ARTe HNAL) 
Yvotr ~acambira. com grafismo de Roberto Loeb 
PRODUÇÃO EotTOIUAL 
Araide Sanches 
Catalogação na Fonle - Biblioteca Central / PUC-SP 
Figueiredo, Luís Cláudio Mendonça 
A invenção do psicológico : quatro séculos de subjetivação 
( 1500-1900) I Luís Cláudio Mendonça Figueiredo. 7.ed. -São Paulo : 
Escuta, 2007. 
184 p. ; 21 em - (Coleção Linhas de fuga) 
Bibliografia. 
ISBN 85-7137-054-0 (Escuta) 
I . Psicologia- história. I. Título 
CDD 19• 150.9 
EDITORA ESCUTA L TDA. 
Rua Dr. Homem de Mello, 446 
05007-001 São Paulo, SP 
Telef 11x: (OI I) 3865-8950/3675- 1190 I 3672-8345 
e-mail: escuta @uol.com.br 
www .editoracscuta.com.br 
Luís Cláudio Mendonça Figueiredo 
A invenção do psicológico 
Quatro séculos de subjetivação 
1500- 1900 
• escuta 
A invenção do psicológico 
Quatro séculos de subjetivação 
1500 - 1900 
A invenção do psicológico 
Quatro séculos de subjetivação 
1500 - 1900 
AGRADECIMENTOS 
A elaboração destes cns;lios, numa dosagem incomum, envolveu 
a participação de uma quan tidade signi fi cativa de colaboradores . 
Alguns, cientes c voluntários; outros. talve7., não pudessem avaliar o 
ai<.:ance de suas contribuições. A todos agradeço, mas entre eles desejo 
nomear os mais próximos, queridos e assíduos: Elisa Ulhoa Cintra, 
Marisa Trcncl'l Fonterrada, Marta Gambini, Fáhio Caramuru, Yara Ca:z.nók 
c Sidney Cazzeto. Com o texto já redigido, os agradecimentos vão para 
Maria Inês Neves de Oliveira. que datilografou os originais. permitindo 
as primeiras leituras pública~. Nesta fase, é preciso agradecer a Anaelena 
Pereira Lima o acolhimento do livro para publicação na Educ c a Suely 
Rolnik. que o incluiu em sua coleção 'Linhas de Fuga' na Editora Escuta. 
É a Elisa, a Suely e à turma de alunos que acompanhou com 
entusiasmo e bom humor o meu curso ' A gestação do espaço 
psicológico', do Núcleo de Pesquisas da Subjetividade no Prob,1fama 
de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-S P, que c~:~ 
dedico o trabalho. 
AGRADECIMENTOS 
A elaboração destes cns;lios, numa dosagem incomum, envolveu 
a participação de uma quan tidade signi fi cativa de colaboradores . 
Alguns, cientes c voluntários; outros. talve7., não pudessem avaliar o 
ai<.:ance de suas contribuições. A todos agradeço, mas entre eles desejo 
nomear os mais próximos, queridos e assíduos: Elisa Ulhoa Cintra, 
Marisa Trcncl'l Fonterrada, Marta Gambini, Fáhio Caramuru, YaraCa:z.nók 
c Sidney Cazzeto. Com o texto já redigido, os agradecimentos vão para 
Maria Inês Neves de Oliveira. que datilografou os originais. permitindo 
as primeiras leituras pública~. Nesta fase, é preciso agradecer a Anaelena 
Pereira Lima o acolhimento do livro para publicação na Educ c a Suely 
Rolnik. que o incluiu em sua coleção 'Linhas de Fuga' na Editora Escuta. 
É a Elisa, a Suely e à turma de alunos que acompanhou com 
entusiasmo e bom humor o meu curso ' A gestação do espaço 
psicológico', do Núcleo de Pesquisas da Subjetividade no Prob,1fama 
de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-S P, que c~:~ 
dedico o trabalho. 
SUMÁRIO 
APRESENTAÇÃO ..... ................................ ......................................... 13 
AD~lÊNCIA ........ ................................................................... ...... 19 
A DESNATIJRE2A HUMANA 
OU O NÃO NO CEN1RO 00 MUNOO ....................... ....................... 21 
UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA ................. 'ZI 
A multiplicação das vozes ...................................... ...................... 'ZI 
A variedade das coisas ........... .............. ................ .................. ...... 32 
Identidade e conversão ........... ............... ................ ................. ...... 40 
A nostalgia dos anos dourados ............ ............... ... ..................... .f'! 
Refonnas ................................ ............................... ................. ....... 51 
Refonnadores católicos ........ ................. .................. ...................... 58 
Uma santa católica na idade da polifonia .............. ....................... õl 
Notas ...................................................... .................. .............. ....... 79 
IDEN'IIDADE E ESQUECIMENTO: 
ASPECf()S DA VIDA CIVU..lZADA ........................... ...................... 81 
A atualidade de Cervantes ..................... ............... .................. ...... 81 
Imagens da civilização ............ .............. ........................................ 88 
Subterrâneos da civilização .................. ........................................ 96 
A dupla filiação da psicologia ................................................ .... 100 
Notas .................... ................................. .................. ................ .... 102 
A REPRESENTAÇÃO E SEUS AVESSOS ........................................ 105 
O público e o privado: raízes de uma cisão ......... ........................ l<Xi 
A consolidação da privacidade ........... ................. ...................... l<E 
SUMÁRIO 
APRESENTAÇÃO ..... ................................ ......................................... 13 
AD~lÊNCIA ........ ................................................................... ...... 19 
A DESNATIJRE2A HUMANA 
OU O NÃO NO CEN1RO 00 MUNOO ....................... ....................... 21 
UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA ................. 'ZI 
A multiplicação das vozes ...................................... ...................... 'ZI 
A variedade das coisas ........... .............. ................ .................. ...... 32 
Identidade e conversão ........... ............... ................ ................. ...... 40 
A nostalgia dos anos dourados ............ ............... ... ..................... .f'! 
Refonnas ................................ ............................... ................. ....... 51 
Refonnadores católicos ........ ................. .................. ...................... 58 
Uma santa católica na idade da polifonia .............. ....................... õl 
Notas ...................................................... .................. .............. ....... 79 
IDEN'IIDADE E ESQUECIMENTO: 
ASPECf()S DA VIDA CIVU..lZADA ........................... ...................... 81 
A atualidade de Cervantes ..................... ............... .................. ...... 81 
Imagens da civilização ............ .............. ........................................ 88 
Subterrâneos da civilização .................. ........................................ 96 
A dupla filiação da psicologia ................................................ .... 100 
Notas .................... ................................. .................. ................ .... 102 
A REPRESENTAÇÃO E SEUS AVESSOS ........................................ 105 
O público e o privado: raízes de uma cisão ......... ........................ l<Xi 
A consolidação da privacidade ........... ................. ...................... l<E 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
A privacidade militante ............................................................... 113 
Do iluminismo ao romantismo: 
a floração da privacidade na Alemanha ................................... 118 
A síntese mesmeriana ................................................................. 123 
Os usos da privacidade ............................................................... 126 
Notas ........................................................................................... 128 
A GESTAÇÃO 00 ESPAÇO PSICOLÓGKX> NO 
SÉCULO XIX: LIBERALISMO. ROMANTISMO E 
REGIME DISCIPLINAR .................................. ............................... ... 129 
As vicissitudes do liberalismo e do jndividualismo ................... 129 
O romantismo: promessas e realizações ...................................... 139 
O território da ignorância ......................................................... .. . 146 
Notas ......................................................................................... .. 150 
PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA A 
PSIOOLOOIA ........................................................ ............................ 151 
O Duque Jean des Esseintes, vida e obra ................................... 152 
Estilismo e excentricidade ........................................................... 157 
Para a 16m do estilo ...................................................................... 161 
Notas ....... ..... ............................................................................... 165 
REFERÊNCIAS BffiUOORÁFlCAS ........................ ......................... 167 
APRESENTAÇÃO 
A coleção 'Linhas de Fuga' 
O homem contemporâneo vive uma intensificação da experiência 
de ruptura, ao mesmo tempo em que se encontra em plena 
transformação o modo como esta experiênc ia o afeta. Em outras 
palavras, é a relação do homem com o caos o que está em jogo nesta 
transição. De negativo da ordem, o caos passa a ser considerado em 
sua positividade: ele é a processualidade intrínseca a todos os corpos, 
efeito de seu inelutável encontro com outros corpos- ou seja. o caos 
é efeito da inelutável a!teridade. De tendência do mundo para a morte 
(mundo aqui incluindo, evidentemente, as formas de existência humana, 
individuais e coletivas). o caos passa a ser considerado como tendência 
a uma evolução contínua c irreversível, na qual vão se produzindo uma 
d iferenciação e uma complexificação cada vez maiores. 
Esta delicada transição que o homem vem efetuando na conternpo-
raneidade não se dá apenas no plano da consciência, e sim no plano 
do próprio modo de subjetivação. O caos, ao deixar de ser vivido como 
negativo da ordem e, portanto. como fatal , torna-se menos aterrador. 
Com isso. vai deixando de fazer sentido uma subjetividade constituída 
na base da dissociação da experiência do caos e da indissociável idea-
lização de uma suposta completude. E o que vai nascendo é um modo 
de suhjetivação constituído na base da abertura para o outro e, por-
tanto, para o caos. Uma subjetividade intrinsecamente processual. 
Realizar esta travessia. no entanto, não é tão simples assim: 
I ibertar a subjetividade da tutela do terror em relação ao outro e ao 
13 
A privacidade militante ............................................................... 113 
Do iluminismo ao romantismo: 
afloração da privacidade na Alemanha ................................... 118 
A síntese mesmeriana ................................................................. 123 
Os usos da privacidade ............................................................... 126 
Notas ........................................................................................... 128 
A GESTAÇÃO 00 ESPAÇO PSICOLÓGKX> NO 
SÉCULO XIX: LIBERALISMO. ROMANTISMO E 
REGIME DISCIPLINAR .................................. ............................... ... 129 
As vicissitudes do liberalismo e do jndividualismo ................... 129 
O romantismo: promessas e realizações ...................................... 139 
O território da ignorância ......................................................... .. . 146 
Notas ......................................................................................... .. 150 
PARA ALÉM DO ESTILO. UM LUGAR PARA A 
PSIOOLOOIA ........................................................ ............................ 151 
O Duque Jean des Esseintes, vida e obra ................................... 152 
Estilismo e excentricidade ........................................................... 157 
Para a 16m do estilo ...................................................................... 161 
Notas ....... ..... ............................................................................... 165 
REFERÊNCIAS BffiUOORÁFlCAS ........................ ......................... 167 
APRESENTAÇÃO 
A coleção 'Linhas de Fuga' 
O homem contemporâneo vive uma intensificação da experiência 
de ruptura, ao mesmo tempo em que se encontra em plena 
transformação o modo como esta experiênc ia o afeta. Em outras 
palavras, é a relação do homem com o caos o que está em jogo nesta 
transição. De negativo da ordem, o caos passa a ser considerado em 
sua positividade: ele é a processualidade intrínseca a todos os corpos, 
efeito de seu inelutável encontro com outros corpos- ou seja. o caos 
é efeito da inelutável a!teridade. De tendência do mundo para a morte 
(mundo aqui incluindo, evidentemente, as formas de existência humana, 
individuais e coletivas). o caos passa a ser considerado como tendência 
a uma evolução contínua c irreversível, na qual vão se produzindo uma 
d iferenciação e uma complexificação cada vez maiores. 
Esta delicada transição que o homem vem efetuando na conternpo-
raneidade não se dá apenas no plano da consciência, e sim no plano 
do próprio modo de subjetivação. O caos, ao deixar de ser vivido como 
negativo da ordem e, portanto. como fatal , torna-se menos aterrador. 
Com isso. vai deixando de fazer sentido uma subjetividade constituída 
na base da dissociação da experiência do caos e da indissociável idea-
lização de uma suposta completude. E o que vai nascendo é um modo 
de suhjetivação constituído na base da abertura para o outro e, por-
tanto, para o caos. Uma subjetividade intrinsecamente processual. 
Realizar esta travessia. no entanto, não é tão simples assim: 
I ibertar a subjetividade da tutela do terror em relação ao outro e ao 
13 
Mônica
Realce
caos passa. necessariamente, pela conquista da possibilidade de 
experimentá-los. Ora, muito em nós e ao nosso redor funciona ainda 
como força que se opõe a isso. Mas também, sem dúvida alguma. aJgo 
em nós e ao nosso redor func iona como força a favor. 
A iniciativa da coleção 'Linhas de Fuga' visa justamente propiciar 
a ci rculação de textos que veiculem afetivamente esta transição, 
podendo por isso funcionar talvez como torça a seu favor. Textos dessa 
natureza são produúdos nas mais diversas áreas do conhecimento, em 
torno de diferentes temas, com os mais variados estilos e recorrendo 
às mais variadas referências. Eles têm em comum não só o fato de nos 
trazerem, d ireta ou indiretamente. recursos de articulação e e laboração 
desta travessia. mas, também, e mais fundamentalmen te, o fato de que 
cada um deles. à sua maneira, em:arna tal lravessia, e assim sendo, 
mesmo que ela não seja explicitamente reconhecida e valorizada, ela é 
com certeza reconhecida e valorizada em tennos afetivos, o que faz 
destes textos possíveis cúmplices de nossa própria travessia. 
A invenção do psicológico 
A invenção do psicológico - Quatro séculos de subjetivação, 
de Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, é uma obr.1 que compartilha 
estas indagações. O autor visa problematizar o modo de subjetivação 
contemporâneo, bem como as diversas concepções contemporâneas 
da psicologia, como tendo se constituído num momento em que o ciclo 
da IPOdernidade, pr~esso engendrado a partir do final do século XV, 
encontra-se em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua 
dissolução. Para o autor, a experiênc ia subjetiva no sentido moderno, 
instaurada neste processo, deve sua emergência a uma intensificação 
da vivência da diversidade e da ruptura, que aconteçe desde o final 
do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e 
de costura, que vão desembocar na formação daquilo que ·se 
convencionou chamar de 'sujeito moderno'. E é este sujeito que, no 
fi nal do século XIX. vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de 
sua dissolução: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa 
o centro do mundo e que, desde esse lugar, ele tudo vê e tudo pode, 
ílusiio alicerçada no expurgo do caos. O 'psicológico', segundo o autor, 
teria sido inventado exatamenle a partir do que foi expurgado deste 
14 
sujeito supostamente unitário e soberano, e que se constitu iu no objeto 
das psicologias. 
Assim, para o autor, é das ruínas do humanismo que nascem as 
psicologias. e é na relação que cada uma dela'i estabelece com este 
fato que se distinguiriam as diferentes 'escolas': de um lado, aquelas 
que visam restaurar o humanismo, salvar a suposta unidade do sujeito 
(ou seja. salvar o sujeito moderno) e. de outro, aquelas que buscam 
sustentar a emergênc ia de uma s ubjetividade indissociável do caos e, 
portanto, da processual idade. Este último seria basicamente o caso da 
psicanálise, embora o autor considere que nem tudo que se pratica em 
nome da psicanálise busque efetivamente sustentar a passagem para 
este outro modo de subjetivação e, por outro lado, quando é isto o 
que realmente se faz, tal prática encontra "dificuldades extremas para 
a sua própria articulação e consistência" teórica; além disso, para o 
autor. a psicanálise, num certo aspecto, é como as demais psicologias: 
também ela não compreende a proveniência de seu objeto e, com isso, 
tende a naturalizá-lo. 
Para desenvolver estas idéias, Luís Cláudio M. Figueiredo realiza 
uma rigorosa investigação de figuras que veiculam uma visão negativa 
do caos, prod uzidas entre os séculos XVI e XIX. Com uma 
sensibilidade aguçada e criativa, ele vai fazendo escolhas de vias de 
acesso a tais figuras : não só textos, numerosos e variados (de santos 
a ti lósofos· e poetas, passando por um tesoureiro de armazém geral 
português), mas também aspectos da pintura e da música (aliás, vale a 
pena lembrar que, no curso ministrado pelo autor, em 1991, no Núcleo 
de Estudos da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-Graduados 
em Psicologia Clínica da PUC-SP, no qual apresentou pela primeira vez 
estas idéias, ele as acompanhava com audições musicais e projeção 
de l·fídex a cada aula). ./ 
Com igual sensibilidade, o autor vai captando no material esco-
lh ido s inais de uma concepção negativa do caos em certas figuras: o 
hon·or às margens. tanto geográticas como humanas, nutrido pelo ho-
mem do século XVI, por não suportar o fato de que nas margens anu-
lam-se as formas estáveis, dissolvem-se as identidades, já que aí se 
está exposto à variedade e às misturas. Medo, por exemplo, das mar-
gens marinhas e dos oceanos. tanto por sua imensidão descontrolada, 
quanto por serem vias de esvaziamento da Europa e de contato com a 
15 
caos passa. necessariamente, pela conquista da possibilidade de 
experimentá-los. Ora, muito em nós e ao nosso redor funciona ainda 
como força que seopõe a isso. Mas também, sem dúvida alguma. aJgo 
em nós e ao nosso redor func iona como força a favor. 
A iniciativa da coleção 'Linhas de Fuga' visa justamente propiciar 
a ci rculação de textos que veiculem afetivamente esta transição, 
podendo por isso funcionar talvez como torça a seu favor. Textos dessa 
natureza são produúdos nas mais diversas áreas do conhecimento, em 
torno de diferentes temas, com os mais variados estilos e recorrendo 
às mais variadas referências. Eles têm em comum não só o fato de nos 
trazerem, d ireta ou indiretamente. recursos de articulação e e laboração 
desta travessia. mas, também, e mais fundamentalmen te, o fato de que 
cada um deles. à sua maneira, em:arna tal lravessia, e assim sendo, 
mesmo que ela não seja explicitamente reconhecida e valorizada, ela é 
com certeza reconhecida e valorizada em tennos afetivos, o que faz 
destes textos possíveis cúmplices de nossa própria travessia. 
A invenção do psicológico 
A invenção do psicológico - Quatro séculos de subjetivação, 
de Luís Cláudio Mendonça Figueiredo, é uma obr.1 que compartilha 
estas indagações. O autor visa problematizar o modo de subjetivação 
contemporâneo, bem como as diversas concepções contemporâneas 
da psicologia, como tendo se constituído num momento em que o ciclo 
da IPOdernidade, pr~esso engendrado a partir do final do século XV, 
encontra-se em pleno apogeu, ao mesmo tempo que já se anuncia sua 
dissolução. Para o autor, a experiênc ia subjetiva no sentido moderno, 
instaurada neste processo, deve sua emergência a uma intensificação 
da vivência da diversidade e da ruptura, que aconteçe desde o final 
do século XV, acompanhada de diferentes tentativas de ordenação e 
de costura, que vão desembocar na formação daquilo que ·se 
convencionou chamar de 'sujeito moderno'. E é este sujeito que, no 
fi nal do século XIX. vive seu apogeu e, ao mesmo tempo, o início de 
sua dissolução: começa a desmoronar a ilusão de que o homem ocupa 
o centro do mundo e que, desde esse lugar, ele tudo vê e tudo pode, 
ílusiio alicerçada no expurgo do caos. O 'psicológico', segundo o autor, 
teria sido inventado exatamenle a partir do que foi expurgado deste 
14 
sujeito supostamente unitário e soberano, e que se constitu iu no objeto 
das psicologias. 
Assim, para o autor, é das ruínas do humanismo que nascem as 
psicologias. e é na relação que cada uma dela'i estabelece com este 
fato que se distinguiriam as diferentes 'escolas': de um lado, aquelas 
que visam restaurar o humanismo, salvar a suposta unidade do sujeito 
(ou seja. salvar o sujeito moderno) e. de outro, aquelas que buscam 
sustentar a emergênc ia de uma s ubjetividade indissociável do caos e, 
portanto, da processual idade. Este último seria basicamente o caso da 
psicanálise, embora o autor considere que nem tudo que se pratica em 
nome da psicanálise busque efetivamente sustentar a passagem para 
este outro modo de subjetivação e, por outro lado, quando é isto o 
que realmente se faz, tal prática encontra "dificuldades extremas para 
a sua própria articulação e consistência" teórica; além disso, para o 
autor. a psicanálise, num certo aspecto, é como as demais psicologias: 
também ela não compreende a proveniência de seu objeto e, com isso, 
tende a naturalizá-lo. 
Para desenvolver estas idéias, Luís Cláudio M. Figueiredo realiza 
uma rigorosa investigação de figuras que veiculam uma visão negativa 
do caos, prod uzidas entre os séculos XVI e XIX. Com uma 
sensibilidade aguçada e criativa, ele vai fazendo escolhas de vias de 
acesso a tais figuras : não só textos, numerosos e variados (de santos 
a ti lósofos· e poetas, passando por um tesoureiro de armazém geral 
português), mas também aspectos da pintura e da música (aliás, vale a 
pena lembrar que, no curso ministrado pelo autor, em 1991, no Núcleo 
de Estudos da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-Graduados 
em Psicologia Clínica da PUC-SP, no qual apresentou pela primeira vez 
estas idéias, ele as acompanhava com audições musicais e projeção 
de l·fídex a cada aula). ./ 
Com igual sensibilidade, o autor vai captando no material esco-
lh ido s inais de uma concepção negativa do caos em certas figuras: o 
hon·or às margens. tanto geográticas como humanas, nutrido pelo ho-
mem do século XVI, por não suportar o fato de que nas margens anu-
lam-se as formas estáveis, dissolvem-se as identidades, já que aí se 
está exposto à variedade e às misturas. Medo, por exemplo, das mar-
gens marinhas e dos oceanos. tanto por sua imensidão descontrolada, 
quanto por serem vias de esvaziamento da Europa e de contato com a 
15 
diferença; medo, também, dos hereges e conversos (judeus e mouros 
conve1tidos ao cristianismo, no século XVI), vividos como empesteados 
portadores de conrágio e de poluição da comunidade, por não possuí-
rem identidade demarcada. Outro aspecto da experiência subjetiva do 
século XVI ligado a uma qualificação negativa do caos é a utilização 
da memória, nas autobiografias quinhentistas. como instrumenlo mais 
existencial do que cognitivo: cabe a ela congelar a experiência, através 
da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade c pcnna-
nência de sentido; a memória, aqui, portanto. é uma espécie de 'instru-
mento antimisrura' . Indício, já num outro momento, desta mesma con-
cepção negativa é o medo da invasão pelas misérias e agressões do 
mundo, como causadoras de desintegração, manifestando-se, por exem-
plo, na hipocondria do Duque Jean des Esseíntes, personagem de um 
romance de J.-K. Huysmans, bem como em sua construção de um "es-
tilo de indisponibilidade", indisponibilidade para tudo que é do mun-
do, ou seja, para qualquer espécie de outro. A inexistência do sem· 
sentido no romance de cavalaria é um último exemplo que evocamos 
aqui. dentre as inúmeras figuras veiculadoras de uma visão negativa 
do caos, produzidas ao longo dos quatro séculos pesquisados por Fi· 
gueiredo, que seu livro vai generosamente nos dando a conhecer. 
O leitor talvez perceberá uma certa instabilidade no modo como 
o próprio autor aborda o caos· em seus comentários: ele parece , às 
veze~. oscilar entre qualificações negativas e positivas. Entretanto, a 
escolha do objeto de sua investigação constitui. por si só, um sinal 
evidente de que prevalece no auto r a inclinação a reconhecer o caos 
em sua positividade: em primeiro lugar, fazer um levantamento exaustivo 
precisamente das figuras portadoras de qualificação negativa do caos; 
em segundo lugar, apoiado nas figuras pesquisadas, circunscrever a 
géncsc de um modo de subjetivação que funciona, como assinala o 
próprio auto r. ci tando Auerbach, através de "um isolamento 
atmosférico do acontecimento". ou seja, através do isolamento daquilo 
mesmo onde se produz o caos; em terceiro lugar, tendo cartografado 
o modo de subjctivação próprio da modernidade e suas ftssuras. o autor 
se propõe cartografar o 'campo psi' , elegendo como crilério para avaliar 
as várias ' linhas' que o atravessam exatamente a presença ou não de 
uma ''d isposição de acolher e lidar com um complexo sistema de forças 
em conflito". 
16 
Há inúmeras outras indicações da concepção positiva do autor 
em relação ao caos, elas despontam a todo momento c ao longo de 
todo o livro. por iss o não cabe ria evocá-las no co ntexto de uma 
apr~sentação. assim como, tampouco, ca beria evocar e discuti r alguns 
momentos - muito mais raros, é verdade - em que o autor parece 
veicular, ele próprio, uma teoria negativa do caos. O que sim cabe 
colocar é que tais osci lações fazem pensar que é como se, através da 
presente invest igação, Lu ís Cláudio M. Figuei redo estivesse se 
cksvcnc i!hando das figura~ portadoras de uma quali ficação negativa 
do caos c encarnando a presença de uma concepção do caos em sua 
positi vidade. Como este é um processo que não se dá apenas no plano 
inte lectual, as oscilações do texto não d i1.em respeito a uma fa lta 
qualquer de rigor concei tual , provavelmente e las constituem marcas 
elas oscil<~ções desteprocesso na experiênc ia do autor. Marcas de que, 
no si lêncio, onde o texto se engendra, uma travessia está efetivamente 
se operando, travessia que nos é dado o privilégio de acompanhar, lá 
onde em nós inscrevem-se os efeitos intensivos da leitura. 
Sucly Rolnik 
17 
diferença; medo, também, dos hereges e conversos (judeus e mouros 
conve1tidos ao cristianismo, no século XVI), vividos como empesteados 
portadores de conrágio e de poluição da comunidade, por não possuí-
rem identidade demarcada. Outro aspecto da experiência subjetiva do 
século XVI ligado a uma qualificação negativa do caos é a utilização 
da memória, nas autobiografias quinhentistas. como instrumenlo mais 
existencial do que cognitivo: cabe a ela congelar a experiência, através 
da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade c pcnna-
nência de sentido; a memória, aqui, portanto. é uma espécie de 'instru-
mento antimisrura' . Indício, já num outro momento, desta mesma con-
cepção negativa é o medo da invasão pelas misérias e agressões do 
mundo, como causadoras de desintegração, manifestando-se, por exem-
plo, na hipocondria do Duque Jean des Esseíntes, personagem de um 
romance de J.-K. Huysmans, bem como em sua construção de um "es-
tilo de indisponibilidade", indisponibilidade para tudo que é do mun-
do, ou seja, para qualquer espécie de outro. A inexistência do sem· 
sentido no romance de cavalaria é um último exemplo que evocamos 
aqui. dentre as inúmeras figuras veiculadoras de uma visão negativa 
do caos, produzidas ao longo dos quatro séculos pesquisados por Fi· 
gueiredo, que seu livro vai generosamente nos dando a conhecer. 
O leitor talvez perceberá uma certa instabilidade no modo como 
o próprio autor aborda o caos· em seus comentários: ele parece , às 
veze~. oscilar entre qualificações negativas e positivas. Entretanto, a 
escolha do objeto de sua investigação constitui. por si só, um sinal 
evidente de que prevalece no auto r a inclinação a reconhecer o caos 
em sua positividade: em primeiro lugar, fazer um levantamento exaustivo 
precisamente das figuras portadoras de qualificação negativa do caos; 
em segundo lugar, apoiado nas figuras pesquisadas, circunscrever a 
géncsc de um modo de subjetivação que funciona, como assinala o 
próprio auto r. ci tando Auerbach, através de "um isolamento 
atmosférico do acontecimento". ou seja, através do isolamento daquilo 
mesmo onde se produz o caos; em terceiro lugar, tendo cartografado 
o modo de subjctivação próprio da modernidade e suas ftssuras. o autor 
se propõe cartografar o 'campo psi' , elegendo como crilério para avaliar 
as várias ' linhas' que o atravessam exatamente a presença ou não de 
uma ''d isposição de acolher e lidar com um complexo sistema de forças 
em conflito". 
16 
Há inúmeras outras indicações da concepção positiva do autor 
em relação ao caos, elas despontam a todo momento c ao longo de 
todo o livro. por iss o não cabe ria evocá-las no co ntexto de uma 
apr~sentação. assim como, tampouco, ca beria evocar e discuti r alguns 
momentos - muito mais raros, é verdade - em que o autor parece 
veicular, ele próprio, uma teoria negativa do caos. O que sim cabe 
colocar é que tais osci lações fazem pensar que é como se, através da 
presente invest igação, Lu ís Cláudio M. Figuei redo estivesse se 
cksvcnc i!hando das figura~ portadoras de uma quali ficação negativa 
do caos c encarnando a presença de uma concepção do caos em sua 
positi vidade. Como este é um processo que não se dá apenas no plano 
inte lectual, as oscilações do texto não d i1.em respeito a uma fa lta 
qualquer de rigor concei tual , provavelmente e las constituem marcas 
elas oscil<~ções deste processo na experiênc ia do autor. Marcas de que, 
no si lêncio, onde o texto se engendra, uma travessia está efetivamente 
se operando, travessia que nos é dado o privilégio de acompanhar, lá 
onde em nós inscrevem-se os efeitos intensivos da leitura. 
Sucly Rolnik 
17 
ADVERTÊNCIA 
Os textos que se seguem fontm redigidos de agosto de 1990 a 
junho de 1991 na ordcnl em que estão sendo apresentados. De acordo 
com o plano original. contudo, eles deveriam figurar como ensaios 
independenteS e não como capítulos encadeados. Ao término da 
redação, porém, descobri que apenas ' Uma santa católica na idade da 
polifonia' permanecia naquela condição; os demais acabaram se 
engrenando numa certa seqüência e, paniculannente, os dois últimos 
formam mesmo uma unidade. De qualquer maneira, convém esclarecer 
que não houve a pretensão de rcali1.ar um trabalho exaustivo e sem 
lacunas (v iva a lacuna !). Estes ensaios podem se desdobrar em 
irlUmcrávcis outros. o que , al ias. é meu projeto e meu convite. 
Os textos tiveram na sua origem uma destinação acadêmica, já 
tendo sido usados, inclusive, como leitura básica em disciplinas dos 
cursos de mes trado e doutorado em psicologia clínica e em psicologia 
S(lcial na PUC-SP. Há quem não aprecie a leitura de trabalhos 
acadêmicos. O que posso garantir é que este foi escrito com grande 
pr.1.1.er e que parte do meu esforço fo i para transmitir um pouco deste 
prazer ao meu eventual leitor. Boa viagem! 
19 
ADVERTÊNCIA 
Os textos que se seguem fontm redigidos de agosto de 1990 a 
junho de 1991 na ordcnl em que estão sendo apresentados. De acordo 
com o plano original. contudo, eles deveriam figurar como ensaios 
independenteS e não como capítulos encadeados. Ao término da 
redação, porém, descobri que apenas ' Uma santa católica na idade da 
polifonia' permanecia naquela condição; os demais acabaram se 
engrenando numa certa seqüência e, paniculannente, os dois últimos 
formam mesmo uma unidade. De qualquer maneira, convém esclarecer 
que não houve a pretensão de rcali1.ar um trabalho exaustivo e sem 
lacunas (v iva a lacuna !). Estes ensaios podem se desdobrar em 
irlUmcrávcis outros. o que , al ias. é meu projeto e meu convite. 
Os textos tiveram na sua origem uma destinação acadêmica, já 
tendo sido usados, inclusive, como leitura básica em disciplinas dos 
cursos de mes trado e doutorado em psicologia clínica e em psicologia 
S(lcial na PUC-SP. Há quem não aprecie a leitura de trabalhos 
acadêmicos. O que posso garantir é que este foi escrito com grande 
pr.1.1.er e que parte do meu esforço fo i para transmitir um pouco deste 
prazer ao meu eventual leitor. Boa viagem! 
19 
A DESNATUREZA HUMANA 
OU O NÃO NO CENTRO DO MUNDO 
Setenta e cinco anos pa.~sados, a página com que Lukács abre 
~ua Tc•oria do romance conserva toda a força evocativa: 
Felizes os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa das vias que 
lhe siio abertas e que eles devem percorrer. Felizes os tempos cuja~ 
vias estão iluminadas pela !uz das estrelas. Para eles tudo é novo e, no 
entanto, fam iliar; tudo significa aventura e entretanto tudo lhes pertence. 
O mundo é vasto e nele. conwdo, encontram-se à vontade, pois o fogo 
que arde nas almas é da mesma natureza do das estrelas. O mundo e o 
eu, a luz e o fogo d istinguem-se nitidamente e , apesar disso, nunca se 
tornam definitivamente estranhos um ao outro. pois o fogo é a alma de 
loda luz e todo o fogo se reveste de luz. Assim, não há nenhum ato que 
não adquira plena signilicação e que não se complete nesta dualidade: 
perfeito em seu ~entido e perfeito pnra os sentidos. ([ 1914-1915/1920) 
1963; p.l9) 
Não importa que estas palavras não sejam uma tradução fiel da 
experiência grega na época das grandes epopéias. Não importa que a 
expe riência do mundo nas 'civilizações fechada.~· apareça a{ idealizada. 
Importa sim ouvir, por detrás desta evocação maravilhada e nostálgica, 
a perplex idade do jovem intelectual húngaro num tempo de muitas 
promessas e muitas ameaças. tempo finalmente imerso num processo 
aparentemente irreversível de esfacelamento e desmoralização. Escrito 
durante a Primeira Grande Guerra. o texto de Lukács está impregnado 
pela atmosfera de "desespero pennanente diante da situação mundial" 
c pel a questão de sabe r "quem salvará a civilização ocidental''.conforme as paJavras do autor numa introdução redigida em 1962. 
21 
A DESNATUREZA HUMANA 
OU O NÃO NO CENTRO DO MUNDO 
Setenta e cinco anos pa.~sados, a página com que Lukács abre 
~ua Tc•oria do romance conserva toda a força evocativa: 
Felizes os tempos que podem ler no céu estrelado o mapa das vias que 
lhe siio abertas e que eles devem percorrer. Felizes os tempos cuja~ 
vias estão iluminadas pela !uz das estrelas. Para eles tudo é novo e, no 
entanto, fam iliar; tudo significa aventura e entretanto tudo lhes pertence. 
O mundo é vasto e nele. conwdo, encontram-se à vontade, pois o fogo 
que arde nas almas é da mesma natureza do das estrelas. O mundo e o 
eu, a luz e o fogo d istinguem-se nitidamente e , apesar disso, nunca se 
tornam definitivamente estranhos um ao outro. pois o fogo é a alma de 
loda luz e todo o fogo se reveste de luz. Assim, não há nenhum ato que 
não adquira plena signilicação e que não se complete nesta dualidade: 
perfeito em seu ~entido e perfeito pnra os sentidos. ([ 1914-1915/1920) 
1963; p.l9) 
Não importa que estas palavras não sejam uma tradução fiel da 
experiência grega na época das grandes epopéias. Não importa que a 
expe riência do mundo nas 'civilizações fechada.~· apareça a{ idealizada. 
Importa sim ouvir, por detrás desta evocação maravilhada e nostálgica, 
a perplex idade do jovem intelectual húngaro num tempo de muitas 
promessas e muitas ameaças. tempo finalmente imerso num processo 
aparentemente irreversível de esfacelamento e desmoralização. Escrito 
durante a Primeira Grande Guerra. o texto de Lukács está impregnado 
pela atmosfera de "desespero pennanente diante da situação mundial" 
c pel a questão de sabe r "quem salvará a civilização ocidental''. 
conforme as paJavras do autor numa introdução redigida em 1962. 
21 
Mônica
Realce
Expulso do paraíso das civilizações fechadas, o homem da 
modernidade colhe no tempo de Lukács o fruto mais amargo da 
abertura do mundo. da expansão cósmica dao; suas possibilidades, da 
muhiplicação infinita dos seus enigma.~;: a desorientação, o caos, a 
guerra total. 
Houve um tempo, porém. em que a abertura do mundo, embora 
já revelando perspectivas traumáticas c assustadoras. podia ser 
acolhida c comentada com orgulho e altivez. 
Em 1486, na Oratio de lwnrinis dignitatt, Giovanni Pico Della 
Mirandola ( 1463-1494), talvez o mais fecundo representante da escola 
pitag6rico-platônica de Florença. concordava com os que reconheciam 
o homem como o mais digno c maravilhoso de todos os seres. 
Discordava, conludo, das ra1..õcs que costumeiramente eram dada.c; para 
esta avaliaçãu. 
Ora. cnqunnco meditava acerca do significado desta~ afirmações. não me 
satisfaziam de todo as múltipla~ nrzi'íe\ que são aduzidas habitualmente 
por muitos a propósito da grandcr.a da natureza humana: ser o homem 
vínculo das criatura~. familinr com as superiores, soberano das inferiores; 
pela agudeza dos ~enlidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do 
intelecto. ~er intérprt:te da natureza; intermédio entre o tempo e a 
~:temidaUe e. como dizem os Persas. cópul:~ portanto. himeneu do mundo 
e. segundo atestou David, em pouco inferior aos anjos. Grandes coisas 
c:~tas. sem dúvida. ma~ não as mni~ importantes, isto é, não tais que 
consintam na reivindicação do privil6gio de uma admiração ilimitada. 
PÔr que. de f~to, não deveremos nós admirar mais os anjos e os 
bcatissi lllQ,; eoro.s celestes'! <Mirandola [1486]1989; p. 49) 
Não. Não é por ter uma naturc1..a, posto que natureza complexa, 
que o homem é o mais digno de nossa admiração. 
Quando Deus pensou em um ser capaz de amar toda a beleza e 
magnitude do mundo por ele criado. não e~"Ontrou, segundo Pico De lia 
Minmdola, umn única criatura a partir da qual o homem pudesse ser 
modelado, um único lugar que o homem pudes:;e ocupar definitivamente 
para daí contemplar o esplendor do Universo. Todos os sítios c 
possibilidades da natureza já estavum ocupados e preenchidos. Por 
fim. o grande Criador inventou este ser "a quem nada pertence 
naturalmente''. Ele recebeu (l homem como uma criatura de "natureza 
indeterminada" para colocá-lo no centro do Universo dizendo: 
22 
Ó Aó~o . não te demos nem um lu~ar determinado, nem um aspecto que 
te scj;J próprio, nem tarefa nlguma específica. a fi m de que obtenhas c 
po~~uas aquele lugar. aquele aspcl·to. <UJnela tarefa que lu seguramente 
dc~cjarcs. tudo segundo o teu parecer c a tua decisão. A natureza bem 
llefinida dns outros seres é rcfrcada pur lei~ por nós prescritas. Tu. 
pelo comr.írio. não cnnslrangido por nenhuma limitação. dctermína-Ja-
;)s par.t ti. segundo o teu arhítriu. a cujo poder te entreguei. Coloquei-te 
nn meio do muoon para que daí rx'ssa.o; olhar melhor tudo que há no 
mumJn. Nàulc fizemos celeste nem Lerrcn<l . nem monal nem inwrtal. a 
lim de que tu. ;írhilm c sohcrano. art ífice de li me~mo. te plasmas.~es e 
l c inf"nrmasses. n;l form<l que tiv~scs seguramente escolhido. Poderás 
degenerar .ué ns seres que são as bestas, poderá~ regenerar-te até as 
realidades superiores que são divinns. por dcd s3n de teu ânimo. Clbid.; 
1> • .í2) 
Convém desde logo assinalar a curiosa t.:onccpção de 'centro do 
mundo' expressa neste texto. Embora numa rrimcirctleitura pudéssemos 
reconhecer nus palavras de Gi ovanni Pico o antigo geo c 
tmtrnpoccntrismo aristotélico-cristão. o autor, na verdade, destituiu o 
centro de sua dimensão ontológif.:a: o centro é ngora o lugar daquele 
que tudo pode mas nada é, o lugar privilegi ado do não-ser. O centro 
está, assim. ocupado pelo tu'io. e esta ncgatividadc estrategicamente 
localizada acabará dcscstahilizando tudo o Universo c superando a 
possihilidadc de cnnccOê-lo na forma fechada c perfeita do círculo. E..;tá 
sendo preparado o terreno para a nova astronomia de Copérnico e para 
a extcnsãn metafísica desta astmnnmia na concepção do Universo 
inlinitu de Giordano Bruno ( I 54N-1 6Cl0). Universo definitivamente 
desccntrado (c f. Koyré. 1979). Nas próprias palavras de Bruno ([ 1584) 
1978): 
. .. existe um campo inlini tQ c um espm;n continente que compreende c 
penetra tudo. Nele se encontram inllnitos C<lrpos semelhantes. não 
estando nenhum deles mais no centro dn univcr~o \lUC os outrns. porque 
11 univcP.'o é inriníLu c. pcmanto. ~m centro c sem margens. 
O homem. como pura negalívidade c possibilidade de escolha. 
que nasce sem natureza certa c hnhita um mundo infinitamente aberto 
ao seu engenho c arte. deve se preocupar. desde o momento em que 
m1scc. sobretudo C()lll isso: sua fibcrd<tdc c sua destinação; deve 
depender sempre mais de sua " consciência do que do juízo dos 
23 
Expulso do paraíso das civilizações fechadas, o homem da 
modernidade colhe no tempo de Lukács o fruto mais amargo da 
abertura do mundo. da expansão cósmica dao; suas possibilidades, da 
muhiplicação infinita dos seus enigma.~;: a desorientação, o caos, a 
guerra total. 
Houve um tempo, porém. em que a abertura do mundo, embora 
já revelando perspectivas traumáticas c assustadoras. podia ser 
acolhida c comentada com orgulho e altivez. 
Em 1486, na Oratio de lwnrinis dignitatt, Giovanni Pico Della 
Mirandola ( 1463-1494), talvez o mais fecundo representante da escola 
pitag6rico-platônica de Florença. concordava com os que reconheciam 
o homem como o mais digno c maravilhoso de todos os seres. 
Discordava, conludo, das ra1..õcs que costumeiramente eram dada.c; para 
esta avaliaçãu. 
Ora. cnqunnco meditava acerca do significado desta~ afirmações. não me 
satisfaziam de todo as múltipla~ nrzi'íe\ que são aduzidas habitualmente 
por muitos a propósito da grandcr.a da natureza humana: ser o homem 
vínculo das criatura~. familinr com as superiores, soberano das inferiores; 
pela agudeza dos ~enlidos, pelo poder indagador da razão e pela luz do 
intelecto. ~er intérprt:te da natureza; intermédio entre o tempo e a 
~:temidaUe e. como dizem os Persas. cópul:~ portanto. himeneu do mundo 
e. segundo atestou David, em pouco inferior aos anjos. Grandes coisas 
c:~tas. sem dúvida.ma~ não as mni~ importantes, isto é, não tais que 
consintam na reivindicação do privil6gio de uma admiração ilimitada. 
PÔr que. de f~to, não deveremos nós admirar mais os anjos e os 
bcatissi lllQ,; eoro.s celestes'! <Mirandola [1486]1989; p. 49) 
Não. Não é por ter uma naturc1..a, posto que natureza complexa, 
que o homem é o mais digno de nossa admiração. 
Quando Deus pensou em um ser capaz de amar toda a beleza e 
magnitude do mundo por ele criado. não e~"Ontrou, segundo Pico De lia 
Minmdola, umn única criatura a partir da qual o homem pudesse ser 
modelado, um único lugar que o homem pudes:;e ocupar definitivamente 
para daí contemplar o esplendor do Universo. Todos os sítios c 
possibilidades da natureza já estavum ocupados e preenchidos. Por 
fim. o grande Criador inventou este ser "a quem nada pertence 
naturalmente''. Ele recebeu (l homem como uma criatura de "natureza 
indeterminada" para colocá-lo no centro do Universo dizendo: 
22 
Ó Aó~o . não te demos nem um lu~ar determinado, nem um aspecto que 
te scj;J próprio, nem tarefa nlguma específica. a fi m de que obtenhas c 
po~~uas aquele lugar. aquele aspcl·to. <UJnela tarefa que lu seguramente 
dc~cjarcs. tudo segundo o teu parecer c a tua decisão. A natureza bem 
llefinida dns outros seres é rcfrcada pur lei~ por nós prescritas. Tu. 
pelo comr.írio. não cnnslrangido por nenhuma limitação. dctermína-Ja-
;)s par.t ti. segundo o teu arhítriu. a cujo poder te entreguei. Coloquei-te 
nn meio do muoon para que daí rx'ssa.o; olhar melhor tudo que há no 
mumJn. Nàulc fizemos celeste nem Lerrcn<l . nem monal nem inwrtal. a 
lim de que tu. ;írhilm c sohcrano. art ífice de li me~mo. te plasmas.~es e 
l c inf"nrmasses. n;l form<l que tiv~scs seguramente escolhido. Poderás 
degenerar .ué ns seres que são as bestas, poderá~ regenerar-te até as 
realidades superiores que são divinns. por dcd s3n de teu ânimo. Clbid.; 
1> • .í2) 
Convém desde logo assinalar a curiosa t.:onccpção de 'centro do 
mundo' expressa neste texto. Embora numa rrimcirctleitura pudéssemos 
reconhecer nus palavras de Gi ovanni Pico o antigo geo c 
tmtrnpoccntrismo aristotélico-cristão. o autor, na verdade, destituiu o 
centro de sua dimensão ontológif.:a: o centro é ngora o lugar daquele 
que tudo pode mas nada é, o lugar privilegi ado do não-ser. O centro 
está, assim. ocupado pelo tu'io. e esta ncgatividadc estrategicamente 
localizada acabará dcscstahilizando tudo o Universo c superando a 
possihilidadc de cnnccOê-lo na forma fechada c perfeita do círculo. E..;tá 
sendo preparado o terreno para a nova astronomia de Copérnico e para 
a extcnsãn metafísica desta astmnnmia na concepção do Universo 
inlinitu de Giordano Bruno ( I 54N-1 6Cl0). Universo definitivamente 
desccntrado (c f. Koyré. 1979). Nas próprias palavras de Bruno ([ 1584) 
1978): 
. .. existe um campo inlini tQ c um espm;n continente que compreende c 
penetra tudo. Nele se encontram inllnitos C<lrpos semelhantes. não 
estando nenhum deles mais no centro dn univcr~o \lUC os outrns. porque 
11 univcP.'o é inriníLu c. pcmanto. ~m centro c sem margens. 
O homem. como pura negalívidade c possibilidade de escolha. 
que nasce sem natureza certa c hnhita um mundo infinitamente aberto 
ao seu engenho c arte. deve se preocupar. desde o momento em que 
m1scc. sobretudo C()lll isso: sua fibcrd<tdc c sua destinação; deve 
depender sempre mais de sua " consciência do que do juízo dos 
23 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
outros". mas deve ser capaz de estabelecer contato com todos os outros 
para neste confronto construir sua própria identidade. 
É es te mesmo homem que, embora associado à idéia da posição 
intermediária, encontramos no texto que em 1516 Pietro Pomponazzi 
(1462- 1525), da escola aristot~lica de Pádua, escreveu, sobre a 
imortalidade da alma: 
O homem não é certamente de uma natureza simples, mas múltipla, de 
uma nawreza certa, mas ambígua ( ... ) ele não é puramente temporal nem 
puramente eterno, desde que compartilha ambas as naturezas. E para o 
homem que assim existe como uma média mtre as duas, é dado o potkr 
de assMmir qualquer/latw·t!w que deseje. ([1516 1 1977; p. 393- irifo 
meu) 
A ambigüidade da natureza humana impl.ica imediatamente seu 
desenrai zamento do mundo das coi sas e seres naturalmente 
detenninados. "perfeitos em seu sentido e perfeitos para cs sentidos". 
Os temas do homem livre, sem raízes, viajante e exilado, encarnam-se 
nas experiências da maioria das grandes figuras do século XVI e 
realiutm-se paradigmacicamente nas trajetórias de pensamento e vida 
de Giordano Bruno, o grande arauto do Universo sem limites (cf. Dilthey 
[1914] 1978) que afirmou: "Não há fins, termos, limites ou muralhas que 
nos possam usurpar a multidão infinita das coisas ou privar-nos delas". 
Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das 
virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade. É 
ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem arrimos nem 
garantias. E, finalmente, o espaço insólito da ignorância, d a ilusl o, do 
erro, da d~vida e da suspeita. 
Poucos homens escapam às incertezas deste espaço e às suas 
ameaças. Alguns, "tendo subjugado a vida vegetativa e sensitiva, 
tornam-se quase que só racionais". Pomponazzí sabe muito bem que 
estes são raros. "Alguns. pela total negligência do intelecto e se 
ocupando tão-somente do vegetativo c do sensitivo convertem-se em 
animais." Para estes, de fato, o tem tório da liberdade e da virtude está 
fechado. A grande maioria, porém, é constituída pelos "homens 
normais": •• ... nem se devotam completamente ao espírito nem se 
entregam totalmente aos poderts do corpo". É preciso reconhecer nesta 
aparente hesitaçlo do homem normal uma certa fidelidade à 
indeterminação original da sua natureza. A ele caberá a infindável, 
24 
imprecisa e arriscada tarefa de "viver toleravelmente segundo as 
virtudes morais" no solo movediço da ética. Aqui, vive-se ape nao; 
toleravelme nte porque este é exatamente o terreno das idéias nunca 
completamente claras, das escolhas nunca suficientemente justificadas, 
das opções sempre em aberto. Mais que jsso. Ao ser colocado fora da 
natureza, o homem perde a medida que lhe poderia ser imposta pelo 
reino das necessidades naturais e fica sob o império sem regras e 
limites dos seus próprios desejos. O pregador religioso e reformador 
político Savonarola (1452-1498), admirado por Pico Della M irando! a, no 
seu Tratado sobre o regime e o govenw da cidade de Florença ([ 1498} 
1991 ; p. 135) coloca a questão claramente: 
De fato o homem guloso é muito mais ávido e incomparavelmente mais 
insaciável que rodos os animais. não lhe sendo suficientes todos os 
alimentos nem todos os modos de cozinhar no mundo; o homem não 
procura satisfazer a sua natureza, mas o seu tksejo dese/Jfreado ( ... ) 
Do mesmo modo supera rodos os animais na bestialidade da luxúria, 
pois. ao contrário odos animais, não observa os tempos nem os modos 
devidos( ... ) Também os supera na crueldade ... * (Grifo meu ) 
Caberá aos homens, nesta medida, instituir suas próprias leis e 
se colocarem sob o jugo do que lhes pareça um bom governo. 
É fácil reconhecer todos estes temas e concepções a.tlorando 
regularmente ao longo da história da modernidade e se expressando, 
por exemplo, nos pensadores existencialistas dos séculos XIX e XX. 
O otimismo, contudo, nem sempre permanece. O que foi um dia motivo 
de honra e dignidade tem s ido freqüentemente uma carga a ser 
suportada. Mais que isso: foram e são inúmeras as tentativas de nos 
livrarmos dela. Sistemas fil osóficos, dispositivos: macro e 
micropolíticos, saberes científicos e outros foram mobilizados, seja para 
descobrir no homem uma natureza e uma identidade, seja para lhes 
impor uma e outra. Nestas tentativas, o espaço das virtudes morais 
era algumas vezes brutalmente fechado pelas práticas e discursos 
teológicos, econômicos, polfticos e, mais recentemente, científicos e 
tecnológicos. Freqüenteme!lle, este espaço era reduzido e confinado• Creio ndo ser ab~urdo ver n.:sta afirmaçllo de Savonarola uma precisa anteci · 
pa-;Ao do que: a psicanálise reconhecer' como a diferença especffko da se•uali· 
dade humana em relaçao à vida inscint iv:1 dos animais. 
