Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
409 Uma leitura comparativa entre Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente e Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna Autora: Laudicéia Aparecida Gildo Professora Orientadora: Ms. Andressa Cristina de Oliveira* Centro Universitário Anhanguera - Câmpus Pirassununga Resumo Gil Vicente é considerado o ‘pai do teatro português’. Suas peças são classificadas em cinco categorias: peças de devoção, comédias, tragicomédias, farsas e composições menores de assunto variado. Ele compôs autos pastoris, autos de moralidade, farsas, autos cavaleirescos e alegorias de tema profano ou fantasias alegóricas. Na obra Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente representa a sociedade de seu tempo, que é, também, a espectadora de sua própria representação, fazendo com que seu retrato valha como uma advertência e lição edificante, indicando, ao mesmo tempo os pecados que a afastam da salvação. Ariano Suassuna escreveu o Auto da Compadecida em 1955, peça que o projetou em todo o país e que seria considerada, em 1962, ‘o texto mas popular do moderno teatro brasileiro. Em ambos os autos, os personagens são recriações de pessoas conhecidas ou familiares dos autores. Nessas peças, os personagens estruturam-se como alegorias ou tipos reais caricaturados, com o Gil Vicente e a obra Auto da Barca do Inferno propósito de sátira social. No Auto da Barca do Inferno, vemos os personagens serem condenados pela cobiça, avareza, licenciosidade, hipocrisia e, principalmente, pela superficialidade das práticas religiosas. A mesma coisa acontece no Auto da Compadecida, mas Suassuna mistura nobres e pobres em um processo criativo ímpar que, com seu regionalismo natural, busca as intersecções entre o popular e o erudito. Por meio dos conceitos de paródia, paráfrase, estilização, intertextualidade, desvio e apropriação, propomos uma leitura comparada entre dois autos de épocas tão distintas, mas que, em sua análise de estruturas e temas presentes, revelam que seus motivos e temas são de interesse atemporal, isto é, concernem ao homem de várias épocas, fazendo, assim, um retrato vivo da sociedade por meio de suas misérias. Palavras-chave: Literatura, estudo das obras, leitura comparativa das obras. * Bolsista FUNADESP Pouco se sabe a respeito da vida de Gil Vicente. Português, nasceu sob o reinado de D. Afonso V (1438-1481) por volta de 1465, presenciando os reinados de D. João II (1481- 1495) e D. Manuel I (1495-1521), e morreu, talvez em Guimarães, em meados do reinado de D. João III (1521-1557) entre 1536 e 1540. De seu ofício de ourives da Rainha D. Leonor, identificação esta ainda problemática devido ao seu contemporâneo homônimo, bem como de sua formação intelectual, também pouco se sabe. Sua obra revela, todavia, a aquisição de uma cultura feita em alguma universidade da época, tal a boa soma dos seus tradição dramática anterior a ele, Gil Vicente volta-se para a experiência espanhola de Juan del Encina aproveitando sugestões no início de seu teatro pastoril, que supera logo depois devido a sua extraordinária vocação poética e sua apreciável formação intelectual. (SPINA, 1991) conhecimentos, sobretudo teológicos e filosóficos. Encenou sua primeira sua primeira peça, Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação, em 1502, sob a proteção da Rainha D. Leonor. Foi, ao mesmo tempo, autor, diretor e ator de muitos de seus textos teatrais. Vivendo em pleno apogeu do Império Português renascentista, Gil Vicente tem seus olhos dirigidos 410 para a decadência que já tomava vulto, e o seu coração voltado para a antiga sociedade medieval, que ele imaginava estável e bem regrada. Não há notícias de autores portugueses de teatro antes dele, por isso, é considerado o ‘pai do teatro português’. A sua autonomia intelectual, a ortodoxia das suas idéias religiosas e a coragem expressa no seu teatro de crítica social explicam o parentesco do seu ideário com o pensamento reformista do tempo; explicam, também, o prestígio de que gozou na corte, onde a proteção da Rainha Velha D. Leonor, viúva de D. João II, e, em seguida, a do próprio rei D. João III, mantiveram o esplendor do teatro vicentino durante 34 anos. Suas peças são classificadas em cinco categorias: peças de devoção, comédias, tragicomédias, farsas e composições menores de assunto variado. Quanto aos