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Uma leitura comparativa entre Auto da Barca do Inferno, de Gil

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409
Uma leitura comparativa entre Auto da Barca do Inferno, de Gil
Vicente e Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna
Autora: Laudicéia Aparecida Gildo
Professora Orientadora: Ms. Andressa Cristina de Oliveira*
Centro Universitário Anhanguera - Câmpus Pirassununga
Resumo
Gil Vicente é considerado o ‘pai do teatro
português’. Suas peças são classificadas em
cinco categorias: peças de devoção, comédias,
tragicomédias, farsas e composições menores de
assunto variado. Ele compôs autos pastoris,
autos de moralidade, farsas, autos cavaleirescos
e alegorias de tema profano ou fantasias
alegóricas. Na obra Auto da Barca do Inferno,
Gil Vicente representa a sociedade de seu tempo,
que é, também, a espectadora de sua própria
representação, fazendo com que seu retrato
valha como uma advertência e lição edificante,
indicando, ao mesmo tempo os pecados que a
afastam da salvação. Ariano Suassuna escreveu
o Auto da Compadecida em 1955, peça que o
projetou em todo o país e que seria considerada,
em 1962, ‘o texto mas popular do moderno
teatro brasileiro. Em ambos os autos, os
personagens são recriações de pessoas
conhecidas ou familiares dos autores. Nessas
peças, os personagens estruturam-se como
alegorias ou tipos reais caricaturados, com o
Gil Vicente e a obra Auto da Barca do Inferno
propósito de sátira social. No Auto da Barca do
Inferno, vemos os personagens serem
condenados pela cobiça, avareza, licenciosidade,
hipocrisia e, principalmente, pela superficialidade
das práticas religiosas. A mesma coisa acontece
no Auto da Compadecida, mas Suassuna mistura
nobres e pobres em um processo criativo ímpar
que, com seu regionalismo natural, busca as
intersecções entre o popular e o erudito. Por meio
dos conceitos de paródia, paráfrase, estilização,
intertextualidade, desvio e apropriação,
propomos uma leitura comparada entre dois
autos de épocas tão distintas, mas que, em sua
análise de estruturas e temas presentes, revelam
que seus motivos e temas são de interesse
atemporal, isto é, concernem ao homem de várias
épocas, fazendo, assim, um retrato vivo da
sociedade por meio de suas misérias.
Palavras-chave: Literatura, estudo das
obras, leitura comparativa das obras.
* Bolsista
FUNADESP
Pouco se sabe a respeito da vida de Gil
Vicente. Português, nasceu sob o reinado de D.
Afonso V (1438-1481) por volta de 1465,
presenciando os reinados de D. João II (1481-
1495) e D. Manuel I (1495-1521), e morreu,
talvez em Guimarães, em meados do reinado de
D. João III (1521-1557) entre 1536 e 1540.
De seu ofício de ourives da Rainha D. Leonor,
identificação esta ainda problemática devido ao
seu contemporâneo homônimo, bem como de
sua formação intelectual, também pouco se sabe.
Sua obra revela, todavia, a aquisição de uma
cultura feita em alguma universidade da época,
tal a boa soma dos seus tradição dramática
anterior a ele, Gil Vicente volta-se para a
experiência espanhola de Juan del Encina
aproveitando sugestões no início de seu teatro
pastoril, que supera logo depois devido a sua
extraordinária vocação poética e sua apreciável
formação intelectual. (SPINA, 1991)
conhecimentos, sobretudo teológicos e
filosóficos. Encenou sua primeira sua primeira
peça, Monólogo do Vaqueiro ou Auto da
Visitação, em 1502, sob a proteção da Rainha
D. Leonor. Foi, ao mesmo tempo, autor, diretor
e ator de muitos de seus textos teatrais. Vivendo
em pleno apogeu do Império Português
renascentista, Gil Vicente tem seus olhos dirigidos
410
para a decadência que já tomava vulto, e o seu
coração voltado para a antiga sociedade
medieval, que ele imaginava estável e bem
regrada. Não há notícias de autores portugueses
de teatro antes dele, por isso, é considerado o
‘pai do teatro português’.