25 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
outros". mas deve ser capaz de estabelecer contato com todos os outros 
para neste confronto construir sua própria identidade. 
É es te mesmo homem que, embora associado à idéia da posição 
intermediária, encontramos no texto que em 1516 Pietro Pomponazzi 
(1462- 1525), da escola aristot~lica de Pádua, escreveu, sobre a 
imortalidade da alma: 
O homem não é certamente de uma natureza simples, mas múltipla, de 
uma nawreza certa, mas ambígua ( ... ) ele não é puramente temporal nem 
puramente eterno, desde que compartilha ambas as naturezas. E para o 
homem que assim existe como uma média mtre as duas, é dado o potkr 
de assMmir qualquer/latw·t!w que deseje. ([1516 1 1977; p. 393- irifo 
meu) 
A ambigüidade da natureza humana impl.ica imediatamente seu 
desenrai zamento do mundo das coi sas e seres naturalmente 
detenninados. "perfeitos em seu sentido e perfeitos para cs sentidos". 
Os temas do homem livre, sem raízes, viajante e exilado, encarnam-se 
nas experiências da maioria das grandes figuras do século XVI e 
realiutm-se paradigmacicamente nas trajetórias de pensamento e vida 
de Giordano Bruno, o grande arauto do Universo sem limites (cf. Dilthey 
[1914] 1978) que afirmou: "Não há fins, termos, limites ou muralhas que 
nos possam usurpar a multidão infinita das coisas ou privar-nos delas". 
Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das 
virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade. É 
ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem arrimos nem 
garantias. E, finalmente, o espaço insólito da ignorância, d a ilusl o, do 
erro, da d~vida e da suspeita. 
Poucos homens escapam às incertezas deste espaço e às suas 
ameaças. Alguns, "tendo subjugado a vida vegetativa e sensitiva, 
tornam-se quase que só racionais". Pomponazzí sabe muito bem que 
estes são raros. "Alguns. pela total negligência do intelecto e se 
ocupando tão-somente do vegetativo c do sensitivo convertem-se em 
animais." Para estes, de fato, o tem tório da liberdade e da virtude está 
fechado. A grande maioria, porém, é constituída pelos "homens 
normais": •• ... nem se devotam completamente ao espírito nem se 
entregam totalmente aos poderts do corpo". É preciso reconhecer nesta 
aparente hesitaçlo do homem normal uma certa fidelidade à 
indeterminação original da sua natureza. A ele caberá a infindável, 
24 
imprecisa e arriscada tarefa de "viver toleravelmente segundo as 
virtudes morais" no solo movediço da ética. Aqui, vive-se ape nao; 
toleravelme nte porque este é exatamente o terreno das idéias nunca 
completamente claras, das escolhas nunca suficientemente justificadas, 
das opções sempre em aberto. Mais que jsso. Ao ser colocado fora da 
natureza, o homem perde a medida que lhe poderia ser imposta pelo 
reino das necessidades naturais e fica sob o império sem regras e 
limites dos seus próprios desejos. O pregador religioso e reformador 
político Savonarola (1452-1498), admirado por Pico Della M irando! a, no 
seu Tratado sobre o regime e o govenw da cidade de Florença ([ 1498} 
1991 ; p. 135) coloca a questão claramente: 
De fato o homem guloso é muito mais ávido e incomparavelmente mais 
insaciável que rodos os animais. não lhe sendo suficientes todos os 
alimentos nem todos os modos de cozinhar no mundo; o homem não 
procura satisfazer a sua natureza, mas o seu tksejo dese/Jfreado ( ... ) 
Do mesmo modo supera rodos os animais na bestialidade da luxúria, 
pois. ao contrário odos animais, não observa os tempos nem os modos 
devidos( ... ) Também os supera na crueldade ... * (Grifo meu ) 
Caberá aos homens, nesta medida, instituir suas próprias leis e 
se colocarem sob o jugo do que lhes pareça um bom governo. 
É fácil reconhecer todos estes temas e concepções a.tlorando 
regularmente ao longo da história da modernidade e se expressando, 
por exemplo, nos pensadores existencialistas dos séculos XIX e XX. 
O otimismo, contudo, nem sempre permanece. O que foi um dia motivo 
de honra e dignidade tem s ido freqüentemente uma carga a ser 
suportada. Mais que isso: foram e são inúmeras as tentativas de nos 
livrarmos dela. Sistemas fil osóficos, dispositivos: macro e 
micropolíticos, saberes científicos e outros foram mobilizados, seja para 
descobrir no homem uma natureza e uma identidade, seja para lhes 
impor uma e outra. Nestas tentativas, o espaço das virtudes morais 
era algumas vezes brutalmente fechado pelas práticas e discursos 
teológicos, econômicos, polfticos e, mais recentemente, científicos e 
tecnológicos. Freqüenteme!lle, este espaço era reduzido e confinado 
• Creio ndo ser ab~urdo ver n.:sta afirmaçllo de Savonarola uma precisa anteci · 
pa-;Ao do que: a psicanálise reconhecer' como a diferença especffko da se•uali· 
dade humana em relaçao à vida inscint iv:1 dos animais. 
25 
Mônica
Realce
às esferas cada vez mais fntimas da privacidade. Estas esferas iam 
ganhando, assim, uma densidade e profundidade novas. Experiências 
radicalmente subjetivas e individuais estavam sendo, desta maneira, 
historicamente constituídas como objetos de cogitação e 
conhecimento. Já pertencem, de fato , ao século XVI inúmeras 
afirmações que. como as do humanista espanhol de inspiração 
erusmiana Iuan de Valdéli {I S00-1541 ). assinalam o privilég.io do mundo 
privado como objeto de pesquisa: 
Enquanto o homem estuda meramente nos livros de outros. entra em 
contato com a mente ~ seus autor~ e não com a sua própria. Porém. 
como é dever do cri~tão conhecer a :r;i mesmo ( ... ) tenho o costume de 
dizer que o estudo apropriado ao cristão deveria ser o seu prâprío livrn. 
1Valdés. 1535; p. 727J 
De variada.-; maneiras, a história dos estudos psicológicos está 
entrelaçada à história da modernidade e às suas vicissitudes. São 
múltipla-; as relações da-; 'psicologias' com os movimentos de expansão 
e, ptincipalmente, como veremos, de retraimento do espaço das virtudes 
morais, pois foi exatamente deste duplo movimento que nasceu o 
'psicológico'. 
Os ensaios que se seguem tratam destas ques tões. Mais 
particulannente, tratam de compreender alguns momentos do processo 
histórico que preparou o terreno parn n emergência dos projetos de 
psicologia como área especflica c autônoma de conhecimento. 
26 
UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA 
A multiplicação das vozes 
"Não sei como se pode desejar 
viver. sendo tudo tão incerto." 
Sallta Tuesa d·Ávila 
"Non podrio anar plus mau. 
Nyga Nyga Nyga." 
Ca11çélo tmn•tmçal do sécttl() XVI 
Na segunda metade do século XVI a Antuérpia era um dos 
maiores. senão u maior. centro comercial c financeiro da Europa e 
também ocupava uma posição deslocada na produção manufatureíra. 
Em I 560 o diplomata florentino Ludovico Guiccíardini ( 1523- 1589) 
re latou suas observaçfles sobre a vida nesta cidade. Guicciardini, em 
primeiro lugar. contempla as orientações políticas que pennitirarn e 
estimularam o extraordinário desenvolvimento material da Antuérpia. 
Aqui. porém. vou me ater às características socioculturais assinaladas 
por ele. 
Há riqueza, há fausto, há suntuosidade na vida social burguesa: 
"Podem-se ouvir a toda..; as horas, bnda.c;, fcs1ins c danças. Pode-se 
ouvir em toda parte o som dos instrumentos e o burburinho dos 
encontros ulcgrcs". '(cf. Guicciaróini I 1567) 19RO; p. 189) 
Não se lrata, porém. a(lenas de uma sociedade produtiva e 
diligente. mas também festiva c agitada. Antuérpia é, antes de mais 
nada. uma cidade que cresce sob o impulso de elementos estrangeiros. 
É um núcleo de convergência c difusão das atividades econômicas e 
fiMncciras em escala mundial. Vem a ser, igualmente, um campo de 
expcriênci~ cultur.:~is extremamente rica..; e diversificadas: 
27 
Mônica
Realce
às esferas cada vez mais fntimas da privacidade. Estas esferas iam 
ganhando,assim, uma densidade e profundidade novas. Experiências 
radicalmente subjetivas e individuais estavam sendo, desta maneira, 
historicamente constituídas como objetos de cogitação e 
conhecimento. Já pertencem, de fato , ao século XVI inúmeras 
afirmações que. como as do humanista espanhol de inspiração 
erusmiana Iuan de Valdéli {I S00-1541 ). assinalam o privilég.io do mundo 
privado como objeto de pesquisa: 
Enquanto o homem estuda meramente nos livros de outros. entra em 
contato com a mente ~ seus autor~ e não com a sua própria. Porém. 
como é dever do cri~tão conhecer a :r;i mesmo ( ... ) tenho o costume de 
dizer que o estudo apropriado ao cristão deveria ser o seu prâprío livrn. 
1Valdés. 1535; p. 727J 
De variada.-; maneiras, a história dos estudos psicológicos está 
entrelaçada à história da modernidade e às suas vicissitudes. São 
múltipla-; as relações da-; 'psicologias' com os movimentos de expansão 
e, ptincipalmente, como veremos, de retraimento do espaço das virtudes 
morais, pois foi exatamente deste duplo movimento que nasceu o 
'psicológico'. 
Os ensaios que se seguem tratam destas ques tões. Mais 
particulannente, tratam de compreender alguns momentos do processo 
histórico que preparou o terreno parn n emergência dos projetos de 
psicologia como área especflica c autônoma de conhecimento. 
26 
UMA SANTA CATÓLICA NA IDADE DA POLIFONIA 
A multiplicação das vozes 
"Não sei como se pode desejar 
viver. sendo tudo tão incerto." 
Sallta Tuesa d·Ávila 
"Non podrio anar plus mau. 
Nyga Nyga Nyga." 
Ca11çélo tmn•tmçal do sécttl() XVI 
Na segunda metade do século XVI a Antuérpia era um dos 
maiores. senão u maior. centro comercial c financeiro da Europa e 
também ocupava uma posição deslocada na produção manufatureíra. 
Em I 560 o diplomata florentino Ludovico Guiccíardini ( 1523- 1589) 
re latou suas observaçfles sobre a vida nesta cidade. Guicciardini, em 
primeiro lugar. contempla as orientações políticas que pennitirarn e 
estimularam o extraordinário desenvolvimento material da Antuérpia. 
Aqui. porém. vou me ater às características socioculturais assinaladas 
por ele. 
Há riqueza, há fausto, há suntuosidade na vida social burguesa: 
"Podem-se ouvir a toda..; as horas, bnda.c;, fcs1ins c danças. Pode-se 
ouvir em toda parte o som dos instrumentos e o burburinho dos 
encontros ulcgrcs". '(cf. Guicciaróini I 1567) 19RO; p. 189) 
Não se lrata, porém. a(lenas de uma sociedade produtiva e 
diligente. mas também festiva c agitada. Antuérpia é, antes de mais 
nada. uma cidade que cresce sob o impulso de elementos estrangeiros. 
É um núcleo de convergência c difusão das atividades econômicas e 
fiMncciras em escala mundial. Vem a ser, igualmente, um campo de 
expcriênci~ cultur.:~is extremamente rica..; e diversificadas: 
27 
Mônica
Realce
Direi que na AntuéJpia há, em primeiro lugar, além do povo do pafs 
que em grande n6mero para aqui vem e habita, e além dos franceses que 
em tempos de paz vêm aqui diariamente, seis nacionalidades principai:s 
que aqui residem tanto na paz como na guerra e que incluem mais de 
mil comerciantes e seus principais administradores e assistentes. Há 
alemães, dinamarqueses. junto a mercadores ingleses e porcugueses ... 
Todos estes mercadores observam as leis e ordenamentos da cidade; no 
mais conduzem-se, vestem-se e vivem livremente conforme seus desejos. 
Na verdade, há na Antuérpia e em todos os pafses baixos mais liberdade 
para estrangeiros do que em qualquer outra parte do mundo. É assim 
maravilhoso ver tal mistura de homens e ainda mais maravilhoso ouvir 
tal variedade de lfnguas tão diferentes umas das outras, de forma que, 
se for do desejo. pode-se aqui, sem viajar, imitar a natureza, modo de 
vida e costumes de muitas nações. (lbíd.; p. I 89) 
Os nativos não se fazem de rogados: 
Os habitantes desta cidade estão, na maior pàrte, metidos no comércio 
( ... ) Eles são corteses. civis, engenhosos, rápidos para imitar os 
estrangeiros e para se casar com eles. São capazes de morar e fazer 
negócios em qualquer parte do mundo. Muitos deles, e até as mulheres 
( ... ),sabem falar três ou quatro lfnguas, para não mencionar os que falam 
cinco, seis ou até sete. (lbid.; p. 187) 
É esta coexistência de línguas, modos e costumes diversos que 
me levou a escolher o caso da Antuérpia para nos introduzir numa das 
principais dimensões da vida quinhentista: a multiplicação das vozes. 
Outros grandes centros financeiros, comerciais e manufatureiros, como 
Florença, Veneza ou Lyon, ou centros político-religiosos como Roma. 
poderiam ter sido escolhidos, igualmente. 
De fato, o crescimento das atividades comerciais e os projetos 
de expansão da cristandade, por um lado, e o renovado interesse pelos 
textos sacros e filosóficos nas suas versões originais, por outro, já no 
século XIII tinham levado Roger Bacon (1214-1292) a insistir, na sua 
Opus maius, no estudo das línguas. dando para isso uma grande 
variedade de razões teóricas e práticas. Sabe-se, também, que a 
expansão do comércio ultramarino e a polftica colonialista de Portugal 
haviam determinado a necessidade de se considerar o estudo das 
línguas como essencial no campo das grandes navegações. O contato 
europeu com a Ásia, África e América. durante muito tempo a cargo 
28 
de portugueses e, Jogo depois, espanhóis, não apenas alterou hábitos 
de toda a espécie na Europa (por exemplo, a difusão do tabagismo) 
como colocou frente a frente vozes e falas absolutamente distintas, 
trazendo, inclusive, para o português, tennos populares como 'sacana' 
e 'banzé'. importados do Japão (cf. Barreto, 1989). 
Não é por acaso que os estudos filológicos e os procedimentos 
hennenêuticos ganharam enonne relevo na cultura humanista (cf. 
Dihhey [ 1914] 1978). É necessário conviver com outras línguas, sejam 
as das literaturas antigas, o hebreu, o grego e o latim, sejam as línguas 
exóticas de outras civilizações, como o árabe e as línguas asiáticas, 
sejam as dos selvagens africanos e americanos. É preciso saber 
aproximar-se de falantes antigos, remotos e radicalmente distintos, 
alguns dos quais são mesmo concebidos como nãofalantes, dada a 
sua radical diferença em relação ao europeu (c f. Todorov, 1983; cap. 3). 
É preciso um esforço intenso e disciplinado para enfrentar os 
conflitos de interpretação inerentes a uma atividade generalizada de 
tradução imposta pela multifacetada descoberta da alteridade intra e 
ex.tra-européia. A amena convivência da Antuérpia não é a regra e, 
mesmo Já, está sujeita a reveses motivados pelas lutas religiosas. Os 
mal-entendidos proliferam e freqüentemente se transformam em 
contendas mais ou menos sérias, tanto nos terrenos teóricos da 
filosofia, ciências e teologia, como nos terrenos práticos dos costumes, 
da organização poUtica e religiosa, do comércio etc. O século XVI, sem 
dúvida. foi um século de guerras, massacres (cf. Davis, 1990, sobre 
massacre de Lyon; e Partner, 1979, sobre massacre de Roma) e práticas 
de extennínío, como as efetuadas pelos espanhóis na América (cf. 
Todorov, 1983; cap .. 7). 
A multiplicação das vozes e a confusão das línguas encontram 
uma expressão cristalina na música contrapontista que começou ·a se 
desenvolver na Europa desde o século XI e alcançou seu apogeu no 
século XV, no estilo flamengo da composição polifônica. 1 A partir dos 
países baixos, daquela mesma Antuérpia por onde iniciamos e que na 
época pertencia ao ducado de Borgonha, a polifonia flamenga (ou 
escola borgonhesa) difundiu-se pelas cidades e cortes européias. 
Em contraposição à música sacra medieval -a voz coletiva, 
repetitiva, envolvente e funcional do cantochão -,às músicas profanas 
e danças populares e, finalmente, à música trovadoresca - em que já 
se reconhece a marca de uma individualidade em canções simples e 
29 
Direi que na AntuéJpia há, em primeiro lugar, além do povo do pafs 
que em grande n6mero para aqui vem e habita, e além dos franceses que 
em tempos de paz vêm aqui diariamente, seis nacionalidades principai:s 
que aquiresidem tanto na paz como na guerra e que incluem mais de 
mil comerciantes e seus principais administradores e assistentes. Há 
alemães, dinamarqueses. junto a mercadores ingleses e porcugueses ... 
Todos estes mercadores observam as leis e ordenamentos da cidade; no 
mais conduzem-se, vestem-se e vivem livremente conforme seus desejos. 
Na verdade, há na Antuérpia e em todos os pafses baixos mais liberdade 
para estrangeiros do que em qualquer outra parte do mundo. É assim 
maravilhoso ver tal mistura de homens e ainda mais maravilhoso ouvir 
tal variedade de lfnguas tão diferentes umas das outras, de forma que, 
se for do desejo. pode-se aqui, sem viajar, imitar a natureza, modo de 
vida e costumes de muitas nações. (lbíd.; p. I 89) 
Os nativos não se fazem de rogados: 
Os habitantes desta cidade estão, na maior pàrte, metidos no comércio 
( ... ) Eles são corteses. civis, engenhosos, rápidos para imitar os 
estrangeiros e para se casar com eles. São capazes de morar e fazer 
negócios em qualquer parte do mundo. Muitos deles, e até as mulheres 
( ... ),sabem falar três ou quatro lfnguas, para não mencionar os que falam 
cinco, seis ou até sete. (lbid.; p. 187) 
É esta coexistência de línguas, modos e costumes diversos que 
me levou a escolher o caso da Antuérpia para nos introduzir numa das 
principais dimensões da vida quinhentista: a multiplicação das vozes. 
Outros grandes centros financeiros, comerciais e manufatureiros, como 
Florença, Veneza ou Lyon, ou centros político-religiosos como Roma. 
poderiam ter sido escolhidos, igualmente. 
De fato, o crescimento das atividades comerciais e os projetos 
de expansão da cristandade, por um lado, e o renovado interesse pelos 
textos sacros e filosóficos nas suas versões originais, por outro, já no 
século XIII tinham levado Roger Bacon (1214-1292) a insistir, na sua 
Opus maius, no estudo das línguas. dando para isso uma grande 
variedade de razões teóricas e práticas. Sabe-se, também, que a 
expansão do comércio ultramarino e a polftica colonialista de Portugal 
haviam determinado a necessidade de se considerar o estudo das 
línguas como essencial no campo das grandes navegações. O contato 
europeu com a Ásia, África e América. durante muito tempo a cargo 
28 
de portugueses e, Jogo depois, espanhóis, não apenas alterou hábitos 
de toda a espécie na Europa (por exemplo, a difusão do tabagismo) 
como colocou frente a frente vozes e falas absolutamente distintas, 
trazendo, inclusive, para o português, tennos populares como 'sacana' 
e 'banzé'. importados do Japão (cf. Barreto, 1989). 
Não é por acaso que os estudos filológicos e os procedimentos 
hennenêuticos ganharam enonne relevo na cultura humanista (cf. 
Dihhey [ 1914] 1978). É necessário conviver com outras línguas, sejam 
as das literaturas antigas, o hebreu, o grego e o latim, sejam as línguas 
exóticas de outras civilizações, como o árabe e as línguas asiáticas, 
sejam as dos selvagens africanos e americanos. É preciso saber 
aproximar-se de falantes antigos, remotos e radicalmente distintos, 
alguns dos quais são mesmo concebidos como nãofalantes, dada a 
sua radical diferença em relação ao europeu (c f. Todorov, 1983; cap. 3). 
É preciso um esforço intenso e disciplinado para enfrentar os 
conflitos de interpretação inerentes a uma atividade generalizada de 
tradução imposta pela multifacetada descoberta da alteridade intra e 
ex.tra-européia. A amena convivência da Antuérpia não é a regra e, 
mesmo Já, está sujeita a reveses motivados pelas lutas religiosas. Os 
mal-entendidos proliferam e freqüentemente se transformam em 
contendas mais ou menos sérias, tanto nos terrenos teóricos da 
filosofia, ciências e teologia, como nos terrenos práticos dos costumes, 
da organização poUtica e religiosa, do comércio etc. O século XVI, sem 
dúvida. foi um século de guerras, massacres (cf. Davis, 1990, sobre 
massacre de Lyon; e Partner, 1979, sobre massacre de Roma) e práticas 
de extennínío, como as efetuadas pelos espanhóis na América (cf. 
Todorov, 1983; cap .. 7). 
A multiplicação das vozes e a confusão das línguas encontram 
uma expressão cristalina na música contrapontista que começou ·a se 
desenvolver na Europa desde o século XI e alcançou seu apogeu no 
século XV, no estilo flamengo da composição polifônica. 1 A partir dos 
países baixos, daquela mesma Antuérpia por onde iniciamos e que na 
época pertencia ao ducado de Borgonha, a polifonia flamenga (ou 
escola borgonhesa) difundiu-se pelas cidades e cortes européias. 
Em contraposição à música sacra medieval -a voz coletiva, 
repetitiva, envolvente e funcional do cantochão -,às músicas profanas 
e danças populares e, finalmente, à música trovadoresca - em que já 
se reconhece a marca de uma individualidade em canções simples e 
29 
funcionais que eram, fundamentalmente, suportes sonoros para textos 
poéticos-, a polifonia namcnga institui a dispersão e a autonomia das 
vo:t.cs (cf. Caznók. 1992). Vozes humanas e instrumentos entoam 
diferentes melod ias, às ve1.es com textos diferentes, sendo uns 
profanos e outros sagrados, uns cívicos e oulros líricos, às vezes em 
língua" diferentes e ... tudo ao mesmo tempo. Há composições escritas 
para mais de trinta vo7.cs, o que excede em muito a nossa ~pacidade 
auditiva 
A polifonia flamenga impõe uma audição horizontal; não hli uma 
clara c pennanente segregação de figura e fundo. Todas as vozes re-
cebem o mesmo status e o ouvido transita entre elas sem jamais percc-
hcr que uma se destaca u superfície enquanto as demais acompanham 
a um nível de maior profundidade. São vozes não hierarquizadas con-
correndo em condi~ões de igualdade pela atenção do ouvinte. 
As vozes falam muito. mas pouco se fazem entender em qualquer 
sentido extmmusícal. A funcionalidade sagrada ou lírica se perde junto 
às mensagens dos textos que se t<•rnam ininteligíveis. As vozes, ao se 
fazerem autônoma.o; instituem a autonomia da música em relação às 
palavras e da aud ição musical em relação às funções sociais c 
religiosa~. O que vale são os sons nas suas móveis e cambiantes 
hannonias. Há uma ênfase na composição, com tudo que o termo 
carrega de t~cnica artesanal c artifíc io. Há uma preocupação com o 
deleite sensorial. com o experimental e com o lúdico. 
O canto gregoriano tem, enquanto gênero, urna identidade tão 
bem definida que todos os cantos se parecem uns com os outros: na 
polifonia da escola horgonhcsa, não só diferentes compositores 
imprimirão seus estilos pessoais à.<i suas ohras, como a identidade foi 
de tal forma trabalhado que cada composição, no limite, não se parece 
nem consigo mesma, no sent ido de que as diversas vozes 
autonorni1.adas não conservam uma relação de peninêncin necessária 
com o todo de que fa7~m pane. Uma composição escrita para quatro 
vozes pode ser cantada a três se faltarem os elementos da quarta voz ... 
Já no fim do perfodo da polifonia renascentista, hou ve 
preocupação em codificá-la. ordenando-a segundo determinadas regras 
de composição. Mesmo aí. contudo, o tema da variação e da 
dissonância estará exercendo seu domínio. Os músicos, nos diz Zorlino 
(I 517 ·I !'i90). " ... sabem muito bem que a hannonia só pode surgir das 
30 
coisas que ~ão entre si diversas. discordantes e contrárias e não de 
coisa. o; que estão em completo acordo .. ... (( 1558) 196~ ; p. 43 ). 
É interessante acompanhar o argumento de Zarlino: 
A verdade e excelência de$te con~elho útil e admirivel silio confirmadas 
pelas nperaçtíes da Natureza que. ao cri11r os lnd!vfduos de cada cs~ie 
os faz similare~ no geral e. no entanto. diferentes em aspectos 
particulares, uma diferença ou variedauc que proporciona muito prazer 
aos nossos sentidos. (J>. 45) 
Estas palavras. vinda.-. de alguém que preza a unidade, a ordem e 
a regularidade. tomam-se ninda mais eloqüentes e representativas da 
sensi bilidade quinhentista. Revela-se nelas uma compreensão da 
natureza como fonte de variações e novidades. Imitar a nature1.a seria, 
a-.sim. proclu:ir ,.·ariar(1t!.~ e não representá-lana sua simplicidade, 
homogeneidade c uniformidade. como se pensará nos dois séculos 
seguintes. 
Heinz Kohut e Sigmund Levarie ( 1950) em um artigo intitulado 
On the cnjoyment of lislenini to music' sugerem que o prazer obtido 
numa audição musical deriva da contribuição da música para a redução 
I)U alívio da angústia produzida pelns ru(dos súbitos e di sruptivos ou 
pelos ruídos monótonos e repetitivos. Desde o nascimento-. o indivíduo 
é invadido e penurbado pelo mundo sonoro contra o qual há poucas 
defesas realmente etícazes. As fonnas mullicais, melódicas, rítmicas e 
harmt'mica.~ seriam defesas. na medida em que são capazes de dar 
sentido ao mundo dos sons, organizando-o, despojando-o de sua 
fis itmomia ameaçadora, c;onvcncndo-o em um ambiente acolhedor. 
protetor, continente. De uma certa forma, 6 como se a mú~ica nos 
pudesse envolver, reduzindo nossa sensibilidade ao ruído a essa 
presença inv~iva e aterradora do mundo. 
Assumindo como hipótese que Kohut e Levarie estejam com a 
razão, pode-se bem imaginar que mundo era aquele em que o estilo 
tlamcngo de polifonia alcançou seu apogeu e no qual as 'defesas 
musicnjs' contra a angústia acústica eram ohrllS que nos séculos 
seguintes fonun muilas vezes condenadas como puro sem sentido. No 
.século XVIII. por exemplo, D' Alcmhcrt não deixa dúvidas sobre como 
lhe soava o contraponro renascentista " ... esta música assustadora 
[étmmlisJautel que(. .. ) se assemelha a uma conver.;a descosida aonde 
31 
funcionais que eram, fundamentalmente, suportes sonoros para textos 
poéticos-, a polifonia namcnga institui a dispersão e a autonomia das 
vo:t.cs (cf. Caznók. 1992). Vozes humanas e instrumentos entoam 
diferentes melod ias, às ve1.es com textos diferentes, sendo uns 
profanos e outros sagrados, uns cívicos e oulros líricos, às vezes em 
língua" diferentes e ... tudo ao mesmo tempo. Há composições escritas 
para mais de trinta vo7.cs, o que excede em muito a nossa ~pacidade 
auditiva 
A polifonia flamenga impõe uma audição horizontal; não hli uma 
clara c pennanente segregação de figura e fundo. Todas as vozes re-
cebem o mesmo status e o ouvido transita entre elas sem jamais percc-
hcr que uma se destaca u superfície enquanto as demais acompanham 
a um nível de maior profundidade. São vozes não hierarquizadas con-
correndo em condi~ões de igualdade pela atenção do ouvinte. 
As vozes falam muito. mas pouco se fazem entender em qualquer 
sentido extmmusícal. A funcionalidade sagrada ou lírica se perde junto 
às mensagens dos textos que se t<•rnam ininteligíveis. As vozes, ao se 
fazerem autônoma.o; instituem a autonomia da música em relação às 
palavras e da aud ição musical em relação às funções sociais c 
religiosa~. O que vale são os sons nas suas móveis e cambiantes 
hannonias. Há uma ênfase na composição, com tudo que o termo 
carrega de t~cnica artesanal c artifíc io. Há uma preocupação com o 
deleite sensorial. com o experimental e com o lúdico. 
O canto gregoriano tem, enquanto gênero, urna identidade tão 
bem definida que todos os cantos se parecem uns com os outros: na 
polifonia da escola horgonhcsa, não só diferentes compositores 
imprimirão seus estilos pessoais à.<i suas ohras, como a identidade foi 
de tal forma trabalhado que cada composição, no limite, não se parece 
nem consigo mesma, no sent ido de que as diversas vozes 
autonorni1.adas não conservam uma relação de peninêncin necessária 
com o todo de que fa7~m pane. Uma composição escrita para quatro 
vozes pode ser cantada a três se faltarem os elementos da quarta voz ... 
Já no fim do perfodo da polifonia renascentista, hou ve 
preocupação em codificá-la. ordenando-a segundo determinadas regras 
de composição. Mesmo aí. contudo, o tema da variação e da 
dissonância estará exercendo seu domínio. Os músicos, nos diz Zorlino 
(I 517 ·I !'i90). " ... sabem muito bem que a hannonia só pode surgir das 
30 
coisas que ~ão entre si diversas. discordantes e contrárias e não de 
coisa. o; que estão em completo acordo .. ... (( 1558) 196~ ; p. 43 ). 
É interessante acompanhar o argumento de Zarlino: 
A verdade e excelência de$te con~elho útil e admirivel silio confirmadas 
pelas nperaçtíes da Natureza que. ao cri11r os lnd!vfduos de cada cs~ie 
os faz similare~ no geral e. no entanto. diferentes em aspectos 
particulares, uma diferença ou variedauc que proporciona muito prazer 
aos nossos sentidos. (J>. 45) 
Estas palavras. vinda.-. de alguém que preza a unidade, a ordem e 
a regularidade. tomam-se ninda mais eloqüentes e representativas da 
sensi bilidade quinhentista. Revela-se nelas uma compreensão da 
natureza como fonte de variações e novidades. Imitar a nature1.a seria, 
a-.sim. proclu:ir ,.·ariar(1t!.~ e não representá-la na sua simplicidade, 
homogeneidade c uniformidade. como se pensará nos dois séculos 
seguintes. 
Heinz Kohut e Sigmund Levarie ( 1950) em um artigo intitulado 
On the cnjoyment of lislenini to music' sugerem que o prazer obtido 
numa audição musical deriva da contribuição da música para a redução 
I)U alívio da angústia produzida pelns ru(dos súbitos e di sruptivos ou 
pelos ruídos monótonos e repetitivos. Desde o nascimento-. o indivíduo 
é invadido e penurbado pelo mundo sonoro contra o qual há poucas 
defesas realmente etícazes. As fonnas mullicais, melódicas, rítmicas e 
harmt'mica.~ seriam defesas. na medida em que são capazes de dar 
sentido ao mundo dos sons, organizando-o, despojando-o de sua 
fis itmomia ameaçadora, c;onvcncndo-o em um ambiente acolhedor. 
protetor, continente. De uma certa forma, 6 como se a mú~ica nos 
pudesse envolver, reduzindo nossa sensibilidade ao ruído a essa 
presença inv~iva e aterradora do mundo. 
Assumindo como hipótese que Kohut e Levarie estejam com a 
razão, pode-se bem imaginar que mundo era aquele em que o estilo 
tlamcngo de polifonia alcançou seu apogeu e no qual as 'defesas 
musicnjs' contra a angústia acústica eram ohrllS que nos séculos 
seguintes fonun muilas vezes condenadas como puro sem sentido. No 
.século XVIII. por exemplo, D' Alcmhcrt não deixa dúvidas sobre como 
lhe soava o contraponro renascentista " ... esta música assustadora 
[étmmlisJautel que(. .. ) se assemelha a uma conver.;a descosida aonde 
31 
todo mundo fala ao mesmo tempo" (D'Aiembert, 1777; apud Bardez, 
1980; p. 36). 
Ainda agora, ao empreender a redação deste ensaio, algo daquele 
mundo caótico se tornará presente, impondo-se ao próprio texto como 
um princípio de (des)estruturação que o converterá, às vezes. numa 
coleção de notas avulsas. 
A variedade das coisas 
A multiplicação das vozes nos levou à questão da variedade e 
da diferença. Poderia prosseguir neste filão comentando textos da 
época, a começar por aquele, de Girolamo Cardano, que se intitula 
exatamente De varietate rerum ( 1556). No entanto, vou reservar a obra 
deste m~ico, matemáüco e homem de letras p~ um outro momento. 
Talvez, mais convincente do que qualquer leitura seria uma visita 
ao armazém geral português dirigido por João de Barros. 
João de Barros ( 1496-1570), além de ter sido um dos grandes 
cull i v adores da historiografia renascentista, exerceu funções 
administrativas e empresariais. Durante alguns anos foi tesoureiro da 
Casa da Índia, Mina e Ceuta. 
Neste lapso de tempo lhe passaram pela mio 893 :975 $ 235 reais, 
quantias recebidas dos tesoureiros da Casa da fndia. provenientes dos 
seauros pelos contratadores e mercadores da pimenta e especiarias 
carreaadas parn Aandres; provenientes do contrato do coral e pedra 
hume. Pelas suas mãos passou o algofar aos marcos, almíscar e aljala; 
quintais de cobre, arrobas de manilhas de latão, peças de escravos, peças 
de albanil e ayquês, varas de canhamaço, arráteis de marfim, côvados 
de veludo etc. (Bailo, 1.552; p. XIX) 
Mas deixemos João de Barros entregue às suas contas para 
entrarmos, finalmente, no grande empório: 
32 
Por poderosa que seja a memória, cansa-se em pintar lodo esse colorido 
e multif9J11le armazém, único em toda a Europa ( ... ) Que exposiçlo dearte ornamental nlo trnhamos! Que museu de zoologia, mineralogia e 
botAnica das regiões africanas c asiiticas! Que lindíssimas louças da 
China! Que esp~ndidos con1adores marcherados! Que suntuosos troços 
de marfim! Que ourivesarias nunca vistas ... 
Além destes objetos, creio que muita da populaçio estranhíssima que 
nossos galeões traziam a Portugal, quer como escravaria, quer como 
amoma, se havia de topar nas arcadas e vestíbulos daquele palácio de 
preciosidades: já o Etfope relinto, já o Cafre acobreado, já o fndio vestido 
de sedas, todos aqui destenados, chorando as lágrimas da nostalgia, tão 
vendidos entre nós como seus patrkios papagaios, sagüis e elefantes. 
(lbid.; p. XX) 
Desta assombrosa variedade não fica excluída aquela variedade 
de línguas, por onde entramos no século XVI. 
Antonio de Souza Macedo, espírito arguto e observador. conta ter visto 
em Lisboa, na Casa da Índia, dois moços provindos de certa tribo de 
Cafre perto do Cabo da Boa Esperança e que muito o espantaram pelo 
motivo seguinte: na dita tribo ou nação a fala com que os naturais se 
comunicavam não era a voz, era um sistema especial de estalidos com a 
lfngua. (lbid.; p. XXI) 
Nos domínios administrativos de João de Barros temos, assim, 
não só amostras de todo o mundo vegetal, mineral e cultural em sua 
exótica variedade, mas temos todos os seres, coisas e homens, extra(dos 
de seus 'lugares naturais' - para me expressar na terminologia 
aristotélico-tomista, perfeitamente adequada, de resto, para representar 
o universo fechado de identidades estáveis. Agora, destitufdos de toda 
naturalidade, estão ali expostos à convivência uns dos outros sem que 
nada de orgdnico os ligue, mas também sem que nada naturalmente 
os possa separar; todos reduzidos à condição de mercadoria numa 
prateleira ou vitrine. 
É a variedade em estado puro, já que as 'peças' estão 
desarticuladas de seus contextos e despojadas de suas 'razões de ser'. 
Enquanto mercadorias , contudo, as peças são submetidas a um 
processo de homogeneização que as mistura, confunde e as torna 
trocáveis umas pelas outras. As grandes questões do século XVI 
articulam-se em tomo das duas tarefas que tanto devem ter ocupado o 
tesoureiro João de Barros: como' manter tantas várias coisas juntas e 
como impedir que se confundam e misturem? 
Há algo de maravilhoso e inquietante na infinitude das variações. 
O que se pode esperar legitimamente de um mundo infinitamente 
diverso e surpreendente? Tudo. A credulidade e a liberdade de 
imaginação do homem renascentista não devem ser julgadas a partir 
33 
todo mundo fala ao mesmo tempo" (D'Aiembert, 1777; apud Bardez, 
1980; p. 36). 
Ainda agora, ao empreender a redação deste ensaio, algo daquele 
mundo caótico se tornará presente, impondo-se ao próprio texto como 
um princípio de (des)estruturação que o converterá, às vezes. numa 
coleção de notas avulsas. 
A variedade das coisas 
A multiplicação das vozes nos levou à questão da variedade e 
da diferença. Poderia prosseguir neste filão comentando textos da 
época, a começar por aquele, de Girolamo Cardano, que se intitula 
exatamente De varietate rerum ( 1556). No entanto, vou reservar a obra 
deste m~ico, matemáüco e homem de letras p~ um outro momento. 
Talvez, mais convincente do que qualquer leitura seria uma visita 
ao armazém geral português dirigido por João de Barros. 
João de Barros ( 1496-1570), além de ter sido um dos grandes 
cull i v adores da historiografia renascentista, exerceu funções 
administrativas e empresariais. Durante alguns anos foi tesoureiro da 
Casa da Índia, Mina e Ceuta. 
Neste lapso de tempo lhe passaram pela mio 893 :975 $ 235 reais, 
quantias recebidas dos tesoureiros da Casa da fndia. provenientes dos 
seauros pelos contratadores e mercadores da pimenta e especiarias 
carreaadas parn Aandres; provenientes do contrato do coral e pedra 
hume. Pelas suas mãos passou o algofar aos marcos, almíscar e aljala; 
quintais de cobre, arrobas de manilhas de latão, peças de escravos, peças 
de albanil e ayquês, varas de canhamaço, arráteis de marfim, côvados 
de veludo etc. (Bailo, 1.552; p. XIX) 
Mas deixemos João de Barros entregue às suas contas para 
entrarmos, finalmente, no grande empório: 
32 
Por poderosa que seja a memória, cansa-se em pintar lodo esse colorido 
e multif9J11le armazém, único em toda a Europa ( ... ) Que exposiçlo de 
arte ornamental nlo trnhamos! Que museu de zoologia, mineralogia e 
botAnica das regiões africanas c asiiticas! Que lindíssimas louças da 
China! Que esp~ndidos con1adores marcherados! Que suntuosos troços 
de marfim! Que ourivesarias nunca vistas ... 
Além destes objetos, creio que muita da populaçio estranhíssima que 
nossos galeões traziam a Portugal, quer como escravaria, quer como 
amoma, se havia de topar nas arcadas e vestíbulos daquele palácio de 
preciosidades: já o Etfope relinto, já o Cafre acobreado, já o fndio vestido 
de sedas, todos aqui destenados, chorando as lágrimas da nostalgia, tão 
vendidos entre nós como seus patrkios papagaios, sagüis e elefantes. 
(lbid.; p. XX) 
Desta assombrosa variedade não fica excluída aquela variedade 
de línguas, por onde entramos no século XVI. 
Antonio de Souza Macedo, espírito arguto e observador. conta ter visto 
em Lisboa, na Casa da Índia, dois moços provindos de certa tribo de 
Cafre perto do Cabo da Boa Esperança e que muito o espantaram pelo 
motivo seguinte: na dita tribo ou nação a fala com que os naturais se 
comunicavam não era a voz, era um sistema especial de estalidos com a 
lfngua. (lbid.; p. XXI) 
Nos domínios administrativos de João de Barros temos, assim, 
não só amostras de todo o mundo vegetal, mineral e cultural em sua 
exótica variedade, mas temos todos os seres, coisas e homens, extra(dos 
de seus 'lugares naturais' - para me expressar na terminologia 
aristotélico-tomista, perfeitamente adequada, de resto, para representar 
o universo fechado de identidades estáveis. Agora, destitufdos de toda 
naturalidade, estão ali expostos à convivência uns dos outros sem que 
nada de orgdnico os ligue, mas também sem que nada naturalmente 
os possa separar; todos reduzidos à condição de mercadoria numa 
prateleira ou vitrine. 
É a variedade em estado puro, já que as 'peças' estão 
desarticuladas de seus contextos e despojadas de suas 'razões de ser'. 
Enquanto mercadorias , contudo, as peças são submetidas a um 
processo de homogeneização que as mistura, confunde e as torna 
trocáveis umas pelas outras. As grandes questões do século XVI 
articulam-se em tomo das duas tarefas que tanto devem ter ocupado o 
tesoureiro João de Barros: como' manter tantas várias coisas juntas e 
como impedir que se confundam e misturem? 
Há algo de maravilhoso e inquietante na infinitude das variações. 
O que se pode esperar legitimamente de um mundo infinitamente 
diverso e surpreendente? Tudo. A credulidade e a liberdade de 
imaginação do homem renascentista não devem ser julgadas a partir 
33 
do modelo de cultura 'científica' dos séculos posteriores; elas não são 
índices de ingenuidade e ausência de espírito crítico. São fonnas 
maduras e tolerantes de relação com a diferença, as mais ajustadas a 
este momento particular de abertura do mundo. É apenas aparente a 
contradição entre a percepção apurada dos seres, que faz do século 
XVl um marco na história dos estudos anatômicos como. por exemplo, 
os levados a cabo por V ~lius ( 1514-1564) e a imaginação sem freios. 
A abertura do mundo e a abertura para um mundo em expansão 
implicam, simultaneamente, a ênfase na observaçlo exata e a liberdade 
imaginativa. Nào seria poss(vel a percepção da difet;nça se não fosse 
precedida por uma intensa atividade imaginante. E por isso que as 
zoologias e botânicas do século XVI trazem, lado a lado, reproduções 
fiéis de bichos e plantas e as figuras fictícias, mas desenhadas nos 
mínimos detalhes, de seres quiméricos (cf. Debus, 1981; cap. 3). 
Também maravilhosas e inquietantes são as aproximações destes 
seres no espaço indiferente do armazéme suas transubstanciações no 
mercado. Seres que se aproximam, misturam e convenem uns aos outros 
subjaz.em a muitas crenças e práticas renascentistas. Estão presentes, 
por exemplo, na galeria dos monstros que povoam o imaginário sociaJ 
e que são concebidos, fundamentalmente, como combinações 
repugnantes, ou perigosamente atraentes, de reinos, gêneros, espécies 
e sexos. Na verdade, a descoberta de novos seres ~ explosiva e as 
tentativas de classif~eaçio estão apenas começando; na au~ncia de 
sistemas classificatórios estáveis, todas as combinações são igualmente 
provtveis. 
Combinações e misturas estio também sustentando o renovado 
interesse na química e na magia natural, práticas que mobilizaram 
indivíduos da melhor formação intelectual (cf. Yates, 1987). A aJquimia 
transfonnou-se numa influente filosofia da natureza em que o mundo 
er<t concebido como vasto laboratório em permanente processo de 
geração e transfonnação de seus produtos (c f. De bus, 1981 ; caps. 2 
e 7). O alquimista, principalmente o médico alquimista que teve em 
Paracelso ( 1493-1541) um representante exemplar, tinha como meta o 
conhecimuto e uso destes processos básicos de combinação e 
produção de variações. Tal como veremos a seguir, trata-se de opor 
as combinações regenerativas às combinações degeneratãvas: a 
po(uiçlo e o contágio. 
34 
Também nos planos das culturas e civilizações as misturas e 
transformações estão na ordem do dia. Os limites que separavam a 
cultura popular e irreverente da cultura e li tis ta e sisuda na Idade Média 
são transpostos, e disso nos dá testemunho, entre outras, a obra de 
François Rabelais ( 1495-1553 ), conforme a análise de Bakhtin { 1987). 
Os limites que separam o profano do sagrado são, igualmente, 
muitas vezes esmaecidos. Casos assim, alguns dos quais tamb~m 
estudados por Bakhtin. foram tematiz.ados por Dámaso Alonso (1960) 
quando aborda a presença de temas e fonnas populares e prof.anas na 
arte poética de São João da Cruz (1542-1591 ). Nas 'poesias ao divino', 
a lírica erótica e mundana é transfonnada mediante, às vezes, simples 
substituições de algumas palavras ou o acréscimo de uma estrofe, e é 
elevada ao nívet da mais sutil espiritualídade religiosa. 
Finalmente, os limites convencionais entre a lucjdez e a loucura 
foram explorados e superados magistralmente na obra de Erasmo (1466-
1536 ), O elogio da loucura ([I 50 I J s.d.), na qual a própria loucura. em 
sua fonna benigna e sábia, se atreve a afinnar: 
No fim das conw. nenhuma sociedade, nenhuma união grata e perdurtvel 
existiria no mundo sem minha interferência: o povo nlo agüentaria por 
muito tempo o prfndpe, nem o patrão o seu criado, nem a patroa a 
criada, nem o amigo ao amigo, nem o mestre ao discípulo, nem o marido 
a mulher( ... ) se reçiprocamente não se estivessem enganando, nem se 
adulassem nem fossem, com toda a prudência, a:Jmplices, condimentando 
rudo com um grãozinho de loucura. (p. 28) 
Não ~ só a loucura furiosa que traz o orgulho, o fanatismo e as 
guerras, mas é também o excesso de lucidez - que se revela, enfim, 
como uma das fonnas mais desagradáveis da pior loucura - que torna 
a vida do homem impossível, pois, pergunta a loucura sábia: 
Que coisa é. enfim, a vida bumana? Como é miscrivel e sórdido o 
nascimento! Como é dificultosa a educação! A que grande número de 
perigos está exposla a infância! Como labuta a mocidade! Como é austera 
a velhice! Como é cruel a obrigatoriedade da mor1c! (p. 38) 
Para completar, antecipando Nietzsche: 
Afirmam os sibios que t um grande mal ficar enganado, eu, pelo 
contrário, afirmo que nio ficar é o pior de todos os males. e uma 
35 
do modelo de cultura 'científica' dos séculos posteriores; elas não são 
índices de ingenuidade e ausência de espírito crítico. São fonnas 
maduras e tolerantes de relação com a diferença, as mais ajustadas a 
este momento particular de abertura do mundo. É apenas aparente a 
contradição entre a percepção apurada dos seres, que faz do século 
XVl um marco na história dos estudos anatômicos como. por exemplo, 
os levados a cabo por V ~lius ( 1514-1564) e a imaginação sem freios. 
A abertura do mundo e a abertura para um mundo em expansão 
implicam, simultaneamente, a ênfase na observaçlo exata e a liberdade 
imaginativa. Nào seria poss(vel a percepção da difet;nça se não fosse 
precedida por uma intensa atividade imaginante. E por isso que as 
zoologias e botânicas do século XVI trazem, lado a lado, reproduções 
fiéis de bichos e plantas e as figuras fictícias, mas desenhadas nos 
mínimos detalhes, de seres quiméricos (cf. Debus, 1981; cap. 3). 
Também maravilhosas e inquietantes são as aproximações destes 
seres no espaço indiferente do armazém e suas transubstanciações no 
mercado. Seres que se aproximam, misturam e convenem uns aos outros 
subjaz.em a muitas crenças e práticas renascentistas. Estão presentes, 
por exemplo, na galeria dos monstros que povoam o imaginário sociaJ 
e que são concebidos, fundamentalmente, como combinações 
repugnantes, ou perigosamente atraentes, de reinos, gêneros, espécies 
e sexos. Na verdade, a descoberta de novos seres ~ explosiva e as 
tentativas de classif~eaçio estão apenas começando; na au~ncia de 
sistemas classificatórios estáveis, todas as combinações são igualmente 
provtveis. 
Combinações e misturas estio também sustentando o renovado 
interesse na química e na magia natural, práticas que mobilizaram 
indivíduos da melhor formação intelectual (cf. Yates, 1987). A aJquimia 
transfonnou-se numa influente filosofia da natureza em que o mundo 
er<t concebido como vasto laboratório em permanente processo de 
geração e transfonnação de seus produtos (c f. De bus, 1981 ; caps. 2 
e 7). O alquimista, principalmente o médico alquimista que teve em 
Paracelso ( 1493-1541) um representante exemplar, tinha como meta o 
conhecimuto e uso destes processos básicos de combinação e 
produção de variações. Tal como veremos a seguir, trata-se de opor 
as combinações regenerativas às combinações degeneratãvas: a 
po(uiçlo e o contágio. 
34 
Também nos planos das culturas e civilizações as misturas e 
transformações estão na ordem do dia. Os limites que separavam a 
cultura popular e irreverente da cultura e li tis ta e sisuda na Idade Média 
são transpostos, e disso nos dá testemunho, entre outras, a obra de 
François Rabelais ( 1495-1553 ), conforme a análise de Bakhtin { 1987). 
Os limites que separam o profano do sagrado são, igualmente, 
muitas vezes esmaecidos. Casos assim, alguns dos quais tamb~m 
estudados por Bakhtin. foram tematiz.ados por Dámaso Alonso (1960) 
quando aborda a presença de temas e fonnas populares e prof.anas na 
arte poética de São João da Cruz (1542-1591 ). Nas 'poesias ao divino', 
a lírica erótica e mundana é transfonnada mediante, às vezes, simples 
substituições de algumas palavras ou o acréscimo de uma estrofe, e é 
elevada ao nívet da mais sutil espiritualídade religiosa. 
Finalmente, os limites convencionais entre a lucjdez e a loucura 
foram explorados e superados magistralmente na obra de Erasmo (1466-
1536 ), O elogio da loucura ([I 50 I J s.d.), na qual a própria loucura. em 
sua fonna benigna e sábia, se atreve a afinnar: 
No fim das conw. nenhuma sociedade, nenhuma união grata e perdurtvel 
existiria no mundo sem minha interferência: o povo nlo agüentaria por 
muito tempo o prfndpe, nem o patrão o seu criado, nem a patroa a 
criada, nem o amigo ao amigo, nem o mestre ao discípulo, nem o marido 
a mulher( ... ) se reçiprocamente não se estivessem enganando, nem se 
adulassem nem fossem, com toda a prudência, a:Jmplices, condimentando 
rudo com um grãozinho de loucura. (p. 28) 
Não ~ só a loucura furiosa que traz o orgulho, o fanatismo e as 
guerras, mas é também o excesso de lucidez - que se revela, enfim, 
como uma das fonnas mais desagradáveis da pior loucura - que torna 
a vida do homem impossível, pois, pergunta a loucura sábia: 
Que coisa é. enfim, a vida bumana? Como é miscrivel e sórdido o 
nascimento! Como é dificultosaa educação! A que grande número de 
perigos está exposla a infância! Como labuta a mocidade! Como é austera 
a velhice! Como é cruel a obrigatoriedade da mor1c! (p. 38) 
Para completar, antecipando Nietzsche: 
Afirmam os sibios que t um grande mal ficar enganado, eu, pelo 
contrário, afirmo que nio ficar é o pior de todos os males. e uma 
35 
extravagância sem limites desejar que a felicidade do homem resida na 
realidade das coisas, quando esta ventura depende tão-somente da 
opinião que se tem dela ( ... ) Os homens, finalmente, desejam ser iludidos 
e estão sempre dispostos a abandonar o verdadeiro pelo falso . (p. 57} 
Mas o século XVI não foi apenas o século em que as variedades, 
as combinações e misturas. as transfonnações. as perdas de identidade 
e as diluições dos limites puderam ser tolerantemente percebidas, 
acolhidas e mesmo produzidas deliberadamente. Foi o século do medo 
das margens e fronteiras e o século da memória. 