gêneros, vemos, com SARAIVA e LOPES (1975), que Gil Vicente compôs autos pastoris, autos de moralidade, farsas, autos cavaleirescos e alegorias de tema profano ou fantasias alegóricas. Com a obra Auto da Barca do Inferno, um auto de moralidade que é a primeira peça a compor a Trilogia das Barcas, Gil Vicente representa a sociedade de seu tempo, que é, também, a espectadora de sua própria representação, fazendo com que seu retrato valha como uma advertência e lição edificante, indicando, ao mesmo tempo, os pecados que a afastam da salvação. Caracterizado como Auto de Moralidade, encontramos o teatro religioso que resume a teoria teológica da Redenção, peças sob a forma alegórica nos dão um ensinamento religioso ou moral onde alguns personagens são castigados enquanto outros são premiados. Estas peças estruturam-se como alegorias ou tipos reais caricaturados que as vezes o esquema alegórico religioso parece oferecer um pretexto, um quadro exterior para a apresentação no palco de sátiras ou caricaturas profanas, como acontece no Auto da Barca do Inferno, cujo propósito de sátira social predomina sobre o de edificação religiosa. (SARAIVA E LOPES, 1975). Temos, então, nesta peça, uma seqüência de quadros em que vemos um Diabo e um Anjo a defrontarem-se com as almas das pessoas recém-mortas que vão embarcar para a eternidade, em cada um desses quadros, as pessoas representam classes ou grupos sociais. Para eles o problema não existe, pois, após a morte conservam a sua maneira de ser típica: o Fidalgo quer levar a cadeira, o Judeu o bode, o Frade a manceba, etc. Apesar de nenhum deles pensar em deixar de ser o que é, todos tentam ir para a barca do céu, mas o anjo os rejeita, enquanto o Diabo lhes mostra que o caminho terá de ser o inferno. Os únicos a merecerem a Barca da Glória são o parvo, devido à sua irresponsabilidade e pobreza de espírito e os quatro cavaleiros, devido ao ideal de cristianização que os leva ao martírio. Segundo MONGELLI (1992), todos os outros personagens, um fidalgo, um onzeneiro, em sapateiro, um frade com sua dama, uma alcoviteira, um judeu, um corregedor, um procurador e um enforcado, são condenados, acima de tudo, pela cobiça, avareza, licenciosidade e hipocrisia. A crítica se faz, principalmente, pela superficialidade da prática religiosa. “E a nota cômica é assegurada pelo parvo, que mesmo de embarcado rumo a Glória, continua a zombar de diabos e condenados, corroborando a idéia de que o riso não é incompatível com o sagrado”. (1992, p. 178) Ariano Suassuna e a obra Auto da Compadecida A infância passada no sertão familiarizou o futuro escritor e dramaturgo com os temas e as formas de expressão artística que viriam mais tarde constituir seu universo ficcional ou, como ele próprio o denomina, seu “mundo mítico”. Não só as estórias e casos narrados e cantados em prosa e verso foram aproveitados como suporte na formação de suas peças, poemas e romances, mas também as próprias formas da narrativa oral e da poesia sertaneja foram assimiladas e reelaboradas por Suassuna. Foi o Teatro Adolescente do Recife que lançou Ariano Suassuna no Rio de Janeiro quando apresentou o Auto da Compadecida 411 (1956) no I Festival Nacional de Teatro Amador, obtendo o primeiro prêmio. Entre 1958-79, dedicou-se também à prosa de ficção, publicando o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), em que foi homenageado com o Prêmio Nacional de Ficção conferido em 1972 pelo Instituto Nacional do Livro; e história d’O rei degolado nas caatingas do serão/Ao sol da onça Caetana (1976), classificados por ele de “romance armorial-popular brasileiro”. O Auto da Compadecida, obra publicada em 1955, é a peça mais festejada de Ariano Suassuna. Escrita em prosa, é tambémaquela que, tanto pelo aspecto religioso quanto pelo temático, tem suas raízes na tradição cultural do Ocidente. Suas matrizes são folhetos populares. O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro, fragmento de O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros; o segundo também do mesmo autor, na História do cavalo que defecava dinheiro; o terceiro engloba O castigo da soberba, de Anselmo Vieira de Souza, e A peleja da Alma, de Silvino Pirauá Lima. Ainda d’O castigo da soberba vem a cantiga de Canário Pardo apontada por Leonardo Mota (1955) utilizada como invocação de João Grilo a Maria, assim como o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaço encerra o espetáculo pedindo dinheiro. (VASSALO, 1993). Como a própria denominação de “auto” já traz, refere-se ao teatro medieval de alegorias (pecado, virtude, etc.) e personagens como santos e demônios. É um teatro de construção simples, ingenuidade na linguagem, caracterização exacerbada e intenção moralizante, podendo conter o cômico. João Grilo é o herói picaresco, passou fome e mente para ganhar o que quer, seu amigo Chicó também é mentiroso. A infidelidade da mulher do padeiro, a mesquinhez deste, o anticlericalismo e o cangaço são analisados por Suassuna num julgamento presidido por Maria, Jesus (negro) e atiçado por uma figura diabólica. No final, numa cena em que ocorre o julgamento dos personagens, João Grilo consegue a absolvição de cinco deles e a sua própria, quando ganha a chance de voltar à vida depois de morto. O teatro pernambucano esteve sempre muito próximo de suas raízes populares, inspirando-se nos romances de cordel e nos espetáculos de feira, formas primitivas de arte muito rica no Nordeste. Também o catolicismo de Suassuna é popular, favorecendo os humildes contra os ricos guiado por uma profunda simpatia cristã pelo fracos e desprotegidos do que por influência política. Dessa forma, no Auto da Compadecida, vemos personagens representando classes sociais que após suas mortes se encontram diante do Diabo e de Deus (Manuel), sendo julgados sobre seus atos em vida. Na tentativa de salvarem-se, o personagem João Grilo pede pela intersessão de Nossa Senhora a fim de obter a salvação. Comparando as obras A partir das teorias abordadas por SANT’ANNA e sua redefinição e dinamização dos conceitos estudados sobre paródia, paráfrase, estilização e apropriação foi possível um estudo de duas obras importantes, assim como apresentar suas semelhanças e sua intertextualidade. Esses conceitos “nos ajudam a esclarecer o enigma do que é ‘literário’ e a entender a formação da ideologia através da linguagem”. (1995, p. 6) Segundo VASSALLO, a produção de Suassuna pode ser colocada como paródica no sentido de canto paralelo que pode ser lida como uma obra erudita em contraponto à cultura popular que a estimula. Mas, por outro lado, Suassuna realiza também um movimento inverso ao cânone europeu, já que neste a cultura popular deforma a oficial, da mesma forma que para o autor paraibano o canto paralelo é a sua criação erudita com base nos moldes populares, não os rebaixando e nem os aviltando, mas sim, transpondo-os nos parâmetros da alta cultura. (1993, p. 66) Segundo CARVALHAL, a literatura comparada, quando colocada como uma atividade crítica, não necessita excluir o histórico, principalmente ao lidar amplamente com dados literários e extraliterários ela fornece à crítica 412 literária, à historiografia literária e à teoria literária uma base fundamental. (1993, p.39) Toda repetição está repleta de uma intencionalidade proposital, pois “quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o re-inventa”. (id., p. 54) E a respeito de literatura comparada e intertextualidade coloca que “todo texto é a absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo menos, como dupla”. (id., p. 50) No Auto da Barca do Inferno, ocorre uma seqüência de quadros em que, estando de um lado um Diabo e de outro um Anjo, defrontam-se com as almas das pessoas recém- mortas que vão embarcar para a eternidade. Em cada um desses quadros, as pessoas representam classes ou grupos sociais. O Fidalgo que leva consigo um pajem para carregar-lhe um rabo (longa cauda da capa) e uma cadeira de espaldar, representa a nobreza exploradora e arrogante; os juízes Corregedor, que carrega consigo muitos processos judiciais e o Procurador carregando seus livros, ambos representam a magistratura corrupta; a Alcoviteira Brísida Vaz, que representa a prostituição; o Sapateiro com seu avental e suas formas, que representam os artesãos, que hoje corresponderiam a um misto de industriais e comerciante; o Onzeneiro levando seu bolsão (onde guardava seu dinheiro), é o usurário, agiota – correspondente aos banqueiros de hoje; o Frade chega com uma jovem pela mão (Florença), traz consigo ainda uma espada na cinta, um broquel (escudo) na outra mão, e um casco (capacete) debaixo do capelo (capuz de frade); o Judeu aprece com um bode às costas simbolizando o judaísmo, que na religião hebraica fazia, o bode, parte dos rituais de sacrifício; o