A sua autonomia intelectual, a ortodoxia
das suas idéias religiosas e a coragem expressa
no seu teatro de crítica social explicam o
parentesco do seu ideário com o pensamento
reformista do tempo; explicam, também, o
prestígio de que gozou na corte, onde a proteção
da Rainha Velha D. Leonor, viúva de D. João II,
e, em seguida, a do próprio rei D. João III,
mantiveram o esplendor do teatro vicentino
durante 34 anos.
Suas peças são classificadas em cinco
categorias: peças de devoção, comédias,
tragicomédias, farsas e composições menores de
assunto variado. Quanto aos gêneros, vemos,
com SARAIVA e LOPES (1975), que Gil
Vicente compôs autos pastoris, autos de
moralidade, farsas, autos cavaleirescos e
alegorias de tema profano ou fantasias alegóricas.
Com a obra Auto da Barca do Inferno,
um auto de moralidade que é a primeira peça a
compor a Trilogia das Barcas, Gil Vicente
representa a sociedade de seu tempo, que é,
também, a espectadora de sua própria
representação, fazendo com que seu retrato
valha como uma advertência e lição edificante,
indicando, ao mesmo tempo, os pecados que a
afastam da salvação.
Caracterizado como Auto de
Moralidade, encontramos o teatro religioso que
resume a teoria teológica da Redenção, peças
sob a forma alegórica nos dão um ensinamento
religioso ou moral onde alguns personagens são
castigados enquanto outros são premiados. Estas
peças estruturam-se como alegorias ou tipos
reais caricaturados que as vezes o esquema
alegórico religioso parece oferecer um pretexto,
um quadro exterior para a apresentação no palco
de sátiras ou caricaturas profanas, como
acontece no Auto da Barca do Inferno, cujo
propósito de sátira social predomina sobre o de
edificação religiosa. (SARAIVA E LOPES,
1975). Temos, então, nesta peça, uma seqüência
de quadros em que vemos um Diabo e um Anjo
a defrontarem-se com as almas das pessoas
recém-mortas que vão embarcar para a
eternidade, em cada um desses quadros, as
pessoas representam classes ou grupos sociais.
Para eles o problema não existe, pois,
após a morte conservam a sua maneira de ser
típica: o Fidalgo quer levar a cadeira, o Judeu o
bode, o Frade a manceba, etc. Apesar de
nenhum deles pensar em deixar de ser o que é,
todos tentam ir para a barca do céu, mas o anjo
os rejeita, enquanto o Diabo lhes mostra que o
caminho terá de ser o inferno. Os únicos a
merecerem a Barca da Glória são o parvo,
devido à sua irresponsabilidade e pobreza de
espírito e os quatro cavaleiros, devido ao ideal
de cristianização que os leva ao martírio.
Segundo MONGELLI (1992), todos os outros
personagens, um fidalgo, um onzeneiro, em
sapateiro, um frade com sua dama, uma
alcoviteira, um judeu, um corregedor, um
procurador e um enforcado, são condenados,
acima de tudo, pela cobiça, avareza,
licenciosidade e hipocrisia. A crítica se faz,
principalmente, pela superficialidade da prática
religiosa. “E a nota cômica é assegurada pelo
parvo, que mesmo de embarcado rumo a Glória,
continua a zombar de diabos e condenados,
corroborando a idéia de que o riso não é
incompatível com o sagrado”. (1992, p. 178)
Ariano Suassuna e a obra Auto da
Compadecida
A infância passada no sertão familiarizou
o futuro escritor e dramaturgo com os temas e
as formas de expressão artística que viriam mais
tarde constituir seu universo ficcional ou, como
ele próprio o denomina, seu “mundo mítico”. Não
só as estórias e casos narrados e cantados em
prosa e verso foram aproveitados como suporte
na formação de suas peças, poemas e romances,
mas também as próprias formas da narrativa oral
e da poesia sertaneja foram assimiladas e
reelaboradas por Suassuna.