Quando reinos, gêneros, espécie, sexos. costumes e civilizações 
se misturam, surgem ameaças de toda ordem, ameaças a toda ordem: 
surgem a poluição e o contágio. 
Os limites da própria civilização ocidental cristã (os limites da 
cristandade) estavam postos em questão. O inimigo externo mais 
próximo era o turco-otomano, e uma carta de 1453 do cardeal Bessarion 
ao Dodge de Veneza, relatando as atrocidades cometidas contra os 
cristãos na tomada de Constantinopla, traduz-o clima de terror que este 
acontecimento trouxera ao homem europeu. Embora esta retração da 
cristandade estivesse sendo compensada pela expansão em direção à 
África, Ásia e América, também estas fronteiras novas continham 
inúmeras ameaças . desde os perigos reais e imaginários envolvidos nas 
grandes navegações até o contato com formas radicalmente distintas 
de alteridade e, portanto, com realidades imprevisíveis e potencialmente 
hostis. Estas ameaças externas, porém, podiam ser conjuradas com a 
força das armas e com a reafirmação de uma identidade cultural 
européia, tarefa que coube, principalmente, aos padres. 
Muito mais difícil de elaborar eram as relações com as ameaças 
internas representadas, por exemplo, pelos judeus e mouros (no caso 
da Espanha), principalmente quando se tratava de judeus e mouros 
convertidos ao cristianismo, mas de quem se desconfiava continuarem 
observando crenças e práticas não-cristãs na intimidade do lar. Os 
conversos foram, assim, uma espécie de fronteira interior da 
cristandade; eles se misturam, confundem e podem agora contamiTUJr. 
O medo do contágio - esta mistura degenerativa que destrói espíritos, 
costumes e corpos - está disseminado no século e se manifesta 
particularmente na desconfiança e perseguição aos conversos. O medo 
aos conversos é equivalente ao medo aos empestados: ambos são 
36 
propagadores da poluição (acerca do medo no século XVI, pode-se 
consultar Delumeau, 1989; caps. 3, 8 c 9). 
O cont;ígio é o negativo isomórlico da alquimia. Vale a pena, neste 
sentido, recordar que a medici na química de Paracelso foi defendida 
na época com a alegação de que as novas doenças do século - em 
especial as doenças contagiosas. como as venéreas e. em particular, a 
s ífilis - exigiam novos tratamentos: enfim, eram as misturas 
regenerat ivas dos minerais e vegetais co mbatendo as misturas 
degenerativas dos animais (cf. Debus, 198 I). 
As margens marinhas e os oceanos. por sua vez. ocupavam, como 
se sabe desde a obra de Corbin (1989; cap. I), um lugar pdvilegiado 
entre os objetos do medo. Tanto na sua imcn!;idão descontrolada e 
tempestuosa. como no seu abrigo de seres monstruosos e desmedidos, 
como na geração de odores e climas malsãos, como no fato de serem 
as vias de esvaziamento da Europa e túmulo indetcnninado dos cristãos 
nnvegadores, por tudo isso, as praias e mares apareciam como a 
anulação das formas estáveis, o aniquilamento das medidas. dissolução 
das identidades e corrupção da saúde. 
Finalmente, ainda neste tema do pavor das margens podem-se 
incluir os movimentos espontâneos ou organizados de perseguições a 
hereges e a caça às bruxas. O herege é sempre um transgressor de 
limites, é um ser frontei riço e um potencial contaminador. Assim como 
se receia que o cristão-novo não tenha entradn verdadeiramente , 
receia-se que o velho cristão já tenha saldo do campo do autêntico 
crislianismo. Muito mais perigoso que um pagão ou bárbaro, cujas 
identidades estão suficientemente marcadas para impedir qualquer 
mistura, a simples presença do herege polui toda a comunidade e 
compromete a todos. Contra os hereges só o . fanatismo intolerante e 
puritano oferece solução eficaz: contra a poluição, a assepsia do fogo, 
a extração cirúrgica do mau espírito através da tortura etc. 
Quanto às bruxas, o primeiro aspecto a ressaltar é que, 
supostamente, teriam estabelecido um convívio promíscuo entre as 
criaturas de Deus c o reino do interno - não é à toa que as acusações 
de promiscuidade generalizada estejam quase sempre acompanhando 
ou corroborando as acusações de bruxaria. Além disso, as próprias 
bruxas são seres ambíguos: em parte são responsáveis - fizeram um 
contrato, finnaram um pacto - e em parte são inocentes - são possuídas 
37 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
extravagância sem limites desejar que a felicidade do homem resida na 
realidade das coisas, quando esta ventura depende tão-somente da 
opinião que se tem dela ( ... ) Os homens, finalmente, desejam ser iludidos 
e estão sempre dispostos a abandonar o verdadeiro pelo falso . (p. 57} 
Mas o século XVI não foi apenas o século em que as variedades, 
as combinações e misturas. as transfonnações. as perdas de identidade 
e as diluições dos limites puderam ser tolerantemente percebidas, 
acolhidas e mesmo produzidas deliberadamente. Foi o século do medo 
das margens e fronteiras e o século da memória. 
Quando reinos, gêneros, espécie, sexos. costumes e civilizações 
se misturam, surgem ameaças de toda ordem, ameaças a toda ordem: 
surgem a poluição e o contágio. 
Os limites da própria civilização ocidental cristã (os limites da 
cristandade) estavam postos em questão. O inimigo externo mais 
próximo era o turco-otomano, e uma carta de 1453 do cardeal Bessarion 
ao Dodge de Veneza, relatando as atrocidades cometidas contra os 
cristãos na tomada de Constantinopla, traduz-o clima de terror que este 
acontecimento trouxera ao homem europeu. Embora esta retração da 
cristandade estivesse sendo compensada pela expansão em direção à 
África, Ásia e América, também estas fronteiras novas continham 
inúmeras ameaças . desde os perigos reais e imaginários envolvidos nas 
grandes navegações até o contato com formas radicalmente distintas 
de alteridade e, portanto, com realidades imprevisíveis e potencialmente 
hostis. Estas ameaças externas, porém, podiam ser conjuradas com a 
força das armas e com a reafirmação de uma identidade cultural 
européia, tarefa que coube, principalmente, aos padres. 
Muito mais difícil de elaborar eram as relações com as ameaças 
internas representadas, por exemplo, pelos judeus e mouros (no caso 
da Espanha), principalmente quando se tratava de judeus e mouros 
convertidos ao cristianismo, mas de quem se desconfiava continuarem 
observando crenças e práticas não-cristãs na intimidade do lar. Os 
conversos foram, assim, uma espécie de fronteira interior da 
cristandade; eles se misturam, confundem e podem agora contamiTUJr. 
O medo do contágio - esta mistura degenerativa que destrói espíritos, 
costumes e corpos - está disseminado no século e se manifesta 
particularmente na desconfiança e perseguição aos conversos. O medo 
aos conversos é equivalente ao medo aos empestados: ambos são 
36 
propagadores da poluição (acerca do medo no século XVI, pode-se 
consultar Delumeau, 1989; caps. 3, 8 c 9). 
O cont;ígio é o negativo isomórlico da alquimia. Vale a pena, neste 
sentido, recordar que a medici na química de Paracelso foi defendida 
na época com a alegação de que as novas doenças do século - em 
especial as doenças contagiosas.como as venéreas e. em particular, a 
s ífilis - exigiam novos tratamentos: enfim, eram as misturas 
regenerat ivas dos minerais e vegetais co mbatendo as misturas 
degenerativas dos animais (cf. Debus, 198 I). 
As margens marinhas e os oceanos. por sua vez. ocupavam, como 
se sabe desde a obra de Corbin (1989; cap. I), um lugar pdvilegiado 
entre os objetos do medo. Tanto na sua imcn!;idão descontrolada e 
tempestuosa. como no seu abrigo de seres monstruosos e desmedidos, 
como na geração de odores e climas malsãos, como no fato de serem 
as vias de esvaziamento da Europa e túmulo indetcnninado dos cristãos 
nnvegadores, por tudo isso, as praias e mares apareciam como a 
anulação das formas estáveis, o aniquilamento das medidas. dissolução 
das identidades e corrupção da saúde. 
Finalmente, ainda neste tema do pavor das margens podem-se 
incluir os movimentos espontâneos ou organizados de perseguições a 
hereges e a caça às bruxas. O herege é sempre um transgressor de 
limites, é um ser frontei riço e um potencial contaminador. Assim como 
se receia que o cristão-novo não tenha entradn verdadeiramente , 
receia-se que o velho cristão já tenha saldo do campo do autêntico 
crislianismo. Muito mais perigoso que um pagão ou bárbaro, cujas 
identidades estão suficientemente marcadas para impedir qualquer 
mistura, a simples presença do herege polui toda a comunidade e 
compromete a todos. Contra os hereges só o . fanatismo intolerante e 
puritano oferece solução eficaz: contra a poluição, a assepsia do fogo, 
a extração cirúrgica do mau espírito através da tortura etc. 
Quanto às bruxas, o primeiro aspecto a ressaltar é que, 
supostamente, teriam estabelecido um convívio promíscuo entre as 
criaturas de Deus c o reino do interno - não é à toa que as acusações 
de promiscuidade generalizada estejam quase sempre acompanhando 
ou corroborando as acusações de bruxaria. Além disso, as próprias 
bruxas são seres ambíguos: em parte são responsáveis - fizeram um 
contrato, finnaram um pacto - e em parte são inocentes - são possuídas 
37 
pelo demônio (o perseguidor. ao mesmo tempo que se defende, pretende 
estar defendendo a sal vação do perseguido). Por fi m. as acusações 
re<.:acm. costumeiramente emhora não exclusivamente. sobre indivíduos 
marginais: trata-se de mulheres - que estão, segundo as concepções 
da época. no meio do caminho entre a nature1.a c a civilização, entre a 
humanidade c a animalidade- c de mulheres velhas, pobres, ignorantes 
e desvalidas, moradoras de áreas periféricas (este padrão de 
perseguiçües não é o único, mas é um dos mais típicos; cf. Levack, 
1988). Há, também. evidências de que grande parte das ondas de caça 
às hruxas abateu-se sobre regiões fronteiriças em termos étnicos e 
reli giosos c associadas à perseguição a hereges (cf. Trevor-Roper, 
J9gJ). 
Vimos, portanto, num conjunto diversificado de situações, a 
presença do medo às frQnte iras e aos seres fronte iriços c estamos 
sugerindo a hipótese de que estas intensas reações emocionais 
decorrem da exposição à variedade das coisas, quando esta tende a 
escapar ao controle. gerando misturas e combinações extremamente 
ameaçadoras à estabilidade e à ordem do mundo. É neste contexto que 
podemos entender um outro aspecto da experiência psicossocial do 
século XVI: a valorização de um certo tipo de memória.! 
É sahido que todns as soc iedad es ilet radas recorrem a 
dispositivos mnemônicos pura o registro e conservação de suas 
experiências; a sociedade quinhentista ainda era predominantemente 
iletrada: a alfabetização era circunscrita a membros da elite, apesar do 
grande esforço dos rcfonnadores religiosos para disseminá-la. Dito isto, 
porém. é preciso considerar algumas questões mais particulares. 
Em primeiro lugar, é preciso di ferenciar entre algumas formas de 
funcionamento da memória coleti va e individuaL Em sociedades 
fechadas e trad iciona is, as memórias coletivas - mitos, lendas, 
narrativas sagradas. rituais - garantem a interpretação sólida e estável 
do mundo e formam o solo onde se assentam e elaboram as experiências 
de cada grupo e de cada indivíduo. Quando as experiências individuais 
se diferenciam muito e se desviam do acervo coletivo. as formas 
ritualizadas da memória retrocedem e os espaços da improvisação e da 
ioovação se ampliam. Nestas condições haverá mais necessidade de 
conslruir disposilivos mnemônicos que tornem disponíveis para cada 
um os materiais de suas experiências e estudos particulares. Mas há 
38 
diversas maneiras de responder a esta demanda. Ouçamos. por exemplo, 
o que ensina a respeito um autor do século XII: 
Quanto à memória. penso que nãv se deve esquecer que assim como a 
inteligência investiga e descobre por meio da divisão, a memória conserva 
os resul rados mantendo-os juntos ( ... ) Manter juntos consiste em fazer 
um curto e conóso sumário das coisas que no escrever e dizer são mais 
prolixas (. .. ) Falo assim porque a memória humana é preguiçosa c se 
alegra com a brevidade; se dispersa entre muitas coisas, funciona pior. 
Precisamos. então. em lothl aprendizagem recolher algo breve c ceno 
que possa ser escondido nos lugares secretos da memória e do qual, se 
necessário, todo o resto possa ser derivado. (Hugh of SL Victor [séc. 
XII] , 1977; p. 573) 
Memorizar, no caso. é transformar us infonnações em sumários, 
resumos. condensaçiks. Guardar é compreender, c compreender é 
manter junto. 
Se voltarmos agora ao empório geral di rigido por João de Barros. 
ouviremos Baião dizendo que" ... por mais poderosa que seja a memória, 
cansa-se em pintar todo esse colorido e multifonne armazém". De fato, 
em um mundo marcado pela variedade em estado puro e, o que é o 
mais grave. pela produção de variedade.s. há muito que ver e contar, 
mas não há nada a resumir. As experiências não parecem ser mais 
sumarizáveis (o que é ainda hoje problema para quem tenta oferecer 
uma visào de conjunto dcs!c século endiabrado). 
Se as experiências não são sumarizáveis, é preciso conservá-las 
tais como se dão, e esta conservação, mais que uma necessidade 
meramente cogn itiva, é uma necessidade existencial: é preciso dar 
permanência, estabilidade e sentido aos objetos da experiência. É por 
isso que não foram os iletrados e provincianos. mas algumas das mais 
elevadas e cosmopolitas mentes da época, que se dedicaram à arte da 
memória - eram os que mais se expunham à variação. 
Investigando em que consi stiam algumas das té cnicas 
mnemônicas mais notáveis - e para isso temos o livro indispensável 
de J. D. Spence ( 1986) sobre as atividades do jesuíta italiano Matteo 
Ricc i ( 1552-161 O) na China - , veremos que elas visam fixar cada 
informação no seu lugar. Não se tratava de fixá-las em seus 'l ugares 
naturais'. mas de ligá-las e reuni -las em lugares metodicamente 
construídos pela imaginação (daí a idéia de um 'palácio da memória'). 
39 
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pelo demônio (o perseguidor. ao mesmo tempo que se defende, pretende 
estar defendendo a sal vação do perseguido). Por fi m. as acusações 
re<.:acm. costumeiramente emhora não exclusivamente. sobre indivíduos 
marginais: trata-se de mulheres - que estão, segundo as concepções 
da época. no meio do caminho entre a nature1.a c a civilização, entre a 
humanidade c a animalidade- c de mulheres velhas, pobres, ignorantes 
e desvalidas, moradoras de áreas periféricas (este padrão de 
perseguiçües não é o único, mas é um dos mais típicos; cf. Levack, 
1988). Há, também. evidências de que grande parte das ondas de caça 
às hruxas abateu-se sobre regiões fronteiriças em termos étnicos e 
reli giosos c associadas à perseguição a hereges (cf. Trevor-Roper, 
J9gJ). 
Vimos, portanto, num conjunto diversificado de situações, a 
presença do medo às frQnte iras e aos seres fronte iriços c estamos 
sugerindo a hipótese de que estas intensas reações emocionais 
decorrem da exposição à variedade das coisas, quando esta tende a 
escapar ao controle. gerando misturas e combinações extremamente 
ameaçadorasà estabilidade e à ordem do mundo. É neste contexto que 
podemos entender um outro aspecto da experiência psicossocial do 
século XVI: a valorização de um certo tipo de memória.! 
É sahido que todns as soc iedad es ilet radas recorrem a 
dispositivos mnemônicos pura o registro e conservação de suas 
experiências; a sociedade quinhentista ainda era predominantemente 
iletrada: a alfabetização era circunscrita a membros da elite, apesar do 
grande esforço dos rcfonnadores religiosos para disseminá-la. Dito isto, 
porém. é preciso considerar algumas questões mais particulares. 
Em primeiro lugar, é preciso di ferenciar entre algumas formas de 
funcionamento da memória coleti va e individuaL Em sociedades 
fechadas e trad iciona is, as memórias coletivas - mitos, lendas, 
narrativas sagradas. rituais - garantem a interpretação sólida e estável 
do mundo e formam o solo onde se assentam e elaboram as experiências 
de cada grupo e de cada indivíduo. Quando as experiências individuais 
se diferenciam muito e se desviam do acervo coletivo. as formas 
ritualizadas da memória retrocedem e os espaços da improvisação e da 
ioovação se ampliam. Nestas condições haverá mais necessidade de 
conslruir disposilivos mnemônicos que tornem disponíveis para cada 
um os materiais de suas experiências e estudos particulares. Mas há 
38 
diversas maneiras de responder a esta demanda. Ouçamos. por exemplo, 
o que ensina a respeito um autor do século XII: 
Quanto à memória. penso que nãv se deve esquecer que assim como a 
inteligência investiga e descobre por meio da divisão, a memória conserva 
os resul rados mantendo-os juntos ( ... ) Manter juntos consiste em fazer 
um curto e conóso sumário das coisas que no escrever e dizer são mais 
prolixas (. .. ) Falo assim porque a memória humana é preguiçosa c se 
alegra com a brevidade; se dispersa entre muitas coisas, funciona pior. 
Precisamos. então. em lothl aprendizagem recolher algo breve c ceno 
que possa ser escondido nos lugares secretos da memória e do qual, se 
necessário, todo o resto possa ser derivado. (Hugh of SL Victor [séc. 
XII] , 1977; p. 573) 
Memorizar, no caso. é transformar us infonnações em sumários, 
resumos. condensaçiks. Guardar é compreender, c compreender é 
manter junto. 
Se voltarmos agora ao empório geral di rigido por João de Barros. 
ouviremos Baião dizendo que" ... por mais poderosa que seja a memória, 
cansa-se em pintar todo esse colorido e multifonne armazém". De fato, 
em um mundo marcado pela variedade em estado puro e, o que é o 
mais grave. pela produção de variedade.s. há muito que ver e contar, 
mas não há nada a resumir. As experiências não parecem ser mais 
sumarizáveis (o que é ainda hoje problema para quem tenta oferecer 
uma visào de conjunto dcs!c século endiabrado). 
Se as experiências não são sumarizáveis, é preciso conservá-las 
tais como se dão, e esta conservação, mais que uma necessidade 
meramente cogn itiva, é uma necessidade existencial: é preciso dar 
permanência, estabilidade e sentido aos objetos da experiência. É por 
isso que não foram os iletrados e provincianos. mas algumas das mais 
elevadas e cosmopolitas mentes da época, que se dedicaram à arte da 
memória - eram os que mais se expunham à variação. 
Investigando em que consi stiam algumas das té cnicas 
mnemônicas mais notáveis - e para isso temos o livro indispensável 
de J. D. Spence ( 1986) sobre as atividades do jesuíta italiano Matteo 
Ricc i ( 1552-161 O) na China - , veremos que elas visam fixar cada 
informação no seu lugar. Não se tratava de fixá-las em seus 'l ugares 
naturais'. mas de ligá-las e reuni -las em lugares metodicamente 
construídos pela imaginação (daí a idéia de um 'palácio da memória'). 
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Realce
A hasc da técnica é o controle metódico da imaginação, o que nos 
remete imediatamente aos Exercícios espirituais de Santo Inácio de 
ú >yofa. a que voltaremos mais tarde. A alocação de cada lembrança a 
um cômodo no ·pal ácio da memória' não apenas impede se u 
desaparecimento. ou seja, que ela se desligue e se perca, como impede 
o que talvez seja o mais importante - que elas se misturem. É uma 
maneira de congelar a experiência: nada se extravia, nada degenera. 
Estando cada lemhrança no seu compartimento mental. o memori7.ador 
pode pas~ear por elas sem se perder c sem o risco de que elas se 
confundam, contagiem, corrompam. 
Ohservação atenta das variedades, produção imaginári a das 
vnriaçf>cs. convivência tolerante com a diluição dos limites, medo das 
margens e dos seres fronteiriços, retenção e controle das variações 
através de técnicas de memorização, eis que se vai delineando um 
conjunto, algo contraditório mas articulado, de modos de relação com 
o mundo. 
Identidade e conversão 
Se nos dedicarmos a acompanhar as bistórias de vida do século 
XVI. e não apenas as das grandes e notáveis personalidades, mas. na 
medida do poss ível, as d os homens comuns e coletividades, 
em:ontramos reiteradamente fe nômenos de ruptura: viagens, encontros 
s ignifica ti vos, desastres (naufrágios, falências etc.), alterações 
sucessivas de moradia, de sorte (azares e venturas), experiências de 
exercíc io e de perda de poder. perseguições, exílios, ameaças de peste, 
mortandades maciças, guerras. massacres etc. 
Há um conceito que, embora no sentido estrito se aplique apenas 
à vida religiosa, pode ser usado para designar esta variedade de 
mudanças de rumo que seccionam a vida de cada um em diversos 
segmentos: conversão. 
A época foi , certamente, de muitas e dramáticas conversões no 
sentido religioso do termo. o que se entende dada a força e amplitude 
dos movimentos de reforma protestante e reforma católica. 
Creio, porém, que as experiências de conversão foram ainda mais 
generali1.adas e freqüentes se ace itarmo~ o uso do termo para falar de 
40 
todos os fenômenos de rorçiio. que podiam ocorrer tanto no campo 
das crenças (religiosas, política~. científicas) como no das práticas e 
situações existenc iais dos indivídu os c grupos. Muitas eram 
con versões impostas, conversões sofridas pelos homens. A estas 
conversões, que se abatem sobre os indivíduos e ameaçam ou destroem 
suas integridades físicas, morais e psicológicas, podem-se opor as 
wnversões vividas como reconquista da integridade, (re)encontro do 
sujeito w m seu destino ou sua vocação. De qualquer forma, mesmo 
neste caso de 'conversões regenerati vas' há um, ou vár ios, 
seccionamcntos da vida a exigir costura c amarração. 
São inúmeros os testemunhos da di fi culdade do homem 
quinhentista em decifrar a própria experiência e descobrir nela uma 
unidade e um sentido. 
Podemos nos introduzir no tema através de um soneto do 
aventureiro, náufrago, poeta etc. Luís de Camões ( 1524 Pl-1580): 
Soneto 91 
Tanto de meu estado me acho incerto 
Que em vivo ardor tremendo e."tou de frio 
Sem cnusa. juntamente ~:horo e rio 
O mundo todo abarco c nada aperto 
É tudo quamo sinto um desconcerto 
Da alma um fogo me sai, da vista um rio 
Agora espero, agora des~:onfio 
Agora desvario. agora a~:crto 
Estando em tcm1 chego ao Céu voando; 
Nu'a hora acho mil anos; e é de jeill> 
Que em mil anos nao posso achar u'a hora 
Se me pergunta alguém porque assim ando, 
Respondo que não sei; porém suspeito 
Que só porque vos vi, minha Senhora. 
A mesma perplexidade diante da di versidade e das contradições 
da experiência individual vamos encontrar em M. de Montaigne { 1533-
1592). 
41 
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A hasc da técnica é o controle metódico da imaginação, o que nos 
remete imediatamente aos Exercícios espirituais de Santo Inácio de 
ú >yofa. a que voltaremos mais tarde. A alocação de cada lembrança a 
um cômodo no ·pal ácio da memória' não apenas impede se u 
desaparecimento. ou seja, que ela se desligue e se perca, como impede 
o que talvez seja o mais importante - que elas se misturem. É uma 
maneira de congelar a experiência: nada se extravia, nada degenera. 
Estando cada lemhrança no seu compartimento mental. o memori7.ador 
pode pas~ear porelas sem se perder c sem o risco de que elas se 
confundam, contagiem, corrompam. 
Ohservação atenta das variedades, produção imaginári a das 
vnriaçf>cs. convivência tolerante com a diluição dos limites, medo das 
margens e dos seres fronteiriços, retenção e controle das variações 
através de técnicas de memorização, eis que se vai delineando um 
conjunto, algo contraditório mas articulado, de modos de relação com 
o mundo. 
Identidade e conversão 
Se nos dedicarmos a acompanhar as bistórias de vida do século 
XVI. e não apenas as das grandes e notáveis personalidades, mas. na 
medida do poss ível, as d os homens comuns e coletividades, 
em:ontramos reiteradamente fe nômenos de ruptura: viagens, encontros 
s ignifica ti vos, desastres (naufrágios, falências etc.), alterações 
sucessivas de moradia, de sorte (azares e venturas), experiências de 
exercíc io e de perda de poder. perseguições, exílios, ameaças de peste, 
mortandades maciças, guerras. massacres etc. 
Há um conceito que, embora no sentido estrito se aplique apenas 
à vida religiosa, pode ser usado para designar esta variedade de 
mudanças de rumo que seccionam a vida de cada um em diversos 
segmentos: conversão. 
A época foi , certamente, de muitas e dramáticas conversões no 
sentido religioso do termo. o que se entende dada a força e amplitude 
dos movimentos de reforma protestante e reforma católica. 
Creio, porém, que as experiências de conversão foram ainda mais 
generali1.adas e freqüentes se ace itarmo~ o uso do termo para falar de 
40 
todos os fenômenos de rorçiio. que podiam ocorrer tanto no campo 
das crenças (religiosas, política~. científicas) como no das práticas e 
situações existenc iais dos indivídu os c grupos. Muitas eram 
con versões impostas, conversões sofridas pelos homens. A estas 
conversões, que se abatem sobre os indivíduos e ameaçam ou destroem 
suas integridades físicas, morais e psicológicas, podem-se opor as 
wnversões vividas como reconquista da integridade, (re)encontro do 
sujeito w m seu destino ou sua vocação. De qualquer forma, mesmo 
neste caso de 'conversões regenerati vas' há um, ou vár ios, 
seccionamcntos da vida a exigir costura c amarração. 
São inúmeros os testemunhos da di fi culdade do homem 
quinhentista em decifrar a própria experiência e descobrir nela uma 
unidade e um sentido. 
Podemos nos introduzir no tema através de um soneto do 
aventureiro, náufrago, poeta etc. Luís de Camões ( 1524 Pl-1580): 
Soneto 91 
Tanto de meu estado me acho incerto 
Que em vivo ardor tremendo e."tou de frio 
Sem cnusa. juntamente ~:horo e rio 
O mundo todo abarco c nada aperto 
É tudo quamo sinto um desconcerto 
Da alma um fogo me sai, da vista um rio 
Agora espero, agora des~:onfio 
Agora desvario. agora a~:crto 
Estando em tcm1 chego ao Céu voando; 
Nu'a hora acho mil anos; e é de jeill> 
Que em mil anos nao posso achar u'a hora 
Se me pergunta alguém porque assim ando, 
Respondo que não sei; porém suspeito 
Que só porque vos vi, minha Senhora. 
A mesma perplexidade diante da di versidade e das contradições 
da experiência individual vamos encontrar em M. de Montaigne { 1533-
1592). 
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Montaignc ([1 580] 1987; p. li I ) parte do suposto de que os 
homens dife rem entre si. o que já é um obstáculo para se falar numa 
' natureza hum ana· sempre igual a si mesma: "Não cometo esse erro 
tão comum de julgar os outros por mim. Acredito de bom grado que o 
que está nos outros possa divergir essencialmente daquilo que está 
em mim ( ... ) e concebo mil e uma maneiras diferentes de viver''. 
Essa tolerância com a diversidade entre os homens não é, porém, 
o que há de mais surpreendente em Montaigne. O que há de mais grave 
é que, segundo Montaigne, os homens diferem, também, de si para si : 
Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão 
embaraçados como quanc.l(l rrocuram agrupar e harmonizar sob uma 
mcsm<J luz todos os atos dos homens. pois estes se cont radizem 
~:omu mentc c a tal ponto que não parecem provir de um mesmo 
indivíduo( ... ) Nossa maneira hah1tual de fazer está em seguir os nossos 
impulsos instintivos para a di reita ou para a esquerda, para cima ou 
para baixo, segundo as circunstâncias(. .. ) Somos todos constituídos de 
peças e pedaço.r ajuntados de maneira casual c di versa, e cada peça 
funciona indcpcm.lentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença 
entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem. (pp. 159-161 -
grifo meu) 
Se a a lm a não consegue manter a inteireza ao longo de !antas e 
repelidas 'conversões·, o próprio corpo. igualmente, não será para 
Montaignc a base de eventual unidade. O corpo, aglomerado de peças 
c pedaços, está s ujeito 4s torções e ao despedaçamento. Comentando 
os incidentes nupciais em que o marido não consegue consumar o 
casamento porque o pênis não colabora, Montaignc adverte: 
Quanto aos que sabem ter órgãos obedientes. evi tem simplesmente ceder 
demasiado à fantasia. Com ra1.ão observam quanto este órgão é 
independente. excitando-se muitas vezes inoportunamente e falhando 
de outras feitas: colocando-se em oposição direta à nossa vontade. 
[Masl pergunto, haverá uma só parte de nosso corpo que não se recuse 
às vezes a fazer o 4ue deve ou aja contra a nossa vontade? (pp. 53-54) . 
E a partir desta melindrosa pergunta. Montaigne entra a recensear 
todos os movimento~ involuntários c parciais do corpo próprio que 
nos remetem à sua estranheza e alienação, entre os quais os distúrbios 
digestivos são paradigmáticos. 
42 
Na verdade, conversões de alma e conversões de corpos não são 
compreendidos como fenômenos independentes. Ainda não é deste 
tem po a separação radical entre corpo e mente. A força da imaginação, 
por exemplo, imita as doenças físicas e pode até produzi-las, como nos 
informa o mesmo autor, a panir do seu caso: 
Sou deste sohre os quai~ a imaginação tem grande domínio. Todos são 
atingidos por ela. mas alguns há que ela derruba( ... ) A vista da angústia 
alheia inllui lisi<:amente em mim e de maneira penosa e não raro sofro 
c.lc sentir que alguém sofre. Diante de alguém que tosse continuamente 
sinto igual irritação no~ pulmões e nos brônquios ( ... ) Pego a doença 
4ue e:.tudo e a semeio em mim. Não acho estranho que a imaginação dê 
febre e mesmo provoque a nmrte nos que nl'io a controlam. (p. SI) 
Este trecho dos Ensaios de Monlaigne nos conduz à questão da 
doença c à prese nça deste tema nas ex periê ncias c relatos 
mcmorialísticos da época. Acompanhemos agora alguns trechos da 
auto-apresentação de uma singular personalidade do século XVI : 
Meu estado corporal era enfermo em muitos sentidos: por natureza; 
como resul tado de várias doenças; e em sintomas de fraqueza que se 
apresentavam por si. Minha caheça é afligida por descargas congcnitas. 
às vezes do estômago, às vezes do peito e numa tal extensão que mesmo 
quando me ~:~msidero no melhor estado de saúde, eu sofro ( ... ) Outro 
problema é um catarro ou reumatismo nos dente.~. pelo que comecei a 
perdê-los desde 1563 (. .. ) Meu quinhão tem sido indigestão e um 
estômago não mu ito forte ( .. . ) Na juventude fui perturbado por 
palpitações congênitas do coração( ... ) Também tive hemorróidas e gota. 
com a qual tanto me acostumei que tenho o hábito de chamá-la de volta 
mais c.lo 4ue me livrar dela (. .. ) Era meu hábito - e um costume que a 
muitos espêlntava - que quando não tinha desculpa para estar doente 
procurava um<J doença, tal como relatei no caso du gota. Por esta razão. 
freqüentcmc:nte colocava-me M situação de provocar um certo mal-
estar. .. 
Descobri que n5o supor1ava muito tempo sem uma dor física pois neste 
ca~o uma certa angústia mental ~c upodernva de mim ( ... ) Por isso 
elaborei o plano de morder os lábios ou torcer meus dedos ou picar a 
pele do braço c:;querdo até chorur. Sob a proteção Llestc autotlagelo cu 
vivo sem sofrimento. !Cardano [I 575 J 1930; p. 5 I 2) 
43 
Mônica
Realce
Montaignc ([1 580] 1987; p. li I ) parte do suposto de que os 
homens diferem entre si. o que já é um obstáculo para se falar numa 
' natureza hum ana· sempre igual a si mesma: "Não cometo esse erro 
tão comum de julgar os outros por mim. Acredito de bom grado que o 
que está nos outros possa divergir essencialmente daquilo que está 
em mim ( ... ) e concebo mil e uma maneiras diferentes de viver''. 
Essa tolerância com a diversidade entre os homens não é, porém, 
o que há de mais surpreendente em Montaigne. O que há de mais grave 
é que, segundo Montaigne, os homens diferem, também, de si para si : 
Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão 
embaraçados como quanc.l(l rrocuram agrupar e harmonizar sob uma 
mcsm<J luz todos os atos dos homens. pois estes se cont radizem 
~:omu mentc c a tal ponto que não parecem provir de um mesmo 
indivíduo( ... ) Nossa maneira hah1tual de fazer está em seguir os nossos 
impulsos instintivos para a di reita ou para a esquerda, para cima ou 
para baixo, segundo as circunstâncias(. .. ) Somos todos constituídos de 
peças e pedaço.r ajuntados de maneira casual c di versa, e cada peça 
funciona indcpcm.lentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença 
entre nós e nós mesmos quanto entre nós e outrem. (pp. 159-161 -
grifo meu) 
Se a a lm a não consegue manter a inteireza ao longo de !antas e 
repelidas 'conversões·, o próprio corpo. igualmente, não será para 
Montaignc a base de eventual unidade. O corpo, aglomerado de peças 
c pedaços, está s ujeito 4s torções e ao despedaçamento. Comentando 
os incidentes nupciais em que o marido não consegue consumar o 
casamento porque o pênis não colabora, Montaignc adverte: 
Quanto aos que sabem ter órgãos obedientes. evi tem simplesmente ceder 
demasiado à fantasia. Com ra1.ão observam quanto este órgão é 
independente. excitando-se muitas vezes inoportunamente e falhando 
de outras feitas: colocando-se em oposição direta à nossa vontade. 
[Masl pergunto, haverá uma só parte de nosso corpo que não se recuse 
às vezes a fazer o 4ue deve ou aja contra a nossa vontade? (pp. 53-54) . 
E a partir desta melindrosa pergunta. Montaigne entra a recensear 
todos os movimento~ involuntários c parciais do corpo próprio que 
nos remetem à sua estranheza e alienação, entre os quais os distúrbios 
digestivos são paradigmáticos. 
42 
Na verdade, conversões de alma e conversões de corpos não são 
compreendidos como fenômenos independentes. Ainda não é deste 
tem po a separação radical entre corpo e mente. A força da imaginação, 
por exemplo, imita as doenças físicas e pode até produzi-las, como nos 
informa o mesmo autor, a panir do seu caso: 
Sou deste sohre os quai~ a imaginação tem grande domínio. Todos são 
atingidos por ela. mas alguns há que ela derruba( ... ) A vista da angústia 
alheia inllui lisi<:amente em mim e de maneira penosa e não raro sofro 
c.lc sentir que alguém sofre. Diante de alguém que tosse continuamente 
sinto igual irritação no~ pulmões e nos brônquios ( ... ) Pego a doença 
4ue e:.tudo e a semeio em mim. Não acho estranho que a imaginação dê 
febre e mesmo provoque a nmrte nos que nl'io a controlam. (p. SI) 
Este trecho dos Ensaios de Monlaigne nos conduz à questão da 
doença c à prese nça deste tema nas ex periê ncias c relatos 
mcmorialísticos da época. Acompanhemos agora alguns trechos da 
auto-apresentação de uma singular personalidade do século XVI : 
Meu estado corporal era enfermo em muitos sentidos: por natureza; 
como resul tado de várias doenças; e em sintomas de fraqueza que se 
apresentavam por si. Minha caheça é afligida por descargas congcnitas. 
às vezes do estômago, às vezes do peito e numa tal extensão que mesmo 
quando me ~:~msidero no melhor estado de saúde, eu sofro ( ... ) Outro 
problema é um catarro ou reumatismo nos dente.~. pelo que comecei a 
perdê-los desde 1563 (. .. ) Meu quinhão tem sido indigestão e um 
estômago não mu ito forte ( .. . ) Na juventude fui perturbado por 
palpitações congênitas do coração( ... ) Também tive hemorróidas e gota. 
com a qual tanto me acostumei que tenho o hábito de chamá-la de volta 
mais c.lo 4ue me livrar dela (. .. ) Era meu hábito - e um costume que a 
muitos espêlntava - que quando não tinha desculpa para estar doente 
procurava um<J doença, tal como relatei no caso du gota. Por esta razão. 
freqüentcmc:nte colocava-me M situação de provocar um certo mal-
estar. .. 
Descobri que n5o supor1ava muito tempo sem uma dor física pois neste 
ca~o uma certa angústia mental ~c upodernva de mim ( ... ) Por isso 
elaborei o plano de morder os lábios ou torcer meus dedos ou picar a 
pele do braço c:;querdo até chorur. Sob a proteção Llestc autotlagelo cu 
vivo sem sofrimento. !Cardano [I 575 J 1930; p. 5 I 2) 
43 
O texto acima é de G. Cardano ( 150 1-1576). médico. matemático c 
um dos grandes mágicos do seu tempo (medicina. matemática c magia 
vi nham quase sempre j untas, reunidas numa fantasia de onipotência e 
megalomania muito característica lia tradição a que também pertencem 
Marsilio Fici no, Giovani Pico Dclla Mirandola, Cornélio Agrípa e 
Giordano Bruno) (cf. Yates, 1987). Cardano escreveu De vira proppria 
liher. um dos primeiros exempl os consumados da escrita auto-
hiognífica. O autor o c~crcvcu já velho, pnuco antes de morrer e pouco 
depois de ter sido acusado (c absolvido) pela Inquisição, o que ocorria 
l'rcqücntcmcntc com praticantes da magia. É, enfim, um livro escrito 
entre duas experiências bastante perturbadoras de conversão. 
O tema da doença parece ter sido de grande inte resse no contexto 
da escritu autobiográfica: Can.lano descreveu as suas deta\hadamente 
ao se apresentar ; Calvino, de quem fa laremos mais adiante;' escreveu 
uma monografia somente sohrc este tema. na qual identifica os 
seguintes mal es: a rtrite, cálculos renais, desordens intes tin a is 
inespecífi cas, ht:morróidas. hemorrngias estomacais, febres. nefritc, gota 
e cãibras musculares. O objeti vo do grande ref01mador era o de oferecer 
o se u 'c:aso' à fac uldade de medicina de Montpel lier. Mas, 
indt! pendenH:mcnte desta ge neros idade edi fi cante, nas suas cartas 
pessoais do final da vida há um agudo sentido de observação destes 
processos de corrupção do corpo e desintegração do organismo, que 
o transformam plenamente naquele aglomerado de "partes e pedaços 
juntados de maneira casual e diversa" de que nos falava Montaig ne. 
Esta sensib ilidade qu in he nt ista ao diverso da al ma e ao 
esfacelamento do corpo talvez nos ajude a entender a própria voga da 
li teratura autobiográfica.~ Desde o tina[ do século XIV começ.~ram a 
ser redigidos na Itália alguns textos nos quais grandes comerciantes 
registravam suas vidas. seus negócios, suas convicções políticas e 
re I igiosas. Ao que parece. o oh jeti v o de les era o de gara nti r a 
cont inu idade das tradições familiares, c seus escritos não se 
destinavam à publicação, mas apenas ao uso e proveito dos membros 
da família c;: amigos (c f. Gugl ielmineti, 1983). Não e ram ainda 
autobiogratias como as de Curdano e B. Celini ( 1500- 1571 ), mas já eram 
dispositivos destinados a conservar a continuidade do grupo num 
perfodo em que se generalizavam as experiências de 'conversão' 
(sm.:cssos c fracassos comerciais, transtornos na ordem polftica etc .). 
As autobi ografias posteriores cen tram-se na vida do autor, nas suas 
44 
carac terfs ticas físicas e morais, nas suas doenças e achaques. nas suas 
~renças e, principalmente, nns suas rea li7.ações. São text os que 
partic ipam do projeto de conservar a memória e 'pe rmanecer na 
memória' , no sentido de alcançar a fama c perpetuar o nome do autor, 
segundo as palavras do próprio Cardnno. 
N() conjunto, as aut obiografias quinhentis tas, bem como as 
crônicas familiares e as crôn icas de c idades e povos -que se 
dest:nvolvcram mercê do esforço de homens como João de Barros c 
os Guicciardini (o tio Francesco c o sobrinho Ludovico) - , parecem 
representar um uso específico da mcm6ria: a memória destinada a 
estabilizar. dar permanência, continu idndc e sentido a experiênciasindividuais ou grupai s sujeitas a sucessivas conversões, torções, 
adQccimcntos e aniquilamentos . Falar de si, falar de suac; conversões 
e de suas doenças seria. enlão, uma estratégia para reconquistar 
imaginariamente a unidade da vida c a integridade do corpo. 
Em úl tima instância. porém. nenhuma memória humana será capaz 
de assegurar a unidade de sentido de vidas tão convulsionadas. As 
memórias se perdem, se emharalham, por mais caute losos e engenhosos 
que se:jam os dispositivos para conservá-las. O mais sério. contudo, é 
que a memória conserva e mantém junto o que tende à dispersão, mas 
não é sufic iente para. solioha, atribuir <l U descohri r sentido naquilo 
que aparentemente não tem nenhum. É neste contexto que se pode, 
talvel. entender a força de atração da idéia de predesTinação, tal C(.lmO 
defendida por Calvino ( 1500-1564 ). entre outros. 
A predesti naçãu faz com que, para além de todas as torções, a 
vida de cada um tenha um significado consistente e permanente diante 
da memória de Deus: ·'Chamamos de predestinação o eterno decreto 
de Dc:us, pelo que ele determinou a Si mesmo no que Ele haveria de 
tornar cada indivíduo da humanidade" (Calvino [ 15371 1977; p. 71 1 ). 
As dec isões de Deus são tão permanentes e a sua ' memória' 
delas é tão fiel que, a rigor, para ele nada é futu ro nem passado c tudo 
é presente, faz sentido. é um passo neces~ário e inevitável do destino. 
Conversões c torções não são apenas obje tos de comentários 
perplexos c jocosos, de observações 'cHnicas' do próprio adoecimento 
ou do controle imagi nário pela via autohiográfica ou dn crença na 
predestinação. 
Conversões e torções es tão acusti camente representadas na 
música contrapontístu c artificiosa do esti lo borgonhês. como vimos 
45 
Mônica
Realce
O texto acima é de G. Cardano ( 150 1-1576). médico. matemático c 
um dos grandes mágicos do seu tempo (medicina. matemática c magia 
vi nham quase sempre j untas, reunidas numa fantasia de onipotência e 
megalomania muito característica lia tradição a que também pertencem 
Marsilio Fici no, Giovani Pico Dclla Mirandola, Cornélio Agrípa e 
Giordano Bruno) (cf. Yates, 1987). Cardano escreveu De vira proppria 
liher. um dos primeiros exempl os consumados da escrita auto-
hiognífica. O autor o c~crcvcu já velho, pnuco antes de morrer e pouco 
depois de ter sido acusado (c absolvido) pela Inquisição, o que ocorria 
l'rcqücntcmcntc com praticantes da magia. É, enfim, um livro escrito 
entre duas experiências bastante perturbadoras de conversão. 
O tema da doença parece ter sido de grande inte resse no contexto 
da escritu autobiográfica: Can.lano descreveu as suas deta\hadamente 
ao se apresentar ; Calvino, de quem fa laremos mais adiante;' escreveu 
uma monografia somente sohrc este tema. na qual identifica os 
seguintes mal es: a rtrite, cálculos renais, desordens intes tin a is 
inespecífi cas, ht:morróidas. hemorrngias estomacais, febres. nefritc, gota 
e cãibras musculares. O objeti vo do grande ref01mador era o de oferecer 
o se u 'c:aso' à fac uldade de medicina de Montpel lier. Mas, 
indt! pendenH:mcnte desta ge neros idade edi fi cante, nas suas cartas 
pessoais do final da vida há um agudo sentido de observação destes 
processos de corrupção do corpo e desintegração do organismo, que 
o transformam plenamente naquele aglomerado de "partes e pedaços 
juntados de maneira casual e diversa" de que nos falava Montaig ne. 
Esta sensib ilidade qu in he nt ista ao diverso da al ma e ao 
esfacelamento do corpo talvez nos ajude a entender a própria voga da 
li teratura autobiográfica.~ Desde o tina[ do século XIV começ.~ram a 
ser redigidos na Itália alguns textos nos quais grandes comerciantes 
registravam suas vidas. seus negócios, suas convicções políticas e 
re I igiosas. Ao que parece. o oh jeti v o de les era o de gara nti r a 
cont inu idade das tradições familiares, c seus escritos não se 
destinavam à publicação, mas apenas ao uso e proveito dos membros 
da família c;: amigos (c f. Gugl ielmineti, 1983). Não e ram ainda 
autobiogratias como as de Curdano e B. Celini ( 1500- 1571 ), mas já eram 
dispositivos destinados a conservar a continuidade do grupo num 
perfodo em que se generalizavam as experiências de 'conversão' 
(sm.:cssos c fracassos comerciais, transtornos na ordem polftica etc .). 
As autobi ografias posteriores cen tram-se na vida do autor, nas suas 
44 
carac terfs ticas físicas e morais, nas suas doenças e achaques. nas suas 
~renças e, principalmente, nns suas rea li7.ações. São text os que 
partic ipam do projeto de conservar a memória e 'pe rmanecer na 
memória' , no sentido de alcançar a fama c perpetuar o nome do autor, 
segundo as palavras do próprio Cardnno. 
N() conjunto, as aut obiografias quinhentis tas, bem como as 
crônicas familiares e as crôn icas de c idades e povos -que se 
dest:nvolvcram mercê do esforço de homens como João de Barros c 
os Guicciardini (o tio Francesco c o sobrinho Ludovico) - , parecem 
representar um uso específico da mcm6ria: a memória destinada a 
estabilizar. dar permanência, continu idndc e sentido a experiências 
individuais ou grupai s sujeitas a sucessivas conversões, torções, 
adQccimcntos e aniquilamentos . Falar de si, falar de suac; conversões 
e de suas doenças seria. enlão, uma estratégia para reconquistar 
imaginariamente a unidade da vida c a integridade do corpo. 
Em úl tima instância. porém. nenhuma memória humana será capaz 
de assegurar a unidade de sentido de vidas tão convulsionadas. As 
memórias se perdem, se emharalham, por mais caute losos e engenhosos 
que se:jam os dispositivos para conservá-las. O mais sério. contudo, é 
que a memória conserva e mantém junto o que tende à dispersão, mas 
não é sufic iente para. solioha, atribuir <l U descohri r sentido naquilo 
que aparentemente não tem nenhum. É neste contexto que se pode, 
talvel. entender a força de atração da idéia de predesTinação, tal C(.lmO 
defendida por Calvino ( 1500-1564 ). entre outros. 
A predesti naçãu faz com que, para além de todas as torções, a 
vida de cada um tenha um significado consistente e permanente diante 
da memória de Deus: ·'Chamamos de predestinação o eterno decreto 
de Dc:us, pelo que ele determinou a Si mesmo no que Ele haveria de 
tornar cada indivíduo da humanidade" (Calvino [ 15371 1977; p. 71 1 ). 
As dec isões de Deus são tão permanentes e a sua ' memória' 
delas é tão fiel que, a rigor, para ele nada é futu ro nem passado c tudo 
é presente, faz sentido. é um passo neces~ário e inevitável do destino. 
Conversões c torções não são apenas obje tos de comentários 
perplexos c jocosos, de observações 'cHnicas' do próprio adoecimento 
ou do controle imagi nário pela via autohiográfica ou dn crença na 
predestinação. 
Conversões e torções es tão acusti camente representadas na 
música contrapontístu c artificiosa do esti lo borgonhês. como vimos 
45 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
no início e plasticamente representadas na pintura e escu ltura 
maneirista (c f. Hause r, 1976). Seres contorcidos, movimentos 
apreendidos no exato momento em que os corpos parecem prestes a 
se desfazer, membros, dorsos e cabeças mantidos numa união precária 
e num equilíbrio improvável. O estilo maneirista, todavia, é mais que a 
representação do corpo em vias de se despedaçar. É a representação 
congelada e congelante. artificial , estilizada, polida, supercultivada, 
envernizada dos corpos e dos movime ntos. É , ass im, menos a 
representação da desintegração do que a representação como defesa 
contra a desintegração. O esti lo do amaneiramento é o da imitação, o 
da adesão prcciosística a modelos. a imagens idealizadas a serem 
reverenciadas e copiadas como garantias de uma unidade a que nada 
ccmcsponde no plano da experiência. Pode-se encontrar, nesta medida, 
uma equivalência fun cio nal entre a escri ta autobiográfica, 
principalmente nos seus momentos hipocondríacos, e o estilo 
maneirista.5 
Na literatura, a linguagem também se contorce e se torna preciosae rchuscada e talvez o melhor exemplo disso apareça na forma de 
paródia: são os diálogos ou monólogos de dom Quixote, de que 
Cervantes tira um grande partido cômico. 
São, todas essas, expressões de experiências de uma desintegração 
da subjeti vidade, acompanhadas de uma atenção mórbida em si mesma 
e do recurso a crenças e técnicas de consolidação e defesa da 
identidade que se tomou problemática. A cisão interior, as experiências 
'conversas' c 'controversas ' da subjetividade ameaçada e ainda os 
temas da corrup<;iio e do contágio encontram-se reunidos em ma.is este 
soneto quinhentista (e maneirista), de Shakespeare, que encerra o item 
que o soneto de Camões inaugurou: 
Soneto 144 
Dois amores -de paz e desespero -
Eu tenho que me inspiram noite e dia: 
Meu anjo bom é um homem puro e vero; 
O mau. uma mulher de tez sombria. 
Para levar a tentação a cabo, 
O feminino atrai meu anjo e vive 
A querer transformá-lo num diabo, 
Tentando-lhe a pureza com a lasdvia. 
Se há de meu anjo corromper-se em demo 
Suspeito apenas, sem dizer que seja; 
Mas sendo ambos t~o meuc;. e amigos. temo 
Que o anjo no fogo já do outro esteja. 
Nunca sahê-lo. embora desconfie. 
Até que o mau meu anjo contagie." 