Enforcado, ainda com a corda no pescoço, (que trabalhava com o Tesoureiro da Casa da Moeda de Lisboa, no tempo de Gil Vicente) praticou muitos furtos em vida. Todos tentam ir para a barca do céu, mas o anjo os rejeita, enquanto o Diabo lhes mostra que seu caminho terá de ser o inferno. Dos personagens do auto, temos ainda o Parvo que vem de mãos vazias, só a “Tua simpleza te baste” e finalmente os quatro Cavaleiros que lutaram na Cruzada, cada um trazendo a Cruz de Cristo, absolvidos, pois a luta tinha pretexto religioso. (F. A., apud Gil Vicente, 1996) Da mesma forma, Ariano Suassuna recria seus personagens a partir de pessoas conhecidas, como é o caso do Palhaço inspirado do palhaço Gregório de sua infância em Taperoá (cidade paraibana do Sertão dos Cariris Velhos e epicentro de toda sua produção literária). Suassuna diz que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno. É o Palhaço que anuncia o espetáculo. Na obra, representa o próprio autor, é ele quem faz as apresentações/ anunciações dos atores, dos atos e das cenas quando há mudança de cenário e da representação. Portanto, em sua obra Auto da Compadecida, seus personagens são recriações de pessoas ora familiares, ora pessoas que conheceu. As duas obras são compostas de personagens alegóricos e reais, diante da tradicional oposição entre o bem e o mal, entre a justiça e a misericórdia. A estrutura teatral e os tipos vivos fazem do Auto da Compadecida um exemplo raro da dramaturgia brasileira. Além dos nordestinos, vemos também o tipo bem brasileiro nos personagens, que é o “dar conta do recado” com o famoso “jeitinho” brasileiro. Já os personagens masculinos expressam o tipo “machões”, mas, na verdade, alguns deles são muito medrosos, principalmente quando se envolve a figura de forças superiores. Nas duas obras, observamos que os personagens são verdadeiros arquétipos da vida cotidiana, tipos de caricaturas e caráter do ponto de vista moral destacados por suas tendências exageradas, e assim, criticam os costumes da sociedade e das instituições retratando toda a humanidade, ao que SARAIVA se manifesta 413 dizendo que “Gil Vicente preferiu o retrato vivo da sociedade de seu tempo, através das suas misérias, mas em todos os seus recantos.” (1942, p. 87) Os casos mais extremados de individualização aparecem no Auto da Compadecida. Um representa a própria ordem social – o Major; o outro identifica-se com o processo de singularização pelo pólo negativo, consubstanciado no Cangaceiro”. (VASSALLO, 1993, p. 155) Dos personagens que integram a obra de Suassuna, temos o Palhaço e João Grilo, como já mencionado anteriormente; temos também Chicó, amigo de João Grilo e parceiroem todas as suas artimanhas que não participa do julgamento final, pois permanece vivo; o Padre João, que faz tudo para agradar o Major e tem medo do Bispo que é considerado um grande e temido administrador, assim como o Major Antonio Moraes que representa o excesso de autoridade (latifundiária); o Sacristão, o único merecedor efetivo do reino dos céus, embora seja menosprezado pelo Bispo; o casal de padeiros, extremamente satirizados pelo exagero de traços: a submissão do marido contrastando com a prepotência da mulher, a dedicação da esposa aos animais, suas infidelidades conjugais até mesmo com desclassificados sociais como Chicó, a exploração dos empregados em oposição à superproteção ao cachorro, a evidência de que o casal permanece unido apenas por medo à solidão – o casal de padeiros configuram os maus patrões (é uma crítica à burguesia). Enquanto o Major representa os excessos de autoridade, os cangaceiros representam os de exceção. (id., p. 155-158) A questão social está presente direta ou indiretamente na obra e é sugerida pelo personagem “amarelinho”. No primeiro prólogo do Palhaço vem enfatizado a distinção entre justiça e misericórdia que é retomada nos ensinamentos do terceiro ato. (id., p. 158) No Auto da Barca do Inferno, como já foi dito anteriormente, vemos os personagens serem condenados pela cobiça, avareza, licenciosidade, hipocrisia e, principalmente, pela superficialidade das práticas religiosas. A mesma coisa acontece no Auto da Compadecida, mas, segundo Mongelli (1992), Suassuna mistura nobres e pobres num processo criativo ímpar que, com seu Regionalismo natural, busca as interseções entre o popular e o erudito, misturando a poética aristotélica com romantismo e