Foi o Teatro Adolescente do Recife que
lançou Ariano Suassuna no Rio de Janeiro
quando apresentou o Auto da Compadecida
411
(1956) no I Festival Nacional de Teatro Amador,
obtendo o primeiro prêmio.
Entre 1958-79, dedicou-se também à
prosa de ficção, publicando o Romance d’A
Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do
Vai-e-Volta (1971), em que foi homenageado
com o Prêmio Nacional de Ficção conferido em
1972 pelo Instituto Nacional do Livro; e história
d’O rei degolado nas caatingas do serão/Ao
sol da onça Caetana (1976), classificados por
ele de “romance armorial-popular brasileiro”.
O Auto da Compadecida, obra publicada
em 1955, é a peça mais festejada de Ariano
Suassuna. Escrita em prosa, é tambémaquela
que, tanto pelo aspecto religioso quanto pelo
temático, tem suas raízes na tradição cultural do
Ocidente. Suas matrizes são folhetos populares.
O primeiro ato se baseia em O enterro do
cachorro, fragmento de O dinheiro, de Leandro
Gomes de Barros; o segundo também do mesmo
autor, na História do cavalo que defecava
dinheiro; o terceiro engloba O castigo da
soberba, de Anselmo Vieira de Souza, e A
peleja da Alma, de Silvino Pirauá Lima. Ainda
d’O castigo da soberba vem a cantiga de
Canário Pardo apontada por Leonardo Mota
(1955) utilizada como invocação de João Grilo
a Maria, assim como o nome Compadecida e a
estrofe com que o Palhaço encerra o espetáculo
pedindo dinheiro. (VASSALO, 1993).
Como a própria denominação de “auto”
já traz, refere-se ao teatro medieval de alegorias
(pecado, virtude, etc.) e personagens como
santos e demônios. É um teatro de construção
simples, ingenuidade na linguagem, caracterização
exacerbada e intenção moralizante, podendo
conter o cômico. João Grilo é o herói picaresco,
passou fome e mente para ganhar o que quer,
seu amigo Chicó também é mentiroso. A
infidelidade da mulher do padeiro, a mesquinhez
deste, o anticlericalismo e o cangaço são
analisados por Suassuna num julgamento
presidido por Maria, Jesus (negro) e atiçado por
uma figura diabólica. No final, numa cena em
que ocorre o julgamento dos personagens, João
Grilo consegue a absolvição de cinco deles e a
sua própria, quando ganha a chance de voltar à
vida depois de morto.
O teatro pernambucano esteve sempre
muito próximo de suas raízes populares,
inspirando-se nos romances de cordel e nos
espetáculos de feira, formas primitivas de arte
muito rica no Nordeste. Também o catolicismo
de Suassuna é popular, favorecendo os humildes
contra os ricos guiado por uma profunda simpatia
cristã pelo fracos e desprotegidos do que por
influência política.
Dessa forma, no Auto da Compadecida,
vemos personagens representando classes
sociais que após suas mortes se encontram diante
do Diabo e de Deus (Manuel), sendo julgados
sobre seus atos em vida. Na tentativa de
salvarem-se, o personagem João Grilo pede pela
intersessão de Nossa Senhora a fim de obter a
salvação.
Comparando as obras
A partir das teorias abordadas por
SANT’ANNA e sua redefinição e dinamização
dos conceitos estudados sobre paródia,
paráfrase, estilização e apropriação foi possível
um estudo de duas obras importantes, assim
como apresentar suas semelhanças e sua
intertextualidade. Esses conceitos “nos ajudam
a esclarecer o enigma do que é ‘literário’ e a
entender a formação da ideologia através da
linguagem”. (1995, p. 6)
Segundo VASSALLO, a produção de
Suassuna pode ser colocada como paródica no
sentido de canto paralelo que pode ser lida como
uma obra erudita em contraponto à cultura
popular que a estimula. Mas, por outro lado,
Suassuna realiza também um movimento inverso
ao cânone europeu, já que neste a cultura popular
deforma a oficial, da mesma forma que para o
autor paraibano o canto paralelo é a sua criação
erudita com base nos moldes populares, não os
rebaixando e nem os aviltando, mas sim,
transpondo-os nos parâmetros da alta cultura.