A nostalgia dos anos dourados 
Muitas vezes o renascimento foi identificado como uma 'idade 
dourada'. Uma compreensão parcial desta época parece abonar tal 
opinião que. aliás, foi a de alguns dos maís renomados renascentistas 
e converteu-se na 'visão oficial ' da renascença depois da obra de J. 
Burckhardt, no final do século XIX. Os renascentistas, porém, mesmo 
quando entusiasmados com sua época, eram obrigados a perceber, ao 
lado da riqueza material c espiritual que então se produzia, fazia circular 
e consumia, aspectos extremamente desalentadores de corrupção, 
degeneração de costumes. empobrecimento, carestia e fome etc. Assim 
é que Erasmo, r:om um intervalo de poucos anos, exalta e deplora seu 
tempo com as palavras mais eloqüentes. 
Loys le Roy (15 10-1577), no De la vicissitude ou Varietés des 
choses en l'univers ((1575] 1977). após várias páginas de louvação 
detalhada aos avanços econômicos, teçnológicos e espiri tuais do 
século, reconhece que este é tam bém o século do apared mento de 
novas doenças, principalmente doenças transmissíveis sexualmente, da 
fragmentação da cristandade nas seitas protestantes e tantos outros 
males sociais, como a inflação, que o levam a dizer: 
Assim ninguém poderia imaginar qualquer espécie de infortúnio ou ví-
cio que não seja encontrado neste século, no mesmo tempo que revi vem 
as boas letras e as artes são restauradas. Não existe um só entre os cris-
tãos ou hárbaros que não tenha muito sofrido. Nenhuma parte da terra 
habitável, nenhuma pessoa livre de aflições que aumentam dia a dia e são 
muito bem conhecidas. pam a nossa perda e confusão. ([ 1575) 1977; p. 91) 
47 
Mônica
Realce
no início e plasticamente representadas na pintura e escu ltura 
maneirista (c f. Hause r, 1976). Seres contorcidos, movimentos 
apreendidos no exato momento em que os corpos parecem prestes a 
se desfazer, membros, dorsos e cabeças mantidos numa união precária 
e num equilíbrio improvável. O estilo maneirista, todavia, é mais que a 
representação do corpo em vias de se despedaçar. É a representação 
congelada e congelante. artificial , estilizada, polida, supercultivada, 
envernizada dos corpos e dos movime ntos. É , ass im, menos a 
representação da desintegração do que a representação como defesa 
contra a desintegração. O esti lo do amaneiramento é o da imitação, o 
da adesão prcciosística a modelos. a imagens idealizadas a serem 
reverenciadas e copiadas como garantias de uma unidade a que nada 
ccmcsponde no plano da experiência. Pode-se encontrar, nesta medida, 
uma equivalência fun cio nal entre a escri ta autobiográfica, 
principalmente nos seus momentos hipocondríacos, e o estilo 
maneirista.5 
Na literatura, a linguagem também se contorce e se torna preciosa 
e rchuscada e talvez o melhor exemplo disso apareça na forma de 
paródia: são os diálogos ou monólogos de dom Quixote, de que 
Cervantes tira um grande partido cômico. 
São, todas essas, expressões de experiências de uma desintegração 
da subjeti vidade, acompanhadas de uma atenção mórbida em si mesma 
e do recurso a crenças e técnicas de consolidação e defesa da 
identidade que se tomou problemática. A cisão interior, as experiências 
'conversas' c 'controversas ' da subjetividade ameaçada e ainda os 
temas da corrup<;iio e do contágio encontram-se reunidos em ma.is este 
soneto quinhentista (e maneirista), de Shakespeare, que encerra o item 
que o soneto de Camões inaugurou: 
Soneto 144 
Dois amores -de paz e desespero -
Eu tenho que me inspiram noite e dia: 
Meu anjo bom é um homem puro e vero; 
O mau. uma mulher de tez sombria. 
Para levar a tentação a cabo, 
O feminino atrai meu anjo e vive 
A querer transformá-lo num diabo, 
Tentando-lhe a pureza com a lasdvia. 
Se há de meu anjo corromper-se em demo 
Suspeito apenas, sem dizer que seja; 
Mas sendo ambos t~o meuc;. e amigos. temo 
Que o anjo no fogo já do outro esteja. 
Nunca sahê-lo. embora desconfie. 
Até que o mau meu anjo contagie." 
A nostalgia dos anos dourados 
Muitas vezes o renascimento foi identificado como uma 'idade 
dourada'. Uma compreensão parcial desta época parece abonar tal 
opinião que. aliás, foi a de alguns dos maís renomados renascentistas 
e converteu-se na 'visão oficial ' da renascença depois da obra de J. 
Burckhardt, no final do século XIX. Os renascentistas, porém, mesmo 
quando entusiasmados com sua época, eram obrigados a perceber, ao 
lado da riqueza material c espiritual que então se produzia, fazia circular 
e consumia, aspectos extremamente desalentadores de corrupção, 
degeneração de costumes. empobrecimento, carestia e fome etc. Assim 
é que Erasmo, r:om um intervalo de poucos anos, exalta e deplora seu 
tempo com as palavras mais eloqüentes. 
Loys le Roy (15 10-1577), no De la vicissitude ou Varietés des 
choses en l'univers ((1575] 1977). após várias páginas de louvação 
detalhada aos avanços econômicos, teçnológicos e espiri tuais do 
século, reconhece que este é tam bém o século do apared mento de 
novas doenças, principalmente doenças transmissíveis sexualmente, da 
fragmentação da cristandade nas seitas protestantes e tantos outros 
males sociais, como a inflação, que o levam a dizer: 
Assim ninguém poderia imaginar qualquer espécie de infortúnio ou ví-
cio que não seja encontrado neste século, no mesmo tempo que revi vem 
as boas letras e as artes são restauradas. Não existe um só entre os cris-
tãos ou hárbaros que não tenha muito sofrido. Nenhuma parte da terra 
habitável, nenhuma pessoa livre de aflições que aumentam dia a dia e são 
muito bem conhecidas. pam a nossa perda e confusão. ([ 1575) 1977; p. 91) 
47 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
O certo é qu e os verd adeiros anos dourados. para muit os, 
pareciam ser aqueles de antanho, quando as conversões eram raras, 
as margens c fro nteiras eram nítidas, as identidades duráveis. Algo 
disso podiam procurar na ressurreição da astrologia que, para usar mais 
uma vez as palavras de Lukács ( 1963; p. 19) (cf. 'A desnatureza humana 
ou o não no cen tro do mundo' ), parece restaurar" ... os tempos que 
podem ler no céu estrelado o mapa das vias que lhe são abertas e que 
eles devem percorrer''. 
Eram estes tempos que podiam ser revividos nas páginas dos 
romances de cavalaria, um dos gêneros mais beneficiados com a 
invenção da imprensa. A partir de alguns modelos já cx.istentes, como 
o Amadis de G(llda, construíram-se c editaram-se inúmeros romances 
em que os velhos herôis eram provados em novas aventuras ou novos 
heróis eram criados. Nestas continuações e plágios a qualidade literária 
ia se ndo progress ivame nte perdida c os cli chês da estilização 
amaneirada iam-se impondo. Quando o padre e o barbeiro tentam livrar 
dom Quixote da origem da sua loucura, incineram quase toda a biblioteca 
do fidalgo manchego, mas sal vamo Amadis. Com razão: ainda hoje a 
leitura do Amadi.\· de Gaula vale a pena. 
O Amadis narra em pequenos capítulos os antecedentes, o 
nasc imento, os rápidos anos de form ação, as centenas de aventuras 
mili tares e o amor do ti lho do rei Pcrion. de Gaula, e da princesa Elisena, 
fi lha do rei Garinter. Há tamhém diversos capítulos em que bri lha Galaor, 
irmão do herói. 
Toda a história - na qual se podem interpolar à vontade novos 
capítulos, mas na qual não é conveniente que se pule nenhum, porque 
quando menos se espera reaparecem velhos personagens - envolve 
centenas de nomes e centenas de viagens por florestas densas, 
palácios, estradas, encruzilhadas etc. No entanto, são poucos os 
personagens c as situações: há os cavaleiros bons, belos, mui leais, 
valentes, fortes. cristãos, cada qual melhor que todos e Amadis, o 
melhor deles .. . Há. por outro lado, os cavaleiros maus, ardilosos, 
covardes c traiçoeiros, que nã,o trepidam ao recorrer aos golpes baixos 
da magia, menos fortes, menos bonitos etc. Há muitas damas e uma 
verdadeira profusão de donzelas. muito independentes e salientes. 
sempre andando de cá para lá, levando recados, cumprindo missões 
dipl omáticas, exec utando intrigas mil itares e amorosas. Como 
48 
coadjuvantes, há gigantes e anões, magos. alguns escudeiros e pouco 
mais. Todos se dividem entre bons c maus. Todos se expressam em 
linguagem elevada, com muita compostura, mas ainda conservando uma 
certa naturalidade. 
As cenas e situações de batalhas se repetem envolvendo muita 
bravura, muito sangue e mui tas mones. membros decepados, cabeças 
rachadas até o maxilar, peitos varados de lado a lado etc. Tudo isso é 
contado com imensa agilidade, w m ligeireza e sem muito drama. 
Nas cenas de amor há mu ita tern ura, respei to, lágrimas 
(principalmente Amadis chora muito e quase morre quando, durante 
uma luta, ao ver Oriana "a sem par", seus olhos se enchem de lágrimas 
impedindo-lhe a visão do oponente). Há, também, moderadamente, mas 
sem disfarces, sexo. As rclaçôcs sexuais podem ocorrer sem muitos 
preâmbulos. É assim que Galaor é contemplado com uma donzela que 
se acha na obrigação de passar com ele a noite. quando o jovem fica 
hospedado no castelo de seu pai : tudo por dever de cortesia, embora 
fique implícita uma certa simpati a entre ambos. Da mesma forma, a 
própria relação de Perion com Elisena foi precedida por alguns olhares 
trocados durante o jantar que o rei Garinter oferecia ao forasteiro rei 
da Cauta c por algumas tramas da donzela da moça e do escudeiro do 
rei, a pedido dos interessados. Nesta mesma noite, Amadis foi 
concebido e, pelo torn da narrativa. acredita-se que sem pecado. No 
dia seguinte, Perion arrepia caminho. como se nada fosse. Elisena dá à 
luz Amadis, sozinha, discretamente, sem muxox.o ou indignação. Só mais 
tarde , mas não muito mais tarde. todos acabam se encontrando para 
formar uma família bastante fel iz. 
Em momento nenhum Perion é tratado como alguém que abusou 
da filha do rei Garinter. O rei Perion forma entre os bons, e os bons 
são fundamental e visceralmente leais, sentem-se comprometidos, 
cumprem religiosamente suas obrigações. são pessoas com quem se 
pode contar. Através de alguns indícios - no caso, um anel e uma 
espada-. Perion foi capaz de deixar muito claro para Elisena que, com 
ele, ela podia contar. E ela acreditou. 
Todos viajam e parecem não sair de casa. Os cavaleiros viajam 
sempre ·a serviço' para cumprir suas elevadas obrigações familiares 
(parentes em perigo) ou justiceiras (órfãs e viúvas a desagravar, por 
exemplo); estas viagens, contudo, são freqüentemente interrompidas 
49 
O certo é qu e os verd adeiros anos dourados. para muit os, 
pareciam ser aqueles de antanho, quando as conversões eram raras, 
as margens c fro nteiras eram nítidas, as identidades duráveis. Algo 
disso podiam procurar na ressurreição da astrologia que, para usar mais 
uma vez as palavras de Lukács ( 1963; p. 19) (cf. 'A desnatureza humana 
ou o não no cen tro do mundo' ), parece restaurar" ... os tempos que 
podem ler no céu estrelado o mapa das vias que lhe são abertas e que 
eles devem percorrer''. 
Eram estes tempos que podiam ser revividos nas páginas dos 
romances de cavalaria, um dos gêneros mais beneficiados com a 
invenção da imprensa. A partir de alguns modelos já cx.istentes, como 
o Amadis de G(llda, construíram-se c editaram-se inúmeros romances 
em que os velhos herôis eram provados em novas aventuras ou novos 
heróis eram criados. Nestas continuações e plágios a qualidade literária 
ia se ndo progress ivame nte perdida c os cli chês da estilização 
amaneirada iam-se impondo. Quando o padre e o barbeiro tentam livrar 
dom Quixote da origem da sua loucura, incineram quase toda a biblioteca 
do fidalgo manchego, mas sal vam o Amadis. Com razão: ainda hoje a 
leitura do Amadi.\· de Gaula vale a pena. 
O Amadis narra em pequenos capítulos os antecedentes, o 
nasc imento, os rápidos anos de form ação, as centenas de aventuras 
mili tares e o amor do ti lho do rei Pcrion. de Gaula, e da princesa Elisena, 
fi lha do rei Garinter. Há tamhém diversos capítulos em que bri lha Galaor, 
irmão do herói. 
Toda a história - na qual se podem interpolar à vontade novos 
capítulos, mas na qual não é conveniente que se pule nenhum, porque 
quando menos se espera reaparecem velhos personagens - envolve 
centenas de nomes e centenas de viagens por florestas densas, 
palácios, estradas, encruzilhadas etc. No entanto, são poucos os 
personagens c as situações: há os cavaleiros bons, belos, mui leais, 
valentes, fortes. cristãos, cada qual melhor que todos e Amadis, o 
melhor deles .. . Há. por outro lado, os cavaleiros maus, ardilosos, 
covardes c traiçoeiros, que nã,o trepidam ao recorrer aos golpes baixos 
da magia, menos fortes, menos bonitos etc. Há muitas damas e uma 
verdadeira profusão de donzelas. muito independentes e salientes. 
sempre andando de cá para lá, levando recados, cumprindo missões 
dipl omáticas, exec utando intrigas mil itares e amorosas. Como 
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coadjuvantes, há gigantes e anões, magos. alguns escudeiros e pouco 
mais. Todos se dividem entre bons c maus. Todos se expressam em 
linguagem elevada, com muita compostura, mas ainda conservando uma 
certa naturalidade. 
As cenas e situações de batalhas se repetem envolvendo muita 
bravura, muito sangue e mui tas mones. membros decepados, cabeças 
rachadas até o maxilar, peitos varados de lado a lado etc. Tudo isso é 
contado com imensa agilidade, w m ligeireza e sem muito drama. 
Nas cenas de amor há mu ita tern ura, respei to, lágrimas 
(principalmente Amadis chora muito e quase morre quando, durante 
uma luta, ao ver Oriana "a sem par", seus olhos se enchem de lágrimas 
impedindo-lhe a visão do oponente). Há, também, moderadamente, mas 
sem disfarces, sexo. As rclaçôcs sexuais podem ocorrer sem muitos 
preâmbulos. É assim que Galaor é contemplado com uma donzela que 
se acha na obrigação de passar com ele a noite. quando o jovem fica 
hospedado no castelo de seu pai : tudo por dever de cortesia, embora 
fique implícita uma certa simpati a entre ambos. Da mesma forma, a 
própria relação de Perion com Elisena foi precedida por alguns olhares 
trocados durante o jantar que o rei Garinter oferecia ao forasteiro rei 
da Cauta c por algumas tramas da donzela da moça e do escudeiro do 
rei, a pedido dos interessados. Nesta mesma noite, Amadis foi 
concebido e, pelo torn da narrativa. acredita-se que sem pecado. No 
dia seguinte, Perion arrepia caminho. como se nada fosse. Elisena dá à 
luz Amadis, sozinha, discretamente, sem muxox.o ou indignação. Só mais 
tarde , mas não muito mais tarde. todos acabam se encontrando para 
formar uma família bastante fel iz. 
Em momento nenhum Perion é tratado como alguém que abusou 
da filha do rei Garinter. O rei Perion forma entre os bons, e os bons 
são fundamental e visceralmente leais, sentem-se comprometidos, 
cumprem religiosamente suas obrigações. são pessoas com quem se 
pode contar. Através de algunsindícios - no caso, um anel e uma 
espada-. Perion foi capaz de deixar muito claro para Elisena que, com 
ele, ela podia contar. E ela acreditou. 
Todos viajam e parecem não sair de casa. Os cavaleiros viajam 
sempre ·a serviço' para cumprir suas elevadas obrigações familiares 
(parentes em perigo) ou justiceiras (órfãs e viúvas a desagravar, por 
exemplo); estas viagens, contudo, são freqüentemente interrompidas 
49 
por outras obrigações imprevistas e mais urgentes. Os cavaleiros nunca 
rejeitam uma tarefa. por mais bizarra que pareça (e por isso estão sempre 
caindo em ciladas), nunca rejeitam um desafio, por mais inoportuno e 
desmiolado que seja: alguns cavaleiros desocupados. por exemplo, 
postavam-se no meio de uma estrada movimentada e tentavam obstruir 
o trânsito pelo simples pra7.er de lutar com quem não se conformasse 
- destas lutas aparentemente desnecessárias saíam muitos feridos e 
outros tantos mortos! Nossos bons cavaleiros Amadis e Galaor não 
perdem nenhuma oportunidade de mostrar serviço; onde quer que se 
encontrem e o q ue quer que façam, çonservam seus vínculos c 
compromissos. Por isso, talvez, pareçam nunca ter pressa em chegar a 
parte alguma, embora estejam sempre indo para alguma parte. 
É um mundo fechado, redondo, no qual vigora uma temporalidade 
circular, e o sentido da vida está homogeneamente distribuído: não há 
regiões ou momentos em que faça mais sentido estar. Não há regiões 
ou momentos sem sentido. Não há lacunas e vazios. É um mundo pleno, 
povoado de seres facilmente ide ntifi<.:áveis, mesmo se monstruosos. 
Não apenas prevalece neste mundo o bem - que mesmo quando 
provisoriamente derrotado, rapidamente se recupera. desfazendo de 
imediato o suspense; neste mundo prevalece o sentido. Com um mundo 
assim talvez sonhassem os leitores do século XVI, quando o original 
espanhol foi traduzido pela Europa inteira c o livro lido por nobres, 
reis, burgueses, donas·de-"Casa e religiosos de refinada espiritual idade. 
A noslalgia com o mundo da cavalaria foi belamente expressa 
por Cervantes (1547- 1616), no famoso monólogo de dom Quixote 
(pérola do estilo amaneirado) diante de uns cabreiros. no capítulo XI. 
"Ditosos e afortunados os séçulos aqueles a que os antigos puseram 
o nome de dourados ... " , inicia o fidalgo, para prosseguir na enumeração 
das vantagens dos tempos de então sobre o seu próprio tempo. São 
as mazelas deste seu tempo que tornam para ele imperiosa e urgente a 
tarefa de reconsti tuição da ordem da cavalaria " ... defensora das 
donzelas , amparadora das viúvas e soc orredo ra dos órfãos e 
necessitados ... " para que e la fizesse rcwrnar o mundo ao tempo em 
que " ... com a verdade e a lhaneza não se tinham ainda misturado a 
fraude , o engano c a malícia". 
50 
Reformas 
Se a nostalgia se expressa costumeiramente em fantasias 
escapistas. em dom Quixote encarna-se, também, o espírito da reforma. 
tão característico do período tina[ do Renascimento. Mas se o esforço 
de dom Quixote não resultou no renasç imento da ordem da cavalaria e 
no retorno aos 'ditosos tempos', ao menos não deu com ele na fogueira, 
como ocorreu com muitos outros rcfonnadorcs menos afortunados. 
Dois anos antes do rompimento do século XVI , o frade Girolamo 
Savonarola { 1452- 1498), depois de ter empolgado o povo, artistas c 
intelectuais norentinos e assumido o governo de Florença, com um 
grande projeto de reforma política c moral, foi destituído do poder e 
queimado. 
Cem anos depois , um ex - frade dominicano herético foi 
encarcerado por liderar um movimento reformista radical no sul da Itália: 
chamava-se Tommaso Campanella ( 1568-1 639) e esteve preso por 27 
anos. 
Um ano depois da prisão tlc Campanclla, um outro ex-dominicano, 
Giordano Bruno ( 1548-1600), foi julgado pela Inquisição romana e 
queimado devido às suas crenças e atividades reformistas no campo 
das idéias científicas c religiosas. 
Entre as fogueiras que consumiram Savonarola e Bruno passaram-
se exatamente 102 anos. Neste século muitos reformadores enfrentaram 
o exíl io (como Calvino e Maquiavel), tiveram problemas com a 
Inquisição (como Santo Inácio c Santa Teresa), perderam, literalmente, 
a cabeça (como Thomas More) etc. Assim sendo, a morte de dom 
Quixote na cama de sua casa pode ser considerada um final leliz, apesar 
de todo o sofrimento que lhe trouxe a lucidez finalmente recuperada. 
Tentarei, em seguida, caracterizar sumariamente as condições em 
que todos os projetos de reforma podem se conscituir. 
Como motor c condi<;ão de possibilidade de lodas as reformas, 
encontraremos sempre a diversificação e complexidade das fonnas de 
existências individuais e coletivas, as experiências de dispersão das 
identidades e as conversões. a variedade e entrechoque de diferenças 
lingüísticas. religiosas. pessoais etc. 
51 
Mônica
Realce
por outras obrigações imprevistas e mais urgentes. Os cavaleiros nunca 
rejeitam uma tarefa. por mais bizarra que pareça (e por isso estão sempre 
caindo em ciladas), nunca rejeitam um desafio, por mais inoportuno e 
desmiolado que seja: alguns cavaleiros desocupados. por exemplo, 
postavam-se no meio de uma estrada movimentada e tentavam obstruir 
o trânsito pelo simples pra7.er de lutar com quem não se conformasse 
- destas lutas aparentemente desnecessárias saíam muitos feridos e 
outros tantos mortos! Nossos bons cavaleiros Amadis e Galaor não 
perdem nenhuma oportunidade de mostrar serviço; onde quer que se 
encontrem e o q ue quer que façam, çonservam seus vínculos c 
compromissos. Por isso, talvez, pareçam nunca ter pressa em chegar a 
parte alguma, embora estejam sempre indo para alguma parte. 
É um mundo fechado, redondo, no qual vigora uma temporalidade 
circular, e o sentido da vida está homogeneamente distribuído: não há 
regiões ou momentos em que faça mais sentido estar. Não há regiões 
ou momentos sem sentido. Não há lacunas e vazios. É um mundo pleno, 
povoado de seres facilmente ide ntifi<.:áveis, mesmo se monstruosos. 
Não apenas prevalece neste mundo o bem - que mesmo quando 
provisoriamente derrotado, rapidamente se recupera. desfazendo de 
imediato o suspense; neste mundo prevalece o sentido. Com um mundo 
assim talvez sonhassem os leitores do século XVI, quando o original 
espanhol foi traduzido pela Europa inteira c o livro lido por nobres, 
reis, burgueses, donas·de-"Casa e religiosos de refinada espiritual idade. 
A noslalgia com o mundo da cavalaria foi belamente expressa 
por Cervantes (1547- 1616), no famoso monólogo de dom Quixote 
(pérola do estilo amaneirado) diante de uns cabreiros. no capítulo XI. 
"Ditosos e afortunados os séçulos aqueles a que os antigos puseram 
o nome de dourados ... " , inicia o fidalgo, para prosseguir na enumeração 
das vantagens dos tempos de então sobre o seu próprio tempo. São 
as mazelas deste seu tempo que tornam para ele imperiosa e urgente a 
tarefa de reconsti tuição da ordem da cavalaria " ... defensora das 
donzelas , amparadora das viúvas e soc orredo ra dos órfãos e 
necessitados ... " para que e la fizesse rcwrnar o mundo ao tempo em 
que " ... com a verdade e a lhaneza não se tinham ainda misturado a 
fraude , o engano c a malícia". 
50 
Reformas 
Se a nostalgia se expressa costumeiramente em fantasias 
escapistas. em dom Quixote encarna-se, também, o espírito da reforma. 
tão característico do período tina[ do Renascimento. Mas se o esforço 
de dom Quixote não resultou no renasç imento da ordem da cavalaria e 
no retorno aos 'ditosos tempos', ao menos não deu com ele na fogueira, 
como ocorreu com muitos outros rcfonnadorcs menos afortunados. 
Dois anos antes do rompimento do século XVI , o frade Girolamo 
Savonarola { 1452- 1498), depois de ter empolgado o povo, artistas c 
intelectuais norentinos e assumido o governo de Florença, com um 
grande projeto de reforma política c moral, foi destituído do poder e 
queimado. 
Cem anos depois , um ex - frade dominicano herético foi 
encarcerado por liderar um movimentoreformista radical no sul da Itália: 
chamava-se Tommaso Campanella ( 1568-1 639) e esteve preso por 27 
anos. 
Um ano depois da prisão tlc Campanclla, um outro ex-dominicano, 
Giordano Bruno ( 1548-1600), foi julgado pela Inquisição romana e 
queimado devido às suas crenças e atividades reformistas no campo 
das idéias científicas c religiosas. 
Entre as fogueiras que consumiram Savonarola e Bruno passaram-
se exatamente 102 anos. Neste século muitos reformadores enfrentaram 
o exíl io (como Calvino e Maquiavel), tiveram problemas com a 
Inquisição (como Santo Inácio c Santa Teresa), perderam, literalmente, 
a cabeça (como Thomas More) etc. Assim sendo, a morte de dom 
Quixote na cama de sua casa pode ser considerada um final leliz, apesar 
de todo o sofrimento que lhe trouxe a lucidez finalmente recuperada. 
Tentarei, em seguida, caracterizar sumariamente as condições em 
que todos os projetos de reforma podem se conscituir. 
Como motor c condi<;ão de possibilidade de lodas as reformas, 
encontraremos sempre a diversificação e complexidade das fonnas de 
existências individuais e coletivas, as experiências de dispersão das 
identidades e as conversões. a variedade e entrechoque de diferenças 
lingüísticas. religiosas. pessoais etc. 
51 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Enquan to o mundo se apresenta íntegro e pleno, totalmente 
preenchido, para não dizer entupido, de significado e valor, e enquanto 
a vida se desenrola inteiriça c contínua, não há nem necessidade nem 
possibilidade de empreendimentos reformadores. 
Não há necessidade de reformas, naturalmente, porque não há 
misturas a separar, torções a endireitar, degenerações a reverter, 
pedaços descosidos a costurar. É claro que este mundo contém o mal, 
conhece o medo e já é palco de intervenções corretoras: toda a vida 
de um cavaleiro, como Amadis, era - imaginariamente - uma perene 
batalha contra a maldade c a inj ustiça. O que este mundo não contém 
é o vazio, a ausência de sentido, a ameaça de aniquilamento e de 
diluição das identidades. Este mundo não conhece a angústia na 
ampli tude em que tal experiência acomete o mundo renascenti sta, 
principalmente neste período avançado do renascimento. Só então os 
projetos de refom1a podem emergir como tarefa de um indivíduo ou de 
uma coletividade. 
Além de não ser necessário, não é também possível colocar-se 
na posição de reformador antes que a desarticulação da experiência 
ofereça pontos de vista e perspectivas excê111ricos a partir dos quais 
a vida possa ser criticamente avaliada e corrigida. Não é nunca do 
centro do mundo que se projeta uma reforma: o refonnismo pressupõe 
um universo descentrado ou policentrado. 
O universo dos reformadores é, em relação ao das 'civilizações 
fechadas'. mais homogêneo c mais heterogêneo. Mais homogêneo 
porq ue não há mais um único centro (político, religioso, cultural} 
cercado de regiões mais ou menos periféricas e que existem nas/pe las 
suas relações centrípetas. Agora há outras vozes, outros ângulos a 
partir dos quais se pode falar do mundo e apreciá-lo. O mundo fi cou 
menos hierarqui7..ado c a distinção clara entre centro e periferia (por 
exemplo, entre dogma e heresia) tende a se dissolver. 
Por outro lado, como se viu ao comentar o Amadis de Gaula, 
nas 'civilinções fechadas' as experiências todas faziam sentido c 
tinham valor. A partir do centro, valor e significado esparramavam-se 
homogeneamente sobre as experiências humanas. Agora passam a 
haver regiões c momentos privilegiados a partir dos quais o homem 
pode contemplar o mundo, sua época e sua vida e tentar refonná-las. 
52 
Nesta medida, o reformismo pressupõe, em primeiro lugar, a 
autonomização das esferas (políticas, religiosas, artística<; etc.). Mesmo 
que o projeto de reforma se lance sobre todo o campo da experiência 
humanu. sempre o fará a partir de uma esfera privilegiada: Maquiave l 
pensa a religião na Itália desde a política; Calvino pensa a política e a 
arte em Genebra desde a religião, por exemplo. 
O reformismo tam bém pressupõe a periodização da história: 
apogeu versus decadência; decadência versus renascimento ou versus 
rd orma; "Nossos tempos'' l'er.sus "tempos dantanho'' ou versus 
" tempos vindouros" - on<le se inserem, por exemplo, os projetos 
utópicos de Thomas More (1478- 1535) c Campanella. Em outras 
palavras , os proj e tos de reforma são alimentados pelas tensões 
emergentes entre pedaços ou períodos do mundo e da história, ao 
mesmo tempo que contribuem para novos despedaçamentos. É assim, 
por exemplo, que a própria prolitcração de reformadores religiosos no 
século XVI passa a sinali zar uma crise de identidade do cristianismo a 
exigir um novo. e supostamente definitivo, projeto de reforma. 
Sem pretender entrar em detalhamentos excessivos, proponho que 
se distingam de início dois tipos de refonna que, não sendo mutuamente 
exclusivos, correspondem a diferentes orientações existenciais. 
Há reformas que se destinam a reconstituir o tecido esgarçado 
das regras, normas e leis capazes de suportar identidades claras e 
distintas e conferir significados unívocos e duráveis às coisas c às 
práticas. Por outro lado, há reformas que procuram um solo mais fundo 
do qual possam emergir formas mais livres e menos normatizadas de 
relação do homem com o seu mundo e com Deus. 
Os proje10s de reforma do primeiro tipo tendem para a codificação 
precisa das experiências, para o controle metódico da vida: o que e 
como fazer, o que c como pensar, o que e como comer, como vestir, o 
que c como falar , como se apresentar c como se encobrir, como rezar. 
como compor, como cantar etc . 7 
As codificações das boas maneiras ci vis estavam na 'ordem do 
dia' e receberam um tratamento muito elucidativo na obra de Norbert 
Elias ([ 1939] 1973). Com ele, ficamos sabendo que mesmo um espírito 
e levado e aberto como Erasmo julgava indispensável escrever um livro 
como De c:ivilitate morun Puerilium ( 1530) dedicado à educação 
infantil, no qual ensina: 
53 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Enquan to o mundo se apresenta íntegro e pleno, totalmente 
preenchido, para não dizer entupido, de significado e valor, e enquanto 
a vida se desenrola inteiriça c contínua, não há nem necessidade nem 
possibilidade de empreendimentos reformadores. 
Não há necessidade de reformas, naturalmente, porque não há 
misturas a separar, torções a endireitar, degenerações a reverter, 
pedaços descosidos a costurar. É claro que este mundo contém o mal, 
conhece o medo e já é palco de intervenções corretoras: toda a vida 
de um cavaleiro, como Amadis, era - imaginariamente - uma perene 
batalha contra a maldade c a inj ustiça. O que este mundo não contém 
é o vazio, a ausência de sentido, a ameaça de aniquilamento e de 
diluição das identidades. Este mundo não conhece a angústia na 
ampli tude em que tal experiência acomete o mundo renascenti sta, 
principalmente neste período avançado do renascimento. Só então os 
projetos de refom1a podem emergir como tarefa de um indivíduo ou de 
uma coletividade. 
Além de não ser necessário, não é também possível colocar-se 
na posição de reformador antes que a desarticulação da experiência 
ofereça pontos de vista e perspectivas excê111ricos a partir dos quais 
a vida possa ser criticamente avaliada e corrigida. Não é nunca do 
centro do mundo que se projeta uma reforma: o refonnismo pressupõe 
um universo descentrado ou policentrado. 
O universo dos reformadores é, em relação ao das 'civilizações 
fechadas'. mais homogêneo c mais heterogêneo. Mais homogêneo 
porq ue não há mais um único centro (político, religioso, cultural} 
cercado de regiões mais ou menos periféricas e que existem nas/pe las 
suas relações centrípetas. Agora há outras vozes, outros ângulos a 
partir dos quais se pode falar do mundo e apreciá-lo. O mundo fi cou 
menos hierarqui7..ado c a distinção clara entre centro e periferia (porexemplo, entre dogma e heresia) tende a se dissolver. 
Por outro lado, como se viu ao comentar o Amadis de Gaula, 
nas 'civilinções fechadas' as experiências todas faziam sentido c 
tinham valor. A partir do centro, valor e significado esparramavam-se 
homogeneamente sobre as experiências humanas. Agora passam a 
haver regiões c momentos privilegiados a partir dos quais o homem 
pode contemplar o mundo, sua época e sua vida e tentar refonná-las. 
52 
Nesta medida, o reformismo pressupõe, em primeiro lugar, a 
autonomização das esferas (políticas, religiosas, artística<; etc.). Mesmo 
que o projeto de reforma se lance sobre todo o campo da experiência 
humanu. sempre o fará a partir de uma esfera privilegiada: Maquiave l 
pensa a religião na Itália desde a política; Calvino pensa a política e a 
arte em Genebra desde a religião, por exemplo. 
O reformismo tam bém pressupõe a periodização da história: 
apogeu versus decadência; decadência versus renascimento ou versus 
rd orma; "Nossos tempos'' l'er.sus "tempos dantanho'' ou versus 
" tempos vindouros" - on<le se inserem, por exemplo, os projetos 
utópicos de Thomas More (1478- 1535) c Campanella. Em outras 
palavras , os proj e tos de reforma são alimentados pelas tensões 
emergentes entre pedaços ou períodos do mundo e da história, ao 
mesmo tempo que contribuem para novos despedaçamentos. É assim, 
por exemplo, que a própria prolitcração de reformadores religiosos no 
século XVI passa a sinali zar uma crise de identidade do cristianismo a 
exigir um novo. e supostamente definitivo, projeto de reforma. 
Sem pretender entrar em detalhamentos excessivos, proponho que 
se distingam de início dois tipos de refonna que, não sendo mutuamente 
exclusivos, correspondem a diferentes orientações existenciais. 
Há reformas que se destinam a reconstituir o tecido esgarçado 
das regras, normas e leis capazes de suportar identidades claras e 
distintas e conferir significados unívocos e duráveis às coisas c às 
práticas. Por outro lado, há reformas que procuram um solo mais fundo 
do qual possam emergir formas mais livres e menos normatizadas de 
relação do homem com o seu mundo e com Deus. 
Os proje10s de reforma do primeiro tipo tendem para a codificação 
precisa das experiências, para o controle metódico da vida: o que e 
como fazer, o que c como pensar, o que e como comer, como vestir, o 
que c como falar , como se apresentar c como se encobrir, como rezar. 
como compor, como cantar etc . 7 
As codificações das boas maneiras ci vis estavam na 'ordem do 
dia' e receberam um tratamento muito elucidativo na obra de Norbert 
Elias ([ 1939] 1973). Com ele, ficamos sabendo que mesmo um espírito 
e levado e aberto como Erasmo julgava indispensável escrever um livro 
como De c:ivilitate morun Puerilium ( 1530) dedicado à educação 
infantil, no qual ensina: 
53 
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Mônica
Realce
Não é polido saudar um homem quando urina ou defeca. Faz mal à saúde 
reter a urina, convém despejá-la em segredo. Alguns recomendam ao 
jovem reter um peido contraindo as nádegas. Mas nào! É errado contrair 
uma <.loença por querer ser educado. Se se pode sair, convém o fazer a 
distânc..:ia. 
Caso contrário, deve-se seguir o velho preceito: encobrir o barulho com 
uma tosse. (cf. Erasmo; apud Elias (1939] 1973) 
Provavelmente, foi nos campos da teologia e da organização das 
práticas l'eligiosas que o espfrito coditicador se revelou mais diligente, 
mas também nos campos da política c da estética ele está presente, 
como se verá a seguir. 
Entre os projetos de codificação, convém diferenciar entre os que 
procuram modelos antigos - ou supostamente antigos - e os que vão 
buscar nas experiências as bases para a ordenação do mundo, o que 
não exclui a possibilidade das dut~s orientações estarem presentes numa 
mesma obra reformadora. 
Há, por um lado, um forte e diversificado movimento de procura 
de modelos nas filosofias gregas, na filosofia e oratória romanas, nas 
crenças e práticas do cristianismo primitivo e na fil osofia e religião 
egípcia c babilônica, sempre à husca de normas autorizadas para a 
interpretação do mundo c condução da vida. Vai ser, por exemplo, a 
partir da tradição pitagórico-platõnica associada a uma suposta 
redescobcrta da religião egípcia que emerge o racio nali smo 
numerológico e hermético da refonna cosmológica defendida por 
Giordano Bruno (c f. Yates, 1987). É curioso ver como esta tradição ajuda 
Bruno a ordenar o campo de suas experiências através de uma técnica 
mnemônica bem diferente da que vimos sendo praticada por Matteo 
Ricci. Pela técnica de Bruno, todas as coisas do mundo deveriam ser 
representadas e conservadas como invólucro circular de um núcleo de 
imagens celestiais arquetípicas. A memória não é um palácio, é uma 
roda girando em tomo de um eixo mágico que contém em si o mundo 
todo e a que se podem ligar todas as coisas do mundo na sua infi nidade 
variada. Não deixa de chamar a atenção o fato de que o mesmo Bruno, 
que construiu a imagem de um universo sem centro e sem limites, de 
um universo infinito, é levado a lidar com este universo mediante o 
recurso a uma imagem perfeitamente circular. concêntrica e redutora. 
54 
Na mesma tradição pitagórico- platôn ica insere-se a reforma da 
música proposta pelo nohre florentino Vincenzo Galilei, pai do famoso 
astrônomo. Convém, quanto mais não seja para conhecer o ambiente 
em que se criou Galileu - o que nos será útil num próximo ensaio -, 
que nos detenhamos um pouco na obra do pai Vincenzo ( 1523-1591 ). 
A música a ser reformuda, a ser na verdade erradicada pela 
reforma, é a polifonia llamenga.• Vincenzo Galilei não se conforma com 
uma música que tenha perdido sua vocação espiritual, o compromisso 
com a verdade que teria caracterizado a música grega, para se converter 
num objeto de divertimento e prazer sensorial. Não aceita o caos, a 
confusão, a desordem das vozes simultâneas. O que há de mal nesta 
desordem, Galilei concede, não é que e la não possa ser agradável; ao 
contrário, o problema é que os compositores comrapontistas submetem 
a razão aos sentidos, a unidade do conceito ao sensorialmente diverso. 
A música refonnada deve rcnetir não a pura e simples variedade das 
coisas. mas as proporções matemáticas, as regularidades numéricas 
que subjazem à diversidade das formas, cores e sons: 
Homens sábios e judicio~os, quando vecm as várias formas e cores dos 
objetos não se satisfazem. c..:omo a multidão ignara, no mero prazer que 
a visão proporciona, mas apena~ investigando por derrás a mútua 
propriedade c proporção destes atributos incidentais e, da mesma forma. 
suas propriedades e nature..:a. (Galilei [ 1581] 1965; p. 11 8) 
Como já estamos aqui distantes daquela concepção da natureza 
como fonte de variação a ser imitada, que havíamos encontrado em 
Zarlino. E como esta reforma estética já está próxima à refonna na 
metodologia científica promovida pelo filho célebre de Vincenzo!Y 
Como exemplo de refonna que se mantém relativamente afastada 
de modelos antigos, pode-se mencionar a elaboração da ciência política 
por Maquiavel ( 1469- 1527). Observando a vida poHtica de seus 
contemporâneos e desenvolvendo estudos históricos, Maquiavel se 
propõe reordenar conceituaJ e praticamente - daf o caráter tecnológico 
de O príncipe ( 1513) - a República de Florença e toda a cristandade 
envo lvida neste tempo num processo dol oroso de lutas e 
desintegração. 
Finalmente, a nova astronomia de Nicolau Copérnico (1473-1543) 
é testemunho de uma complexa proposta de reordenação do cosmos a 
55 
Mônica
Realce
Não é polido saudar um homem quando urina ou defeca. Faz mal à saúde 
reter a urina, convém despejá-la em segredo. Alguns recomendam ao 
jovem reter um peido contraindo as nádegas. Mas nào! É errado contrair 
uma <.loença por querer ser educado. Se se pode sair, convém o fazer a 
distânc..:ia. 
Caso contrário, deve-se seguir o velho preceito: encobrir o barulho com 
umatosse. (cf. Erasmo; apud Elias (1939] 1973) 
Provavelmente, foi nos campos da teologia e da organização das 
práticas l'eligiosas que o espfrito coditicador se revelou mais diligente, 
mas também nos campos da política c da estética ele está presente, 
como se verá a seguir. 
Entre os projetos de codificação, convém diferenciar entre os que 
procuram modelos antigos - ou supostamente antigos - e os que vão 
buscar nas experiências as bases para a ordenação do mundo, o que 
não exclui a possibilidade das dut~s orientações estarem presentes numa 
mesma obra reformadora. 
Há, por um lado, um forte e diversificado movimento de procura 
de modelos nas filosofias gregas, na filosofia e oratória romanas, nas 
crenças e práticas do cristianismo primitivo e na fil osofia e religião 
egípcia c babilônica, sempre à husca de normas autorizadas para a 
interpretação do mundo c condução da vida. Vai ser, por exemplo, a 
partir da tradição pitagórico-platõnica associada a uma suposta 
redescobcrta da religião egípcia que emerge o racio nali smo 
numerológico e hermético da refonna cosmológica defendida por 
Giordano Bruno (c f. Yates, 1987). É curioso ver como esta tradição ajuda 
Bruno a ordenar o campo de suas experiências através de uma técnica 
mnemônica bem diferente da que vimos sendo praticada por Matteo 
Ricci. Pela técnica de Bruno, todas as coisas do mundo deveriam ser 
representadas e conservadas como invólucro circular de um núcleo de 
imagens celestiais arquetípicas. A memória não é um palácio, é uma 
roda girando em tomo de um eixo mágico que contém em si o mundo 
todo e a que se podem ligar todas as coisas do mundo na sua infi nidade 
variada. Não deixa de chamar a atenção o fato de que o mesmo Bruno, 
que construiu a imagem de um universo sem centro e sem limites, de 
um universo infinito, é levado a lidar com este universo mediante o 
recurso a uma imagem perfeitamente circular. concêntrica e redutora. 
54 
Na mesma tradição pitagórico- platôn ica insere-se a reforma da 
música proposta pelo nohre florentino Vincenzo Galilei, pai do famoso 
astrônomo. Convém, quanto mais não seja para conhecer o ambiente 
em que se criou Galileu - o que nos será útil num próximo ensaio -, 
que nos detenhamos um pouco na obra do pai Vincenzo ( 1523-1591 ). 
A música a ser reformuda, a ser na verdade erradicada pela 
reforma, é a polifonia llamenga.• Vincenzo Galilei não se conforma com 
uma música que tenha perdido sua vocação espiritual, o compromisso 
com a verdade que teria caracterizado a música grega, para se converter 
num objeto de divertimento e prazer sensorial. Não aceita o caos, a 
confusão, a desordem das vozes simultâneas. O que há de mal nesta 
desordem, Galilei concede, não é que e la não possa ser agradável; ao 
contrário, o problema é que os compositores comrapontistas submetem 
a razão aos sentidos, a unidade do conceito ao sensorialmente diverso. 
A música refonnada deve rcnetir não a pura e simples variedade das 
coisas. mas as proporções matemáticas, as regularidades numéricas 
que subjazem à diversidade das formas, cores e sons: 
Homens sábios e judicio~os, quando vecm as várias formas e cores dos 
objetos não se satisfazem. c..:omo a multidão ignara, no mero prazer que 
a visão proporciona, mas apena~ investigando por derrás a mútua 
propriedade c proporção destes atributos incidentais e, da mesma forma. 
suas propriedades e nature..:a. (Galilei [ 1581] 1965; p. 11 8) 
Como já estamos aqui distantes daquela concepção da natureza 
como fonte de variação a ser imitada, que havíamos encontrado em 
Zarlino. E como esta reforma estética já está próxima à refonna na 
metodologia científica promovida pelo filho célebre de Vincenzo!Y 
Como exemplo de refonna que se mantém relativamente afastada 
de modelos antigos, pode-se mencionar a elaboração da ciência política 
por Maquiavel ( 1469- 1527). Observando a vida poHtica de seus 
contemporâneos e desenvolvendo estudos históricos, Maquiavel se 
propõe reordenar conceituaJ e praticamente - daf o caráter tecnológico 
de O príncipe ( 1513) - a República de Florença e toda a cristandade 
envo lvida neste tempo num processo dol oroso de lutas e 
desintegração. 
Finalmente, a nova astronomia de Nicolau Copérnico (1473-1543) 
é testemunho de uma complexa proposta de reordenação do cosmos a 
55 
partir de uma tradição pitagórico-platônica, de uma inspiração 
heliocêntrica, proveniente, em última instância, do Egito antigo, e de 
um cuidado~o trabalho com as observaçõc~ de m ovimentos celestes, 
embora o pró prio Copé rnico tenha sido um observador medíocre (cf. 
Debus, 1981; Koyré, 1979; Martins, 1990; Yates, 1987). 
É a partir desta vertente de neocodificadores que se pode transitar 
mais facilmente para os reformadores que voltaram as costas para a lei 
e se apresentaram como vias de libertação de indivíduos e coletividades. 
Este~ refonnadores pretendem se enraizar em algo que, para além das 
diferenças e variações, seria o acervo comum de todos: certos poderes, 
certos direitos, certas experiências naturais de uma mesma cond ição 
humana. É o que sucede, por exemplo. quando se descobre o mesmo 
espírito religioso - e o mesmo Deus - não só em diferentes versões 
do cristianismo como até em diferentes rel igiões. O domin icano 
Bartolomeu Las Casas, por exemplo, defendeu diante do rei de Castela 
os índios americanos contra seus exlerminadores espanhóis, por 
acreditar que eles eram tão ou mai s religiosos - e cristãos, sem o 
saberem - que os cristãos europe us (cf. Todorov, 1983; Tuchle e 
Bouman, 1983). 
Concepções como esta resultam em perspectivas ultra-relativistas 
c no campo político, se levadas às últimas conseqüências, em projetos 
anárq uicos como o do jovem Eticnne de La Boétie (1530- 1563), no 
Discurso da servidão voluntária - 1548 (cf. Heydorn , 1988). 
Mantendo-se afastadas desta radicalização, todas as reformas que 
cami nharam no rumo da crítica às hierarquias, às regras e aos rituais 
se originam no mesmo terreno. A partir deste tronco, porém, encontram-
se muitas variantes. 
É possível. por exemplo, identificar uma tradição erasmiana q ue 
caminha na direção da moderação e da tolerância, da crítica libertadora 
equilibrada e sem fanatismo, do respeito às diferenças naturais e do 
combate às di ferenças artificialmente cons truídas e de cará ter 
conservador e nocivo. Ecos desta atitude são encontrados em recantos 
tão aparentemente remotos como nas obras de Rabelais e no teatro de 
Gil Vicente ( 1465-1540), caracterizando o que se poderia chamar de 
'refonnismo humanista' (cf. Saraiva, 1963). 
O repúdio às cons trições artificialmente estabelecidas para a 
liberdade do homem pode também ser identificado no luteranismo. 
56 
Martínho Lutero ( 1483-1546) defendeu a liberdade da experiência 
relígiosa. a liberdade da fé enquan to vivência ind ividual que não se 
deixa apreender nem pode ser regulada nas fónnulas e rituais de uma 
igreja. Todos os teólogos protestantes como Melanchton, Zwingler e 
Calvino, de uma forma ou outra, insistem na liberdade como condição 
da experiência relig iosa genuína, que s6 e n volve - mas o faz 
radicalmente - a intimidade do ho mem (cf. Dilthey [ 1914] 1978; Tuch\e 
e Bouman, 1983). 
Contudo, nenhum dos projetos reformadores de maior impacto 
na época pode se dar ao luxo de defender a liberdade sem, ao mesmo 
tempo, estabelecer seu alcance e lhe dar limites. 
Erasmo - e também M ontaigne que pertence à mesma trad ição 
prato-iluminista - . ao mesmo tempo que defende a liberdade para o 
espírito crítico e racional, a tolerância diante das diferenças e o dire ito 
e o dever do livre-arb(trio, sugere, como vimos, regras de civilidade 
que regulem as formas do indivíduo se apresentar em público e se 
relacionar com os outros nos diferentes contextos sociais. Monta igne 
recomenda explicitamente que se acatem e obedeçam aos costumes de 
cada povo e de cada época, sempre conservando a distância cética 
diante das pretensões de cada conjunto de normasse apresentar como 
o mais verdadeiro ou como necessário. Nenhum conjunto de costumes 
é mais necessário que o outro, mas é necessário que se viva de acordo 
com um deles, sem ilu~õcs. 
Lutero, se defende intransigentemente a liberdade do homem 
interi()r, deixa o homem exterior para os conLroles sociais e, o que é 
mais decisivo, submete o homem interior plenamente à vontade divina. 
É neste contexto que se pode considerar o significado da negação do 
livre-arbítrio por Lutero ([ 1525] 1977): 
O homem é composto de uma natureza dupla, uma espiritual e uma 
co,rporal: quanto à espiritual, que é chamada de alma, ? homem é 
designado como o novo homem espiritual e íntimo ... E certo que 
absolutamente nada, qualquer nome que se dê, tem qualquer influência 
na produção da liberdade ou correção cristã, nem na incorreção e 
escravidão ... A alma pode dispensar tudo, salvo a palavra de Deus. {p. 
701) 
E ainda: 
57 
partir de uma tradição pitagórico-platônica, de uma inspiração 
heliocêntrica, proveniente, em última instância, do Egito antigo, e de 
um cuidado~o trabalho com as observaçõc~ de m ovimentos celestes, 
embora o pró prio Copé rnico tenha sido um observador medíocre (cf. 
Debus, 1981; Koyré, 1979; Martins, 1990; Yates, 1987). 
É a partir desta vertente de neocodificadores que se pode transitar 
mais facilmente para os reformadores que voltaram as costas para a lei 
e se apresentaram como vias de libertação de indivíduos e coletividades. 
Este~ refonnadores pretendem se enraizar em algo que, para além das 
diferenças e variações, seria o acervo comum de todos: certos poderes, 
certos direitos, certas experiências naturais de uma mesma cond ição 
humana. É o que sucede, por exemplo. quando se descobre o mesmo 
espírito religioso - e o mesmo Deus - não só em diferentes versões 
do cristianismo como até em diferentes rel igiões. O domin icano 
Bartolomeu Las Casas, por exemplo, defendeu diante do rei de Castela 
os índios americanos contra seus exlerminadores espanhóis, por 
acreditar que eles eram tão ou mai s religiosos - e cristãos, sem o 
saberem - que os cristãos europe us (cf. Todorov, 1983; Tuchle e 
Bouman, 1983). 
Concepções como esta resultam em perspectivas ultra-relativistas 
c no campo político, se levadas às últimas conseqüências, em projetos 
anárq uicos como o do jovem Eticnne de La Boétie (1530- 1563), no 
Discurso da servidão voluntária - 1548 (cf. Heydorn , 1988). 