buscando o êxtase criativo num realismo que alguns intelectuais rotulam de mágico, fantástico. No Auto da Compadecida, após a morte, já diante do Diabo e de Deus, os personagens continuam com os mesmos pensamentos, acreditando terem sido justos em suas vidas e nem mesmo dando conta dos seus atos ilícitos na terra, que só após as palavras sinceras e expertas de João Grilo e seu pedido a Nossa Senhora para interceder por eles, é que cada um vai tentando justificar seus erros e redimirem- se perante Deus (Manuel) e Nossa Senhora. A moral final da peça encontra-se no texto com a advertência moralizante que é muito freqüente no início dos folhetos populares como também na Baixa Idade Média, segundo a qual o homem deve prestar atenção aos seus atos, de modo a preparar-se para o encontro final com a morte, o que remete ao tema do julgamento final, tão marcante em Suassuna, como observado por VASSALLO, relembrando ainda o juízo final dos autos de Gil Vicente. Também a intercessão da Virgem Maria, a Compadecida dos homens e dos personagens de Suassuna, é uma devoção desenvolvida na Europa a partir do século XI. Essa tradição religiosa, própria do sertanejo, pode ter tido sua origem de folhetos que apontam milagres e moralidades, de fonte cultas do teatro cristão de Gil Vicente. (1993, p. 136-137) Paralelamente, ainda, no Auto da Barca do Inferno temos o onzeneiro, condenado pela sua ganância, usura e avareza, e o sapateiro condenado por roubar o povo com seu ofício e por sua falsidade religiosa. No Auto da Compadecida, observamos quanto ao Bispo e ao Padre, o Encourado acusando-os de serem indignos na igreja, mundanos, autoritários, soberbos, simonia, velhacaria, política mundana, arrogância e subserviência com os grandes. Só se interessavam pelo dinheiro. Quanto ao bispo, 414 especificamente sua obrigação era de ser humilde, pois quanto mais alta a função, mais generosidade e virtude requer, disse Manuel. Ainda em relação aos personagens, podemos citar o parvo do Auto da Barca do Inferno, que é um tipo tradicional europeu, às vezes vazado nos moldes de certos pastores “bobos” e que serve, segundo SARAIVA, para exprimir alguns dos mais reservados pensamentos vicentinos (1942, p. 205-206). O parvo não pode ser responsabilizado pelos seus atos e é salvo de ir par o inferno devido à sua humildade e modéstia, por ser considerado ingênuo, bobo, desprovido de maldade e qualquer bem material. Podemos, no Auto da Compadecida, relacionar o Parvo com o Sacristão, pois é considerado como um imbecil. Mas é possível traçar um paralelo ainda maior, do parvo com o personagem João Grilo, que, apesar de esperto, trapaceiro, astuto e fraudulento, é também humilde, passou fome, pobre em vida provou sua sinceridade exibindo seu pensamento quando demonstra seu espanto diante da aparição de um Jesus negro. João Grilo, não era totalmente responsabilizado por seus atos devido a sua condição e sua luta para a sobrevivência. A fé que tem em suas próprias artimanhas, enraizada na sua crença na Compadecida que lhe dá proteção e finalmente o salva, recebendo a oportunidade da ressurreição. Ainda prosseguindo em uma comparação com o Parvo de Gil Vicente, podemos ver que para os cangaceiros do auto de Suassuna, não é necessário haver nem mesmo a interseção de Nossa Senhora que, segundo Almir de Freitas, são “personagens deslocados numa farsa que tem em mira a hipocrisia, não o mal em si”. Assim Severino e o “cabra”, apesar de terem matado mais de trinta homens, são absolvidos por que não sabiam o que faziam. Além de resolver o seu problema diante de Deus e da Compadecida ainda pede a salvação do Bispo, do Padre, do sacristão, do padeiro e sua mulher, perdoando-lhes pelas injustiças praticadas em vida, assim em vez do inferno, eles vão para o purgatório. VASSALLO diz que no Auto da Barca do Inferno: “há um julgamento informal, com carnavalização da justiça, pois os envolvidos querem ‘dar um jeitinho’ para se beneficiar. Ou seja, tentam personalizar as situações, de modo a escapar sempre às normas gerais”. (1993, p. 152) Podemos ainda ver em Suassuna mais uma intertextualidade com Gil Vicente. O personagem Joane, o Parvo do Auto da Barca do Inferno, desempenha uma papel importante, pois ao sentar-se aos pés do Anjo além de descompor indiretamente o Diabo e os condenados, ele também contribui com a ligação das cenas separadas entre si. Isso nos remete ao