(1993, p. 66)
Segundo CARVALHAL, a literatura
comparada, quando colocada como uma
atividade crítica, não necessita excluir o histórico,
principalmente ao lidar amplamente com dados
literários e extraliterários ela fornece à crítica
412
literária, à historiografia literária e à teoria literária
uma base fundamental. (1993, p.39)
Toda repetição está repleta de uma
intencionalidade proposital, pois “quer dar
continuidade ou quer modificar, quer subverter,
enfim, quer atuar com relação ao texto
antecessor. A verdade é que a repetição, quando
acontece, sacode a poeira do texto anterior,
atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o
re-inventa”. (id., p. 54)
E a respeito de literatura comparada e
intertextualidade coloca que “todo texto é a
absorção e transformação de outro texto. Em
lugar da noção de intersubjetividade, se instala a
de intertextualidade, e a linguagem poética se lê,
pelo menos, como dupla”. (id., p. 50)
No Auto da Barca do Inferno, ocorre
uma seqüência de quadros em que, estando de
um lado um Diabo e de outro um Anjo,
defrontam-se com as almas das pessoas recém-
mortas que vão embarcar para a eternidade. Em
cada um desses quadros, as pessoas
representam classes ou grupos sociais. O Fidalgo
que leva consigo um pajem para carregar-lhe um
rabo (longa cauda da capa) e uma cadeira de
espaldar, representa a nobreza exploradora e
arrogante; os juízes Corregedor, que carrega
consigo muitos processos judiciais e o
Procurador carregando seus livros, ambos
representam a magistratura corrupta; a Alcoviteira
Brísida Vaz, que representa a prostituição; o
Sapateiro com seu avental e suas formas, que
representam os artesãos, que hoje
corresponderiam a um misto de industriais e
comerciante; o Onzeneiro levando seu bolsão
(onde guardava seu dinheiro), é o usurário, agiota
– correspondente aos banqueiros de hoje; o
Frade chega com uma jovem pela mão
(Florença), traz consigo ainda uma espada na
cinta, um broquel (escudo) na outra mão, e um
casco (capacete) debaixo do capelo (capuz de
frade); o Judeu aprece com um bode às costas
simbolizando o judaísmo, que na religião hebraica
fazia, o bode, parte dos rituais de sacrifício; o
Enforcado, ainda com a corda no pescoço, (que
trabalhava com o Tesoureiro da Casa da Moeda
de Lisboa, no tempo de Gil Vicente) praticou
muitos furtos em vida. Todos tentam ir para a
barca do céu, mas o anjo os rejeita, enquanto o
Diabo lhes mostra que seu caminho terá de ser
o inferno. Dos personagens do auto, temos ainda
o Parvo que vem de mãos vazias, só a “Tua
simpleza te baste” e finalmente os quatro
Cavaleiros que lutaram na Cruzada, cada um
trazendo a Cruz de Cristo, absolvidos, pois a
luta tinha pretexto religioso. (F. A., apud Gil
Vicente, 1996)
Da mesma forma, Ariano Suassuna recria
seus personagens a partir de pessoas conhecidas,
como é o caso do Palhaço inspirado do palhaço
Gregório de sua infância em Taperoá (cidade
paraibana do Sertão dos Cariris Velhos e
epicentro de toda sua produção literária).
Suassuna diz que seu teatro é mais aproximado
dos espetáculos de circo e da tradição popular
do que do teatro moderno. É o Palhaço que
anuncia o espetáculo. Na obra, representa o
próprio autor, é ele quem faz as apresentações/
anunciações dos atores, dos atos e das cenas
quando há mudança de cenário e da
representação.
Portanto, em sua obra Auto da
Compadecida, seus personagens são recriações
de pessoas ora familiares, ora pessoas que
conheceu.
As duas obras são compostas de
personagens alegóricos e reais, diante da
tradicional oposição entre o bem e o mal, entre
a justiça e a misericórdia.