Mantendo-se afastadas desta radicalização, todas as reformas que 
cami nharam no rumo da crítica às hierarquias, às regras e aos rituais 
se originam no mesmo terreno. A partir deste tronco, porém, encontram-
se muitas variantes. 
É possível. por exemplo, identificar uma tradição erasmiana q ue 
caminha na direção da moderação e da tolerância, da crítica libertadora 
equilibrada e sem fanatismo, do respeito às diferenças naturais e do 
combate às di ferenças artificialmente cons truídas e de cará ter 
conservador e nocivo. Ecos desta atitude são encontrados em recantos 
tão aparentemente remotos como nas obras de Rabelais e no teatro de 
Gil Vicente ( 1465-1540), caracterizando o que se poderia chamar de 
'refonnismo humanista' (cf. Saraiva, 1963). 
O repúdio às cons trições artificialmente estabelecidas para a 
liberdade do homem pode também ser identificado no luteranismo. 
56 
Martínho Lutero ( 1483-1546) defendeu a liberdade da experiência 
relígiosa. a liberdade da fé enquan to vivência ind ividual que não se 
deixa apreender nem pode ser regulada nas fónnulas e rituais de uma 
igreja. Todos os teólogos protestantes como Melanchton, Zwingler e 
Calvino, de uma forma ou outra, insistem na liberdade como condição 
da experiência relig iosa genuína, que s6 e n volve - mas o faz 
radicalmente - a intimidade do ho mem (cf. Dilthey [ 1914] 1978; Tuch\e 
e Bouman, 1983). 
Contudo, nenhum dos projetos reformadores de maior impacto 
na época pode se dar ao luxo de defender a liberdade sem, ao mesmo 
tempo, estabelecer seu alcance e lhe dar limites. 
Erasmo - e também M ontaigne que pertence à mesma trad ição 
prato-iluminista - . ao mesmo tempo que defende a liberdade para o 
espírito crítico e racional, a tolerância diante das diferenças e o dire ito 
e o dever do livre-arb(trio, sugere, como vimos, regras de civilidade 
que regulem as formas do indivíduo se apresentar em público e se 
relacionar com os outros nos diferentes contextos sociais. Monta igne 
recomenda explicitamente que se acatem e obedeçam aos costumes de 
cada povo e de cada época, sempre conservando a distância cética 
diante das pretensões de cada conjunto de normas se apresentar como 
o mais verdadeiro ou como necessário. Nenhum conjunto de costumes 
é mais necessário que o outro, mas é necessário que se viva de acordo 
com um deles, sem ilu~õcs. 
Lutero, se defende intransigentemente a liberdade do homem 
interi()r, deixa o homem exterior para os conLroles sociais e, o que é 
mais decisivo, submete o homem interior plenamente à vontade divina. 
É neste contexto que se pode considerar o significado da negação do 
livre-arbítrio por Lutero ([ 1525] 1977): 
O homem é composto de uma natureza dupla, uma espiritual e uma 
co,rporal: quanto à espiritual, que é chamada de alma, ? homem é 
designado como o novo homem espiritual e íntimo ... E certo que 
absolutamente nada, qualquer nome que se dê, tem qualquer influência 
na produção da liberdade ou correção cristã, nem na incorreção e 
escravidão ... A alma pode dispensar tudo, salvo a palavra de Deus. {p. 
701) 
E ainda: 
57 
Deus prometeu certamenle Sua graça ao humilde ... 
Mas um homem não se humilhou suficientemente até que reconheça 
q ue sua ~a i v ação está completamente fora de seu s poderes. 
discernimento, esforços. vontade e obras, dependendo absolutamente 
da vontade. dis<.:ernimento, prazer e obra de outro, isto é, de Deus 
somente. (p. 700) 
Deve-se reconhecer c reivindicar a completa independência do 
homem interior em relação ao mundo, suas leis, autoridades e rituais 
para poder reconhecê-lo mais plenamente como servo do Senhor e 
renunciar à crença na sua liherdade e poder. O homem interior é li vre 
na e pela le, que é uma entrega ilimitada ao arbftrio divino. 
Talvez a tese principal deste conjunto de ensaios já possa ser 
enunciada: tão importantes ou até mais importantes do que a abertura 
de espaços de liberdade individual, como se vê acontecendo ao longo 
do processo de desintegração das 'ci vilizações fechadas ' , são as 
tentativas de <.:ircunscrever estes espaços. Assim sendo, as experiências 
subjetivas no sentido moderno do termo e que vieram a se converter 
em objeto de um saber e de uma int?rvenção psicológicos devem a 
sua emergência tanto às vivências de diversidade e ruptura como às 
tentativas de o rdenação e costura. ou seja, a todas as práticas 
reformistas que implicavam uma subjetividade individualizada e uma 
tensão sustentada entr~ áreas ou dimensões de liberdade e áreas ou 
dimensões de submissão. A teologia luterana é paradigmálica do 
caráter autocontraditório desta experiência. Como se vê, o ' indivíduo', 
ao contrário do que o termo sugere, nasce da dispersão e traz uma 
cisão interior inscrita em sua natureza. 
Reformadores católicos 
O padre Luís Palacín, no seu livro Santos do atual calendário 
litúrgico ( 1982), apresenta um total de I 78 santos, correspondendo 
aos dias do ano mais significativos do ponto de vista da religião 
católica. São dezenove séculos de cristianismo, já que dificilmente os 
nascidos no século XX podem figurar numa lista de canonizados 
publicada em 1982. Destes I 78 santos, 34 viveram parte de suas vidas 
no século XVI, ou seja, 19% do total. Se houvesse uma distribuição 
5S 
aleatória dos ·santos pelos dezenove séculos, teríamos 8,8 santos em 
média u cada cem anos; ou seja, por século. cerca de 5% do total. É 
claro que a concentração de santos no século XVl ou nas suas duas 
margens não é casual. Destes santos. alguns destacam-se na expansão 
da cristandade em terras asiáti<.:ase americanas. A maioria deles, 
entretanto, esteve ligada ao movimento de reforma do catolicismo, tanto 
nos anos anteriores como nos posteriores ao Concílio de Trento 
(i niciado em 1545 e encerrado em 1563). Alguns fizeram-se cargo das 
tarefas reformadoras propostas pelo Concílio, como São Pio V c, o mais 
conhecido, São Carlos. Muitos t iveram participação decisiva na 
consolidação do movimento reformador, como São João da Cruz, São 
Fidélis (massa<.:rado pelos calvinistas), Santa Maria Madalena de Pazzi, 
São Luiz Gonzaga, São Lourenço de Brindisi, São Roberto Belarmino 
(que participou nos processos de Bruno e Galileu), São Pedro Canísio, 
entre outros. Os mais interessantes, no entanto, foram os fundadores , 
ou seja, os que criaram novas ordens c instituições religi osas ou 
reformaram as já existentes, dando-lhes um novo fundamento. Neste 
caso estão Santa Angela de Merici, que fundou as Ursu linas; São 
Jerônimo Emiliano. que fundou a Congregação dos Servos dos Pobres; 
São Filipe Neri, que fundou os Oratórios do Amor Divino; Santo 
Antônio Maria Zacarias, que fundou os Barnabitas; São Caetano, que 
fundou a Congregação dos Clérigos Regulares; São Vicente de Paulo, 
que fundou a Congregação das Irmãs de Caridade; São João Leonardi, 
que fundou a Companhia dos Clérigos Regulares da Mãe de Deus; c, 
sem esgotar a lista, para não cansar o leitor. Santo Inácio de Loyola, 
que fundou a Companhia de Jesus, e Santa Teresa d ' Á vila, que 
reformou o Carmelo, fundando os conventos de Carmelitas Descalças. 
Nem todas as fundações ocorreram no século XVI. Algumas se 
anteciparam e algumas se atrasaram. Mas, sem dúvida, o século XVI 
foi o grande século das fundações, c bastavam para isso as obras de 
Santo Inácio e de Santa Teresa. 
Quase todos os santos da época passaram por grandes 
tribulações: alguns foram missionários e viajantes, levando o 
cristianismo para fora da Europa, onde passaram muitos anos em 
relativo ou absoluto isolamento, ou levando o catolicismo romano 
(papista) a regiões da Europa dominadas pelos protestantes; nestas 
59 
Deus prometeu certamenle Sua graça ao humilde ... 
Mas um homem não se humilhou suficientemente até que reconheça 
q ue sua ~a i v ação está completamente fora de seu s poderes. 
discernimento, esforços. vontade e obras, dependendo absolutamente 
da vontade. dis<.:ernimento, prazer e obra de outro, isto é, de Deus 
somente. (p. 700) 
Deve-se reconhecer c reivindicar a completa independência do 
homem interior em relação ao mundo, suas leis, autoridades e rituais 
para poder reconhecê-lo mais plenamente como servo do Senhor e 
renunciar à crença na sua liherdade e poder. O homem interior é li vre 
na e pela le, que é uma entrega ilimitada ao arbftrio divino. 
Talvez a tese principal deste conjunto de ensaios já possa ser 
enunciada: tão importantes ou até mais importantes do que a abertura 
de espaços de liberdade individual, como se vê acontecendo ao longo 
do processo de desintegração das 'ci vilizações fechadas ' , são as 
tentativas de <.:ircunscrever estes espaços. Assim sendo, as experiências 
subjetivas no sentido moderno do termo e que vieram a se converter 
em objeto de um saber e de uma int?rvenção psicológicos devem a 
sua emergência tanto às vivências de diversidade e ruptura como às 
tentativas de o rdenação e costura. ou seja, a todas as práticas 
reformistas que implicavam uma subjetividade individualizada e uma 
tensão sustentada entr~ áreas ou dimensões de liberdade e áreas ou 
dimensões de submissão. A teologia luterana é paradigmálica do 
caráter autocontraditório desta experiência. Como se vê, o ' indivíduo', 
ao contrário do que o termo sugere, nasce da dispersão e traz uma 
cisão interior inscrita em sua natureza. 
Reformadores católicos 
O padre Luís Palacín, no seu livro Santos do atual calendário 
litúrgico ( 1982), apresenta um total de I 78 santos, correspondendo 
aos dias do ano mais significativos do ponto de vista da religião 
católica. São dezenove séculos de cristianismo, já que dificilmente os 
nascidos no século XX podem figurar numa lista de canonizados 
publicada em 1982. Destes I 78 santos, 34 viveram parte de suas vidas 
no século XVI, ou seja, 19% do total. Se houvesse uma distribuição 
5S 
aleatória dos ·santos pelos dezenove séculos, teríamos 8,8 santos em 
média u cada cem anos; ou seja, por século. cerca de 5% do total. É 
claro que a concentração de santos no século XVl ou nas suas duas 
margens não é casual. Destes santos. alguns destacam-se na expansão 
da cristandade em terras asiáti<.:as e americanas. A maioria deles, 
entretanto, esteve ligada ao movimento de reforma do catolicismo, tanto 
nos anos anteriores como nos posteriores ao Concílio de Trento 
(i niciado em 1545 e encerrado em 1563). Alguns fizeram-se cargo das 
tarefas reformadoras propostas pelo Concílio, como São Pio V c, o mais 
conhecido, São Carlos. Muitos t iveram participação decisiva na 
consolidação do movimento reformador, como São João da Cruz, São 
Fidélis (massa<.:rado pelos calvinistas), Santa Maria Madalena de Pazzi, 
São Luiz Gonzaga, São Lourenço de Brindisi, São Roberto Belarmino 
(que participou nos processos de Bruno e Galileu), São Pedro Canísio, 
entre outros. Os mais interessantes, no entanto, foram os fundadores , 
ou seja, os que criaram novas ordens c instituições religi osas ou 
reformaram as já existentes, dando-lhes um novo fundamento. Neste 
caso estão Santa Angela de Merici, que fundou as Ursu linas; São 
Jerônimo Emiliano. que fundou a Congregação dos Servos dos Pobres; 
São Filipe Neri, que fundou os Oratórios do Amor Divino; Santo 
Antônio Maria Zacarias, que fundou os Barnabitas; São Caetano, que 
fundou a Congregação dos Clérigos Regulares; São Vicente de Paulo, 
que fundou a Congregação das Irmãs de Caridade; São João Leonardi, 
que fundou a Companhia dos Clérigos Regulares da Mãe de Deus; c, 
sem esgotar a lista, para não cansar o leitor. Santo Inácio de Loyola, 
que fundou a Companhia de Jesus, e Santa Teresa d ' Á vila, que 
reformou o Carmelo, fundando os conventos de Carmelitas Descalças. 
Nem todas as fundações ocorreram no século XVI. Algumas se 
anteciparam e algumas se atrasaram. Mas, sem dúvida, o século XVI 
foi o grande século das fundações, c bastavam para isso as obras de 
Santo Inácio e de Santa Teresa. 
Quase todos os santos da época passaram por grandes 
tribulações: alguns foram missionários e viajantes, levando o 
cristianismo para fora da Europa, onde passaram muitos anos em 
relativo ou absoluto isolamento, ou levando o catolicismo romano 
(papista) a regiões da Europa dominadas pelos protestantes; nestas 
59 
circunstâncias, muitos foram martirizados; outros tantos sofreram 
perseguições por parte da própria hierarquia católica e/ou por parte 
de grupos rivais dentro do calolicismo; alguns estiveram presos e 
passaram longos períodos marginalizados; quase todos sofreram uma 
ou mais experiências de conversão. 
Embora as conversões fossem experiências individuais e privadas 
-a conversão religiosa é, efetivamente, acompanhada de um profundo 
e nílido reconhecimento do caráter privativo e singular da vocação - , 
o converso ou 're-converso' rapidamente buscava o apoio de uma 
coletividade. Na verdade, uma tendência bastante generalizada entre 
refonnadores católicos foi a de investir na criação de novas fonnas de 
vida coleliva. As novas ordens e 'obras ' do século XVI tiveram um 
crescimento extraordinário, o que revela uma intensa demanda de 
congraçamento. Tudo se passa como se 'manter-se unido' fosse 
indispensável como forma de conservar e limitar o isolamento e o 
desenraízamento do mundo produzidos pela conversão. 
A.s novas ordens diferiam bastante entre si, seja nos objetivos 
espec íficos, seja nas normas, seja nas at ividades pri vilegi adas, 
processos de recrutamento etc. É difícil falar de maneira generalizante 
sobre elas, .sal vo quando representavam alternati vas à corrupção e 
mundanização da alta hierarquia da Igreja romana. Noentanto, tendo 
que escolher uma delas para exemplo. não há dúvidas que a escolhida 
deve ser a Companhia de Jesus. aprovada como Ordem Regular Clerical 
em 1540. 
Santo Inácio de Loyola ( 1491-1556 ), nobre biscainho, cortesão e 
militar. passou pela primeira con versão quando estava preso, aos trinta 
anos de idade. Nos anos subseqüentes, de penitência, peregrinação e 
orações, reafirmou c deu novos passos na direção de uma conversão 
mais total e defin itiva. Os excessos a que se entregou na época o 
tornaram al vo das suspeitas da Inquisição. que o confundiu com os 
místicos 'alumbrados'. que proliferaram na Espanha à margem da 
hierarquia católica. Inácio de Loyola partiu, então, para Paris, para 
estudar c livrar-se da investida inquisitorial. 
Durante os muitos anos de estudo, Inácio se dedicou a 
arregimentar companheiros al tamente selecionados, segundo sua 
compreensão do que seria sua missão: a missão 'guerreira' e pedagógica 
de um cruzado de novo tipo. 
60 
A religiosidade inaciana é viriL dctenninada, militar. Seus métodos 
de n:~.:rulamento e treinamen to !>ão exigentes c rigorosos. Não 
surpreende que a Companhia, que no início funcionava com base nas 
deliberações t:Oie tivas, tenha. ao se constituir como ordem, adotado o 
princípio monárquico. Esta decisão foi tomada em conjunto pelos 
com panheiros c foi preparada por uma sér ie de instruç ões 
colet ivamente estabelec idas (Ravicr, 1982). A conclusão a que se 
chegou e consta da ata das reuniões prcfigura o contrato hobbesiano 
destinado a assegurar a manutenção de cada um pela manutenção da 
paz social. Este contrato marcaria a renúncia individual a determinados 
direitos e a transferência destes direitos - uma alienação definitiva deles 
- a uma autoridade suprema. No mesmo espírito, diz a ata dos jesuítas: 
" ... é mais conveniente para nós, mais necessário, prometer obediência 
a um dos nossos". Este 'um·. eleito por todos, reinaria vitaliciamente e 
sem contestação possível. Todos devem obedecer a ele e ao papa, que 
dec idem como, onde e quando cada qual há de servir à causa do 
cristianismo. A companhia que assim se cria é um comando de guerra 
teoricamente coeso e pragmaticamente orientado: nenhuma cerimônia 
de regra, nem coro, nem órgão, nem canto; ''em tudo isso, encontramos 
graves inconvenientes '', lê-se no documento que c onstituiu a 
Companhia. Fiquem as cigarras com a música; as formigas e os jesuítas 
trabalham, e trabalham com espírito pragmático e administrativo. 
Determinação, obediência e método são características marcantes 
dos jesuítas nas suas atividades apostólicas c , em especial , no campo 
da educação. Os jesuítas fundaram escolas de todos os níveis e em 
todo o mundo. O mais notável na pedagogia jesuíta era a capacidade 
de oferecer ao formando um elevado grau de independência ao mesmo 
tempo em que lhe incutia uma estrita adesão à ortodoxia católica. É 
isso. talvez, o que há de mais típico da subjetividade jesuíta: a lealdade 
inquebrantável à ~.:ausa - que é a causa de Cristo em geral e a causa 
da própria Companhia em particular - c a autonomia e auto-suficiência 
do indivíduo. São elas que podem sustentar física e moralmente estes 
indivíduos em missões prolongadas, em países remotos, em condições 
adversas, no me io do isolamento cultural, lingüístic o etc. Esta 
duplicidade está presente em toda parte do pensamento e da prática 
de Inácio de Loyola como, por exemplo, nas Regras para selltir 
verdadeiramente como se deve na Igreja militante , escrito em 1534 
61 
circunstâncias, muitos foram martirizados; outros tantos sofreram 
perseguições por parte da própria hierarquia católica e/ou por parte 
de grupos rivais dentro do calolicismo; alguns estiveram presos e 
passaram longos períodos marginalizados; quase todos sofreram uma 
ou mais experiências de conversão. 
Embora as conversões fossem experiências individuais e privadas 
-a conversão religiosa é, efetivamente, acompanhada de um profundo 
e nílido reconhecimento do caráter privativo e singular da vocação - , 
o converso ou 're-converso' rapidamente buscava o apoio de uma 
coletividade. Na verdade, uma tendência bastante generalizada entre 
refonnadores católicos foi a de investir na criação de novas fonnas de 
vida coleliva. As novas ordens e 'obras ' do século XVI tiveram um 
crescimento extraordinário, o que revela uma intensa demanda de 
congraçamento. Tudo se passa como se 'manter-se unido' fosse 
indispensável como forma de conservar e limitar o isolamento e o 
desenraízamento do mundo produzidos pela conversão. 
A.s novas ordens diferiam bastante entre si, seja nos objetivos 
espec íficos, seja nas normas, seja nas at ividades pri vilegi adas, 
processos de recrutamento etc. É difícil falar de maneira generalizante 
sobre elas, .sal vo quando representavam alternati vas à corrupção e 
mundanização da alta hierarquia da Igreja romana. No entanto, tendo 
que escolher uma delas para exemplo. não há dúvidas que a escolhida 
deve ser a Companhia de Jesus. aprovada como Ordem Regular Clerical 
em 1540. 
Santo Inácio de Loyola ( 1491-1556 ), nobre biscainho, cortesão e 
militar. passou pela primeira con versão quando estava preso, aos trinta 
anos de idade. Nos anos subseqüentes, de penitência, peregrinação e 
orações, reafirmou c deu novos passos na direção de uma conversão 
mais total e defin itiva. Os excessos a que se entregou na época o 
tornaram al vo das suspeitas da Inquisição. que o confundiu com os 
místicos 'alumbrados'. que proliferaram na Espanha à margem da 
hierarquia católica. Inácio de Loyola partiu, então, para Paris, para 
estudar c livrar-se da investida inquisitorial. 
Durante os muitos anos de estudo, Inácio se dedicou a 
arregimentar companheiros al tamente selecionados, segundo sua 
compreensão do que seria sua missão: a missão 'guerreira' e pedagógica 
de um cruzado de novo tipo. 
60 
A religiosidade inaciana é viriL dctenninada, militar. Seus métodos 
de n:~.:rulamento e treinamen to !>ão exigentes c rigorosos. Não 
surpreende que a Companhia, que no início funcionava com base nas 
deliberações t:Oie tivas, tenha. ao se constituir como ordem, adotado o 
princípio monárquico. Esta decisão foi tomada em conjunto pelos 
com panheiros c foi preparada por uma sér ie de instruç ões 
colet ivamente estabelec idas (Ravicr, 1982). A conclusão a que se 
chegou e consta da ata das reuniões prcfigura o contrato hobbesiano 
destinado a assegurar a manutenção de cada um pela manutenção da 
paz social. Este contrato marcaria a renúncia individual a determinados 
direitos e a transferência destes direitos - uma alienação definitiva deles 
- a uma autoridade suprema. No mesmo espírito, diz a ata dos jesuítas: 
" ... é mais conveniente para nós, mais necessário, prometer obediência 
a um dos nossos". Este 'um·. eleito por todos, reinaria vitaliciamente e 
sem contestação possível. Todos devem obedecer a ele e ao papa, que 
dec idem como, onde e quando cada qual há de servir à causa do 
cristianismo. A companhia que assim se cria é um comando de guerra 
teoricamente coeso e pragmaticamente orientado: nenhuma cerimônia 
de regra, nem coro, nem órgão, nem canto; ''em tudo isso, encontramos 
graves inconvenientes '', lê-se no documento que c onstituiu a 
Companhia. Fiquem as cigarras com a música; as formigas e os jesuítas 
trabalham, e trabalham com espírito pragmático e administrativo. 
Determinação, obediência e método são características marcantes 
dos jesuítas nas suas atividades apostólicas c , em especial , no campo 
da educação. Os jesuítas fundaram escolas de todos os níveis e em 
todo o mundo. O mais notável na pedagogia jesuíta era a capacidade 
de oferecer ao formando um elevado grau de independência ao mesmo 
tempo em que lhe incutia uma estrita adesão à ortodoxia católica. É 
isso. talvez, o que há de mais típico da subjetividade jesuíta: a lealdade 
inquebrantável à ~.:ausa - que é a causa de Cristo em geral e a causa 
da própria Companhia em particular - c a autonomiae auto-suficiência 
do indivíduo. São elas que podem sustentar física e moralmente estes 
indivíduos em missões prolongadas, em países remotos, em condições 
adversas, no me io do isolamento cultural, lingüístic o etc. Esta 
duplicidade está presente em toda parte do pensamento e da prática 
de Inácio de Loyola como, por exemplo, nas Regras para selltir 
verdadeiramente como se deve na Igreja militante , escrito em 1534 
61 
([ 1534] 1990), do qual selecionei alguns trechos. Apenas o título do 
trabalho pode dar matéria para um ensaio inteiro: regras para sentir, 
lgrej a militante! 
Ju regra. Renunciando a todo o juízo própril>, devemos estar dispostos 
e prontos a obedecer em tudo à verdadeira esposa de Cristo Nosso 
Senhor. isto é, à santa Igreja hierckquica, nossa mãe. (p. 188) 
/J« regra. Para em tudo acertar. devemos estar sempre dispostos a crer 
que o que nos parece branco é negro, se assim o determina a Igreja 
hierárquica ... (p. 191) 
Isto quanto à obediência, mas vejamos o que Loyola nos diz sobre 
o 'outro lado' : 
J5d re8ra. Habitualmente não devemos falar muito de predestinação ... 
(p. 192) 
1(;1. r<·gm. Da mesma forma, é de advertir que. por falar muito em fé e 
com muita insistência ( ... ) não se dê ocasião ao povo de vir a ser 
negligente c preguiçoso do obrar ... (p. 192) 
1711 rcgm Igualmente não devemos insistir tanto na graça a ponto de 
produzir o veneno que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da fé 
da graça c .. ) mas não de tal forma nem de tais modos, mormente em 
nossos tempos tão perigosos, que as obras e o li vre-arbítrio sejam 
prejudicados ou mesmo negados. (p. 193) 
O que vemos aí muito claramente é a submissão incondicional 
alintla à valorização do trabalho, do esforço, das obras, da liberdade 
indi vidual e da responsabi lidade de cada um - em detrimento da 
predestinação, da fé e da graça - na constituição de militante. Santo 
Inácio está, sem dúvida, se seguirmos a distinção entre os tipos de 
reforma propostas no item anterior. do lado dos codificadores. Já 
havíamos visto antes como refonnndores que reivindicavam a liberdade 
estabeleciam também um limite preciso para ela. Vimos mesmo como 
Lutero defendia a liberdade do homem interior em relação à hierarquia 
para logo em seguida submeter a vontade humana à vontade divina, 
nega ndo o livre-arbítrio. Santo Inácio é o contrário absoluto de 
Martinho Lutero: propõe e exige a submissão total do indivíduo à Igreja 
hierárquica para que, no contexto desta obediência, ele possa exercer 
a liberdade e o esforço de vontade. Ambas as propostas contêm uma 
62 
contradição interna; ambas atam c libertam o indivíduo ao mesmo 
tempo; ambas, final mente, contribuirão para a constituição da 
subjetividade moderna enquanto subjetividade cindida. 
É hora de di1..er algumas palavras sobre o texto composto por 
SantO Inác io para orie ntar o converso no camin ho do seu 
aperfeiçoamento espiritual e, principalmente, para preparar com método 
e segurança um novo episódio de convcrsão."1 Transcreverei, a seguir, 
uma série de passage ns do texto, acompanhando-as de alguns 
comentários. Em alguns casos, limitar-me-ei a grifar: 
Por esta expressão, Excrdcios Espirituais. entende-se qualquer modo 
de examinar a conscíênâa, meditar, contemplar, orar vocal ou 
mentalmente, e outras atividades espirituais (. .. ) Porque, assim como 
passear, caminhar e correr são exercícios corporais. também se chamam 
exercfcios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e 
dispor 11ara tirar de si todas as afeições desordenadas, e, tendo-as 
afastado. procurar e encontrar a vontade de Deus ... Cpp. 11-12) 
Para este fi m, isto é, para que o Criador e Senhor atue mais certamente 
na sua criatura, se a pessoa estiver afeiçoada ou inclinada a uma coisa 
desordenadamente. convém muito mover-.re. emprega11do todas as suas 
forças em chegar M comrário daquilo a que se vê afeiçoada. (p. 21) 
Exercícios Espirituais 
Para o homem se Vencer a Si mesmo e 
Ordenar a Pnipria Vida. 
Sem se Determinar por Nenhuma Afeição 
Desordenada. (p. 27) 
Os dois primeiros trechos pertencem à apresentação do trabalho. 
O terceiro é o título completo dos Exercícios espirituais. Creio que 
eles falam por si. Os próximos trechos constam das instruções para o 
c1tame de consciência cotidiano: 
Pela manhã. logo ao levantar, deve-se wopor evitar com dilig2ncía aquele 
peçado particular ou defeito que s.e quer conigir e emendar. 
Depoi!> da refeição do meio-dia. pedir a Deus nosso Senhor o que se 
quer, a saber, graça para se recordar quantas vezes se caiu naquele 
pecado particular ou defeito e para se emendar para o futuro. Em seguida, 
faça-se o primeiro t:.xame, pedindo conta a si mesmo daquele ponto 
particular previsto de que se quer corrigir e emendar. Percorrerá cada 
63 
([ 1534] 1990), do qual selecionei alguns trechos. Apenas o título do 
trabalho pode dar matéria para um ensaio inteiro: regras para sentir, 
lgrej a militante! 
Ju regra. Renunciando a todo o juízo própril>, devemos estar dispostos 
e prontos a obedecer em tudo à verdadeira esposa de Cristo Nosso 
Senhor. isto é, à santa Igreja hierckquica, nossa mãe. (p. 188) 
/J« regra. Para em tudo acertar. devemos estar sempre dispostos a crer 
que o que nos parece branco é negro, se assim o determina a Igreja 
hierárquica ... (p. 191) 
Isto quanto à obediência, mas vejamos o que Loyola nos diz sobre 
o 'outro lado' : 
J5d re8ra. Habitualmente não devemos falar muito de predestinação ... 
(p. 192) 
1(;1. r<·gm. Da mesma forma, é de advertir que. por falar muito em fé e 
com muita insistência ( ... ) não se dê ocasião ao povo de vir a ser 
negligente c preguiçoso do obrar ... (p. 192) 
1711 rcgm Igualmente não devemos insistir tanto na graça a ponto de 
produzir o veneno que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da fé 
da graça c .. ) mas não de tal forma nem de tais modos, mormente em 
nossos tempos tão perigosos, que as obras e o li vre-arbítrio sejam 
prejudicados ou mesmo negados. (p. 193) 
O que vemos aí muito claramente é a submissão incondicional 
alintla à valorização do trabalho, do esforço, das obras, da liberdade 
indi vidual e da responsabi lidade de cada um - em detrimento da 
predestinação, da fé e da graça - na constituição de militante. Santo 
Inácio está, sem dúvida, se seguirmos a distinção entre os tipos de 
reforma propostas no item anterior. do lado dos codificadores. Já 
havíamos visto antes como refonnndores que reivindicavam a liberdade 
estabeleciam também um limite preciso para ela. Vimos mesmo como 
Lutero defendia a liberdade do homem interior em relação à hierarquia 
para logo em seguida submeter a vontade humana à vontade divina, 
nega ndo o livre-arbítrio. Santo Inácio é o contrário absoluto de 
Martinho Lutero: propõe e exige a submissão total do indivíduo à Igreja 
hierárquica para que, no contexto desta obediência, ele possa exercer 
a liberdade e o esforço de vontade. Ambas as propostas contêm uma 
62 
contradição interna; ambas atam c libertam o indivíduo ao mesmo 
tempo; ambas, final mente, contribuirão para a constituição da 
subjetividade moderna enquanto subjetividade cindida. 
É hora de di1..er algumas palavras sobre o texto composto por 
SantO Inác io para orie ntar o converso no camin ho do seu 
aperfeiçoamento espiritual e, principalmente, para preparar com método 
e segurança um novo episódio de convcrsão."1 Transcreverei, a seguir, 
uma série de passage ns do texto, acompanhando-as de alguns 
comentários. Em alguns casos, limitar-me-ei a grifar: 
Por esta expressão, Excrdcios Espirituais. entende-se qualquer modo 
de examinar a conscíênâa, meditar, contemplar, orar vocal ou 
mentalmente, e outras atividades espirituais (. .. ) Porque, assim como 
passear, caminhar e correr são exercícios corporais. também se chamam 
exercfcios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e 
dispor 11ara tirar de si todas as afeições desordenadas, e, tendo-as 
afastado. procurar e encontrar a vontade de Deus ... Cpp.11-12) 
Para este fi m, isto é, para que o Criador e Senhor atue mais certamente 
na sua criatura, se a pessoa estiver afeiçoada ou inclinada a uma coisa 
desordenadamente. convém muito mover-.re. emprega11do todas as suas 
forças em chegar M comrário daquilo a que se vê afeiçoada. (p. 21) 
Exercícios Espirituais 
Para o homem se Vencer a Si mesmo e 
Ordenar a Pnipria Vida. 
Sem se Determinar por Nenhuma Afeição 
Desordenada. (p. 27) 
Os dois primeiros trechos pertencem à apresentação do trabalho. 
O terceiro é o título completo dos Exercícios espirituais. Creio que 
eles falam por si. Os próximos trechos constam das instruções para o 
c1tame de consciência cotidiano: 
Pela manhã. logo ao levantar, deve-se wopor evitar com dilig2ncía aquele 
peçado particular ou defeito que s.e quer conigir e emendar. 
Depoi!> da refeição do meio-dia. pedir a Deus nosso Senhor o que se 
quer, a saber, graça para se recordar quantas vezes se caiu naquele 
pecado particular ou defeito e para se emendar para o futuro. Em seguida, 
faça-se o primeiro t:.xame, pedindo conta a si mesmo daquele ponto 
particular previsto de que se quer corrigir e emendar. Percorrerá cada 
63 
uma das horas da manhã, ou cada espaço de tempo, começando desde o 
momento de levantar até a hora e instante do exame atual. E. marque 
11a primeira linha da letra g = ta/llos pomos quantas forem as vezes 
q11e incnrreu naq11ele pecado particular ou defeito. (pp. 31-32) 
Os preceitos básicos estão todos aí: programação minuciosa do 
dia, das metas, das atividades espirituais; recordação igualmente 
minuciosa do obtido; comparação do programado com o realizado. Um 
dos aspectos mais interessantes deste extraordinário protocolo de auto-
observação, que não poderia ser mais eficiente se tivesse sido 
elaborado por um psicólogo hehaviorista, é o recurso, de resto tão do 
agrado da psicologia comportamentalista, a um gráfico no qual se 
devem representar os pecados cometidos entre o momento da promessa 
c o momento do exame. Trata-se de um dispositivo a que santo Inácio 
dedica várias linhas com a certeza de que a representação dos pecados 
e, principalmente, a linha descendente dos pecados ao longo dos dias 
e das horas ajudarão e tomarão mais rápido o processo. 
Os exercícios estão progrnmados para ocupar quatro semanas de 
dedicação exclusiva, em que todas as outras atividades do exercitante 
estarão interrompidas. Há trabalho dia e noile. Dorme-se planejando o 
dia scguinle. Acorda-se recordando o prometido. Cada semana é 
dedicada a um tema ou a uma experiência. Na primeira, por exemplo, o 
tema são os pecados. Há que recordá-l os todos: os pecados dos anj os, 
os dos nossos primeiros pais e os nossos próprios. Há que se encher 
de confusão e vergon ha por eles. Estas lembranças e reações 
emocionais de confusão e vergonha são preparadas metodicamente 
através de um controle preciso de imaginação. Todos os exercícios 
nesta e nas demais semanas começam com o primeiro preâmbulo: 
64 
... é a composição do lugar. É de notar aqui que, se o assunto da 
contemplação ou da meditação for uma coisa visível ( ... ) esta 
"composição" consistirá em representar, com o auxílio da imaginação 
( ... ) onde se encontra o objeto que quero contemplar (. .. )Se o assunto 
da meditação for coisa invisível, como são nesta os pecados, a 
composição do lugar consistirá em ver com os t>llws da imaginação, e 
em considerar a minha alma encarc:erada neste corpo corruptível, e a 
mim mesmo, isto é, meu corpo e minha alma, neste vale (de lágrimas) 
como desterrado entre brutos animais. (pp. 43-44) 
O 2" preâmbulo consiste em pedir u ~us nosso Senhor o que quero c 
dGsejo ( ... ) N<1 meditação presente pedirei vergonha e confusão de mim 
mesmo ... (p. 44) 
A primeira tarefa será sempre, assim, imagi nar, através de 
recordação ou imagem mental, uma idéia. Em seguida, pede-se ou evoca-
se a emoção adequada. O esquema vai se repetindo e as imagens vão 
se sucedendo cada vez mais evocativas e graduadas num crescendo: 
... a composição do lugar consiste em ver com os olhos da imaginação o 
mmprimento, a largura e a profundidade do inferno( ... ); verei com olhos 
da imaginação os grandes fogos e as almas como que em corpos 
incandescentes( ... ) Escutarei com os ouvidos, prantos, alaridos, gritos, 
blasfêmias contra Cris10 e contra todos os seus santos( ... ) Sentirei com 
o olfato o cheiro do fumo. enxofre. imundície e podridão( ... ) Procurarei 
com o gosto saborear coisas amargas. assim como lágrimas. tristezas e 
remorsos da consciência ( ... )Tocarei com o sentido do tato estas chamas, 
sentindo como elas envolvem c abrasam as al mas. (p. 54) 
Acompanhando os exames e as meditações, vêm as penitências, 
tanto as interiores como as exteriores. Estas implicam flagelar o corpo 
de diversas fonnas. Seus objetivos são três: 
O primeiro, para satisfazer pelos pec<1dos passados. O segundo, para 
vencer-se a si mesm~. isto é, para obrigara sensualidatle a obedecer a 
rct':'.(io ( ... )O terceiro, para solicirar e. ohter de Deus alguma graça ou 
dom que a pessoa quer c deseja. 
No conjunto, o objetivo das duas primeiras semanas é o de 
preparar o exercitante para a 'eleição'. A 'eleição' é uma experiência 
metodicamente controlada c programada de conversão. Santo Inácio, 
nesta medida, acrescenta às fo rmas já conhecidas de conversão a 
con versão sofrida como 'dissolução de identidade ' e a conversão 
vivida como a 'reconquista de identidade', uma terceira modalidade de 
con versão. Na verdade, as duas primeiras formas eram casuais, 
acidentais, imprevisíveis; não se prestavam a uma pedagogia. A 
conversão prevista e desejada por Inácio de Loyola ao propor os 
Exerdcios espirituais perdeu totalmente o caráter aleatório. Trata-se 
agora de uma construção de identidade pragmaticamente cronometrada: 
ao tina! da segunda semana, o exercitante se coloca na posição de quem 
65 
uma das horas da manhã, ou cada espaço de tempo, começando desde o 
momento de levantar até a hora e instante do exame atual. E. marque 
11a primeira linha da letra g = ta/llos pomos quantas forem as vezes 
q11e incnrreu naq11ele pecado particular ou defeito. (pp. 31-32) 
Os preceitos básicos estão todos aí: programação minuciosa do 
dia, das metas, das atividades espirituais; recordação igualmente 
minuciosa do obtido; comparação do programado com o realizado. Um 
dos aspectos mais interessantes deste extraordinário protocolo de auto-
observação, que não poderia ser mais eficiente se tivesse sido 
elaborado por um psicólogo hehaviorista, é o recurso, de resto tão do 
agrado da psicologia comportamentalista, a um gráfico no qual se 
devem representar os pecados cometidos entre o momento da promessa 
c o momento do exame. Trata-se de um dispositivo a que santo Inácio 
dedica várias linhas com a certeza de que a representação dos pecados 
e, principalmente, a linha descendente dos pecados ao longo dos dias 
e das horas ajudarão e tomarão mais rápido o processo. 
Os exercícios estão progrnmados para ocupar quatro semanas de 
dedicação exclusiva, em que todas as outras atividades do exercitante 
estarão interrompidas. Há trabalho dia e noile. Dorme-se planejando o 
dia scguinle. Acorda-se recordando o prometido. Cada semana é 
dedicada a um tema ou a uma experiência. Na primeira, por exemplo, o 
tema são os pecados. Há que recordá-l os todos: os pecados dos anj os, 
os dos nossos primeiros pais e os nossos próprios. Há que se encher 
de confusão e vergon ha por eles. Estas lembranças e reações 
emocionais de confusão e vergonha são preparadas metodicamente 
através de um controle preciso de imaginação. Todos os exercícios 
nesta e nas demais semanas começam com o primeiro preâmbulo: 
64 
... é a composição do lugar. É de notar aqui que, se o assunto da 
contemplação ou da meditação for uma coisa visível ( ... ) esta 
"composição" consistirá em representar, com o auxílio da imaginação 
( ... ) onde se encontra o objeto que quero contemplar (. .. )Se o assunto 
da meditação for coisa invisível,como são nesta os pecados, a 
composição do lugar consistirá em ver com os t>llws da imaginação, e 
em considerar a minha alma encarc:erada neste corpo corruptível, e a 
mim mesmo, isto é, meu corpo e minha alma, neste vale (de lágrimas) 
como desterrado entre brutos animais. (pp. 43-44) 
O 2" preâmbulo consiste em pedir u ~us nosso Senhor o que quero c 
dGsejo ( ... ) N<1 meditação presente pedirei vergonha e confusão de mim 
mesmo ... (p. 44) 
A primeira tarefa será sempre, assim, imagi nar, através de 
recordação ou imagem mental, uma idéia. Em seguida, pede-se ou evoca-
se a emoção adequada. O esquema vai se repetindo e as imagens vão 
se sucedendo cada vez mais evocativas e graduadas num crescendo: 
... a composição do lugar consiste em ver com os olhos da imaginação o 
mmprimento, a largura e a profundidade do inferno( ... ); verei com olhos 
da imaginação os grandes fogos e as almas como que em corpos 
incandescentes( ... ) Escutarei com os ouvidos, prantos, alaridos, gritos, 
blasfêmias contra Cris10 e contra todos os seus santos( ... ) Sentirei com 
o olfato o cheiro do fumo. enxofre. imundície e podridão( ... ) Procurarei 
com o gosto saborear coisas amargas. assim como lágrimas. tristezas e 
remorsos da consciência ( ... )Tocarei com o sentido do tato estas chamas, 
sentindo como elas envolvem c abrasam as al mas. (p. 54) 
Acompanhando os exames e as meditações, vêm as penitências, 
tanto as interiores como as exteriores. Estas implicam flagelar o corpo 
de diversas fonnas. Seus objetivos são três: 
O primeiro, para satisfazer pelos pec<1dos passados. O segundo, para 
vencer-se a si mesm~. isto é, para obrigara sensualidatle a obedecer a 
rct':'.(io ( ... )O terceiro, para solicirar e. ohter de Deus alguma graça ou 
dom que a pessoa quer c deseja. 
No conjunto, o objetivo das duas primeiras semanas é o de 
preparar o exercitante para a 'eleição'. A 'eleição' é uma experiência 
metodicamente controlada c programada de conversão. Santo Inácio, 
nesta medida, acrescenta às fo rmas já conhecidas de conversão a 
con versão sofrida como 'dissolução de identidade ' e a conversão 
vivida como a 'reconquista de identidade', uma terceira modalidade de 
con versão. Na verdade, as duas primeiras formas eram casuais, 
acidentais, imprevisíveis; não se prestavam a uma pedagogia. A 
conversão prevista e desejada por Inácio de Loyola ao propor os 
Exerdcios espirituais perdeu totalmente o caráter aleatório. Trata-se 
agora de uma construção de identidade pragmaticamente cronometrada: 
ao tina! da segunda semana, o exercitante se coloca na posição de quem 
65 
elege o que vai ser dali por diante. Trata-se de uma escolha, mas desta 
escolha foi retirada toda a contingência: a eleição se confunde com a 
escu ta de um chamado; a eleição é , segundo Santo Inácio. o 
atendimento a uma vocação. O esforço que exige do optante é o de 
não se deixar levar pela paixão e pelas afeições desordenadas. e 
permanecer num estado de perfeita indiferença: nesta condição de 
equilíbrio. ele opta, ou é 'optado', pelo que sente, " ... ser para maior 
glória e louvor de Deus nosso Senhor e salvação da {sua] alma". Logo 
em seguida à escolha, deve o exercitante oferecê-la a Deus, para que 
" ... sua divina Majestade se digne aceitá-la e confirmá-la. se ela for 
para seu maior serviço e louvor". Eis aí uma nova identidade construída 
com determinação, método, cautela e segurança. 
Na terceira semana. além dos exercíc ios. Santo Inácio propõe 
algumas regras para se ordenar a alimentação: o que convém comer e 
do que jejuar; como comer, no que pensar enquanto come, o que 
imaginar durante a refeição etc. "Importa, sobretudo, que o espírito não 
se ocupe totalmente no que comemos e que se evite a sofreguidão do 
apetite, mas seja senhor de si, tanto na maneira de comer como na 
quantidade que se toma." 
Na quarta semana, além das medilações e exames, Santo Inácio 
esclarece a prática da oração. propondo três modos de orar. 
Em anexo aos Exercícios espirituais, costumam ser publicadas 
as Regras: para pensar; para examinar e discernir estados subjetivos 
(" ... sentir e conhecer ao; várias moções que se produzem na alma: as 
boas para aceitar e as más para rejeitar"); regras para dar esmolas; regras 
para entender as ações do diabo e bem lidar com elas; regras para sentir 
adequadamente. Nada fica de fora do previsto e do programado. A 
própria graça divina é evocada com determinação, como vimos na 
experiência da 'eleição'. em que Deus é convocado sem apelação para 
dar a palavra tina! de uma escolha meticulosamente organizada. 
Os jesuítas. sem dúvida nenhuma. elaboraram o primeiro sistema 
completo de construção e administração do psiquismo nos tempos 
modernos. Este sistema produziu algumas das mentes mais fortes e 
independentes da modernidade. No século XVII, René Descartes 
orgulhava-se de ter estudado num dos melhores colégios da Europa, 
o colégio jesuíta La Aeche. Descartes re lata não ter ficado satisfeito 
em sua necess idade de convencimento e segurança com os 
66 
ensinamentos recebidos. No entanto, se ria difícil entender a 
independê ncia de espírito. o método e a própria exigência de rigor e 
autodomínio de Descartes sem considerar o ethos dos Exerdcios 
espiriTuais de Santo Inácio de Loyola, tal como é mais difícil entender 
Galilcu sem a reforma musical proposta pelo seu pai. 
Uma santa católica na idade da polifonia 11 
Na escolha de Teresa Sánchez y Ahumada, aliás, Teresa de 
Cepeda y Ahumada, aliás, madre Teresa de Jesus, aliás, Santa Teresa 
d'Ávila (1515-1582) como pivô deste ensaio sobre o século XVI, há 
uma certa presunção de que ela possa ocupar uma posição exemplar e 
representativa. É uma presunÇão arrojada. O século XVI- e esta é uma 
das idéias bás icas deste trabalho- não tem um centro; é, ao contrário, 
um período que se debate com as glórias e perigos do policentrismo e 
da descentração. 
Não obstante, no contexto das lutas internas do cristianismo, no 
contexto da expansão da cristandade para as terras do Novo Mundo e 
no contexto da polftica e do comércio mundiais as Espanhas ocupavam 
uma posição destacada. Em particular, a renovação do catolicismo muito 
deveu à espiritualidade espanhola: a Espanha foi, não por acaso. uma 
das maiores fontes de santos da época. Dentro das Espanhas cabia, 
como se sabe. ao reino de Castela a hegemonia polftica e cultural. No 
centro geográfico do reino está a c idade de Toledo. origem da família 
paterna de Teresa. 
No entanto, ao mesmo tempo que era um centro poHtico e 
econômico da Espanha, com uma população de cerca de noventa mil 
habitantes, Toledo também era uma cidade de fronteira. Ex-capital 
visigoda, Toledo cresceu abrigando cristãos, judeus e mouros, e seus 
antigos governantes se intitulavam Reis de T rês Religiões. A partir das 
dificuldades de convivência e das perseguições que começaram a 
ocorrer no final do século XIV , boa parte dos mouros e judeus se 
converteu ao cristianismo, tomando a cidade ainda mais claramente 
um espaço fronteiriço. 
Na segunda metade do século XV. um dos judeus convertidos 
era dom Juan Sánchez, casado com dona lnez, da famflia nobre Cepeda. 
No final desse século, uma caça aos judeus conversos foi deflagrada 
67 
elege o que vai ser dali por diante. Trata-se de uma escolha, mas desta 
escolha foi retirada toda a contingência: a eleição se confunde com a 
escu ta de um chamado; a eleição é , segundo Santo Inácio. o 
atendimento a uma vocação. O esforço que exige do optante é o de 
não se deixar levar pela paixão e pelas afeições desordenadas. e 
permanecer num estado de perfeita indiferença: nesta condição de 
equilíbrio. ele opta, ou é 'optado', pelo que sente, " ... ser para maior 
glória e louvor de Deus nosso Senhor e salvação da {sua] alma". Logo 
em seguida à escolha, deve o exercitante oferecê-la a Deus, para que 
" ... sua divina Majestade se digne aceitá-la e confirmá-la. se ela for 
para seu maior serviço e louvor". Eis aí uma nova identidade construída 
com determinação, método,cautela e segurança. 
Na terceira semana. além dos exercíc ios. Santo Inácio propõe 
algumas regras para se ordenar a alimentação: o que convém comer e 
do que jejuar; como comer, no que pensar enquanto come, o que 
imaginar durante a refeição etc. "Importa, sobretudo, que o espírito não 
se ocupe totalmente no que comemos e que se evite a sofreguidão do 
apetite, mas seja senhor de si, tanto na maneira de comer como na 
quantidade que se toma." 
Na quarta semana, além das medilações e exames, Santo Inácio 
esclarece a prática da oração. propondo três modos de orar. 
Em anexo aos Exercícios espirituais, costumam ser publicadas 
as Regras: para pensar; para examinar e discernir estados subjetivos 
(" ... sentir e conhecer ao; várias moções que se produzem na alma: as 
boas para aceitar e as más para rejeitar"); regras para dar esmolas; regras 
para entender as ações do diabo e bem lidar com elas; regras para sentir 
adequadamente. Nada fica de fora do previsto e do programado. A 
própria graça divina é evocada com determinação, como vimos na 
experiência da 'eleição'. em que Deus é convocado sem apelação para 
dar a palavra tina! de uma escolha meticulosamente organizada. 
Os jesuítas. sem dúvida nenhuma. elaboraram o primeiro sistema 
completo de construção e administração do psiquismo nos tempos 
modernos. Este sistema produziu algumas das mentes mais fortes e 
independentes da modernidade. No século XVII, René Descartes 
orgulhava-se de ter estudado num dos melhores colégios da Europa, 
o colégio jesuíta La Aeche. Descartes re lata não ter ficado satisfeito 
em sua necess idade de convencimento e segurança com os 
66 
ensinamentos recebidos. No entanto, se ria difícil entender a 
independê ncia de espírito. o método e a própria exigência de rigor e 
autodomínio de Descartes sem considerar o ethos dos Exerdcios 
espiriTuais de Santo Inácio de Loyola, tal como é mais difícil entender 
Galilcu sem a reforma musical proposta pelo seu pai. 
Uma santa católica na idade da polifonia 11 
Na escolha de Teresa Sánchez y Ahumada, aliás, Teresa de 
Cepeda y Ahumada, aliás, madre Teresa de Jesus, aliás, Santa Teresa 
d'Ávila (1515-1582) como pivô deste ensaio sobre o século XVI, há 
uma certa presunção de que ela possa ocupar uma posição exemplar e 
representativa. É uma presunÇão arrojada. O século XVI- e esta é uma 
das idéias bás icas deste trabalho- não tem um centro; é, ao contrário, 
um período que se debate com as glórias e perigos do policentrismo e 
da descentração. 
Não obstante, no contexto das lutas internas do cristianismo, no 
contexto da expansão da cristandade para as terras do Novo Mundo e 
no contexto da polftica e do comércio mundiais as Espanhas ocupavam 
uma posição destacada. Em particular, a renovação do catolicismo muito 
deveu à espiritualidade espanhola: a Espanha foi, não por acaso. uma 
das maiores fontes de santos da época. Dentro das Espanhas cabia, 
como se sabe. ao reino de Castela a hegemonia polftica e cultural. No 
centro geográfico do reino está a c idade de Toledo. origem da família 
paterna de Teresa. 
No entanto, ao mesmo tempo que era um centro poHtico e 
econômico da Espanha, com uma população de cerca de noventa mil 
habitantes, Toledo também era uma cidade de fronteira. Ex-capital 
visigoda, Toledo cresceu abrigando cristãos, judeus e mouros, e seus 
antigos governantes se intitulavam Reis de T rês Religiões. A partir das 
dificuldades de convivência e das perseguições que começaram a 
ocorrer no final do século XIV , boa parte dos mouros e judeus se 
converteu ao cristianismo, tomando a cidade ainda mais claramente 
um espaço fronteiriço. 