Auto da Compadecida, no qual temos o Palhaço, que também faz as ligações entre as cenas. Conclusão Apesar de os autos terem sido escritos em épocas tão distantes, pudemos perceber o quanto seus personagens se entrelaçam para construir significados semelhantes em suas situações, motivos e, principalmente, nos temas. Os personagens das obras representam, simbolicamente, o homem de várias épocas, fazendo um retrato vivo de toda uma sociedade por meio de suas misérias. Gil Vicente faz do retrato vivido dessa sociedade uma advertência e lição edificante, indicando, ao mesmo tempo, os pecados que a afastam da salvação. Já Ariano Suassuna faz um retrato da realidade brasileira, especificamente a nordestina, com suas crenças e a literatura de cordel, na tentativa de moralizar os homens. A partir da análise dos personagens, observamos todas as semelhanças existentes entre elas e a sua constante intertextualidade. Verdadeiros arquétipos da vida cotidiana, são tipos de caricaturas destacados por seu exagero que criticam os costumes da sociedade e das instituições. A moralidade em Gil Vicente é elaborada a partir de abstrações e trata do eterno conflito entre o Bem e o Mal. O mundo é visto de forma carnavalesca, isto é, ambivalente, destruidor, renovador. Assim com a ordem hierárquica é 415 quebrada, assinalando que diante da justiça divina os título e as honrarias da vida material nada valem. Da mesma forma, em Suassuna, o enfrentamento entre Deus e o Diabo, que é tão freqüente na literatura popular e nos julgamentos do autor, que termina sempre maniqueisticamente pela vitória do Bem. E presente na obra a crítica de Gil Vicente em relação àqueles que, em nome da igreja, só praticaram ações exteriores à religião, uma vez que todos os personagens foram condenados ao inferno. As únicas exceções foram Joane, o Parvo, devido à sua inocência e por não pecar por malícia, e os quatro Cavaleirosdas Cruzadas, que morreram lutando contra os mouros defendendo a igreja católica. Podemos perceber, em Ariano Suassuna, que ele aproximou suas recordações da cidade paraibana de Taperoá à das criações cômicas do teatro cristão em integração com o povo nordestino. Dessa homogeneidade saem o hibridismo e a originalidade do seu teatro, que segundo CARVALHAL, o tom essencialmente jogralesco é ressaltado na moralidade final, que corresponde à hora da morte de um cristão que acredita na vinda da verdadeira justiça. Os personagens de Suassuna, assim com os de Gil Vicente, são alegóricos e caricaturais. Referências Bibliográficas CARVALHAL, T. F. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1998. Série Princípios. COSTA, D. P. Gil Vicente e sua época. Lisboa: Guimarães Editores, 1989. COUTINHO, A. A Literatura no Brasil: Relações e Perspectivas - Conclusão. São Paulo: Global, 1997. LUCAS, J. A. Breve sumário da história de Deus de Gil Vicente. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1943 (Clássicos Portugueses – Trechos Escolhidos - Século XVI - Teatro) MASSAUD, M. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1999. SANT’ANNA, A. R. Paródia, Paráfrase e Cia. 5. ed. São Paulo: Ática, 1995. Série Princípios. SARAIVA, A. J. Gil Vicente e o fim do Teatro Medieval. Lisboa: União Gráfica, 1942. SARAIVA, A. J.; LOPES, O. História da Literatura Portuguesa. Porto: Editora Porto, 1975. SPINA, S. Presença da Literatura Portuguesa: Era Medieval. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1991. SUASSUNA, A. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir Editora, 2004. VASCONCELOS, C. M. Notas Vicentinas: preliminares duma edição crítica das obras de Gil Vicente NOTAS/ aV incluindo a introdução à edição fascimilada do centro de estudos históricos, de Madrid. Lisboa: Edição da revista “Ocidente”, 1949. VASSALO, L. O Sertão Medieval: Origens Européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1993. VICENTE, G. Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Editora Martin Claret, 2001. VICENTE, G., 1965-1937. Obras primas do teatro vicentino. Introdução organização e comentários de Segismundo Spina. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. Editora da Universidade de São Paulo, 1970. VICENTE, G. O velho da horta, Auto da Barca do Inferno, Farsa de Inês Pereira. Introdução e Estabelecimento do Texto: Segismundo Spina. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. ruma_leitura_409-415
Compartilhar