A estrutura teatral e os tipos vivos fazem
do Auto da Compadecida um exemplo raro da
dramaturgia brasileira. Além dos nordestinos,
vemos também o tipo bem brasileiro nos
personagens, que é o “dar conta do recado” com
o famoso “jeitinho” brasileiro. Já os personagens
masculinos expressam o tipo “machões”, mas,
na verdade, alguns deles são muito medrosos,
principalmente quando se envolve a figura de
forças superiores.
Nas duas obras, observamos que os
personagens são verdadeiros arquétipos da vida
cotidiana, tipos de caricaturas e caráter do ponto
de vista moral destacados por suas tendências
exageradas, e assim, criticam os costumes da
sociedade e das instituições retratando toda a
humanidade, ao que SARAIVA se manifesta
413
dizendo que “Gil Vicente preferiu o retrato vivo
da sociedade de seu tempo, através das suas
misérias, mas em todos os seus recantos.” (1942,
p. 87)
Os casos mais extremados de
individualização aparecem no Auto da
Compadecida. Um representa a própria ordem
social – o Major; o outro identifica-se com o
processo de singularização pelo pólo negativo,
consubstanciado no Cangaceiro”.
(VASSALLO, 1993, p. 155)
Dos personagens que integram a obra de
Suassuna, temos o Palhaço e João Grilo, como
já mencionado anteriormente; temos também
Chicó, amigo de João Grilo e parceiroem todas
as suas artimanhas que não participa do
julgamento final, pois permanece vivo; o Padre
João, que faz tudo para agradar o Major e tem
medo do Bispo que é considerado um grande e
temido administrador, assim como o Major
Antonio Moraes que representa o excesso de
autoridade (latifundiária); o Sacristão, o único
merecedor efetivo do reino dos céus, embora
seja menosprezado pelo Bispo; o casal de
padeiros, extremamente satirizados pelo exagero
de traços: a submissão do marido contrastando
com a prepotência da mulher, a dedicação da
esposa aos animais, suas infidelidades conjugais
até mesmo com desclassificados sociais como
Chicó, a exploração dos empregados em
oposição à superproteção ao cachorro, a
evidência de que o casal permanece unido
apenas por medo à solidão – o casal de padeiros
configuram os maus patrões (é uma crítica à
burguesia). Enquanto o Major representa os
excessos de autoridade, os cangaceiros
representam os de exceção. (id., p. 155-158)
A questão social está presente direta ou
indiretamente na obra e é sugerida pelo
personagem “amarelinho”. No primeiro prólogo
do Palhaço vem enfatizado a distinção entre
justiça e misericórdia que é retomada nos
ensinamentos do terceiro ato. (id., p. 158)
No Auto da Barca do Inferno, como já
foi dito anteriormente, vemos os personagens
serem condenados pela cobiça, avareza,
licenciosidade, hipocrisia e, principalmente, pela
superficialidade das práticas religiosas. A mesma
coisa acontece no Auto da Compadecida, mas,
segundo Mongelli (1992), Suassuna mistura
nobres e pobres num processo criativo ímpar que,
com seu Regionalismo natural, busca as
interseções entre o popular e o erudito,
misturando a poética aristotélica com romantismo
e buscando o êxtase criativo num realismo que
alguns intelectuais rotulam de mágico, fantástico.
No Auto da Compadecida, após a morte,
já diante do Diabo e de Deus, os personagens
continuam com os mesmos pensamentos,
acreditando terem sido justos em suas vidas e
nem mesmo dando conta dos seus atos ilícitos
na terra, que só após as palavras sinceras e
expertas de João Grilo e seu pedido a Nossa
Senhora para interceder por eles, é que cada
um vai tentando justificar seus erros e redimirem-
se perante Deus (Manuel) e Nossa Senhora.