Na segunda metade do século XV. um dos judeus convertidos 
era dom Juan Sánchez, casado com dona lnez, da famflia nobre Cepeda. 
No final desse século, uma caça aos judeus conversos foi deflagrada 
67 
pelos reis católicos Fernando e Isabel. Em Toledo, uma entre suas 
vítimas foi dom Juan Sánchez. Submetido, junto com seus filhos, entre 
os quais Afonso, a humil hações públicas, dom Juan conseguiu livrar-
se do pior, mas passou a assinar Juan Sánchez de Cepeda, e os filhos 
tenderam desde então a excluir o ~obrenome paterno. 
Juan Sánchez de Cepeda conseguiu reconstruir sua vida e sua 
fo~tuna- era comerciante e financista - ajudado, incl usive, pelo vazio 
desx.ado pela ex.pulsão dos judeus da Espanha . Para facilitar 0 
esquecimento, transferiu-se para a cidade próxima de Ávila. No início 
do século XVI, Juan de Cepeda comprou um certificado de nobreza. 
que atestava suas boas origens c lhe dava uma genealogia tão ilustre 
quanto falsa. 
Os tilhos de dom Juan assumiram com total determinação a nova 
identidade. Isto não impediu que em 1519 (Teresa tinha quatro anos) 
os Cepeda tenham sido denunciados como falsos nobres. O caso foi 
ao tribunal e os Cepeda obtiveram um veredicto favorável, isto é, foram 
reconhecidas como verdadeiras suas falsas origens. 
Trata-se, como se vê, de uma família marcada pelas histórias de 
conversão: a conversão original ao catolicismo, a confi rmação da 
conversão no episódio de Toledo, a conversão de Toledo a Ávila, a 
conversão de Sánchez a Cepeda c de plebeu a fidalgo. 
Desta sucessão de conversões resultou, finalmente, uma identi-
dade imaginária, uma memória inventada, mas registrada e reconheci-
da, e um eJtilo amaneirado de vída. Dom Alonso de Cepeda pautou 
sua existência pelo modelo do cavalheiro: sério, consciencioso, circuns-
pecto, digno e suscetível, sumamente preocupado com as aparências, 
com adornos. jóias e roupas finas, muilo generoso e gastador, e inca-
paz de trabalhar e ganhar dinheiro- atividades certamente muito terre-
nas para este modelo de cavalheiresca e afetada elevação. 
Após enviuvar de um primeiro casamento (na peste de 1507 
morrem-lhe o pai e a esposa), dom AJonso casou-se com Beatriz de 
Ahumada, que tinha apenas 14 anos e com quem teve Hernando, 
Rodrigo e, a 28 de março de I 5 15, Teresa (foram ao todo dez partos em 
18 anos de casamento - dona Beatriz morreu com 33 anos). 
Foi através dessa jovem mãe que Teresa entrou em contato com 
o sonho em forma literária: as vidas de santos e, principalmente, os 
romances de cavalaria. Dona Beatriz era grande aficcionada deste 
68 
gênero, c ela e os filhos liam escondidos do pai, que condenava esta 
leitum por considerá-la um tanto imoral. Não obstante, é fácil reconhecer 
a afinidade espiritual entre o marido, que imita um fidalgo, e a esposa, 
que se emociona com as peripécias de Amadis de Gaula. Teresa relata 
que um dia, inspirada nos feitos militares c galantes dos cavaleiros e 
nas vidas de santos, igualmente estili7.adas. empreendeu com o irmão 
Rodrigo uma fuga de casa rumo à Terra Santa. Um tio os trouxe de 
volta. Consta também que, com o mesmo irmão, chegou a escrever um 
romance de cavalaria, lido pelos parentes. 
Este modelo de nobreza e corngem, assodado à progressiva ruína 
da fam(lia, está provavelmente na origem dos destinos de muitos dos 
ínn:tos de Teresa que. na condição de fidalgos, embarcaram para o Peru, 
internacionalizando, por assim dizer, o alcance das experiências 
fami liares. 
Não é meu objetivo aprese ntar uma resenha dos dados 
biográficos de Teresa e de seus parentes. Estou apenas tentando 
justi ficar a escolha. mostrando que muitos dos aspectos da vida 
quinhentista discutidos nas páginas precedentes - o medo das 
margens e dos seres fronteiriços. as conversões, destruições e 
reconstruções de identidades, o uso identificatório das memórias. o 
amaneiramento como estratégia de consolidação de uma identidade 
fdgil, os contatos com as regiões do Novo Mundo - estão presentes 
no ambiente que cercou a formação e a vida de Teresa Sánchez de 
Ccpeda y Ahumada. 
Se nos aproximarmos um pouco mais dela reencontraremos estes 
e outros temas quinhentistas. 
Teresa passou por várias conversões: defrontou-se pessoalmente 
com a dispersão do catolicismo na figura de confessores e mentorcs 
díspares e mulUamentc contraditórios; esteve sob a suspeita da 
Inquisição, foidenunciada, marginalizada; escreveu uma autobiografia 
( 1562) e. como se fica sabendo por esta obra extraordinária, foi uma 
das mais interessantes doentes neste século de hipocondríacos. 
As descri ções de Teresa das suas doenças são de um 
detalhamento e vivacidade assombrosos , principalmente se 
considerannos que as mais completas descrições se referem ao perfodo 
da juventude e a autobiografia foí escrita aos 47 anos de idade. Diz 
ela, por exemplo: 
69 
pelos reis católicos Fernando e Isabel. Em Toledo, uma entre suas 
vítimas foi dom Juan Sánchez. Submetido, junto com seus filhos, entre 
os quais Afonso, a humil hações públicas, dom Juan conseguiu livrar-
se do pior, mas passou a assinar Juan Sánchez de Cepeda, e os filhos 
tenderam desde então a excluir o ~obrenome paterno. 
Juan Sánchez de Cepeda conseguiu reconstruir sua vida e sua 
fo~tuna- era comerciante e financista - ajudado, incl usive, pelo vazio 
desx.ado pela ex.pulsão dos judeus da Espanha . Para facilitar 0 
esquecimento, transferiu-se para a cidade próxima de Ávila. No início 
do século XVI, Juan de Cepeda comprou um certificado de nobreza. 
que atestava suas boas origens c lhe dava uma genealogia tão ilustre 
quanto falsa. 
Os tilhos de dom Juan assumiram com total determinação a nova 
identidade. Isto não impediu que em 1519 (Teresa tinha quatro anos) 
os Cepeda tenham sido denunciados como falsos nobres. O caso foi 
ao tribunal e os Cepeda obtiveram um veredicto favorável, isto é, foram 
reconhecidas como verdadeiras suas falsas origens. 
Trata-se, como se vê, de uma família marcada pelas histórias de 
conversão: a conversão original ao catolicismo, a confi rmação da 
conversão no episódio de Toledo, a conversão de Toledo a Ávila, a 
conversão de Sánchez a Cepeda c de plebeu a fidalgo. 
Desta sucessão de conversões resultou, finalmente, uma identi-
dade imaginária, uma memória inventada, mas registrada e reconheci-
da, e um eJtilo amaneirado de vída. Dom Alonso de Cepeda pautou 
sua existência pelo modelo do cavalheiro: sério, consciencioso, circuns-
pecto, digno e suscetível, sumamente preocupado com as aparências, 
com adornos. jóias e roupas finas, muilo generoso e gastador, e inca-
paz de trabalhar e ganhar dinheiro- atividades certamente muito terre-
nas para este modelo de cavalheiresca e afetada elevação. 
Após enviuvar de um primeiro casamento (na peste de 1507 
morrem-lhe o pai e a esposa), dom AJonso casou-se com Beatriz de 
Ahumada, que tinha apenas 14 anos e com quem teve Hernando, 
Rodrigo e, a 28 de março de I 5 15, Teresa (foram ao todo dez partos em 
18 anos de casamento - dona Beatriz morreu com 33 anos). 
Foi através dessa jovem mãe que Teresa entrou em contato com 
o sonho em forma literária: as vidas de santos e, principalmente, os 
romances de cavalaria. Dona Beatriz era grande aficcionada deste 
68 
gênero, c ela e os filhos liam escondidos do pai, que condenava esta 
leitum por considerá-la um tanto imoral. Não obstante, é fácil reconhecer 
a afinidade espiritual entre o marido, que imita um fidalgo, e a esposa, 
que se emociona com as peripécias de Amadis de Gaula. Teresa relata 
que um dia, inspirada nos feitos militares c galantes dos cavaleiros e 
nas vidas de santos, igualmente estili7.adas. empreendeu com o irmão 
Rodrigo uma fuga de casa rumo à Terra Santa. Um tio os trouxe de 
volta. Consta também que, com o mesmo irmão, chegou a escrever um 
romance de cavalaria, lido pelos parentes. 
Este modelo de nobreza e corngem, assodado à progressiva ruína 
da fam(lia, está provavelmente na origem dos destinos de muitos dos 
ínn:tos de Teresa que. na condição de fidalgos, embarcaram para o Peru, 
internacionalizando, por assim dizer, o alcance das experiências 
fami liares. 
Não é meu objetivo aprese ntar uma resenha dos dados 
biográficos de Teresa e de seus parentes. Estou apenas tentando 
justi ficar a escolha. mostrando que muitos dos aspectos da vida 
quinhentista discutidos nas páginas precedentes - o medo das 
margens e dos seres fronteiriços. as conversões, destruições e 
reconstruções de identidades, o uso identificatório das memórias. o 
amaneiramento como estratégia de consolidação de uma identidade 
fdgil, os contatos com as regiões do Novo Mundo - estão presentes 
no ambiente que cercou a formação e a vida de Teresa Sánchez de 
Ccpeda y Ahumada. 
Se nos aproximarmos um pouco mais dela reencontraremos estes 
e outros temas quinhentistas. 
Teresa passou por várias conversões: defrontou-se pessoalmente 
com a dispersão do catolicismo na figura de confessores e mentorcs 
díspares e mulUamentc contraditórios; esteve sob a suspeita da 
Inquisição, foi denunciada, marginalizada; escreveu uma autobiografia 
( 1562) e. como se fica sabendo por esta obra extraordinária, foi uma 
das mais interessantes doentes neste século de hipocondríacos. 
As descri ções de Teresa das suas doenças são de um 
detalhamento e vivacidade assombrosos , principalmente se 
considerannos que as mais completas descrições se referem ao perfodo 
da juventude e a autobiografia foí escrita aos 47 anos de idade. Diz 
ela, por exemplo: 
69 
As dores no coração, das quais me tinha ido curar, cresceram tanto, que 
me parecia às vezes tê-lo rasgado por dentes agudos. Temeram que fosse 
raiva. As torças me faltavam, nada comia. apenas bebia um pouco. tudo 
me causava náuseas e a febre era contínua. o organismo estava gasto em 
conseqüência de purgativos diários durante quase um mês. Estava tão 
ressequida que meus nervos começaram a se encolher com dores 
insuportáveis ( ... ) Neste sofrimento mats agudo estive cerca de três 
meses. Paret:ia impossível alguém suportar tantos males juntos. ([ 15621 
1983; p. 35) 
Relata, ainda, que certa ocasião esteve como morta e que só 
recuperou os sentidos quando já preparavam o enterro . Esteve 
entrevada um ceno tempo: 
Após alguns dias de espasmo fiquei encolhida, como que enovelada. 
Parecia morta. inc:~paz de mover braços, pés, mãos e cabeça, se outros 
não me moviam. Ao que me lembro só movia um dedo da mão direita. 
Não sabiam como tocar em mim. Sentia tantas dores que não podia 
suportar( .. . ) Sentia-me aliviada somente quando não se aproximavam 
de mim. As dores então muitas vezes cessavam. Receava que me viesse 
a faltar a paciência. (lbid.; p. 38) 
Aliviada das dores, ficou então paralítica durante três anos . 
Louvou a Deus quando começou a engatinhar. 
Estas doenças nunca a abandonaram de todo, mas com a sua 
conversão definitiva e com o seu engajamento na luta para dar à nova 
vida mística um instrumento organizacional adequado - o convento 
reformado - foram cedendo. Ela se tornou então capaz dos maiores 
prodígios, não apenas espirituais, como a levitação, mas também 
políticos e adm inistrativos. 
Griffin ( 1990), analisando a autobiografia contemporânea de Ch. 
Colson - um dos homens do presidente Nixon -, identificou dois 
procedimentos retóricos que garantiam a uni dade da vida e a 
credibilidade do relato. Colson, depois de uma vida de corrupção, 
converteu-se. Como confiar nele? Baseado na teoria retórica de K. 
Burke, Griffín usa os conceitos de ' forma silogística' e 'forma 
qualitativa' em sua análise. A forma silogística mostra a vida. inclusive 
a conversão, como algo necessário, lógico e. portanto, mais uno e mais 
crível . A forma qualitativa, ao contrário, enfatizao contraste e, nesta 
medida, a autenticidade dos modos de vida. Através da alternância no 
70 
relato autobiográfico, o escritor consegue produzir um forte impacto 
emocional no leitor: fica daro que o sujeito viveu aquilo que está 
contando. Colson é hábil no manejo dos dois procedimentos. 
Uma característica da autobiografia de Santa Teresa é o uso 
predominante e quase exclusivo da forma qualitativa de retórica. Ela 
insiste nos contrastes: de um lado, os pecados (mais imaginários que 
reais}, o imerecimento, as dores e aflições, as misérias, a ignorância e a 
própria inferioridade da condição feminina; de outro, as bênçãos e 
graças. as alegrias e felicidades infinita<;, a certeza e a segurança. as 
maravilhas da união mística. Esta é, sem dúvida, a retórica mais 
apropriada para o relato de uma existência convulsionada. A garantia 
de unidade não é procurada naquilo que possa depender diretamente 
de Santa Teresa, nem nos dispositivos reasseguradores do 
amaneiramento (Santa Teresa não imita), nem nos da administração 
racional do psiquismo. É verdade que Santa Teresa chegou a descrever 
c tipificar suas experiências místicas (os graus da oração) e a usá-las 
como recurso pedagógico; ela, porém, não se propõe a programar o 
aperfeiçoamento espiritual de ninguém; quer só mostrar que suas 
experiências são autênticas e aceitáveis pela Igreja. A procura da 
garantia para a unidade existencial se desloca, então, do modelo e da 
razão pragmaticamente aplicada para reivindicação de uma radical 
veracidade de sua experiência pessoal. Se estas experiências místicas 
forem verdadeiras, tudo faz sentido, tudo valeu a pena. 
Santa Teresa d'Ávila foi monja longos anos antes de se converter 
definilivamente, e, durante certo tempo, viveu os sobressaltos da 
conversão sem se transformar numa reformadora. No que consistiu 
esta conversão? 
A conversão ocorreu associada e como resultado de episódios 
mfsticos em que Teresa se sentia em comunicação direta com Jesus. 
Havia diferentes níveis de comunicação e foi aos poucos que a 
comunicação se tornou mais completa e perfeita. A conversão lhe 
trouxe muita alegria e muita aflição. No que concerne à alegria, 
selecionei como exemplo o famoso episódio com o anjo. 
Aprouve ao Senhor favorecer-me algumas vezes com esta visão. Via 
um anjo perto de mim, do lado esquerdo, sob forma corporal ( ... ) Não 
era grande. senão pequeno. formosíssimo, o rosto tão incendido que 
71 
As dores no coração, das quais me tinha ido curar, cresceram tanto, que 
me parecia às vezes tê-lo rasgado por dentes agudos. Temeram que fosse 
raiva. As torças me faltavam, nada comia. apenas bebia um pouco. tudo 
me causava náuseas e a febre era contínua. o organismo estava gasto em 
conseqüência de purgativos diários durante quase um mês. Estava tão 
ressequida que meus nervos começaram a se encolher com dores 
insuportáveis ( ... ) Neste sofrimento mats agudo estive cerca de três 
meses. Paret:ia impossível alguém suportar tantos males juntos. ([ 15621 
1983; p. 35) 
Relata, ainda, que certa ocasião esteve como morta e que só 
recuperou os sentidos quando já preparavam o enterro . Esteve 
entrevada um ceno tempo: 
Após alguns dias de espasmo fiquei encolhida, como que enovelada. 
Parecia morta. inc:~paz de mover braços, pés, mãos e cabeça, se outros 
não me moviam. Ao que me lembro só movia um dedo da mão direita. 
Não sabiam como tocar em mim. Sentia tantas dores que não podia 
suportar( .. . ) Sentia-me aliviada somente quando não se aproximavam 
de mim. As dores então muitas vezes cessavam. Receava que me viesse 
a faltar a paciência. (lbid.; p. 38) 
Aliviada das dores, ficou então paralítica durante três anos . 
Louvou a Deus quando começou a engatinhar. 
Estas doenças nunca a abandonaram de todo, mas com a sua 
conversão definitiva e com o seu engajamento na luta para dar à nova 
vida mística um instrumento organizacional adequado - o convento 
reformado - foram cedendo. Ela se tornou então capaz dos maiores 
prodígios, não apenas espirituais, como a levitação, mas também 
políticos e adm inistrativos. 
Griffin ( 1990), analisando a autobiografia contemporânea de Ch. 
Colson - um dos homens do presidente Nixon -, identificou dois 
procedimentos retóricos que garantiam a uni dade da vida e a 
credibilidade do relato. Colson, depois de uma vida de corrupção, 
converteu-se. Como confiar nele? Baseado na teoria retórica de K. 
Burke, Griffín usa os conceitos de ' forma silogística' e 'forma 
qualitativa' em sua análise. A forma silogística mostra a vida. inclusive 
a conversão, como algo necessário, lógico e. portanto, mais uno e mais 
crível . A forma qualitativa, ao contrário, enfatizao contraste e, nesta 
medida, a autenticidade dos modos de vida. Através da alternância no 
70 
relato autobiográfico, o escritor consegue produzir um forte impacto 
emocional no leitor: fica daro que o sujeito viveu aquilo que está 
contando. Colson é hábil no manejo dos dois procedimentos. 
Uma característica da autobiografia de Santa Teresa é o uso 
predominante e quase exclusivo da forma qualitativa de retórica. Ela 
insiste nos contrastes: de um lado, os pecados (mais imaginários que 
reais}, o imerecimento, as dores e aflições, as misérias, a ignorância e a 
própria inferioridade da condição feminina; de outro, as bênçãos e 
graças. as alegrias e felicidades infi nita<;, a certeza e a segurança. as 
maravilhas da união mística. Esta é, sem dúvida, a retórica mais 
apropriada para o relato de uma existência convulsionada. A garantia 
de unidade não é procurada naquilo que possa depender diretamente 
de Santa Teresa, nem nos dispositivos reasseguradores do 
amaneiramento (Santa Teresa não imita), nem nos da administração 
racional do psiquismo. É verdade que Santa Teresa chegou a descrever 
c tipificar suas experiências místicas (os graus da oração) e a usá-las 
como recurso pedagógico; ela, porém, não se propõe a programar o 
aperfeiçoamento espiritual de ninguém; quer só mostrar que suas 
experiências são autênticas e aceitáveis pela Igreja. A procura da 
garantia para a unidade existencial se desloca, então, do modelo e da 
razão pragmaticamente aplicada para reivindicação de uma radical 
veracidade de sua experiência pessoal. Se estas experiências místicas 
forem verdadeiras, tudo faz sentido, tudo valeu a pena. 
Santa Teresa d'Ávila foi monja longos anos antes de se converter 
definilivamente, e, durante certo tempo, viveu os sobressaltos da 
conversão sem se transformar numa reformadora. No que consistiu 
esta conversão? 
A conversão ocorreu associada e como resultado de episódios 
mfsticos em que Teresa se sentia em comunicação direta com Jesus. 
Havia diferentes níveis de comunicação e foi aos poucos que a 
comunicação se tornou mais completa e perfeita. A conversão lhe 
trouxe muita alegria e muita aflição. No que concerne à alegria, 
selecionei como exemplo o famoso episódio com o anjo. 
Aprouve ao Senhor favorecer-me algumas vezes com esta visão. Via 
um anjo perto de mim, do lado esquerdo, sob forma corporal ( ... ) Não 
era grande. senão pequeno. formosíssimo, o rosto tão incendido que 
71 
deveria ser dos anjos que servem muito peno de Deus, que parecem 
abrasar-se todos ... 
Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro. Na ponta de ferro julguet 
haver um pouco de fogo. Parecia algumas VCJ:cs metê-lo pelo meu coração 
adentro. de modo que chegava às entranhas. Ao tirá-la eu tinha a 
impre~são que as levava consigo. deixando-me toda abrasada em grande 
amor de Deus. Ercl tão inteflsa a dor. que me fazi a dar os gemidos de 
que fnlci. Es~ dor imensa produz 100 excessiva suavidade que nllo se 
deseja o seu fim. nem a alma se contenta com menos do que com Deus. 
Não é dor corporal ~cnão e~piritual, ainda que o corpo nllo deixe de ter 
sua pane. e até bem grondc. Nos dias em que recebia esta graça. andava 
como fora de m1m (abobada). (lbid.; p. 236) 
Por outro lado. a intensidade das emoções evocadas pelas visões 
e pelas locuções. ou pe la simples presença pressen tida de Jesus. 
deixava Santa Teresa perplexa e atemorizada. Estas experiências foram 
tornando intoleráveis para ela a vida mundana tal como existia no 
interior dos conventos cannelitas da regra mitigada. Desde o sé<:ulo 
X V, os conventos carmelitas - originalmente votados a um severo 
ascetismo - tinham se transfonnado, pela introdução da regra mitigada, 
quase que em pensionatos em que vocações religiosas se confundiam 
com solteirice. viuvicc e orfandade. Cada monja vivia conforme suas 
posses - o que inc luía alé diferenças no tamanho das celas (Santa 
Teresa dispunha de duas amplas celas, em que chegou a abrigar uma 
irmã mais rnoça durante certo tempo); as monjassaíam com bastante 
liberdade para visitar seus parentel> e recebiam visitas (Teresa foi. 
durante certo tempo. visitada por ·um admirador da sua notávd beleza 
fís ica). Nos anos de mocidade, Teresa. apesar das doenças que a 
atormentavam, estava acostumada a este modo de vida, embora relate 
que não era fe liz. As comunicações com Deus tornaram insuportável a 
regra mitigada. c não tanto por um moralismo excessivo, mas porque o 
(.Onvento da regra mitigada propiciava a dispersão, seja pela sua 
porosidade (pessoas c notkias entrando e saindo), seja pela diversidade 
ent re as freiras , que refletia a diversidade do mundo lá fora . As 
experiências místicas são extremamente perturbadoras. confonne nos 
conta Teresa, e têm um efeito muito desenrnizador em relação ao mundo 
e em re lação à identidade convencional do místico. Era preciso abrigar 
estas experiências em algum invólucro protetor_ O convento da regra 
mitigada não era capaz de lhe prestar este serviço. 
72 
Em acréscimo, as experiências místicas deixavam Teresa confusa: 
ela não era tola nem ingênua c sabia que na Espanha havia muitas 
mulheres se dizendo e se a<:reditando mfsticns. quando e ram 
endemoniadas. Teresa buscou conselhos entre homens, pois não 
duvidava da suposta inferioridade intelectual e moral das mulheres. Só 
que os conselheiros eram contraditórios entre si e, com todas as suas 
doutas erudições, parec iam saber menos do que ela acerca do que se 
dava na experiência místi<:a. Tentou seguir vários consel heiros. 
mcntores e confessores. Somente alguns, notadamente os jesuítas que 
estavam abrindo um colégio em Ávila. pareciam entender um pouco 
destas experiências. 
Enfim, os episódios místicos. que nunca cessaram mas se 
tornaram mais raros no final da vida, colocaram para Santa Teresa 
algumas questões que exigiram dela uma micropolftica. uma psicologia 
e uma espécie de epistemologia. 
A m icropolílica de Santa Teresa se concreti r. a na tarefa de 
fundação de conventos de acordo com a regra primitiva: pobreza, sem 
mortificação desnecessária, e absoluta clausura. Qual o sentido deste 
fechamento e deste desapego'! O de assegurar privacidade e 
!iiJerdade. A verdadeira experiência espiritual não pode se converter 
num espetáculo milagroso ou ritualizado. Deve ser preservada dos 
olhares indiscretos do mundo ; os êxtases e a rrebatamentos, as 
levitações e transes podem muito facilmente virar objeto de falação e 
de escândalo. A dausura garante a privacidade de uma experiência que 
é da ordem da intimidade inviolável. Por outro lado, é necessário romper 
com as oorigações c , em particular. com as obrigações com familiares: 
"Fico pasmada de ver o prejuízo que resulta do trato com os parentes" 
([ 158311979). 
Compreende-se o que Teresa quer dizer levando-se em conta a 
escravidão a que a mulher ficava reduzida na família, na condição de 
filha ou esposa. Para ela- e Teresa o explicita várias vezes-, romper 
com as obrigações com os parentes é uma via necessária para a 
liberdade feminina. Também em relação aos confessores, a clausura 
pode oferecer uma certa proteção, à medida que o confessor puder ser 
bem escolhido e só a ele as monjas prestarem conta. Mas a principal 
proteção contra confessores ineptos reside na própria profundidade 
73 
deveria ser dos anjos que servem muito peno de Deus, que parecem 
abrasar-se todos ... 
Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro. Na ponta de ferro julguet 
haver um pouco de fogo. Parecia algumas VCJ:cs metê-lo pelo meu coração 
adentro. de modo que chegava às entranhas. Ao tirá-la eu tinha a 
impre~são que as levava consigo. deixando-me toda abrasada em grande 
amor de Deus. Ercl tão inteflsa a dor. que me fazi a dar os gemidos de 
que fnlci. Es~ dor imensa produz 100 excessiva suavidade que nllo se 
deseja o seu fim. nem a alma se contenta com menos do que com Deus. 
Não é dor corporal ~cnão e~piritual, ainda que o corpo nllo deixe de ter 
sua pane. e até bem grondc. Nos dias em que recebia esta graça. andava 
como fora de m1m (abobada). (lbid.; p. 236) 
Por outro lado. a intensidade das emoções evocadas pelas visões 
e pelas locuções. ou pe la simples presença pressen tida de Jesus. 
deixava Santa Teresa perplexa e atemorizada. Estas experiências foram 
tornando intoleráveis para ela a vida mundana tal como existia no 
interior dos conventos cannelitas da regra mitigada. Desde o sé<:ulo 
X V, os conventos carmelitas - originalmente votados a um severo 
ascetismo - tinham se transfonnado, pela introdução da regra mitigada, 
quase que em pensionatos em que vocações religiosas se confundiam 
com solteirice. viuvicc e orfandade. Cada monja vivia conforme suas 
posses - o que inc luía alé diferenças no tamanho das celas (Santa 
Teresa dispunha de duas amplas celas, em que chegou a abrigar uma 
irmã mais rnoça durante certo tempo); as monjas saíam com bastante 
liberdade para visitar seus parentel> e recebiam visitas (Teresa foi. 
durante certo tempo. visitada por ·um admirador da sua notávd beleza 
fís ica). Nos anos de mocidade, Teresa. apesar das doenças que a 
atormentavam, estava acostumada a este modo de vida, embora relate 
que não era fe liz. As comunicações com Deus tornaram insuportável a 
regra mitigada. c não tanto por um moralismo excessivo, mas porque o 
(.Onvento da regra mitigada propiciava a dispersão, seja pela sua 
porosidade (pessoas c notkias entrando e saindo), seja pela diversidade 
ent re as freiras , que refletia a diversidade do mundo lá fora . As 
experiências místicas são extremamente perturbadoras. confonne nos 
conta Teresa, e têm um efeito muito desenrnizador em relação ao mundo 
e em re lação à identidade convencional do místico. Era preciso abrigar 
estas experiências em algum invólucro protetor_ O convento da regra 
mitigada não era capaz de lhe prestar este serviço. 
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Em acréscimo, as experiências místicas deixavam Teresa confusa: 
ela não era tola nem ingênua c sabia que na Espanha havia muitas 
mulheres se dizendo e se a<:reditando mfsticns. quando e ram 
endemoniadas. Teresa buscou conselhos entre homens, pois não 
duvidava da suposta inferioridade intelectual e moral das mulheres. Só 
que os conselheiros eram contraditórios entre si e, com todas as suas 
doutas erudições, parec iam saber menos do que ela acerca do que se 
dava na experiência místi<:a. Tentou seguir vários consel heiros. 
mcntores e confessores. Somente alguns, notadamente os jesuítas que 
estavam abrindo um colégio em Ávila. pareciam entender um pouco 
destas experiências. 
Enfim, os episódios místicos. que nunca cessaram mas se 
tornaram mais raros no final da vida, colocaram para Santa Teresa 
algumas questões que exigiram dela uma micropolftica. uma psicologia 
e uma espécie de epistemologia. 
A m icropolílica de Santa Teresa se concreti r. a na tarefa de 
fundação de conventos de acordo com a regra primitiva: pobreza, sem 
mortificação desnecessária, e absoluta clausura. Qual o sentido deste 
fechamento e deste desapego'! O de assegurar privacidade e 
!iiJerdade. A verdadeira experiência espiritual não pode se converter 
num espetáculo milagroso ou ritualizado. Deve ser preservada dos 
olhares indiscretos do mundo ; os êxtases e a rrebatamentos, as 
levitações e transes podem muito facilmente virar objeto de falação e 
de escândalo. A dausura garante a privacidade de uma experiência que 
é da ordem da intimidade inviolável. Por outro lado, é necessário romper 
com as oorigações c , em particular. com as obrigações com familiares: 
"Fico pasmada de ver o prejuízo que resulta do trato com os parentes" 
([ 158311979). 
Compreende-se o que Teresa quer dizer levando-se em conta a 
escravidão a que a mulher ficava reduzida na família, na condição de 
filha ou esposa. Para ela- e Teresa o explicita várias vezes-, romper 
com as obrigações com os parentes é uma via necessária para a 
liberdade feminina. Também em relação aos confessores, a clausura 
pode oferecer uma certa proteção, à medida que o confessorpuder ser 
bem escolhido e só a ele as monjas prestarem conta. Mas a principal 
proteção contra confessores ineptos reside na própria profundidade 
73 
da experiê ncia pessoal de cada monja e esta só é beneficiada pela maior 
privacidade c pela major liberdade que o wnvento fechado oferece. 
A clausura é a proteção da vida, é o território privilegiado da 
alegria, das núpcias; é o espaço da poesia, que Teresa compôs para 
suas freiras. da música e das danças a que elas se entregavam nas 
horas de recreio coletivo. 
Santa T eresa não defendeu a clausura po r ser austera, 
aprisionantc, nem pelo seu aspecto disciplinar; ela sempre condenou 
a tristeza e con!iiderou a melancolia uma doença, condenou os flagelos 
e a s provações e xcessi vas, condenou a regulação intelectual e 
racional ista da vida interior. 
Esta valorilação do claustro como continente privativo da vida e 
da liberdade não implicava uma desqualificação do mundo lá fora e 
daqueles cuja missão era atuar neste mundo. Aos pregadores e 
teólogos católicos compete a tarefa de enfrentar no mundo as forças 
do demônio, isto é, os hereges protestantes. Devem viver no mundo, 
conformar-se, em parte, com os modos do mundo, com os ambientes 
palacianos etc. Às freiras endausuradas cahc. por sua vez, a tarefa de 
conservarem, no espaço liv re do convento, a autentic idade da 
experiência cristã na sua radical intimidade com Cristo. As carmelitas 
descalças devem dar retaguarda ao exército de Cristo . São o 
complemento feminino da subjetividade jesuíta. 
Teresa sahe, porém , que a c lausura não é tudo: 
Desprendidas do mundo e dos parenteli. cndausuradas aqui nas condições 
adma referidas. parece que está tudo feito e não há contra quem lutar. 
Ó minhas irmãs. não vos deis por segui-as, nem vos deiteis a dormir. 
Será como quem deitl:l hem sossegado, trancl:lndo muito bem as portas 
por medo dos ladrões e os deixa dentro de casa. Ficamos nós mesmas e 
bem sabei~ que não há pior ladrão. ([ 1562) 1983) 
Os muros do convento podem abafar a confusão das vozes do 
mundo, mas fi cam outras vo1.es que é preciso conhecer e discriminar. 
Isto exige algumas idéias acerca de algo que poderíamos designar como 
o 'psicológi~o·. Em diversas ocasiões, Santa Teresa en fatiza a 
necessidade de autoconhecimento como, por exemplo. quando diz: "Não 
é pequena lástima e confusão não nos entendermos a nós mesmos, 
por nossa c ulpa, nem sabermos quem somos". (f1577] 1982; p. 20) 
74 
O Castelo interior é a a lma, e na concepção de Santa Teresa ela 
se assemelha a um palmito cuja medula saborosa é a morada de Deus. 
Os aposentos deste castelo, contudo, não devem ser percorridos 
aleatoriamente e , nos adverte e la, " ... é muito bom, é sumame nte bom 
entrar primeiro no aposento do conhecimento próprio, antes de voar 
aos outros" ([ 1577] 1982; p. 3 1 ); embora o autoconhecimento só se 
complete com o conhecimento de Deus. 
O que há de mais valioso no campo do psicológico não é nem o 
intelecto nem a memória nem a imaginação: é a vomade, quando esta 
é a vontade da união perfeita. de absoluta paz, de alegria ilimitada, que 
só se satisfaz no amor de Deus. 
Santa Teresa não oferece nenhuma receita para regular o espírito; 
procura apenas as condições que permitam atender a esta demanda 
imperiosa da vontade de un ião, q ue é com o uma ânsia dolorosa, 
motivada pela ausência de Deus e descrita em termos que lembram os 
usados para descrever as doe nças: [Nestes fmpetos] "O corpo fica 
despedaçado, incapaz de mover os pés e os braços ( ... } Nem o peito 
pode respirar à vontade" ([ 1562) 1983: p. 235). E ela pergunta: 
Quando, Deus meu. chegarei enfim a ver ll minha alma unida e entregue 
aos vossos louvores, de mlxlo que todas as faculdades se regotijem em 
Vós? Não pennitais, Senhor, que ela seja assim despedaçada; parece-
me ver os seus pedaços dispersos por todos os lados. ([1562)1983; p. 
246) 
É possível, muitas vezes, deixa r as demais faculdades da alma 
livres para o exercício cotidiano de seus afazeres, conservando a 
vontade também livre para a união desejada. 
Produz-se, neste caso, uma certa cisão: 
A ssi m está simultaneamente exercitando a vida ativa e contemplativa: 
ocupa-se de obras de caridade, traia de negócios concernentes ao seu 
estado e pode ler. ainda que não esteja de todo senhora de si. Bem 
percebe que a melhor parte de si mesma está em outro lugar. É como se 
estivéssemos falando com uma pessoa. c outra nos fala sse de outro lado: 
nem bem estaríamo!"o com uma. nem bem com a outra. ([ 1562) 1983; p. 
130) 
Somente nos grandes momentos todas as faculdades sucumbem 
e a vontade reina sozinha: 
75 
da experiê ncia pessoal de cada monja e esta só é beneficiada pela maior 
privacidade c pela major liberdade que o wnvento fechado oferece. 
A clausura é a proteção da vida, é o território privilegiado da 
alegria, das núpcias; é o espaço da poesia, que Teresa compôs para 
suas freiras. da música e das danças a que elas se entregavam nas 
horas de recreio coletivo. 
Santa T eresa não defendeu a clausura po r ser austera, 
aprisionantc, nem pelo seu aspecto disciplinar; ela sempre condenou 
a tristeza e con!iiderou a melancolia uma doença, condenou os flagelos 
e a s provações e xcessi vas, condenou a regulação intelectual e 
racional ista da vida interior. 
Esta valorilação do claustro como continente privativo da vida e 
da liberdade não implicava uma desqualificação do mundo lá fora e 
daqueles cuja missão era atuar neste mundo. Aos pregadores e 
teólogos católicos compete a tarefa de enfrentar no mundo as forças 
do demônio, isto é, os hereges protestantes. Devem viver no mundo, 
conformar-se, em parte, com os modos do mundo, com os ambientes 
palacianos etc. Às freiras endausuradas cahc. por sua vez, a tarefa de 
conservarem, no espaço liv re do convento, a autentic idade da 
experiência cristã na sua radical intimidade com Cristo. As carmelitas 
descalças devem dar retaguarda ao exército de Cristo . São o 
complemento feminino da subjetividade jesuíta. 
Teresa sahe, porém , que a c lausura não é tudo: 
Desprendidas do mundo e dos parenteli. cndausuradas aqui nas condições 
adma referidas. parece que está tudo feito e não há contra quem lutar. 
Ó minhas irmãs. não vos deis por segui-as, nem vos deiteis a dormir. 
Será como quem deitl:l hem sossegado, trancl:lndo muito bem as portas 
por medo dos ladrões e os deixa dentro de casa. Ficamos nós mesmas e 
bem sabei~ que não há pior ladrão. ([ 1562) 1983) 
Os muros do convento podem abafar a confusão das vozes do 
mundo, mas fi cam outras vo1.es que é preciso conhecer e discriminar. 
Isto exige algumas idéias acerca de algo que poderíamos designar como 
o 'psicológi~o·. Em diversas ocasiões, Santa Teresa en fatiza a 
necessidade de autoconhecimento como, por exemplo. quando diz: "Não 
é pequena lástima e confusão não nos entendermos a nós mesmos, 
por nossa c ulpa, nem sabermos quem somos". (f1577] 1982; p. 20) 
74 
O Castelo interior é a a lma, e na concepção de Santa Teresa ela 
se assemelha a um palmito cuja medula saborosa é a morada de Deus. 
Os aposentos deste castelo, contudo, não devem ser percorridos 
aleatoriamente e , nos adverte e la, " ... é muito bom, é sumame nte bom 
entrar primeiro no aposento do conhecimento próprio, antes de voar 
aos outros" ([ 1577] 1982; p. 3 1 ); embora o autoconhecimento só se 
complete com o conhecimento de Deus. 
O que há de mais valioso no campo do psicológico não é nem o 
intelecto nem a memória nem a imaginação: é a vomade, quando esta 
é a vontade da união perfeita. de absoluta paz, de alegria ilimitada, que 
só se satisfaz no amor de Deus. 
Santa Teresa não oferece nenhuma receita para regular o espírito; 
procura apenas as condições que permitam atender a esta demanda 
imperiosa da vontade de un ião, q ue é com o uma ânsia dolorosa, 
motivada pela ausência de Deus e descrita em termos que lembram os 
usados para descrever as doe nças: [Nestes fmpetos] "O corpo fica 
despedaçado,incapaz de mover os pés e os braços ( ... } Nem o peito 
pode respirar à vontade" ([ 1562) 1983: p. 235). E ela pergunta: 
Quando, Deus meu. chegarei enfim a ver ll minha alma unida e entregue 
aos vossos louvores, de mlxlo que todas as faculdades se regotijem em 
Vós? Não pennitais, Senhor, que ela seja assim despedaçada; parece-
me ver os seus pedaços dispersos por todos os lados. ([1562)1983; p. 
246) 
É possível, muitas vezes, deixa r as demais faculdades da alma 
livres para o exercício cotidiano de seus afazeres, conservando a 
vontade também livre para a união desejada. 
Produz-se, neste caso, uma certa cisão: 
A ssi m está simultaneamente exercitando a vida ativa e contemplativa: 
ocupa-se de obras de caridade, traia de negócios concernentes ao seu 
estado e pode ler. ainda que não esteja de todo senhora de si. Bem 
percebe que a melhor parte de si mesma está em outro lugar. É como se 
estivéssemos falando com uma pessoa. c outra nos fala sse de outro lado: 
nem bem estaríamo!"o com uma. nem bem com a outra. ([ 1562) 1983; p. 
130) 
Somente nos grandes momentos todas as faculdades sucumbem 
e a vontade reina sozinha: 
75 
Estando assim a alma a buscar a Deus , sente-se quase desfalecer 
completamente, numa espécie de desmaio com grande e suave ternura. 
Vê que lhe vão faltando as forças corporais. que nem pode menear as 
mãos a não ser com muito custo. Os olhos fecham-se involuntariamente, 
ou, se conservados abertos. a pessoa nada enxerga. Se lê, não acerta 
rom as letras, nem atina em reconhecê-las; vê os caracteres, mas como 
o intelecto não ajuda, não consegue ler ainda que queira. Ouve, porém 
não entende o que ouve, de modo que os sentidos de nada servem. Antes, 
procuram estorvar esta felicidade. É impossível falar: não atina com uma 
palavra e ainda que atinasse não teria alento para pronunciá-la. Toda 
força exterior se perde e se concentra nas da ai ma. ( (I 562) 1983; p. 
139) 
Apostar tudo na vontade de união e nas experiências da unidade, 
imobilizando ou neutralizando o intelecto, a memória e a imaginação, 
traz consigo um intenso temor: como saber que não se está sendo 
enganado? 
Este temor é alimentado por muitas das vozes do mundo que 
parecem estar convencidas de que tais experiências são forjadas pela 
imaginação desenfreada ou produzidas pelo diabo. A vontade de união 
não tem nenhuma das garantias externas que podem ser oferecidas por 
um mo.delo consagrado, por um ritual ou por um dogma. 
E aqui que emerge o empirismo radical de Santa Teresa. Em 
di versas passagens el a nos esclarece de onde fala: ela fala 
exclusivamente da experiência, a partir dela, sobre ela. É com base na 
sua experiência que ela enfrenta os confes.sores, que ela se apresenta 
à hierarqu ia católica e à Inquisição; é esta experiência que ela observa 
com uma atenção quase clínica, lançando·se a algumas teorizações a 
seu respeito. Trata-se de uma experiência não programada e dificilmente 
relatável e, de início, até indesejada. Mas absolutamente convincente. 
Não há para Santa Teresa nada nos livros eruditos da teologia, nas 
belas palavras dos pregadores. nos métodos e ri tuais que possa ter 
mais fo rça que a sua própria experiência. 
A ex periê ncia com tal poder de convencimento não é uma 
experiência com imagens e representações. Não são as representações 
de Jesus ou dos anjos que lhe chegam nas visões e locuções, são eles 
mesnws. Por isso, mais convincentes que todas são as aparições em 
que nada aparece, em que a presença é vivida como convicção de 
76 
presença pura e simples. Esta é a oasc da 'epistemologia' teresiana: a 
abolição do intervalo entre ela c Deus que seria preenchido pela 
imagem. 
No entanto, sobre esta fonna de presença pesa uma pennanente 
suspeita c é necessário distinguir entre o verdadeiro e o fal so, o 
confiável e o ilusório. Para Santa Teresa há duas fontes de ilusão e 
uma só de verdade. A!ó fontes de ilusão são o demônio e o nosso 
próprio intelecto (a imaginação). A fonte de verdade é Deus. O que 
diferencia as visões e locuções puramente imaginadas das outras é, 
exatamente, que elas não passam de representações e, assim sendo, 
não produzem efeitos. O que vem do diaoo produz efeitos noci vos e 
efêmeros c a eremeridadc é a prova de que são ilusórios. Quando 
provém de Deus, os cfeiros são bons e pe rmanentes: eles transformam 
quem os sofre e, nesta medida, são sinais indíst:utíveis de presença. 
Não poder duvidar é o único critério c se confunde com a própria noção 
de verdad e. O indubitável não pode ser forçado ou induzido pela 
autoridade de quem quer que seja: é uma propriedade exclusi va da 
experiência pessoal. A ve rdade não é a verdade por correspondência 
de uma representação, mas a de uma presença que age, reúne, solda e 
dá vida numa uni ão que dissolve c funde irresistivelmente. Desta 
experiência de verdade, ela diz: " ... é um glorioso desatino, uma celestial 
loucura. onde se aprende a verdade ira sahedoria' ' ([ 1562] 1983; p. 123). 
É neste sentido que as palavras de Deus " não são palavras, são 
obras": elas não cuntam a verdade para Santa Teresa, elas tomam 
vN dadeira a vida de Teresa Sánche1. de Ccpcda y Ahumada e fazem 
dela madre Teresa de Jesus, a Refonnadora. 
Porque aqui se dá a grande surpresa - é-se te ntado a dizer: o 
milagre. Tendo viviuo estas experiências, tendo-as elaborado na sua 
história de vida (esl:rita no mesmo ano em que funda o primeiro 
convento com a regra primitiva), madre Teresa de Jesus já pode 
dispensar a clausura. A saúde melhora c ela reconhece : "Depois que 
dei xci de ser tão cuidadosa c mimada, sou muito mais sadia" (11 5621 
1983; p. 95). 
Desde então, durante vinte anos. ela transitou por toda a Espanha, 
corrcspondeu-se com religiosos, fidalgos , reis, freqüentou palácios , 
meteu-se em intrincados negócios imobiliários, adminis trou bens e 
finanças, engajou-se em articulações diplomáticas, aliciou. convenceu 
77 
Estando assim a alma a buscar a Deus , sente-se quase desfalecer 
completamente, numa espécie de desmaio com grande e suave ternura. 
Vê que lhe vão faltando as forças corporais. que nem pode menear as 
mãos a não ser com muito custo. Os olhos fecham-se involuntariamente, 
ou, se conservados abertos. a pessoa nada enxerga. Se lê, não acerta 
rom as letras, nem atina em reconhecê-las; vê os caracteres, mas como 
o intelecto não ajuda, não consegue ler ainda que queira. Ouve, porém 
não entende o que ouve, de modo que os sentidos de nada servem. Antes, 
procuram estorvar esta felicidade. É impossível falar: não atina com uma 
palavra e ainda que atinasse não teria alento para pronunciá-la. Toda 
força exterior se perde e se concentra nas da ai ma. ( (I 562) 1983; p. 
139) 
Apostar tudo na vontade de união e nas experiências da unidade, 
imobilizando ou neutralizando o intelecto, a memória e a imaginação, 
traz consigo um intenso temor: como saber que não se está sendo 
enganado? 
Este temor é alimentado por muitas das vozes do mundo que 
parecem estar convencidas de que tais experiências são forjadas pela 
imaginação desenfreada ou produzidas pelo diabo. A vontade de união 
não tem nenhuma das garantias externas que podem ser oferecidas por 
um mo.delo consagrado, por um ritual ou por um dogma. 
E aqui que emerge o empirismo radical de Santa Teresa. Em 
di versas passagens el a nos esclarece de onde fala: ela fala 
exclusivamente da experiência, a partir dela, sobre ela. É com base na 
sua experiência que ela enfrenta os confes.sores, que ela se apresenta 
à hierarqu ia católica e à Inquisição; é esta experiência que ela observa 
com uma atenção quase clínica, lançando·se a algumas teorizações a 
seu respeito. Trata-se de uma experiência não programada e dificilmente 
relatável e, de início, até indesejada. Mas absolutamente convincente. 
Não há para Santa Teresa nada nos livros eruditos da teologia, nas 
belas palavras dos pregadores. nos métodos e ri tuais que possa ter 
mais fo rça que a sua própria experiência. 
A ex periê ncia com tal poder de convencimentonão é uma 
experiência com imagens e representações. Não são as representações 
de Jesus ou dos anjos que lhe chegam nas visões e locuções, são eles 
mesnws. Por isso, mais convincentes que todas são as aparições em 
que nada aparece, em que a presença é vivida como convicção de 
76 
presença pura e simples. Esta é a oasc da 'epistemologia' teresiana: a 
abolição do intervalo entre ela c Deus que seria preenchido pela 
imagem. 
No entanto, sobre esta fonna de presença pesa uma pennanente 
suspeita c é necessário distinguir entre o verdadeiro e o fal so, o 
confiável e o ilusório. Para Santa Teresa há duas fontes de ilusão e 
uma só de verdade. A!ó fontes de ilusão são o demônio e o nosso 
próprio intelecto (a imaginação). A fonte de verdade é Deus. O que 
diferencia as visões e locuções puramente imaginadas das outras é, 
exatamente, que elas não passam de representações e, assim sendo, 
não produzem efeitos. O que vem do diaoo produz efeitos noci vos e 
efêmeros c a eremeridadc é a prova de que são ilusórios. Quando 
provém de Deus, os cfeiros são bons e pe rmanentes: eles transformam 
quem os sofre e, nesta medida, são sinais indíst:utíveis de presença. 
Não poder duvidar é o único critério c se confunde com a própria noção 
de verdad e. O indubitável não pode ser forçado ou induzido pela 
autoridade de quem quer que seja: é uma propriedade exclusi va da 
experiência pessoal. A ve rdade não é a verdade por correspondência 
de uma representação, mas a de uma presença que age, reúne, solda e 
dá vida numa uni ão que dissolve c funde irresistivelmente. Desta 
experiência de verdade, ela diz: " ... é um glorioso desatino, uma celestial 
loucura. onde se aprende a verdade ira sahedoria' ' ([ 1562] 1983; p. 123). 
É neste sentido que as palavras de Deus " não são palavras, são 
obras": elas não cuntam a verdade para Santa Teresa, elas tomam 
vN dadeira a vida de Teresa Sánche1. de Ccpcda y Ahumada e fazem 
dela madre Teresa de Jesus, a Refonnadora. 
Porque aqui se dá a grande surpresa - é-se te ntado a dizer: o 
milagre. Tendo viviuo estas experiências, tendo-as elaborado na sua 
história de vida (esl:rita no mesmo ano em que funda o primeiro 
convento com a regra primitiva), madre Teresa de Jesus já pode 
dispensar a clausura. A saúde melhora c ela reconhece : "Depois que 
dei xci de ser tão cuidadosa c mimada, sou muito mais sadia" (11 5621 
1983; p. 95). 
Desde então, durante vinte anos. ela transitou por toda a Espanha, 
corrcspondeu-se com religiosos, fidalgos , reis, freqüentou palácios , 
meteu-se em intrincados negócios imobiliários, adminis trou bens e 
finanças, engajou-se em articulações diplomáticas, aliciou. convenceu 
77 
e deixou plantados conventos femininos e masculinos. Durante todos 
esses anos ela enfrentou sérias oposições, esteve marginalizada, foi 
perseguida pela Inquisição. No entanto, sua experiência pessoal não 
lhe faltava. A ela continuou dedicando suas observações e todos os 
livros que escreveu partem dar. 
O século que sucedeu ao de Santa Teresa foi muito pouco 
teresiano. Esta busca de uma verdade para além da representação 
esteve às margens das correntes dominantes da cultura ocidental para 
só vir emergir, sob uma forma não-religiosa, quando a confiança nas 
regras, nas convenções e nas representações parece entrar em colapso, 
abrindo o amplo espaço do ' psicológico' em que estamos ainda hoje 
imersos. 
Neste final do século XX, tenho às vezes a impressão de estarmos 
mais próximos daquele século XVI do que de alguns que vieram depois. 
Sem dúvida, foi isso que me levou a começar por ele esta 'história do 
psicológico' . Mas é pura coincidência lerminar este ensaio em um 15 
de outubro.'2 
78 
Notas 
I. A proliferação das línguas e, mais que tudo. o encontro e confronto das 
vozes umas com as outras criaram também as condições sociológicas 
indispensáveis para o desenvolvimento do gênero literário essencialmente 
polífônico e 'orquestral' que é o romance moderno, cujos momentos 
inaugurais foram as obras de autores quinhentistas como Rabelais e 
Cervantes, de quem voltaremos a falar mais à frente. Uma análise 
extraordinariamente aguda das relações entre as novas condições 
sodoculturais e o plurilingüismo romanesco foi realizada por Bakhtin 
{ 1990) a quem remeto o leitor interessado. 
2. A idéia de que a memória possa assumir diferentes funções sociais e 
psicológicas em diferentes comextos sociais não é nova Jean Pierre Vemant 
(1990), por exemplo, realizou uma rica análise dos usos da memória entre 
os gregos e seria interessante confrontar estes usos estudados por Vemant 
com o uso que está sendo identificado no presente texto. 
3. Uma extraordinária análise da vida e da obra de Calvino e, simultaneamente, 
uma compreensão ampla da problemática cultural e existencial do s6culo 
XVI podem ser encontradas em Bowsma ( 1988). Esta é uma leitura muito 
recomendável para o aprofundamento nestas questões, inclusive pela 
coincidência dos referenciais e concepções de Bowsma com os do presente 
trabalho. 
4. A tese aqui desenvolvida se aproxima das apresentadas por Gusdorf (1980) 
acerca das autobiografias e por Weintraub (1975) acerca das conversões. 
A articulação destas teses já foi efeluada por Griffin ( 1990) na análise de 
uma autobiografia contemporânea, a de um ex-assessor do presidente Nixon. 
5. Para uma compreensão mais rica das relações entre o estilo maneirista e o 
amaneiramento enquanto fenômeno psicopatológico, o leitor deve consultar 
a obra de L. Binswanger ( 1977} que, a partir de um referencial 
fenomenológico-exislencial, me parece mais elucidativa que a de Hauser. 
6. Dispomos de duas ótimas traduções do soneto 144, a de Ivo Barroso, a 
escolhida, e a de Jorge Wanderley. Prefiro a de Ivo Barroso (cf. Sh.akespeare 
[ 1606) 1991), tanto por razões estéticas como pelo resgate que faz da 
problemática do contágio por doenças venéreas (em inglês, fire out, num 
contexto repleto de insinuações sexuais). 
79 
e deixou plantados conventos femininos e masculinos. Durante todos 
esses anos ela enfrentou sérias oposições, esteve marginalizada, foi 
perseguida pela Inquisição. No entanto, sua experiência pessoal não 
lhe faltava. A ela continuou dedicando suas observações e todos os 
livros que escreveu partem dar. 
O século que sucedeu ao de Santa Teresa foi muito pouco 
teresiano. Esta busca de uma verdade para além da representação 
esteve às margens das correntes dominantes da cultura ocidental para 
só vir emergir, sob uma forma não-religiosa, quando a confiança nas 
regras, nas convenções e nas representações parece entrar em colapso, 
abrindo o amplo espaço do ' psicológico' em que estamos ainda hoje 
imersos. 
Neste final do século XX, tenho às vezes a impressão de estarmos 
mais próximos daquele século XVI do que de alguns que vieram depois. 
Sem dúvida, foi isso que me levou a começar por ele esta 'história do 
psicológico' . Mas é pura coincidência lerminar este ensaio em um 15 
de outubro.'2 
78 
Notas 
I. A proliferação das línguas e, mais que tudo. o encontro e confronto das 
vozes umas com as outras criaram também as condições sociológicas 
indispensáveis para o desenvolvimento do gênero literário essencialmente 
polífônico e 'orquestral' que é o romance moderno, cujos momentos 
inaugurais foram as obras de autores quinhentistas como Rabelais e 
Cervantes, de quem voltaremos a falar mais à frente. Uma análise 
extraordinariamente aguda das relações entre as novas condições 
sodoculturais e o plurilingüismo romanesco foi realizada por Bakhtin 
{ 1990) a quem remeto o leitor interessado. 
2. A idéia de que a memória possa assumir diferentes funções sociais e 
psicológicas em diferentes comextos sociais não é nova Jean Pierre Vemant 
(1990), por exemplo, realizou uma rica análise dos usos da memória entre 
os gregos e seria interessante confrontar estes usos estudados por Vemant 
com o uso que está sendo identificado no presente texto. 
3. Uma extraordinária análise da vida e da obra de Calvino e, simultaneamente,uma compreensão ampla da problemática cultural e existencial do s6culo 
XVI podem ser encontradas em Bowsma ( 1988). Esta é uma leitura muito 
recomendável para o aprofundamento nestas questões, inclusive pela 
coincidência dos referenciais e concepções de Bowsma com os do presente 
trabalho. 
4. A tese aqui desenvolvida se aproxima das apresentadas por Gusdorf (1980) 
acerca das autobiografias e por Weintraub (1975) acerca das conversões. 
A articulação destas teses já foi efeluada por Griffin ( 1990) na análise de 
uma autobiografia contemporânea, a de um ex-assessor do presidente Nixon. 
5. Para uma compreensão mais rica das relações entre o estilo maneirista e o 
amaneiramento enquanto fenômeno psicopatológico, o leitor deve consultar 
a obra de L. Binswanger ( 1977} que, a partir de um referencial 
fenomenológico-exislencial, me parece mais elucidativa que a de Hauser. 
6. Dispomos de duas ótimas traduções do soneto 144, a de Ivo Barroso, a 
escolhida, e a de Jorge Wanderley. Prefiro a de Ivo Barroso (cf. Sh.akespeare 
[ 1606) 1991), tanto por razões estéticas como pelo resgate que faz da 
problemática do contágio por doenças venéreas (em inglês, fire out, num 
contexto repleto de insinuações sexuais). 
79 
7. O livro de Baldassari Castiglione (1478-1 529), O corlesão (1528). é o 
mais famoso guia das hoa~ maneiras de todo este período. 
8. O contraponto foi combatido também pelos reformadores religiosos 
protestantes e catól icos (representam.lo o espírito do Concflio de Trento). 
Em todos estes casos. o contraponto era condenado por ser imprestável 
ao serviço religioso. Na verdade, o que não se admitia era a autonomia da 
música e da estética em relação ao serviço religioso e à teologia. Calvino 
([ 1543] 1965), por exemplo, após reconhecer a eficácia da música na 
condução dos sentimentos humanos. conclui que ·· ... desta ntancira, devemos 
ser cuidadosos em dirigi r (ou regrar) a música de forma a que nos seja útil 
e de forma alguma perniciosa"_ 
9. O controle da imaginação artfs tica através da imitação dos antigos e da 
imitação da natureza racionalizada, que aqui estamos apreciando no campo 
da música. foi enfocada com muita riqueza de detalhes por Costa Lima 
( 1984 e 1988) nos campos da literatura e das artes plásticas renascentistas. 
nos quais geraram uma espécie de ·veto ao t1ccional' . 
lO. o.~ r..xercícios espirituais, enyuanlo texto. mereceram uma excelente análise 
de Roland Rarthe~ <1990). a que o leitor interessado é remetido para 
completar as observa~õcs que se seguem. Há, também, um livro de Roberto 
Gambini ( 1988). em que este texto c as cartas dos jesuítas que no s~cu!o 
XVI catequizavam os índios brasileiros foram submetidas a uma análise 
haseada no referencial da psicologia analf!ica de C. G. Jung. Este livro 
trata especiticamentc das relações do europeu com os americanos. no que 
se aproxima, apesar das diferenças teóricas e metodológicas, do livro 
exemplar de Tzvctan Todorov ( 1983). 
I I. Os dados biogr:í ticos sobre Santa Teresa foram obtidos em duas biografias 
recentes. uma publicadil em 1982, a de Stephcn Clissold. e uma publicada 
originahneme em 1983 e editada no Brasil em 1988, a de Rosa Rossi. Esta, 
particularmente, é muito elucidativa c deve ser consultada. É indispensável, 
naturalmente, que se leia também o próprio livro da vida de Santa Teresa 
( [ 1562] 1983). 
12. Santa Teresa morreu a 4 de outubro de 1582. No entanto, neste ano a 
mudança do calendário determinada pelo papa Gregório XIII fez com que 
o dia 4 pa5sasse a ser 15 e é o dia 15 de outubro que veio a ser o dia de 
Santa Teresa. 
80 
IDENTIDADE E ESQUECIMENTO: 
ASPECTOS DA VIDA CIVILIZADA 
A atualidade de Cervantes 
A adesão a modelos é, conforme se sabe, um ingrediente universal 
dos processos de constituição de identidade. Há casos, contudo, em 
que esta adesão se converte em imitação preciosfstica, em cópia 
estilizada, 'excessiva' e empolada de um modelo sumamente idealizado. 
Neste caso, é lícito falar em amaneiramento como uma das possíveis 
estratégias de auto-identificação. Não me deterei aqui em recordar as 
condições existenciais em que a estratégia de amaneiramento pode 
dominar um projeto ident ificató rio nem no seu significado 
antropológico.• 
Meu interesse se dirige à análise dos procedimentos acionados 
no amaneiramento, vale dizer, dos procedimentos de construção e 
manutenção de uma identidade que se constitui e se esgota na e pela 
coi ncidência com uma imagenL 
A literatura de transição do século XVI para o XVII nos propor-
cionou o mais cabal exemplo desta estratégia na figura de dom Quixo-
te de La Mancha. Desde o primeiro capítulo do romance ([1605/19471 
1981 ), 1 Cervantes nos põe em contato com a pessoa pacata, tímida e 
retrafda de um fidalgo ocioso e sonhador que se encanta e deixa cati-
var pela onda da literatura cavaleiresca. Após anos de leitura, quando 
dom Quijada ou Quesada ou Quijana - o verdadeiro nome é incerto, 
como que a testemunhar o quanto há de problemático em sua identi-
dade 'oficial' - saiu furtivamente pela porta dos fundos de sua casa 
81 
7. O livro de Baldassari Castiglione (1478-1 529), O corlesão (1528). é o 
mais famoso guia das hoa~ maneiras de todo este período. 
8. O contraponto foi combatido também pelos reformadores religiosos 
protestantes e catól icos (representam.lo o espírito do Concflio de Trento). 
Em todos estes casos. o contraponto era condenado por ser imprestável 
ao serviço religioso. Na verdade, o que não se admitia era a autonomia da 
música e da estética em relação ao serviço religioso e à teologia. Calvino 
([ 1543] 1965), por exemplo, após reconhecer a eficácia da música na 
condução dos sentimentos humanos. conclui que ·· ... desta ntancira, devemos 
ser cuidadosos em dirigi r (ou regrar) a música de forma a que nos seja útil 
e de forma alguma perniciosa"_ 
9. O controle da imaginação artfs tica através da imitação dos antigos e da 
imitação da natureza racionalizada, que aqui estamos apreciando no campo 
da música. foi enfocada com muita riqueza de detalhes por Costa Lima 
( 1984 e 1988) nos campos da literatura e das artes plásticas renascentistas. 
nos quais geraram uma espécie de ·veto ao t1ccional' . 
lO. o.~ r..xercícios espirituais, enyuanlo texto. mereceram uma excelente análise 
de Roland Rarthe~ <1990). a que o leitor interessado é remetido para 
completar as observa~õcs que se seguem. Há, também, um livro de Roberto 
Gambini ( 1988). em que este texto c as cartas dos jesuítas que no s~cu!o 
XVI catequizavam os índios brasileiros foram submetidas a uma análise 
haseada no referencial da psicologia analf!ica de C. G. Jung. Este livro 
trata especiticamentc das relações do europeu com os americanos. no que 
se aproxima, apesar das diferenças teóricas e metodológicas, do livro 
exemplar de Tzvctan Todorov ( 1983). 
I I. Os dados biogr:í ticos sobre Santa Teresa foram obtidos em duas biografias 
recentes. uma publicadil em 1982, a de Stephcn Clissold. e uma publicada 
originahneme em 1983 e editada no Brasil em 1988, a de Rosa Rossi. Esta, 
particularmente, é muito elucidativa c deve ser consultada. É indispensável, 
naturalmente, que se leia também o próprio livro da vida de Santa Teresa 
( [ 1562] 1983). 
12. Santa Teresa morreu a 4 de outubro de 1582. No entanto, neste ano a 
mudança do calendário determinada pelo papa Gregório XIII fez com que 
o dia 4 pa5sasse a ser 15 e é o dia 15 de outubro que veio a ser o dia de 
Santa Teresa. 
80 
IDENTIDADE E ESQUECIMENTO: 
ASPECTOS DA VIDA CIVILIZADA 
A atualidade de Cervantes 
A adesão a modelos é, conforme se sabe, um ingrediente universal 
dos processos de constituição de identidade. Há casos, contudo, em 
que esta adesão se converte em imitação preciosfstica, em cópia 
estilizada, 'excessiva' e empolada de um modelo sumamente idealizado. 
Neste caso, é lícito falar em amaneiramento como uma das possíveis 
estratégias de auto-identificação. Não me deterei aqui em recordar as 
condições existenciais em que a estratégiade amaneiramento pode 
dominar um projeto ident ificató rio nem no seu significado 
antropológico.• 
Meu interesse se dirige à análise dos procedimentos acionados 
no amaneiramento, vale dizer, dos procedimentos de construção e 
manutenção de uma identidade que se constitui e se esgota na e pela 
coi ncidência com uma imagenL 
A literatura de transição do século XVI para o XVII nos propor-
cionou o mais cabal exemplo desta estratégia na figura de dom Quixo-
te de La Mancha. Desde o primeiro capítulo do romance ([1605/19471 
1981 ), 1 Cervantes nos põe em contato com a pessoa pacata, tímida e 
retrafda de um fidalgo ocioso e sonhador que se encanta e deixa cati-
var pela onda da literatura cavaleiresca. Após anos de leitura, quando 
dom Quijada ou Quesada ou Quijana - o verdadeiro nome é incerto, 
como que a testemunhar o quanto há de problemático em sua identi-
dade 'oficial' - saiu furtivamente pela porta dos fundos de sua casa 
81 
para assombrar o mundo com suas façanhas e proezas, levava consi-
go uma imagem absolutamente nítida e completa de quem era e de como 
devia se portar; em todos os momenlús suas refle}(ões, decisões e ações 
estarão pautadas por esta imagem. Diante de qualquer dilema ou sur-
presa, ele recorrerá à famosa questão: o que faria um cavaleiro andan-
te em circunstânc ia semelhante? Para responder a esta questão, ele pas-
sa em revista as vidas de seus heróis: nada ele se permite que não 
esteja autorizado por algum modelo e}(emplar; por outro lado, tudo que 
estes modelos exibem de mais significativo, ele trata de imitar, incluin-
do aí os dissabores, as desgraçac;, os furores e desesperos etc. 
Esta adesão estrita c irrestrita é sem dúvida a principal tática de 
dom Quixote para construir e manter a sua identidade em meio a 
percalços e colisões. 
No entanto, a imitação não lhe serve de muito, enquanto não for 
reconhecida e confinnada. Nesta medida, ele deve ser capaz de tornar 
a sua imitação a mais evidente possível, deve exibi-la de forma 
exagerada e assim obter do mundo o reconhecimento que lhe faz falta. 
É em busca de uma imitação que supere seus modelos, por exemplo, 
que ele decide "enlouquecer de saudade::; e ciúmes", embora não 
hou vesse mo ti vos para tanto. Contudo, segundo a lógica do 
amaneiramemo, imitar o modelo na ausência da ocasião adequada é 
ainda melhor do que fazê-lo quando há boas razões para um dado 
comportamento. Esta 'imitação no vácuo' como que purifica a exibição 
e obriga a um reconhecimento ainda mais indiscutível. Só assim, pensa 
e le, é possível conquistar fama e deixar um nome na história; só assim 
a imagem se completa e conserva. 
Imitação e procura de reconhecimento já estão presentes no 
momento em que, dispondo-se a cair no mundo das aventuras para 
nele se elevar pela força do braço e do caráter, o fidalgo Quijana, ou 
que outro. nome tivesse, dedica vários dias às operações de batismo. 
Ao cabo de intrincadas cogitações, sempre confonnadas pelos modelos 
ilustres, toma o nome de Quixote e, seguindo a pra}(e, acrescenta o 'de 
la Mancha'; problema tão sério quanto esse é o nome a dar a seu cavalo, 
finalmente escolhido: Rocinante; outro tanto ele investe na invenção 
do nome e da personagem Dulcinéia del Toboso. Dar nomes aos 
homens e mulheres e às mais diversas coisas do mundo será uma das 
82 
atividades prediletas de dom Quixote. Diante daqueles q ue se 
acostumaram a chamar estes mesm os seres pelos outros nomes - os 
habi tuais -, esta atividade será uma das principais evidências da 
loucura do herói. 
Além dos nomes - o próprio, o do cavalo e o da amada - a 
apresentação de dom QuiJtote exige a fixação e estrita observância dos 
seus modos. Através deles, do modo de vestir, do modo de gesticular, 
do modo de pensar e de falar etc., o cavaleiro dá-se a conhecer. Dom 
Quixote. mesmo em situações e}(trcma~. escangalhado de pauladas ou 
confinado numa jaulinha, por exemplo. mantém a pose. A pose é o 
congelamento da ação.·' Falas, gestos e movimentos, enquanto pose, 
ainda que pareçam em certas circunstâncias fluente s e até 
e}(cessivamente elaborados, estão a serviço da fixação de uma imagem, 
são ingredientes de uma representação e , nesta medida, são fonnas 
congeladas e congelantes de relação com o mundo e consigo mesmo. 
Como os comportamentos e as falas de dom Qu ixote visam 
exclusivamente à construção e à manutenção de sua identidade, sob a 
dominância das imagens idealizadas e soh o controle dos espelhos 
humanos em que busca a contirmação, perdem todo o contato com a 
dimensão experimental e funcional de existência. 
Vale a pena investigar. agora mais de perto, como operam e de 
que natureza são as defesas e garantias da identidade imaginária do 
fidalgo manchego. 
A primeira garantia é uma defesa contra a contingência, ou seja, 
contra a aparente arbitrariedade e fragilidade de toda a construção. Esta 
defesa consiste na c rença em uma necessidade real de cavaleiros 
andantes no mundo confuso e degradado no qual vive. Esta 
necessidade 'objetiva', posto que imaginária, não resolve tudo ; afinal, 
por que logo ele seria a resposta às demandas de ordem, caráter, 
nobreza e coragem? Neste momento intervêm as idéias de inclinação 
para o manejo das armas (já 'demonstrada' no gosto pela caça) e de 
predestinação. Dom Quixote se apresenta como um messias, e esta 
vocação messiânica é o que parece fundamentar sua crença na própria 
identidade: 'Eu sou o que é prec iso que seja'. 
A segunda garantia é um conjunto de defesas contra a 
experiência. Todos os cavaleiros andantes, sabe dom Quixote, possuem 
83 
para assombrar o mundo com suas façanhas e proezas, levava consi-
go uma imagem absolutamente nítida e completa de quem era e de como 
devia se portar; em todos os momenlús suas refle}(ões, decisões e ações 
estarão pautadas por esta imagem. Diante de qualquer dilema ou sur-
presa, ele recorrerá à famosa questão: o que faria um cavaleiro andan-
te em circunstânc ia semelhante? Para responder a esta questão, ele pas-
sa em revista as vidas de seus heróis: nada ele se permite que não 
esteja autorizado por algum modelo e}(emplar; por outro lado, tudo que 
estes modelos exibem de mais significativo, ele trata de imitar, incluin-
do aí os dissabores, as desgraçac;, os furores e desesperos etc. 
Esta adesão estrita c irrestrita é sem dúvida a principal tática de 
dom Quixote para construir e manter a sua identidade em meio a 
percalços e colisões. 
No entanto, a imitação não lhe serve de muito, enquanto não for 
reconhecida e confinnada. Nesta medida, ele deve ser capaz de tornar 
a sua imitação a mais evidente possível, deve exibi-la de forma 
exagerada e assim obter do mundo o reconhecimento que lhe faz falta. 
É em busca de uma imitação que supere seus modelos, por exemplo, 
que ele decide "enlouquecer de saudade::; e ciúmes", embora não 
hou vesse mo ti vos para tanto. Contudo, segundo a lógica do 
amaneiramemo, imitar o modelo na ausência da ocasião adequada é 
ainda melhor do que fazê-lo quando há boas razões para um dado 
comportamento. Esta 'imitação no vácuo' como que purifica a exibição 
e obriga a um reconhecimento ainda mais indiscutível. Só assim, pensa 
e le, é possível conquistar fama e deixar um nome na história; só assim 
a imagem se completa e conserva. 
Imitação e procura de reconhecimento já estão presentes no 
momento em que, dispondo-se a cair no mundo das aventuras para 
nele se elevar pela força do braço e do caráter, o fidalgo Quijana, ou 
que outro. nome tivesse, dedica vários dias às operações de batismo. 
Ao cabo de intrincadas cogitações, sempre confonnadas pelos modelos 
ilustres, toma o nome de Quixote e, seguindo a pra}(e, acrescenta o 'de 
la Mancha'; problema tão sério quanto esse é o nome a dar a seu cavalo, 
finalmente escolhido: Rocinante; outro tanto ele investe na invenção 
do nome e da personagem Dulcinéia del Toboso. Dar nomes aos 
homens e mulheres e às mais diversas coisas do mundo seráuma das 
82 
atividades prediletas de dom Quixote. Diante daqueles q ue se 
acostumaram a chamar estes mesm os seres pelos outros nomes - os 
habi tuais -, esta atividade será uma das principais evidências da 
loucura do herói. 
Além dos nomes - o próprio, o do cavalo e o da amada - a 
apresentação de dom QuiJtote exige a fixação e estrita observância dos 
seus modos. Através deles, do modo de vestir, do modo de gesticular, 
do modo de pensar e de falar etc., o cavaleiro dá-se a conhecer. Dom 
Quixote. mesmo em situações e}(trcma~. escangalhado de pauladas ou 
confinado numa jaulinha, por exemplo. mantém a pose. A pose é o 
congelamento da ação.·' Falas, gestos e movimentos, enquanto pose, 
ainda que pareçam em certas circunstâncias fluente s e até 
e}(cessivamente elaborados, estão a serviço da fixação de uma imagem, 
são ingredientes de uma representação e , nesta medida, são fonnas 
congeladas e congelantes de relação com o mundo e consigo mesmo. 
Como os comportamentos e as falas de dom Qu ixote visam 
exclusivamente à construção e à manutenção de sua identidade, sob a 
dominância das imagens idealizadas e soh o controle dos espelhos 
humanos em que busca a contirmação, perdem todo o contato com a 
dimensão experimental e funcional de existência. 
Vale a pena investigar. agora mais de perto, como operam e de 
que natureza são as defesas e garantias da identidade imaginária do 
fidalgo manchego. 
A primeira garantia é uma defesa contra a contingência, ou seja, 
contra a aparente arbitrariedade e fragilidade de toda a construção. Esta 
defesa consiste na c rença em uma necessidade real de cavaleiros 
andantes no mundo confuso e degradado no qual vive. Esta 
necessidade 'objetiva', posto que imaginária, não resolve tudo ; afinal, 
por que logo ele seria a resposta às demandas de ordem, caráter, 
nobreza e coragem? Neste momento intervêm as idéias de inclinação 
para o manejo das armas (já 'demonstrada' no gosto pela caça) e de 
predestinação. Dom Quixote se apresenta como um messias, e esta 
vocação messiânica é o que parece fundamentar sua crença na própria 
identidade: 'Eu sou o que é prec iso que seja'. 
A segunda garantia é um conjunto de defesas contra a 
experiência. Todos os cavaleiros andantes, sabe dom Quixote, possuem 
83 
alguns privilégios: alguns não podem ser facilmente feridos. outros não 
podem ser encantados. Dom Quixote reconhece que não está livre de 
ferimentos e encantamentos , embora em última insrâ nc ia possa 
sobreviver a eles. Na verdade, o privilégio de dom Quixote é também 
uma forma de imunidade. Ele é imune às experiências. Em muitas 
ocasiões parece evitar deliberadamente os tesles funcionai s que 
poderiam destruir as imagens. Uma segunda maneira de evitar a 
eventualidade da irrupção da experiência no campo do imaginário 
constitui-se na permanente, incansável e irresistível elaboração de 
imagens. Dom Quixote não dá folgas à imaginação; ela trahalha 
metodicamente e vai longe, princi palmente quando se alia a uma 
atividade de auto-exibição e convencimento. Os melhores momentos 
do romance, como se sahc, são os diálogQS ou os monólogos diante 
de uma platéia. Em particular, nos diál ogos com Sancho Pança, a 
imaginação s istemática gan ha uma amplitude e detalhamento 
extraordirtári os, antecipando provas de consideração, antevendo 
conquistas, prêmios, honrarias, ternos sentimentos compartilhados com 
damas da mais alta linhagem etc. 
Além de evitar os resultados adversos e imaginar resultados 
favoráveis, a mais eficaz das defesas contra a experiência é a 
desqualificação de resullados experimentais mediante interpretações 
racionalizantes. Nestas interpretações, a figura do encantador ocupa 
uma pos ição estratégica: são os encantadores que, supostamente, 
estariam po r detrás de todas as de cepções; são eles que , 
deliberadamente, contrariam as expectativas de dom Quixote. Nesta 
medida continnam-se as crenças deste, já que as prática!i de magia 
dirigidas contra ele reforçam sua identidade de um justiceiro digno 
destes poderosos inimigos. A crença na ação dos encantadores não 
apenas torna a experiência compatível com a identidade imaginária, mas 
faz da experiência negativa uma inslância positiva e ultraconfirmató ria: 
'Tudo que me dá errado, prova que estou certo'. 
De lodas as garantias, porém, nenhuma se compara em eficácia e 
engenho àquela que produz e determina a existência de Dulcinéia dei 
Toboso. A e:< istência de Dulcinéia, contestada, discutida e qualificada 
em muitos momentos do romance, é oojeto de alguns argumentos cuja 
lógica convém averiguar. Já no momento de compor sua personagem 
dom Quixote se coloca a questão de Dulcinéia: 
84 
Assim. limpa as suas armas, feita do morrião celada, posto o nome do 
rQl:im e confirmando-se a si próprio, julgou-se inteirado que nada mais 
lhe faltava senão buscar uma dama de quem se enamorar. que andante 
cavaleiro sem amores era árvore sem folhas e frutos c corpo sem alma. 
(p. 31) 
E mais adiante, no contexto de um diálogo: 
Digo que não pode haver cavaleiro andante sem dama, porque tão próprio 
e natural assenta nos que o são serem enamorados como no céu ter 
estrelas: e onde, com efeito se viu nunca história de cavaleiro andante 
sem amores. Se os não tivesse, não fora tido por legítimo cavaleiro, senão 
por bllstardo ... (p. 75) 
Já bem adiantado nas aventuras, no segundo livro, em conversa 
com os duques que o acolhem em estilo de farsa, dom Quixote é ainda 
mais preciso na argumentação: 
... tirar a um cavaleiro andante a S\Ja dama é tirar os olhos com que vê e 
o sol com que se alumia e o alimento que o sustenta. Muitas vezes o 
tenho di to e agora o tomo a dizer, que um cavaleiro andante sem dama 
é como árvore sem folhas. o edifício sem cimento c a sombra sem o 
co11Jo que a produzn. (p. 443 - grifo meu) 
Parece-me que a idéia de Dulcinéia ocorre a dom Quixote um 
pouco como, alguns anos depois. a idéia de De us viria a ocorrer a 
Descartes. A idéia de um amor puro e perfeito impõe-se a dom Quixote, 
segundo o modelo cavaleiresco, como uma evidência indiscutível. Esta 
idéia não se completaria (e a completude é um atributo da perfeição) 
sem um objeto adequado. Dulcínéia existe porque não poderia ser de 
outra forma e isso independc de qualquer prova experimental. É uma 
idéia que se impõe porque já está inscrita na mente e na sina de um 
cavaleiro andante, c acreditar nela é inevitável desde que se confie na 
própria wgitação. Dom Quixote acredita em Dulcinéia porque não pode 
duvidar sem duvidar da própria existência. 
No entanto, à medida que as aventuras se acumulam e vão, 
segundo dom Quixote, confirmando sua identidade, Dulcínéia 
reaparece. Só que agora é como o corpo que eu pressu ponho 
necessariamente quando vejo a sombra. Na conversa com a duquesa, 
já transparece a concepção de Dulcinéia como uma realidade que 
sustenta o mundo das sombras em que existe dom Quixote. Numa outra 
85 
alguns privilégios: alguns não podem ser facilmente feridos. outros não 
podem ser encantados. Dom Quixote reconhece que não está livre de 
ferimentos e encantamentos , embora em última insrâ nc ia possa 
sobreviver a eles. Na verdade, o privilégio de dom Quixote é também 
uma forma de imunidade. Ele é imune às experiências. Em muitas 
ocasiões parece evitar deliberadamente os tesles funcionai s que 
poderiam destruir as imagens. Uma segunda maneira de evitar a 
eventualidade da irrupção da experiência no campo do imaginário 
constitui-se na permanente, incansável e irresistível elaboração de 
imagens. Dom Quixote não dá folgas à imaginação; ela trahalha 
metodicamente e vai longe, princi palmente quando se alia a uma 
atividade de auto-exibição e convencimento. Os melhores momentos 
do romance, como se sahc, são os diálogQS ou os monólogos diante 
de uma platéia. Em particular, nos diál ogos com Sancho Pança, a 
imaginação s istemática gan ha uma amplitude e detalhamento 
extraordirtári os, antecipando provas de consideração, antevendo 
conquistas,prêmios, honrarias, ternos sentimentos compartilhados com 
damas da mais alta linhagem etc. 
Além de evitar os resultados adversos e imaginar resultados 
favoráveis, a mais eficaz das defesas contra a experiência é a 
desqualificação de resullados experimentais mediante interpretações 
racionalizantes. Nestas interpretações, a figura do encantador ocupa 
uma pos ição estratégica: são os encantadores que, supostamente, 
estariam po r detrás de todas as de cepções; são eles que , 
deliberadamente, contrariam as expectativas de dom Quixote. Nesta 
medida continnam-se as crenças deste, já que as prática!i de magia 
dirigidas contra ele reforçam sua identidade de um justiceiro digno 
destes poderosos inimigos. A crença na ação dos encantadores não 
apenas torna a experiência compatível com a identidade imaginária, mas 
faz da experiência negativa uma inslância positiva e ultraconfirmató ria: 
'Tudo que me dá errado, prova que estou certo'. 
De lodas as garantias, porém, nenhuma se compara em eficácia e 
engenho àquela que produz e determina a existência de Dulcinéia dei 
Toboso. A e:< istência de Dulcinéia, contestada, discutida e qualificada 
em muitos momentos do romance, é oojeto de alguns argumentos cuja 
lógica convém averiguar. Já no momento de compor sua personagem 
dom Quixote se coloca a questão de Dulcinéia: 
84 
Assim. limpa as suas armas, feita do morrião celada, posto o nome do 
rQl:im e confirmando-se a si próprio, julgou-se inteirado que nada mais 
lhe faltava senão buscar uma dama de quem se enamorar. que andante 
cavaleiro sem amores era árvore sem folhas e frutos c corpo sem alma. 
(p. 31) 
E mais adiante, no contexto de um diálogo: 
Digo que não pode haver cavaleiro andante sem dama, porque tão próprio 
e natural assenta nos que o são serem enamorados como no céu ter 
estrelas: e onde, com efeito se viu nunca história de cavaleiro andante 
sem amores. Se os não tivesse, não fora tido por legítimo cavaleiro, senão 
por bllstardo ... (p. 75) 
Já bem adiantado nas aventuras, no segundo livro, em conversa 
com os duques que o acolhem em estilo de farsa, dom Quixote é ainda 
mais preciso na argumentação: 
... tirar a um cavaleiro andante a S\Ja dama é tirar os olhos com que vê e 
o sol com que se alumia e o alimento que o sustenta. Muitas vezes o 
tenho di to e agora o tomo a dizer, que um cavaleiro andante sem dama 
é como árvore sem folhas. o edifício sem cimento c a sombra sem o 
co11Jo que a produzn. (p. 443 - grifo meu) 
Parece-me que a idéia de Dulcinéia ocorre a dom Quixote um 
pouco como, alguns anos depois. a idéia de De us viria a ocorrer a 
Descartes. A idéia de um amor puro e perfeito impõe-se a dom Quixote, 
segundo o modelo cavaleiresco, como uma evidência indiscutível. Esta 
idéia não se completaria (e a completude é um atributo da perfeição) 
sem um objeto adequado. Dulcínéia existe porque não poderia ser de 
outra forma e isso independc de qualquer prova experimental. É uma 
idéia que se impõe porque já está inscrita na mente e na sina de um 
cavaleiro andante, c acreditar nela é inevitável desde que se confie na 
própria wgitação. Dom Quixote acredita em Dulcinéia porque não pode 
duvidar sem duvidar da própria existência. 
No entanto, à medida que as aventuras se acumulam e vão, 
segundo dom Quixote, confirmando sua identidade, Dulcínéia 
reaparece. Só que agora é como o corpo que eu pressu ponho 
necessariamente quando vejo a sombra. Na conversa com a duquesa, 
já transparece a concepção de Dulcinéia como uma realidade que 
sustenta o mundo das sombras em que existe dom Quixote. Numa outra 
85 
passagem, argumentando com Sancho que volta e meia expressa suas 
dúvidas, dom Quixote é mais claro quando afirma: 
Não sabeis vós, mariola, faquim, biltre. que se não fosse pelo valor que 
ela infunde no meu braço eu por mim nem matava uma pulga? Dizei-me 
socarrão de língua viperina, quem julgais que foi o conquistador deste 
reino, e o que decepou a cabeça deste gigante, e vos fez a vós marquês 
(que tudo isso o dou eu já como feito e processo findo), se não é o 
valor de Dulcinéia fazendo de meu braço instrumento de suas façanhas? 
Ela peleja em mim; eu vivo e respiro nela, nela tenho vida e ser. (p. 
179) 
DuJcinéia é aqui apresentada, antecipando em duzentos anos a 
defesa que Kant faz da 'coisa em si' , como condição de possibili.dflde 
da experiência; e não apenas das experiências já sucedidas, mas 
daquelas que necessária e indiscutivelmente poderão suceder, como a 
conquista do reino e du título de marquês para Sancho. 
Como condição de possibilidade da experiência cavaleiresca de 
mundo em sua universal necessidade, Dulcinéia nunca fará, ela mesma, 
parte da experiência de dom Quixote. Dela, ele pode formar uma idéia, 
mas não a poderá ver, cheirar ou amar concretamente. Pode, contudo, 
por ela morrer de saudade, a ela pode dedicar suas vitórias etc. Para 
conservá-la nesta posição transcendental é preciso guardar uma certa 
distância e prudentemente evit.ar certos testes. Quando o argumento 
transcendental começa a perder a força diante de algumas experiências 
suspeitas, a lucidez retoma e dom Quixote adoece e morre. 
Contudo, mesmo antes da desilusão final abater-se sobre o 
fidalgo Quijana, há algo no personagem e na escrita de Cervantes que 
faz do romance muito mais que a história engraçada de um louco 
simpático. 
Dom Quixote não é apenas cuidadoso e metódico na construção 
e na manutenção de sua identidade. Ele é capaz de revelar uma extrema 
lucidez, trazendo à luz os processos envolvidos. 
Tomemos como exemplo algumas palavras acerca de Dulcinéia; 
o primeiro trecho pertence a um diálogo co.m Sancho: 
86 
Assim, Sancho, para o que eu quero a Dulcinéia del Toboso, tanto vale 
ela como a mais alta princesa do mundo. Olha que nem lodos os poetas 
que louvam damas debaixo de um nome que eles arbitrariamente lhes 
põem as têm na realidade. Pensa tu que as Amarilis, as Fflis, as Sílvias, 
as Dianas, as Galatéias, e outras quejandas de que andam cheios os livros, 
os romances. as lojas de barbeiros. os teatros de comédias, foram 
realmente damas de carne e osso, e pertencem àqueles que as celebram 
c celebraram? Decerto que não. As mais belas inventaram-nas eles para 
assunto dos seus versos, e para que os tenham por enamorados, e 
homens de valia por serem. Segundo isso, basta-me lam~m a mim 
pensar e crer que a boa da Aldonça Lourenço é formosa e honesta. Lá a 
sua linhagem importa pouco; não hão de ir tirar-lhe as inquirições para 
dar-lhe algum hábito; para mim faço de conta que é a mais alta princesa 
do mundo. Porque hás de saber, Sancho, se o não sabes, que 1\á duas 
coisas só que mais que todas as outras incitam a amar: são a formosura 
e a boa fama; e ambas estas coisas são em Dulcinéia extremadas, porque 
em lindeza nenhuma a iguala, e em boa nomeada poucas lhe chegam; e 
para acabar com isto, imagino eu que tudo que te digo é assim, sem um 
til de mais nem menos; pinto-a na fantasia como a desejo assim nas 
graças como no respeito ... (p. 145) 
E quando a duquesa argumenta que no primeiro livro ficava claro 
que dom Quixote nunca havia visto Dulcinéia, que ela era dama 
fantástica, gerada no entendimento dele c pintada com as perfeições 
que ele nela desejava, ele retruca: 
Deus sabe se há ou não Dulcinéia no mundo. ou se é fantástica ou não; 
nem são coisas em cuja averiguação se leve até o fim. Nem eu gerei a 
minha dama, ainda que a considere como dama que em si contém todos 
os predicados que a podem distinguir enlre as outras. a saber: formosa 
sem senão, grave sem soberba, amorosa com honestidade. agradecida, 
cortês e bem criada e tinalmente de alta linhagem. (p. 443) 
Ora, a revelação destes procedimentos constitutivos de Dulcinéia 
e a elucidação do seu status de 'idéia reguladora' são, em outras 
palavras, a exposição hilariante da raiz demasiadamente humana deste 
universo sublime de representações de si e do mundo em que dom 
Quixote vive. Nesta medida, a novela de Cervantes vai muito além da 
ridicularizaçãoda literatura cavaleiresca e de seus leitores ingênuos 
ou amalucados. Cervantes f az a crítica antecipada de todas as 
sublimidades da vida civilizada e das suas representações e já denuncia 
a origem e a dinâmica ' psicológicas' de todas as supostas 
transcendências mobilizadas para garantir e defender o reino das 
87 
passagem, argumentando com Sancho que volta e meia expressa suas 
dúvidas, dom Quixote é mais claro quando afirma: 
Não sabeis vós, mariola, faquim, biltre. que se não fosse pelo valor que 
ela infunde no meu braço eu por mim nem matava uma pulga? Dizei-me 
socarrão de língua viperina, quem julgais que foi o conquistador deste 
reino, e o que decepou a cabeça deste gigante, e vos fez a vós marquês 
(que tudo isso o dou eu já como feito e processo findo), se não é o 
valor de Dulcinéia fazendo de meu braço instrumento de suas façanhas? 
Ela peleja em mim; eu vivo e respiro nela, nela tenho vida e ser. (p. 
179) 
DuJcinéia é aqui apresentada, antecipando em duzentos anos a 
defesa que Kant faz da 'coisa em si' , como condição de possibili.dflde 
da experiência; e não apenas das experiências já sucedidas, mas 
daquelas que necessária e indiscutivelmente poderão suceder, como a 
conquista do reino e du título de marquês para Sancho. 
Como condição de possibilidade da experiência cavaleiresca de 
mundo em sua universal necessidade, Dulcinéia nunca fará, ela mesma, 
parte da experiência de dom Quixote. Dela, ele pode formar uma idéia, 
mas não a poderá ver, cheirar ou amar concretamente. Pode, contudo, 
por ela morrer de saudade, a ela pode dedicar suas vitórias etc. Para 
conservá-la nesta posição transcendental é preciso guardar uma certa 
distância e prudentemente evit.ar certos testes. Quando o argumento 
transcendental começa a perder a força diante de algumas experiências 
suspeitas, a lucidez retoma e dom Quixote adoece e morre. 
Contudo, mesmo antes da desilusão final abater-se sobre o 
fidalgo Quijana, há algo no personagem e na escrita de Cervantes que 
faz do romance muito mais que a história engraçada de um louco 
simpático. 
Dom Quixote não é apenas cuidadoso e metódico na construção 
e na manutenção de sua identidade. Ele é capaz de revelar uma extrema 
lucidez, trazendo à luz os processos envolvidos. 
Tomemos como exemplo algumas palavras acerca de Dulcinéia; 
o primeiro trecho pertence a um diálogo co.m Sancho: 
86 
Assim, Sancho, para o que eu quero a Dulcinéia del Toboso, tanto vale 
ela como a mais alta princesa do mundo. Olha que nem lodos os poetas 
que louvam damas debaixo de um nome que eles arbitrariamente lhes 
põem as têm na realidade. Pensa tu que as Amarilis, as Fflis, as Sílvias, 
as Dianas, as Galatéias, e outras quejandas de que andam cheios os livros, 
os romances. as lojas de barbeiros. os teatros de comédias, foram 
realmente damas de carne e osso, e pertencem àqueles que as celebram 
c celebraram? Decerto que não. As mais belas inventaram-nas eles para 
assunto dos seus versos, e para que os tenham por enamorados, e 
homens de valia por serem. Segundo isso, basta-me lam~m a mim 
pensar e crer que a boa da Aldonça Lourenço é formosa e honesta. Lá a 
sua linhagem importa pouco; não hão de ir tirar-lhe as inquirições para 
dar-lhe algum hábito; para mim faço de conta que é a mais alta princesa 
do mundo. Porque hás de saber, Sancho, se o não sabes, que 1\á duas 
coisas só que mais que todas as outras incitam a amar: são a formosura 
e a boa fama; e ambas estas coisas são em Dulcinéia extremadas, porque 
em lindeza nenhuma a iguala, e em boa nomeada poucas lhe chegam; e 
para acabar com isto, imagino eu que tudo que te digo é assim, sem um 
til de mais nem menos; pinto-a na fantasia como a desejo assim nas 
graças como no respeito ... (p. 145) 
E quando a duquesa argumenta que no primeiro livro ficava claro 
que dom Quixote nunca havia visto Dulcinéia, que ela era dama 
fantástica, gerada no entendimento dele c pintada com as perfeições 
que ele nela desejava, ele retruca: 
Deus sabe se há ou não Dulcinéia no mundo. ou se é fantástica ou não; 
nem são coisas em cuja averiguação se leve até o fim. Nem eu gerei a 
minha dama, ainda que a considere como dama que em si contém todos 
os predicados que a podem distinguir enlre as outras. a saber: formosa 
sem senão, grave sem soberba, amorosa com honestidade. agradecida, 
cortês e bem criada e tinalmente de alta linhagem. (p. 443) 
Ora, a revelação destes procedimentos constitutivos de Dulcinéia 
e a elucidação do seu status de 'idéia reguladora' são, em outras 
palavras, a exposição hilariante da raiz demasiadamente humana deste 
universo sublime de representações de si e do mundo em que dom 
Quixote vive. Nesta medida, a novela de Cervantes vai muito além da 
ridicularização da literatura cavaleiresca e de seus leitores ingênuos 
ou amalucados. Cervantes f az a crítica antecipada de todas as 
sublimidades da vida civilizada e das suas representações e já denuncia 
a origem e a dinâmica ' psicológicas' de todas as supostas 
transcendências mobilizadas para garantir e defender o reino das 
87 
representações. De fato, como veremos, os modelos cavale irescos 
foram deixados de lado, mas os procedimentos consti tutivos de 
identidades imagi nárias em grande medida perduram. O que vamos 
assistir, porém, é o radical esquecimento daquilo que gera e conserva 
as representações na sua aparente autonomia. 
Já não há mais razões hoje em dia para continuarmos rindo de 
Amadis de Gaula, de seus leitores e imitadores. A graça do Quixote, 
contudo, permanece, porque ainda há muito que rir dos homens da 
cone de Luís XIV, dos heróis de Racine, de Descartes e de Kant, e de 
toda uma maneira de pensar e fazer psicologia que se desenvolveu a 
partir desta tradição. 
Imagens da dvitização 
Doi s personage ns fictícios c de grande impacto na h istória 
ocidental vieram à luz no século XVII : os suje itos purificados do 
conhecimento c da paixão. Tanto o sujeito epistêmico como o sujeito 
ético-passional foram gerados através de operações de c isão e expurgo; 
ambos constituíram-se em processos de ascese. 
O sujeito epistêmico é uma criação do ' método c ientífico' , tanto 
na s ua versão baconiana como na cartesiana. Em que pesem as 
profundas diferenças entre o empirismo de Francis Bacon ( 1561- 1626) 
e o racionalismo de René Descartes (I 596-1650), em ambos os projetos 
epistemológicos a meta é uma 'c ura da mente', o que implica a cisão 
da subjetividade: de um lado, a subjetividade confiável, regular, porque 
sempre idêntica a si mesma, e comunicativa, porque sempre a mesma 
em todos os homens ; de outro, a subjetividade suspeita, volúvel, 
inconstante, imprevisível. d iferente e, em última análise, isolada c 
pri vatizada. 
O método, seja o da observação pura, precedida pela denúncia e 
superação dos " ídolos do conhecimento", seja o da intuição das idéias 
c laras e dis tintas, preparada e conduzida pela dúvida metódica , é o que 
deveria garantir a cisão; mais que isso, deveria garantir a autonomia e 
dominância do idêntico sobre o difere nte. do genérico sobre o particular, 
do comunicável sobre o privado. Só assim terfamos plenamente 
constituído o sujeito epistêmico como condição das representações 
verdadeiras do mundo. 
88 
O que deveria ser e"cluído é o sujeito e nquanto fonte de variação, 
fonte de opiniões, tendências, viéses, desejos, movimentos passionais 
c instintivos etc. Toda a confiança moderna nas crenças científicas, à 
fa lta de um v ínculo com as tradições e de uma obediê ncia às 
autoridades, viria. desde então, repousar na autonomia deste sujeito 
epistêmico e na eficácia dos procedimentos constitutivos. À medida, 
porém, que estes procedimentos se estabilizam e tece-se com eles uma 
rotina metodológica, eles tendem a perder a dimensão instrumental e 
fica ressaltada a sua natureza ritua lística e sacrificai: esquecidas suas 
condições e seus limites, o método tende ao formalismo e, muitas vezes, 
vai importar menos o conhecimento supostame nte objetivo que 
propiciado que o sacrifício imposto à subjetividade particular, privada 
e variável. 
Nestes momentos, em que o método é convertido em fetic he, fica 
mui!; clara a dupla face da exclusão que promove: ao mesmo tempo 
que consti tui o reino de uma identidade ficc iona l - o sujeito do 
conhecimento purificado -, consagra o reino das experiências 
subjetivas, ídiossincráticas. variáve is e ilusórias. Este reino, todavia, é 
tanto consagrado como desqualificado: não só não é confiável como 
suporte de uma atividade cognitiva- já que não pode ser o espelho 
plano e homogêneo da natureza~ -. como também não presta como 
objeto do conhecimento, pois carece de ordem e da regularidade 
pressuposta pelas c iêneias exatas e naturais. Mais vale esquecer este 
reino. deixá-lo aos poetas, artistas e músicos. Mas será que eles o 
querem? 
Se lançannos os olhos para o que produzem e para o que teorizam 
poetas e músicos da época, veremos que não.5 É claro que a eles cabe 
a imitação (representação) e a excitação (controlada) das paixões . No 
entanto, as paixões representadas, por exemplo, pelos heróis de Racine 
( 1639- 1699} são tudo, menos inconstantes, variáveis e arbitrárias. O 
sujeito ético-passional da tragédia francesa é, ele também , uma ficção: 
ele representa a paixão purificada, desligada, refinada, sublimada, 
operando poderosa e incontestavelmente. São paixões idênticas a si 
mesmas e universais. O sujeito trágico goza de completa imunidade 
contra tudo o que, vindo do corpo ou das fraquezas da alma, possa 
amesquinhar ou desviar a marcha da ação passional. A arte pOética da 
tragédia francesa, definindo as regras do estilo elevado e superando 
89 
representações. De fato, como veremos, os modelos cavale irescos 
foram deixados de lado, mas os procedimentos consti tutivos de 
identidades imagi nárias em grande medida perduram. O que vamos 
assistir, porém, é o radical esquecimento daquilo que gera e conserva 
as representações na sua aparente autonomia. 
Já não há mais razões hoje em dia para continuarmos rindo de 
Amadis de Gaula, de seus leitores e imitadores. A graça do Quixote, 
contudo, permanece, porque ainda há muito que rir dos homens da 
cone de Luís XIV, dos heróis de Racine, de Descartes e de Kant, e de 
toda uma maneira de pensar e fazer psicologia que se desenvolveu a 
partir desta tradição. 
Imagens da dvitização 
Doi s personage ns fictícios c de grande impacto na h istória 
ocidental vieram à luz no século XVII : os suje itos purificados do 
conhecimento c da paixão. Tanto o sujeito epistêmico como o sujeito 
ético-passional foram gerados através de operações de c isão e expurgo; 
ambos constituíram-se em processos de ascese. 
O sujeito epistêmico é uma criação do ' método c ientífico' , tanto 
na s ua versão baconiana como na cartesiana. Em que pesem as 
profundas diferenças entre o empirismo de Francis Bacon ( 1561- 1626) 
e o racionalismo de René Descartes (I 596-1650), em ambos os projetos 
epistemológicos a meta é uma 'c ura da mente', o que implica a cisão 
da subjetividade: de um lado, a subjetividade confiável, regular, porque 
sempre idêntica a si mesma, e comunicativa, porque sempre a mesma 
em todos os homens ; de outro, a subjetividade suspeita, volúvel, 
inconstante, imprevisível. d iferente e, em última análise, isolada c 
pri vatizada. 
O método, seja o da observação pura, precedida pela denúncia e 
superação dos " ídolos do conhecimento", seja o da intuição das idéias 
c laras e dis tintas, preparada e conduzida pela dúvida metódica , é o que 
deveria garantir a cisão; mais que isso, deveria garantir a autonomia e 
dominância do idêntico sobre o difere nte. do genérico sobre o particular, 
do comunicável sobre o privado. Só assim terfamos plenamente 
constituído o sujeito epistêmico como condição das representações 
verdadeiras do mundo. 
88 
O que deveria ser e"cluído é o sujeito e nquanto fonte de variação, 
fonte de opiniões, tendências, viéses, desejos, movimentos passionais 
c instintivos etc. Toda a confiança moderna nas crenças científicas, à 
fa lta de um v ínculo com as tradições e de uma obediê ncia às 
autoridades, viria. desde então, repousar na autonomia deste sujeito 
epistêmico e na eficácia dos procedimentos constitutivos. À medida, 
porém, que estes procedimentos se estabilizam e tece-se com eles uma 
rotina metodológica, eles tendem a perder a dimensão instrumental e 
fica ressaltada a sua natureza ritua lística e sacrificai: esquecidas suas 
condições e seus limites, o método tende ao formalismo e, muitas vezes, 
vai importar menos o conhecimento supostame nte objetivo que 
propicia do que o sacrifício imposto à subjetividade particular, privada 
e variável. 
Nestes momentos, em que o método é convertido em fetic he, fica 
mui!; clara a dupla face da exclusão que promove: ao mesmo tempo 
que consti tui o reino de uma identidade ficc iona l - o sujeito do 
conhecimento purificado -, consagra o reino das experiências 
subjetivas, ídiossincráticas. variáve is e ilusórias. Este reino, todavia, é 
tanto consagrado como desqualificado: não só não é confiável como 
suporte de uma atividade cognitiva- já que não pode ser o espelho 
plano e homogêneo da natureza~ -. como também não presta como 
objeto do conhecimento, pois carece de ordem e da regularidade 
pressuposta pelas c iêneias exatas e naturais. Mais vale esquecer este 
reino. deixá-lo aos poetas, artistas e músicos. Mas será que eles o 
querem? 