A moral final da peça encontra-se no texto
com a advertência moralizante que é muito
freqüente no início dos folhetos populares como
também na Baixa Idade Média, segundo a qual
o homem deve prestar atenção aos seus atos,
de modo a preparar-se para o encontro final com
a morte, o que remete ao tema do julgamento
final, tão marcante em Suassuna, como
observado por VASSALLO, relembrando ainda
o juízo final dos autos de Gil Vicente. Também a
intercessão da Virgem Maria, a Compadecida
dos homens e dos personagens de Suassuna, é
uma devoção desenvolvida na Europa a partir
do século XI. Essa tradição religiosa, própria do
sertanejo, pode ter tido sua origem de folhetos
que apontam milagres e moralidades, de fonte
cultas do teatro cristão de Gil Vicente. (1993, p.
136-137)
Paralelamente, ainda, no Auto da Barca
do Inferno temos o onzeneiro, condenado pela
sua ganância, usura e avareza, e o sapateiro
condenado por roubar o povo com seu ofício e
por sua falsidade religiosa.
 No Auto da Compadecida, observamos
quanto ao Bispo e ao Padre, o Encourado
acusando-os de serem indignos na igreja,
mundanos, autoritários, soberbos, simonia,
velhacaria, política mundana, arrogância e
subserviência com os grandes. Só se
interessavam pelo dinheiro. Quanto ao bispo,
414
especificamente sua obrigação era de ser
humilde, pois quanto mais alta a função, mais
generosidade e virtude requer, disse Manuel.
Ainda em relação aos personagens,
podemos citar o parvo do Auto da Barca do
Inferno, que é um tipo tradicional europeu, às
vezes vazado nos moldes de certos pastores
“bobos” e que serve, segundo SARAIVA, para
exprimir alguns dos mais reservados
pensamentos vicentinos (1942, p. 205-206). O
parvo não pode ser responsabilizado pelos seus
atos e é salvo de ir par o inferno devido à sua
humildade e modéstia, por ser considerado
ingênuo, bobo, desprovido de maldade e
qualquer bem material.
Podemos, no Auto da Compadecida,
relacionar o Parvo com o Sacristão, pois é
considerado como um imbecil. Mas é possível
traçar um paralelo ainda maior, do parvo com o
personagem João Grilo, que, apesar de esperto,
trapaceiro, astuto e fraudulento, é também
humilde, passou fome, pobre em vida provou
sua sinceridade exibindo seu pensamento quando
demonstra seu espanto diante da aparição de
um Jesus negro. João Grilo, não era totalmente
responsabilizado por seus atos devido a sua
condição e sua luta para a sobrevivência. A fé
que tem em suas próprias artimanhas, enraizada
na sua crença na Compadecida que lhe dá
proteção e finalmente o salva, recebendo a
oportunidade da ressurreição.
Ainda prosseguindo em uma comparação
com o Parvo de Gil Vicente, podemos ver que
para os cangaceiros do auto de Suassuna, não é
necessário haver nem mesmo a interseção de
Nossa Senhora que, segundo Almir de Freitas,
são “personagens deslocados numa farsa que
tem em mira a hipocrisia, não o mal em si”. Assim
Severino e o “cabra”, apesar de terem matado
mais de trinta homens, são absolvidos por que
não sabiam o que faziam.
Além de resolver o seu problema diante
de Deus e da Compadecida ainda pede a
salvação do Bispo, do Padre, do sacristão, do
padeiro e sua mulher, perdoando-lhes pelas
injustiças praticadas em vida, assim em vez do
inferno, eles vão para o purgatório.
VASSALLO diz que no Auto da Barca
do Inferno: “há um julgamento informal, com
carnavalização da justiça, pois os envolvidos
querem ‘dar um jeitinho’ para se beneficiar. Ou
seja, tentam personalizar as situações, de modo
a escapar sempre às normas gerais”. (1993, p.
152)
Podemos ainda ver em Suassuna mais uma
intertextualidade com Gil Vicente. O personagem
Joane, o Parvo do Auto da Barca do Inferno,
desempenha uma papel importante, pois ao
sentar-se aos pés do Anjo além de descompor
indiretamente o Diabo e os condenados, ele
também contribui com a ligação das cenas
separadas entre si. Isso nos remete ao Auto da
Compadecida, no qual temos o Palhaço, que
também faz as ligações entre as cenas.