Se lançannos os olhos para o que produzem e para o que teorizam 
poetas e músicos da época, veremos que não.5 É claro que a eles cabe 
a imitação (representação) e a excitação (controlada) das paixões . No 
entanto, as paixões representadas, por exemplo, pelos heróis de Racine 
( 1639- 1699} são tudo, menos inconstantes, variáveis e arbitrárias. O 
sujeito ético-passional da tragédia francesa é, ele também , uma ficção: 
ele representa a paixão purificada, desligada, refinada, sublimada, 
operando poderosa e incontestavelmente. São paixões idênticas a si 
mesmas e universais. O sujeito trágico goza de completa imunidade 
contra tudo o que, vindo do corpo ou das fraquezas da alma, possa 
amesquinhar ou desviar a marcha da ação passional. A arte pOética da 
tragédia francesa, definindo as regras do estilo elevado e superando 
89 
na imítayão seus próprios modelos antigos, opera uma cisão e um 
expurgo semelhante ao que vimos o método científico operando na 
constituição da identidade do conhecedor. 
A estética musical, igualmente, avança nessa época nos passos 
da razão galilaico-cartesiana.A Dando continuidade a um movimento 
purificador e inte lectualista iniciado no século XVI - que teve em 
Vincenzo Gali\ei um dos seus maiores expoentes (cf. cap. I) e res ultou 
na consolidação do 'esti lo representativo' - , a ' música cartesiana' vai 
se caracterizar pela ordenação matemática do universo sonoro, pela 
ordenação matemática dos movimentos passionais e, ainda, o que é o 
decisivo, pela procura ou postulação de correspondências entre as 
duas séries. A 'teoria dos afetos', que dominou a produção musical 
no século XVII e parte do século XVIII, pretendeu ser, efetivamente, 
uma ciência experimental e racional da música, e resultou, inclusive, 
numa tarefa tecnológica: a da construção de instrumenlOs musicais 
matematicamente concebidos e perfeitos e da codificação das técnicas 
da execução vocal e instrumental. 
Ora, as paixões que se prestam a este gênero de conhecimento e 
a este nível de imitação e de evocação já não se parecem em nada às 
paixões que perturbam e obstruem a marcha da razão ou que 
comprometem os sistemas representacionais. São paixões expurgadas 
de seu potenc ial mais ameaçador, são paixões essencialmente 
representáveis. 
Na verdade, os procedimentos de exclusão, seja nos campos da 
ciência como no das artes, constituem as identidades imaginárias do 
conhecedor ou do homem ético-apaixonado, na exata medida em que 
forçam o esquecimento de tudo que possa denunciar a natureza 
artificialdestas subjetividades; em última análise ficava de fora, 
irrepresentável, o corpo humano nos seus usos e funções, nos seus 
automatísmos e na sua impulsividade e, ainda, a alma e seus caprichos, 
suas ambigüidades, suas caraminholas e invencionices. Ficava de fora, 
enfim, o 'natural ' pré-civilizado, ao mesmo tempo que se passava a 
acreditar que a ' verdadeira natureza humana' só podia se realizar e dar 
a conhecer no campo da vida c ivilizada e sob a forma de representações 
claras e distintas. Aliás, não só a natureza humana, mas toda a natureza 
ficava assim s ubmetida ao representacional, e o jardim francês, 
90 
geometricamente desenhado, seria, nesta ótica, uma manifestação da 
natureza mais 'natural' do que uma floresta virgem. 
Não por acaso, a sensibilidade literária, artfstica e filosófica da 
época repudiava as obras de Cervantes, Rabelais ou Shalcespeare, 
vendo nelas apenas mau gosto e indecência. São obras que têm o 
inconveniente de nos fazer lembrar o que deve ser esquecido. o que 
se, por acaso. aparece po r debaixo das máscaras merece apenas a 
condenação moralizante e uma acusação de hipocrisia, como nas 
comédias de Molicrc, sem que jamais a natureza fictícia de todas as 
identidades, inclusive a dos acusadores, pudesse ser revelada. 
Auerbach (1971; p. 335) aproxima a poesia trágica francesa do 
ambiente laboratorial. Diz ele: 
Dentro desta sublimidade segregadora e isolante, os príncipes e princesas 
trágicos entregam-se às suas paixões. Somente as considerações mais 
importantes. livradas da confusão do cotidiano, purificadas do cheiro e 
do gosto do cotidiano penetram em suas almas que, desta fonna, estão 
livres para as maiores e mais fortes emoções. O poderoso efeito das 
paixões nas obras de Racine, e já de Comeille, baseia-se, em boa parte, 
no isolamento atmosférico do acontecimento, tal como acabamos de 
descrevê-lo; é comparável à preparação isolante das condições propícias, 
tal como é usual na realização das modernas experiências. 
Parece claro que a teoria do conhecimento científico, a poesia 
trágica do classicismo francês e a teoria matemática da música ajudam 
a construir e habitam os espaços do laboratório com suas análises e 
combinações sob medida, aplicadas a objetos puros em condições 
ideais. 
A vida, porém, tende a misturar o que os laboratórios separam: 
mistura a razão às paixões e ambas aos poderes do corpo e às fraquezas 
do espírito. Isto é o que ocorre a menos que fortes, penetrantes e 
abrangentes dispositivos socioculturais ordenem a vida segundo os 
mesmos modelos já identificados no pensamento epistemológico e 
estético. Exemplos de dispositivos desta natureza foram as artes 
práticas da etiqueta cortês e da oratória religiosa. 
Norbert Elias (1985) descreveu o processo histórico que levou à 
formação das grandes cortes européias ao mesmo tempo em que 
limitava a autonomia das casas senhoriais e cortes de província.7 Foi 
91 
na imítayão seus próprios modelos antigos, opera uma cisão e um 
expurgo semelhante ao que vimos o método científico operando na 
constituição da identidade do conhecedor. 
A estética musical, igualmente, avança nessa época nos passos 
da razão galilaico-cartesiana.A Dando continuidade a um movimento 
purificador e inte lectualista iniciado no século XVI - que teve em 
Vincenzo Gali\ei um dos seus maiores expoentes (cf. cap. I) e res ultou 
na consolidação do 'esti lo representativo' - , a ' música cartesiana' vai 
se caracterizar pela ordenação matemática do universo sonoro, pela 
ordenação matemática dos movimentos passionais e, ainda, o que é o 
decisivo, pela procura ou postulação de correspondências entre as 
duas séries. A 'teoria dos afetos', que dominou a produção musical 
no século XVII e parte do século XVIII, pretendeu ser, efetivamente, 
uma ciência experimental e racional da música, e resultou, inclusive, 
numa tarefa tecnológica: a da construção de instrumenlOs musicais 
matematicamente concebidos e perfeitos e da codificação das técnicas 
da execução vocal e instrumental. 
Ora, as paixões que se prestam a este gênero de conhecimento e 
a este nível de imitação e de evocação já não se parecem em nada às 
paixões que perturbam e obstruem a marcha da razão ou que 
comprometem os sistemas representacionais. São paixões expurgadas 
de seu potenc ial mais ameaçador, são paixões essencialmente 
representáveis. 
Na verdade, os procedimentos de exclusão, seja nos campos da 
ciência como no das artes, constituem as identidades imaginárias do 
conhecedor ou do homem ético-apaixonado, na exata medida em que 
forçam o esquecimento de tudo que possa denunciar a natureza 
artificial destas subjetividades; em última análise ficava de fora, 
irrepresentável, o corpo humano nos seus usos e funções, nos seus 
automatísmos e na sua impulsividade e, ainda, a alma e seus caprichos, 
suas ambigüidades, suas caraminholas e invencionices. Ficava de fora, 
enfim, o 'natural ' pré-civilizado, ao mesmo tempo que se passava a 
acreditar que a ' verdadeira natureza humana' só podia se realizar e dar 
a conhecer no campo da vida c ivilizada e sob a forma de representações 
claras e distintas. Aliás, não só a natureza humana, mas toda a natureza 
ficava assim s ubmetida ao representacional, e o jardim francês, 
90 
geometricamente desenhado, seria, nesta ótica, uma manifestação da 
natureza mais 'natural' do que uma floresta virgem. 
Não por acaso, a sensibilidade literária, artfstica e filosófica da 
época repudiava as obras de Cervantes, Rabelais ou Shalcespeare, 
vendo nelas apenas mau gosto e indecência. São obras que têm o 
inconveniente de nos fazer lembrar o que deve ser esquecido. o que 
se, por acaso. aparece po r debaixo das máscaras merece apenas a 
condenação moralizante e uma acusação de hipocrisia, como nas 
comédias de Molicrc, sem que jamais a natureza fictícia de todas as 
identidades, inclusive a dos acusadores, pudesse ser revelada. 
Auerbach (1971; p. 335) aproxima a poesia trágica francesa do 
ambiente laboratorial. Diz ele: 
Dentro desta sublimidade segregadora e isolante, os príncipes e princesas 
trágicos entregam-se às suas paixões. Somente as considerações mais 
importantes. livradas da confusão do cotidiano, purificadas do cheiro e 
do gosto do cotidiano penetram em suas almas que, desta fonna, estão 
livres para as maiores e mais fortes emoções. O poderoso efeito das 
paixões nas obras de Racine, e já de Comeille, baseia-se, em boa parte, 
no isolamento atmosférico do acontecimento, tal como acabamos de 
descrevê-lo; é comparável à preparação isolante das condições propícias, 
tal como é usual na realização das modernas experiências. 
Parece claro que a teoria do conhecimento científico, a poesia 
trágica do classicismo francês e a teoria matemática da música ajudam 
a construir e habitam os espaços do laboratório com suas análises e 
combinações sob medida, aplicadas a objetos puros em condições 
ideais. 
A vida, porém, tende a misturar o que os laboratórios separam: 
mistura a razão às paixões e ambas aos poderes do corpo e às fraquezas 
do espírito. Isto é o que ocorre a menos que fortes, penetrantes e 
abrangentes dispositivos socioculturais ordenem a vida segundo os 
mesmos modelos já identificados no pensamento epistemológico e 
estético. Exemplos de dispositivos desta natureza foram as artes 
práticas da etiqueta cortês e da oratória religiosa. 
Norbert Elias (1985) descreveu o processo histórico que levou à 
formação das grandes cortes européias ao mesmo tempo em que 
limitava a autonomia das casas senhoriais e cortes de província.7 Foi 
91 
este o movimento fundador dos Estados Nacionais, que pôs cobro ao 
excesso de conflitos políticos e religiosos que marcaram o século XVI 
e parte do XVII c deu início à unidade cultural e administrativa dos 
países. Os nobres de tradição foram sendo trazidos para a tutela do rei 
e uma nova nobreza ia sendo criada sob a orientação e a serviço da 
ca<;a real. O exemplo paradigmático era Versaillesnos tempos de Luís 
XIV { 1643-1715; assumiu o trono em I 661 ). 
Nessa vida cortês, a dependência quase absoluta da nobreza em 
relação à vontade do rei, que manejava habilmente na formação e na 
administração dos conflitos, engendrou uma hierarquia sutilíssima e 
altamente diferenciada. Nela, a posição de cada um não dependia 
apenas do nascimento e da tradição, mas de fa tores conjunturais. 
Elias descreve como se deu a ritualização laicizada de todas as 
relações corteses, resultando no império da etiqueta, a que o próprio 
rei devia se curvar. A etiqueta era, confonne a apreciação de Elias, um 
sistema de auto-apresentação da corte, um dispositivo representacional 
mediante o qual se construíam as identidades através de trocas 
altamente codi fi cadas de gestos , falas e olhares, modos de se 
apresentar e interagir. O domínio das regras de convivência, a habilidade 
em transmitir e decifrar mensagens tomaram-se essenciais para garantir 
e manter o sucesso na corte para toda a nobreza ociosa e parasitária. 
A vida cortês transformou-se aos poucos num grande espetácu1o no 
que se exibiam e defrontavam identidades claras e distintas. 
O que Elias explora e m profundidade são as co nseqüências 
sociopsicológicas do regime em termos de incremento na capacidade 
de contenção dos impulsos, modelação de condutas, autodomínio, 
auto-observação e observação dos outros. O nobre, com o rei em 
primeiro lugar. deve ser um exímio manipulador de aparências e um 
arguto 'psicólogo' para transpor as dissimulações alheias. A vida na 
corte ensina um certo jeito de ' fazer psicologia': a observação atenta 
dos indivíduos atuando nos jogos da etiqueta propícia o conhecimento 
sistemático, científico- moralizante, dos ho mens. Disso nos dão 
testemunho as caracterologias elaboradas, por exemplo, por La Bruyere 
(1645-1696) e por La Fontaine {1621 - 1695). 
Segundo a lógica da etiqueta, os maiores pecados sociais seriam 
a perda do autocontrole e a revelação da ' carne' por debaixo da 
máscara . Auerbach, por exemplo, mostra que a dignidade exige que se 
92 
escondam ao máximo as funções e as atividades profi ssionais. Caso 
contrário, o cortesão e o burguês ho nesto permitiriam a invasão 
(humil hante) do seu espaço representacional pelo reino da privacidade, 
da particularidade, da espontaneidade e da necessidade. Era como 
perder o domínio dos recursos expressivos civilizados, na sua pretensa 
universalidade - o francês era, aliás, a líng ua da civilização em todas 
as cortes européias, c a sua pureza era resguardada pela Academia, 
recentemente fundada com este propósito - , passando a exibir a face 
sem polimento dos brutos . dos bárbaros ou das criança s. O 
'esquecimento' efi caz do que se dava para além ou para aquém da 
representação era a primeira obrigação social do indivíduo bem· 
sucedido, cuja principal virtude era a capacidade de sentir vergonha. 
Talvez porque este esquecimento não possa ser completo, salvo 
nas condições quase laboratoriais de uma corte - e mesmo aí é 
duvidoso que o seja - , era necessário reforçá~ lo pelo escárnio aos que 
se deixavam apanhar na condição de hipócritas. Nisso reside a função 
conservadora da comédia de Moliere : tornavam a vergonha de alguns 
um incentivo à representação bem-sucedida de todos. Convinha, ainda, 
uma aj uda na ordenação da vida pública e privada; nessa direção 
militavam os grandes oradores sacros, que em alguns casos se tomaram 
as estrelas da época. Assistiam-se aos sennões como se assistem aos 
grandes eventos e espetáculos culturais, artísticos e políticos. 
A figura do pregador não é uma novidade ou um privilégio do 
século XVII. No entanto, o prestígio dos pregadores nesse perfodo da 
vida européia tinha algo de espec ial. Entre eles haviam alguns 
portugueses, e a análise que se segue focaliza a obra de um deles: o 
padre jesuíta Antônio V i eira ( 1608-1677). 
Seria bom principiar opondo a pregação à confissão como duas 
modalidades de produção da subjetividade. Na confissão, fala o crente 
no espaço privado do confessionário acerca do que não pode ser falado 
em públ ico, do que não pode nem deve ser incorporado às suas 
representações sociais. Na confissão, sussurra-se, articula-se mal, 
duvida-se, pede-se socorro e perdão. O confessor ouve, orienta e, 
principalmente, absolve da culpa. No sermão, fala o pregador no espaço 
público acerca do que pode e precisa ser falado em público para que 
cada fiel , em tese, sinta nessa fala alusões oblíquas à sua intimidade. 
O sennão deve dirigir o olhar de cada um para dentro a partir do mundo 
93 
este o movimento fundador dos Estados Nacionais, que pôs cobro ao 
excesso de conflitos políticos e religiosos que marcaram o século XVI 
e parte do XVII c deu início à unidade cultural e administrativa dos 
países. Os nobres de tradição foram sendo trazidos para a tutela do rei 
e uma nova nobreza ia sendo criada sob a orientação e a serviço da 
ca<;a real. O exemplo paradigmático era Versailles nos tempos de Luís 
XIV { 1643-1715; assumiu o trono em I 661 ). 
Nessa vida cortês, a dependência quase absoluta da nobreza em 
relação à vontade do rei, que manejava habilmente na formação e na 
administração dos conflitos, engendrou uma hierarquia sutilíssima e 
altamente diferenciada. Nela, a posição de cada um não dependia 
apenas do nascimento e da tradição, mas de fa tores conjunturais. 
Elias descreve como se deu a ritualização laicizada de todas as 
relações corteses, resultando no império da etiqueta, a que o próprio 
rei devia se curvar. A etiqueta era, confonne a apreciação de Elias, um 
sistema de auto-apresentação da corte, um dispositivo representacional 
mediante o qual se construíam as identidades através de trocas 
altamente codi fi cadas de gestos , falas e olhares, modos de se 
apresentar e interagir. O domínio das regras de convivência, a habilidade 
em transmitir e decifrar mensagens tomaram-se essenciais para garantir 
e manter o sucesso na corte para toda a nobreza ociosa e parasitária. 
A vida cortês transformou-se aos poucos num grande espetácu1o no 
que se exibiam e defrontavam identidades claras e distintas. 
O que Elias explora e m profundidade são as co nseqüências 
sociopsicológicas do regime em termos de incremento na capacidade 
de contenção dos impulsos, modelação de condutas, autodomínio, 
auto-observação e observação dos outros. O nobre, com o rei em 
primeiro lugar. deve ser um exímio manipulador de aparências e um 
arguto 'psicólogo' para transpor as dissimulações alheias. A vida na 
corte ensina um certo jeito de ' fazer psicologia': a observação atenta 
dos indivíduos atuando nos jogos da etiqueta propícia o conhecimento 
sistemático, científico- moralizante, dos ho mens. Disso nos dão 
testemunho as caracterologias elaboradas, por exemplo, por La Bruyere 
(1645-1696) e por La Fontaine {1621 - 1695). 
Segundo a lógica da etiqueta, os maiores pecados sociais seriam 
a perda do autocontrole e a revelação da ' carne' por debaixo da 
máscara . Auerbach, por exemplo, mostra que a dignidade exige que se 
92 
escondam ao máximo as funções e as atividades profi ssionais. Caso 
contrário, o cortesão e o burguês ho nesto permitiriam a invasão 
(humil hante) do seu espaço representacional pelo reino da privacidade, 
da particularidade, da espontaneidade e da necessidade. Era como 
perder o domínio dos recursos expressivos civilizados, na sua pretensa 
universalidade - o francês era, aliás, a líng ua da civilização em todas 
as cortes européias, c a sua pureza era resguardada pela Academia, 
recentemente fundada com este propósito - , passando a exibir a face 
sem polimento dos brutos . dos bárbaros ou das criança s. O 
'esquecimento' efi caz do que se dava para além ou para aquém da 
representação era a primeira obrigação social do indivíduo bem· 
sucedido, cuja principal virtude era a capacidade de sentir vergonha. 
Talvez porque este esquecimento não possa ser completo, salvo 
nas condições quase laboratoriais de uma corte - e mesmo aí é 
duvidoso que o seja- , era necessário reforçá~ lo pelo escárnio aos que 
se deixavam apanhar na condição de hipócritas. Nisso reside a função 
conservadora da comédia de Moliere : tornavam a vergonha de alguns 
um incentivo à representação bem-sucedida de todos. Convinha, ainda, 
uma aj uda na ordenação da vida pública e privada; nessa direção 
militavam os grandes oradores sacros, que em alguns casos se tomaram 
as estrelas da época. Assistiam-se aos sennões como se assistem aos 
grandes eventos e espetáculos culturais, artísticos e políticos. 
A figura do pregador não é uma novidade ou um privilégio do 
século XVII. No entanto, o prestígio dos pregadores nesse perfodo da 
vida européia tinha algo de espec ial. Entre eles haviam alguns 
portugueses, e a análise que se segue focaliza a obra de um deles: o 
padre jesuíta Antônio V i eira ( 1608-1677). 
Seria bom principiar opondo a pregação à confissão como duas 
modalidades de produção da subjetividade. Na confissão, fala o crente 
no espaço privado do confessionário acerca do que não pode ser falado 
em públ ico, do que não pode nem deve ser incorporado às suas 
representações sociais. Na confissão, sussurra-se, articula-se mal, 
duvida-se, pede-se socorro e perdão. O confessor ouve, orienta e, 
principalmente, absolve da culpa. No sermão, fala o pregador no espaço 
público acerca do que pode e precisa ser falado em público para que 
cada fiel , em tese, sinta nessa fala alusões oblíquas à sua intimidade. 
O sennão deve dirigir o olhar de cada um para dentro a partir do mundo 
93 
das representações. Nas palavras do padre Vieira, proferidas no 
merecidamente célebre Sermão da sexagésima ([1655] 1987), a que 
voltarei várias vezes, define-se a conversão como o objetivo da oratória 
sacra: "Que cousa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem 
dentro de si, e ver-se a si mesmo'! Para esta vista são necessários olhos, 
é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o 
espelho ... " (p. 98- grifo meu). 
O objetivo deste espelhamento é fazer com que os homens caiam 
em si a partir do reflexo que encontram nos outros, no caso, nas 
palavras do pregador. Numa o utra passage m, admoestando os 
pregadores que se tornam excessivamente visíveis, perdendo a função 
espelhante que lhes cabe, diz Vieira: 
Semeadores do Evangelho eis aqui o que devemos pretender de nossos 
sermões, não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam 
muito descontentes de si: não que lhes pareçam muito bem os nossos 
conceitos; mas que lhes pareçam mal os seus costumes; as suas vidas. 
os seus pecados. (p. 123) 
Trata-se de aiTependimento, mas, aparentemente. não se trata de 
cu lpa, mas de vergonha. 1 O pregador ensina a cada um envergonhar-
se de si para consigo para que não se vá depois envergonhar diante 
dos outros. A pregação, muito mais que a confissão, parece a forma 
adequada de auxiliar na produção de identidades que se constituem e 
procuram se esgotar na coincidência com uma imagem. 
A questão da representação não está presente apenas na função 
de espelho atribuída ao pregador e na incorporação da vergonha fntima 
entre as habilidades do fiel. O manejo das representações é o recurso 
básico do bom pregador. É na exploração deste aspecto da arte retórica 
que o Sermão da sexagésima mais nos pode valer. Trata-se de um 
sermão acerca de como se pode e deve escrever e ' interpretar' (no 
sentido musical ou teatral da palavra) um bom sermão: é um 
metassermão. 
O pregador talentoso tem como tarefa ensinar, emocionar e 
fascinar sua platéia de forma a conduzi-la ao arrependimento pela 
vergonha. 
O ensinar implica o uso adequado de palavras claras e distintas 
na análise e subdivisão racional dos assuntos, na argumentação 
cerrada e nas conclusões lógicas e convincentes: 
94 
Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito 
distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito 
distinto e muito claro. (p. I 07} 
Hã de tomar o pregador uma só matéria: há de defini-la: para que se 
conheça; há de dividi-la: para que se distinga; há de prová-la com a 
Escritura; há de declará-la com a razão; há de confinná-la com o exemplo; 
há de amplificá-la com a causa, com os efeitos, com as circunstâncias, 
com as conveniências que se hão de seguir; com os inconvenientes que 
se deve evitar: há de responder às dúvidas, há de satisfazer as 
dificuldades; há de impugnar e refutar com toda a força da eloqüência 
os argumentos contrários; e depois disto há que colher, há de apertar, 
há de concluir, há de persuadir, há de acabar. (p. 110) 
No que tange à emoção, é preciso despertá-la de fonna intensa e 
controlada, e esta é tarefa para imagens e não para simples palavras. 
As obras que devem acompanhar as palavras são mais fortes que estas 
porque são visíveis; as palavras para emocionar devem deixar de ser 
apenas audíveis e fazer ver: " ... a relação do pregador entrava pelos 
ouvidos : a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem 
Padres Pregadores por que fazem pouco abalo nossos sermões? Porque 
não pregamos aos olhos. pregamos só aos ouvidos" (p. I 04 ). 
Finalmente, o pregador deve saber se apresentar, saber ler e 
interpretar, deve ter estilo. 
Ora, os recursos representacionais ameaçam a todo momento 
ganhar uma grande autonomia diante da finalidade, que seria, como se 
viu, a de conduzir a audiência ao aiTependimento pela vergonha. O 
padre Vieira escreveu em parte o Sermão da sexagésima exatamente 
para condenar a excessiva tealralização da pregação que, ao que parece 
e é bastante compreensível, era uma forte tendência na oratória sacra 
da época. Não sei o quanto o padre Vieira foi bem-sucedido na 
distinção que propunha entre o sennão verdadeiramente religioso e o 
sennão teatral e, segundo ele, quase farsesco. O fato, porém, é que os 
próprios sermões de Vieira podem ser ainda hoje lidos e apreciados 
como exemplos magistrais da arte da representação sem que nos 
sintamos movidos na direção de qualquer arrependimento. É mais do 
que provável que fosse o caráter espetacular dos sermões deste 
período que levasse multidões às igrejas, gerando disputas e filas para 
9.5 
das representações. Nas palavras do padre Vieira, proferidas no 
merecidamente célebre Sermão da sexagésima ([1655] 1987), a que 
voltarei várias vezes, define-se a conversão como o objetivo da oratória 
sacra: "Que cousa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem 
dentro de si, e ver-se a si mesmo'! Para esta vista são necessários olhos, 
é necessária luz, e é necessário espelho. O pregador concorre com o 
espelho ... " (p. 98- grifo meu). 
O objetivo deste espelhamento é fazer com que os homens caiam 
em si a partir do reflexo que encontram nos outros, no caso, nas 
palavras do pregador. Numa o utra passage m, admoestando os 
pregadores que se tornam excessivamente visíveis, perdendo a função 
espelhante que lhes cabe, diz Vieira: 
Semeadores do Evangelho eis aqui o que devemos pretender de nossos 
sermões, não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam 
muito descontentes de si: não que lhes pareçam muito bem os nossos 
conceitos; mas que lhes pareçam mal os seus costumes; as suas vidas. 
os seus pecados. (p. 123) 
Trata-se de aiTependimento, mas, aparentemente. não se trata de 
cu lpa, mas de vergonha. 1 O pregador ensina a cada um envergonhar-
se de si para consigo para que não se vá depois envergonhar diante 
dos outros. A pregação, muito mais que a confissão, parece a forma 
adequada de auxiliar na produção de identidades que se constituem e 
procuram se esgotar na coincidência com uma imagem. 
A questão da representação não está presente apenas na função 
de espelho atribuída ao pregador e na incorporação da vergonha fntima 
entre as habilidades do fiel. O manejo das representações é o recurso 
básico do bom pregador. É na exploração deste aspecto da arte retórica 
que o Sermão da sexagésima mais nos pode valer. Trata-se de um 
sermão acerca de como se pode e deve escrever e ' interpretar' (nosentido musical ou teatral da palavra) um bom sermão: é um 
metassermão. 
O pregador talentoso tem como tarefa ensinar, emocionar e 
fascinar sua platéia de forma a conduzi-la ao arrependimento pela 
vergonha. 
O ensinar implica o uso adequado de palavras claras e distintas 
na análise e subdivisão racional dos assuntos, na argumentação 
cerrada e nas conclusões lógicas e convincentes: 
94 
Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito 
distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito 
distinto e muito claro. (p. I 07} 
Hã de tomar o pregador uma só matéria: há de defini-la: para que se 
conheça; há de dividi-la: para que se distinga; há de prová-la com a 
Escritura; há de declará-la com a razão; há de confinná-la com o exemplo; 
há de amplificá-la com a causa, com os efeitos, com as circunstâncias, 
com as conveniências que se hão de seguir; com os inconvenientes que 
se deve evitar: há de responder às dúvidas, há de satisfazer as 
dificuldades; há de impugnar e refutar com toda a força da eloqüência 
os argumentos contrários; e depois disto há que colher, há de apertar, 
há de concluir, há de persuadir, há de acabar. (p. 110) 
No que tange à emoção, é preciso despertá-la de fonna intensa e 
controlada, e esta é tarefa para imagens e não para simples palavras. 
As obras que devem acompanhar as palavras são mais fortes que estas 
porque são visíveis; as palavras para emocionar devem deixar de ser 
apenas audíveis e fazer ver: " ... a relação do pregador entrava pelos 
ouvidos : a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem 
Padres Pregadores por que fazem pouco abalo nossos sermões? Porque 
não pregamos aos olhos. pregamos só aos ouvidos" (p. I 04 ). 
Finalmente, o pregador deve saber se apresentar, saber ler e 
interpretar, deve ter estilo. 
Ora, os recursos representacionais ameaçam a todo momento 
ganhar uma grande autonomia diante da finalidade, que seria, como se 
viu, a de conduzir a audiência ao aiTependimento pela vergonha. O 
padre Vieira escreveu em parte o Sermão da sexagésima exatamente 
para condenar a excessiva tealralização da pregação que, ao que parece 
e é bastante compreensível, era uma forte tendência na oratória sacra 
da época. Não sei o quanto o padre Vieira foi bem-sucedido na 
distinção que propunha entre o sennão verdadeiramente religioso e o 
sennão teatral e, segundo ele, quase farsesco. O fato, porém, é que os 
próprios sermões de Vieira podem ser ainda hoje lidos e apreciados 
como exemplos magistrais da arte da representação sem que nos 
sintamos movidos na direção de qualquer arrependimento. É mais do 
que provável que fosse o caráter espetacular dos sermões deste 
período que levasse multidões às igrejas, gerando disputas e filas para 
9.5 
a ocupação dos melhores lugares e não qualquer tendência masoqujsta 
de uma audiência supostamente ávida de conselhos c admoestações. 
Subterrâneos da civilização 
O car:ller fictício, artificial, e ao mesmo tempo necessário da vida 
civilizada esteve no foco da filosofia política de Thomas Hobbes ( 1588-
1679). Porém, ao defender o mundo das representações e das 
identidades ficcionais, Hobbes aponta para o que existe por detrás da 
c ivil ização: uma natureza tão inrolerável quanto indispensável e 
preciosa. 
Como se sabe, Hobbes no Leviatã ( 1 651 ) faz uma defesa da 
civilidade em que, na rigorosa explicitação de argumentos convincentes, 
e le se torna antipático e indiscreto. Indiscreto porque expõe sem 
disfarces a sel vageria natural do homem , seu egoísmo, sua 
destrutividade, a vontade de poder e seus excessos. Antipático, 
naturalmente, porque esta não é uma imagem lisonjeira para ninguém. 
Não espanta que Hobbes pudesse incomodar seus contemporâneos. 
É a selvageria qu e impõe a todos, por uma ques tão d e 
sobrevivência, o estabelecimento de um contrato básico pelo qual cada 
um renu ncia a determinados impul sos e poderes e trans fere 
dctenninados direitos aos representantes dos interesses de todos: o 
soberano.v O soberano, na qualidade de representante, legis la, executa 
e se defende de qualquer contestação à sua soberania como forma de 
defender e garantir a coesão social , a paz entre os homens c as 
condições m(nimas e básicas para que cada um sobreviva e persiga 
seus interesses particulares. 
De fato, mesmo depois de os homens terem, mediante o 'contrato 
social' , se consti tuído como súditos, instituindo um só como soberano, 
superando assim o estado de guerra que reina na natureza, pennanece 
o núcleo selvagem e impulsivo gerando uma duplicidade íntima: o 
soberano e seus súditos - enquanto tais- agem estritamente no campo 
da civilização e segundo a lógica da representação, mas continuam 
abrigando em si suas pessoas naturais, prontas para agir enquanto 
forças fÚl nçztureza. 
É claro que esta natureza comporta ingredientes disruptivos e 
dissolventes e ·é contra ela. exatamente, que a civili dade deve ser 
96 
exercida; é ela que justifica e dá caráter de necessidade ao mundo das 
identidades fictícias do soberano e dos súditos. No entanto, sem os 
impulsos, sem os apetites, sem as aversões. sem a esperança e sem os 
medos os homens seriam ingovernáveis. As ferramentas de controle 
social dependem d isso para serem eficazes. 
A rigor, na ausência da natureza impulsiva do homem não haveria 
nada a governar, não haveria ação, não haveria pensamento, não 
haveria discurso. São os apetites e aversões que introduzem movimento 
e ordem; são eles que põem para funcionar e organizam as fac uldades 
cognitivas do homem. Na ausência de apetites e aversões, as idéias 
não se articulariam na fonnação do pensamento, as palavras não se 
organizariam na formação de discursos, n vida mental não se elevaria 
às formas da prudência e do cálculo racional. 
Nesta medida, não seria possfvel nem seria desejável expulsar o 
reino natural de impulsos e desejos ou separar de forma radical a 
natureza da civilização, ou, em oulras palavras, o domínio das forças 
do das representações. É preci so. contudo, regular, coibir os excessos 
e confinar a vida pulsional. Estas não são maneiras ascéticas de lidar 
com os poderes anti-representacionais, como víramos ocorrer na 
tragédia c na epistemologia racionalista. Regul ando, coibindo e 
oonfinando está se conservando algo. A civilidade, efetivamente, existe 
tanto como instrumento repressivo quanto como defesa do homem 
natural. As identidades f ic tícias dos súditos e do soberano, que 
ocupam e se movimentam nos espaços púb licos, garantem a 
sobrevivência e dão perspectivas de desenvolvimento a~s seres 
naturais, que se recolhem ao campo da privacidade, dos interesses e 
negócios particulares, d as opin iões pessoais. das associações ou 
sistemas privados, desde que legftimos. w 
Hobbes incomoda mais pela sua indiscrição do que pelo, muitas 
vezes mal compreendido, autoritarismo. O incômodo não se deve, 
principalmente, ao fato de ele ter sido, supostamente, um defensor do 
Estado absolutista. Na verdade, ao separar tão nitidamente a pessoa 
artificial da pessoa natural do soberano e exigir obediência absoluta 
apenas à primeira, mas não à segunda, Hobbes coloca-se a uma 
considerável distância da filosofia social do Estado absolutista que, 
ao contrário, identificava estas duas dimensões do personagem real. 
No entanto, mesmo compreendendo ma) a defesa hobbesiana da 
97 
a ocupação dos melhores lugares e não qualquer tendência masoqujsta 
de uma audiência supostamente ávida de conselhos c admoestações. 
Subterrâneos da civilização 
O car:ller fictício, artificial, e ao mesmo tempo necessário da vida 
civilizada esteve no foco da filosofia política de Thomas Hobbes ( 1588-
1679). Porém, ao defender o mundo das representações e das 
identidades ficcionais, Hobbes aponta para o que existe por detrás da 
c ivil ização: uma natureza tão inrolerável quanto indispensável e 
preciosa. 
Como se sabe, Hobbes no Leviatã ( 1 651 ) faz uma defesa da 
civilidade em que, na rigorosa explicitação de argumentosconvincentes, 
e le se torna antipático e indiscreto. Indiscreto porque expõe sem 
disfarces a sel vageria natural do homem , seu egoísmo, sua 
destrutividade, a vontade de poder e seus excessos. Antipático, 
naturalmente, porque esta não é uma imagem lisonjeira para ninguém. 
Não espanta que Hobbes pudesse incomodar seus contemporâneos. 
É a selvageria qu e impõe a todos, por uma ques tão d e 
sobrevivência, o estabelecimento de um contrato básico pelo qual cada 
um renu ncia a determinados impul sos e poderes e trans fere 
dctenninados direitos aos representantes dos interesses de todos: o 
soberano.v O soberano, na qualidade de representante, legis la, executa 
e se defende de qualquer contestação à sua soberania como forma de 
defender e garantir a coesão social , a paz entre os homens c as 
condições m(nimas e básicas para que cada um sobreviva e persiga 
seus interesses particulares. 
De fato, mesmo depois de os homens terem, mediante o 'contrato 
social' , se consti tuído como súditos, instituindo um só como soberano, 
superando assim o estado de guerra que reina na natureza, pennanece 
o núcleo selvagem e impulsivo gerando uma duplicidade íntima: o 
soberano e seus súditos - enquanto tais- agem estritamente no campo 
da civilização e segundo a lógica da representação, mas continuam 
abrigando em si suas pessoas naturais, prontas para agir enquanto 
forças fÚl nçztureza. 
É claro que esta natureza comporta ingredientes disruptivos e 
dissolventes e ·é contra ela. exatamente, que a civili dade deve ser 
96 
exercida; é ela que justifica e dá caráter de necessidade ao mundo das 
identidades fictícias do soberano e dos súditos. No entanto, sem os 
impulsos, sem os apetites, sem as aversões. sem a esperança e sem os 
medos os homens seriam ingovernáveis. As ferramentas de controle 
social dependem d isso para serem eficazes. 
A rigor, na ausência da natureza impulsiva do homem não haveria 
nada a governar, não haveria ação, não haveria pensamento, não 
haveria discurso. São os apetites e aversões que introduzem movimento 
e ordem; são eles que põem para funcionar e organizam as fac uldades 
cognitivas do homem. Na ausência de apetites e aversões, as idéias 
não se articulariam na fonnação do pensamento, as palavras não se 
organizariam na formação de discursos, n vida mental não se elevaria 
às formas da prudência e do cálculo racional. 
Nesta medida, não seria possfvel nem seria desejável expulsar o 
reino natural de impulsos e desejos ou separar de forma radical a 
natureza da civilização, ou, em oulras palavras, o domínio das forças 
do das representações. É preci so. contudo, regular, coibir os excessos 
e confinar a vida pulsional. Estas não são maneiras ascéticas de lidar 
com os poderes anti-representacionais, como víramos ocorrer na 
tragédia c na epistemologia racionalista. Regul ando, coibindo e 
oonfinando está se conservando algo. A civilidade, efetivamente, existe 
tanto como instrumento repressivo quanto como defesa do homem 
natural. As identidades f ic tícias dos súditos e do soberano, que 
ocupam e se movimentam nos espaços púb licos, garantem a 
sobrevivência e dão perspectivas de desenvolvimento a~s seres 
naturais, que se recolhem ao campo da privacidade, dos interesses e 
negócios particulares, d as opin iões pessoais. das associações ou 
sistemas privados, desde que legftimos. w 
Hobbes incomoda mais pela sua indiscrição do que pelo, muitas 
vezes mal compreendido, autoritarismo. O incômodo não se deve, 
principalmente, ao fato de ele ter sido, supostamente, um defensor do 
Estado absolutista. Na verdade, ao separar tão nitidamente a pessoa 
artificial da pessoa natural do soberano e exigir obediência absoluta 
apenas à primeira, mas não à segunda, Hobbes coloca-se a uma 
considerável distância da filosofia social do Estado absolutista que, 
ao contrário, identificava estas duas dimensões do personagem real. 
No entanto, mesmo compreendendo ma) a defesa hobbesiana da 
97 
'soberania representativa absoluta'. não seria isto a fonte do mal-estar. 
Hobbes incomoda porque ele faz lembrar ao homem pretensamente 
civilizado o monstro que carrega consigo. a sua divisão interna, a sua 
natureza intolerável e querida, motor e justificativa do mundo das 
representações. mas que também é para este mundo uma constante 
ameaça e, secretamente, seu maior valor. Se o homem natural é 'o lobo 
do homem', a c ivilização não o transforma em cordeiro nem em lobo 
realmente domado: continuamos feras, prudentes apenas o bastante 
para escolher viver sob a tutela de um domador, no abrigo de nossas 
jaulas. 
Se Hobbes expõe sem dissimulações o homem-lobo atocaiado 
nos espaços da privacidade, algo deste mesmo homem vai se 
manifestar sublimada e disfarçadamentc na leitura prato-romântica que 
circula nos ambientes corteses. Foi Norbert Elias ( 1985) que, no 
contexto do seu estudo sobre a vida na corte francesa, modelo das 
cortes européias. analisou a estilização da vida pastoril que encantava 
boa parte da nobreza no século XVII. No sexto capítulo, 'Curialização 
e romantismo aristocrático', Elias mosna como as capacidades que a 
corte desenvolve nos homens podem se voltar contra ela na forma de 
uma nostalgia de fndole crftica ao mundo civilizado. Nestas fantasias, 
opõe-se o autêntico, s incero, humano e simples da natureza ao 
rebuscamento, tingimento e dissimulação do regime das representações 
civilizadas. Observa-se, em decorrência, a valorização da vida campestre 
e a voga da literatura pastoril, em que as velhas e idealizadas virtudes 
fidalgas - independência, rude sinceridade etc. -,que j á não se podem 
encarnar no cortesão submisso ao rei e cativo das regras da etiqueta, 
expressam-se pelas bocas estilizadas de pas tores e pastoras 
apaixonados. Nada mais distante desta visão bucólica da natureza do 
que o estado de guerra retratado por Hobbes. Este proto-romantismo 
sentimentalóide não tem nada, também, da virulência revolucionária do 
romantismo dos séculos XVIII e XIX. Não obstante, também nele 
transparece algo daquilo que a vida civilizada ambiguamente defende 
e condena ao esquecimento. 
P odemos, ainda, su rpreender o home m pré ou anti-
representacional numa fonna de religiosidade que obteve um razoável 
sucesso na corte e que operava em rigorosa oposição à religiosidade 
98 
dos pregadores, em especial à dos pregadores jesuítas, como o já citado 
padre Antônio Vieira. Trata-se do jansenismo. 
Cornélio Jansen ( I 585-1638), teólogo flamengo. desenvolveu, em 
oposição à interpretação oficial do catolicismo (oriunda do Concílio 
de Trento), idéias freqüentemente condenadas como heréticas e 
'protestantes'. A principal querela dizia respeito ao peso da vontade 
humana versus o da fé e o da graça divina na salvação das almas. Jansen 
tinha do homem uma visão muito sombria e pessim ista e , contrariando 
principalmente os jesuítas, reduzia ao mínimo o peso da vontade e de 
seus rebentos: o discurso racional, a retórica, o método. Acentuava, 
ao contrário, a fragi lidade e a dependência, a submissão e a entrega 
absoluta diante de Deus, a esperança na graça. 
Quando o jansenismo chegou à França, conduzido por um 
agostiniano designado como Saint-Cyran, conquistou a abadia de Port-
Royal, em torno da qual se constituiu uma pequena comunidade de 
nobres que - praticamente ao lado da corte - condenavam a vida cortês 
e se dedicavam à oração, à meditação, ao estudo, à vida simples e pura 
do autêntico cristianismo. Se os pregadores apelavam para a experiência 
da vergonha e ensinavam a vergonha de s i, os jansenistas enfatizam a 
culpa; culpa que, de tão grave e sem remissão humanamente possível, 
dependia exclusivamente da graça divina para obter o perdão. Os 
jansenistas, neste século em que a vida civilizada se impunha em todos 
os terrenos, subsistiram como o 'recalcado da corte' e foram finalmente 
condenados e dissolvidos. Antes disso, contudo, juntou-se a eles uma 
das mais notáveis personalidades do tempo: o físico e matemático Blaise 
Pa'\Cal. 
Pascal( 1623-1662} é um homem dividido. Nisto e le não se 
diferencia de ne nhum outro. No entanto, ele se toma um caso mais 
interessante e surpreendente quando faz da divisão um dos seus 
principais temas de reflexão. Este tema é retomado e explorado de 
diversos ângulos: o da guerra entre espírito e corpo, ou entre· instinto 
e experiência, ou, ainda, entre razão e paixões; o da duplicidade das 
vias do conhecimento: o espírito geométrico vtrsus o espírito de fmesse; 
o da variedade das tendências e qualidades de cada homem, o da sua 
inconstância etc. 
O resultado é uma idéia de homem como quimera, como monstro, 
como feixe de contradições. Daí resulta, do mesmo modo, a 
99 
'soberania representativa absoluta'. não seria isto a fonte do mal-estar. 
Hobbes incomoda porque ele faz lembrar ao homem pretensamente 
civilizado o monstro que carrega consigo. a sua divisão interna, a sua 
natureza intolerável e querida, motor e justificativa do mundo das 
representações. mas que também é para este mundo uma constante 
ameaça e, secretamente, seu maior valor. Se o homem natural é 'o lobo 
do homem', a c ivilização não o transforma em cordeiro nem em lobo 
realmente domado: continuamos feras, prudentes apenas o bastante 
para escolher viver sob a tutela de um domador, no abrigo de nossas 
jaulas. 
Se Hobbes expõe sem dissimulações o homem-lobo atocaiado 
nos espaços da privacidade, algo deste mesmo homem vai se 
manifestar sublimada e disfarçadamentc na leitura prato-romântica que 
circula nos ambientes corteses. Foi Norbert Elias ( 1985) que, no 
contexto do seu estudo sobre a vida na corte francesa, modelo das 
cortes européias. analisou a estilização da vida pastoril que encantava 
boa parte da nobreza no século XVII. No sexto capítulo, 'Curialização 
e romantismo aristocrático', Elias mosna como as capacidades que a 
corte desenvolve nos homens podem se voltar contra ela na forma de 
uma nostalgia de fndole crftica ao mundo civilizado. Nestas fantasias, 
opõe-se o autêntico, s incero, humano e simples da natureza ao 
rebuscamento, tingimento e dissimulação do regime das representações 
civilizadas. Observa-se, em decorrência, a valorização da vida campestre 
e a voga da literatura pastoril, em que as velhas e idealizadas virtudes 
fidalgas - independência, rude sinceridade etc. -,que j á não se podem 
encarnar no cortesão submisso ao rei e cativo das regras da etiqueta, 
expressam-se pelas bocas estilizadas de pas tores e pastoras 
apaixonados. Nada mais distante desta visão bucólica da natureza do 
que o estado de guerra retratado por Hobbes. Este proto-romantismo 
sentimentalóide não tem nada, também, da virulência revolucionária do 
romantismo dos séculos XVIII e XIX. Não obstante, também nele 
transparece algo daquilo que a vida civilizada ambiguamente defende 
e condena ao esquecimento. 
P odemos, ainda, su rpreender o home m pré ou anti-
representacional numa fonna de religiosidade que obteve um razoável 
sucesso na corte e que operava em rigorosa oposição à religiosidade 
98 
dos pregadores, em especial à dos pregadores jesuítas, como o já citado 
padre Antônio Vieira. Trata-se do jansenismo. 
Cornélio Jansen ( I 585-1638), teólogo flamengo. desenvolveu, em 
oposição à interpretação oficial do catolicismo (oriunda do Concílio 
de Trento), idéias freqüentemente condenadas como heréticas e 
'protestantes'. A principal querela dizia respeito ao peso da vontade 
humana versus o da fé e o da graça divina na salvação das almas. Jansen 
tinha do homem uma visão muito sombria e pessim ista e , contrariando 
principalmente os jesuítas, reduzia ao mínimo o peso da vontade e de 
seus rebentos: o discurso racional, a retórica, o método. Acentuava, 
ao contrário, a fragi lidade e a dependência, a submissão e a entrega 
absoluta diante de Deus, a esperança na graça. 
Quando o jansenismo chegou à França, conduzido por um 
agostiniano designado como Saint-Cyran, conquistou a abadia de Port-
Royal, em torno da qual se constituiu uma pequena comunidade de 
nobres que - praticamente ao lado da corte - condenavam a vida cortês 
e se dedicavam à oração, à meditação, ao estudo, à vida simples e pura 
do autêntico cristianismo. Se os pregadores apelavam para a experiência 
da vergonha e ensinavam a vergonha de s i, os jansenistas enfatizam a 
culpa; culpa que, de tão grave e sem remissão humanamente possível, 
dependia exclusivamente da graça divina para obter o perdão. Os 
jansenistas, neste século em que a vida civilizada se impunha em todos 
os terrenos, subsistiram como o 'recalcado da corte' e foram finalmente 
condenados e dissolvidos. Antes disso, contudo, juntou-se a eles uma 
das mais notáveis personalidades do tempo: o físico e matemático Blaise 
Pa'\Cal. 
Pascal ( 1623-1662} é um homem dividido. Nisto e le não se 
diferencia de ne nhum outro. No entanto, ele se toma um caso mais 
interessante e surpreendente quando faz da divisão um dos seus 
principais temas de reflexão. Este tema é retomado e explorado de 
diversos ângulos: o da guerra entre espírito e corpo, ou entre· instinto 
e experiência, ou, ainda, entre razão e paixões; o da duplicidade das 
vias do conhecimento: o espírito geométrico vtrsus o espírito de fmesse; 
o da variedade das tendências e qualidades de cada homem, o da sua 
inconstância etc. 
O resultado é uma idéia de homem como quimera, como monstro, 
como feixe de contradições. Daí resulta, do mesmo modo, a 
99 
impossihi lidadc de representar o homem em uma imagem única que o 
iden1i fique. 
É preciso, inclusive. suspei tar de todas as identidades que o 
homem toma para !.Í c mostra aos outros. Por detrás dessas imagens, 
Pascal encontra, apenas, 'amor-próprio'. interesses e uma profu nda 
tn•ersiío à verdade.•• É o que ele afirma. de maneira lapidar: 
O homem não é, portanto, senão disfarce. mentira e hipocrisia constgo 
me~mo c para com os outros. Não quer que lhe digam a verdade. Evita 
dizê-la aos outros. E todas estas <lti tuucs. tão afastadas da justiça, têm 
uma rai z natural no seu coração. ([ 1670] 1978; p. 56) 
E, ainda. soh o título: 
O cu é odioso: 
( ... ) Numa palavra. o eu tem duas qualidades: é injusto. pois se faz. o 
l'entro de tudo: c é incômodo aos outros. porque os quer subjugar. Porque 
cada eu é inimigo e quer ser o tirano de todos os outros. (p. 186) 
Esta violência contra o 'eu' e a dcsmistificação de toda identidade 
não excluem a exaltaçiio do que o homem pode ter de s ublime, de 
rac ional. de elevado; apenas contríhuem para a insistência pascaliana 
nas incongruências e contradições do homem consigo mesmo. A 
própria valo rização do coração - "que tem razões que a razão 
de~conhece" (p. 121 ) - , como via única de conhecimento de Deus, não 
implica a renúncia ou a desvalorização da razão. Trata-se sempre de 
acentuar a divisão dos campos, os limites de cada um, as oposições 
en tre eles, muito part icularme nte a impossibili dade de uma 
representação clara e distin ta de uma suposta identidade individual. 
As meditações de P~cal, ao contrário de suas obras cientificas 
e matemáticas, permaneceram no estado de fragmento. Creio que o 
fragmento, esta escrita imprevisível, surpreendente c guerrilhe ira, era 
a melhor via para que o 'recalcado da corte' pudesse atravessar e 
emergir dos sistemas representacionais dominantes. 
A dupla rlliação da pskologia 
Ainda es tá longe do século XVII o momento em que, já 
razoavelmente constitufdo. o espaço psicológico começará a ser 
100 
ocupado pelos diversos projetos de psicologia. como área específica 
de conhecimento e de práticas sui gene ris. Ainda assim, já é possível 
vislumbrar a dupla filiação das ps icologias contemporâneas. 
Na tradição civilizada e civilizatória, vamos encontrar as 
psicologias que se levam a sério como conhecimento objetivo dos 
caracteres, ou seja, das identidades substantivadas nos d iversos 'tipos 
psicológicos'; teremos, também, as psicologias que se voltam para o 
estudo analítico-funcional dos processos cognitivos (na esteira da 
moderna epistemologia)

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