Conclusão
Apesar de os autos terem sido escritos
em épocas tão distantes, pudemos perceber o
quanto seus personagens se entrelaçam para
construir significados semelhantes em suas
situações, motivos e, principalmente, nos temas.
Os personagens das obras representam,
simbolicamente, o homem de várias épocas,
fazendo um retrato vivo de toda uma sociedade
por meio de suas misérias.
Gil Vicente faz do retrato vivido dessa
sociedade uma advertência e lição edificante,
indicando, ao mesmo tempo, os pecados que a
afastam da salvação.
Já Ariano Suassuna faz um retrato da
realidade brasileira, especificamente a
nordestina, com suas crenças e a literatura de
cordel, na tentativa de moralizar os homens.
A partir da análise dos personagens,
observamos todas as semelhanças existentes
entre elas e a sua constante intertextualidade.
Verdadeiros arquétipos da vida cotidiana, são
tipos de caricaturas destacados por seu exagero
que criticam os costumes da sociedade e das
instituições.
A moralidade em Gil Vicente é elaborada
a partir de abstrações e trata do eterno conflito
entre o Bem e o Mal. O mundo é visto de forma
carnavalesca, isto é, ambivalente, destruidor,
renovador. Assim com a ordem hierárquica é
415
quebrada, assinalando que diante da justiça
divina os título e as honrarias da vida material
nada valem.
Da mesma forma, em Suassuna, o
enfrentamento entre Deus e o Diabo, que é tão
freqüente na literatura popular e nos julgamentos
do autor, que termina sempre maniqueisticamente
pela vitória do Bem.
E presente na obra a crítica de Gil Vicente
em relação àqueles que, em nome da igreja, só
praticaram ações exteriores à religião, uma vez
que todos os personagens foram condenados
ao inferno. As únicas exceções foram Joane, o
Parvo, devido à sua inocência e por não pecar
por malícia, e os quatro Cavaleirosdas
Cruzadas, que morreram lutando contra os
mouros defendendo a igreja católica.
Podemos perceber, em Ariano Suassuna,
que ele aproximou suas recordações da cidade
paraibana de Taperoá à das criações cômicas
do teatro cristão em integração com o povo
nordestino. Dessa homogeneidade saem o
hibridismo e a originalidade do seu teatro, que
segundo CARVALHAL, o tom essencialmente
jogralesco é ressaltado na moralidade final, que
corresponde à hora da morte de um cristão que
acredita na vinda da verdadeira justiça.
Os personagens de Suassuna, assim com
os de Gil Vicente, são alegóricos e caricaturais.
Referências Bibliográficas
CARVALHAL, T. F. Literatura Comparada. São Paulo:
Ática, 1998. Série Princípios.
COSTA, D. P. Gil Vicente e sua época. Lisboa:
Guimarães Editores, 1989.
COUTINHO, A. A Literatura no Brasil: Relações e
Perspectivas - Conclusão. São Paulo: Global, 1997.
LUCAS, J. A. Breve sumário da história de Deus de
Gil Vicente. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1943
(Clássicos Portugueses – Trechos Escolhidos - Século
XVI - Teatro)
MASSAUD, M. A literatura portuguesa. São Paulo:
Cultrix, 1999.
SANT’ANNA, A. R. Paródia, Paráfrase e Cia. 5. ed.
São Paulo: Ática, 1995. Série Princípios.
SARAIVA, A. J. Gil Vicente e o fim do Teatro
Medieval. Lisboa: União Gráfica, 1942.
SARAIVA, A. J.; LOPES, O. História da Literatura
Portuguesa. Porto: Editora Porto, 1975.
SPINA, S. Presença da Literatura Portuguesa: Era
Medieval. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1991.
SUASSUNA, A. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro:
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VASCONCELOS, C. M. Notas Vicentinas: preliminares
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VASSALO, L. O Sertão Medieval: Origens Européias
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VICENTE, G. Auto da Barca do Inferno. São Paulo:
Editora Martin Claret, 2001.
VICENTE, G., 1965-1937. Obras primas do teatro
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Estabelecimento do Texto: Segismundo Spina. 13. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1982.
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