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AN02FREV001/REV 4.0 66 PROGRAMA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA A DISTÂNCIA Portal Educação CURSO DE QUÍMICA FARMACÊUTICA Aluno: EaD - Educação a Distância Portal Educação AN02FREV001/REV 4.0 67 CURSO DE QUÍMICA FARMACÊUTICA MÓDULO II Atenção: O material deste módulo está disponível apenas como parâmetro de estudos para este Programa de Educação Continuada. É proibida qualquer forma de comercialização ou distribuição do mesmo sem a autorização expressa do Portal Educação. Os créditos do conteúdo aqui contido são dados aos seus respectivos autores descritos nas Referências Bibliográficas. AN02FREV001/REV 4.0 68 MÓDULO II 14 FÁRMACOS ESTRUTURALMENTE INESPECÍFICOS Como visto no módulo I, os fármacos estruturalmente inespecíficos são fármacos que dependem exclusivamente de suas propriedades físico-químicas como o coeficiente de partição e o coeficiente de ionização para promoverem o efeito farmacológico. No módulo I vimos um exemplo clássico desses fármacos, os anestésicos gerais, em que a potência dessa classe de fármacos está diretamente relacionada com a sua lipossolubilidade. Há casos em que a alteração das propriedades físico-químicas decorrentes de modificações estruturais de uma molécula pode alterar seu modo de interação com a biomacromolécula. Podemos exemplificar este fato, destacando a classe dos anticonvulsivantes, onde pentobarbital (a) é estruturalmente específico sobre o receptor ionotrópico GABA. Porém, uma simples substituição de um átomo de oxigênio por um átomo de enxofre produz o tiopental (b), cuja lipossolubilidade é maior e tem ação anestésica inespecífica (Figura 45). AN02FREV001/REV 4.0 69 FIGURA 45 – ESTRUTURA QUÍMICA DO PENTOBARBITAL (A) E DO TIOPENTAL (B), MOSTRANDO A INFLUÊNCIA DA MODIFICAÇÃO ESTRUTURAL NA AÇÃO DOS FÁRMACOS FONTE: (BARREIRO e FRAGA, 2008). 15 PROPRIEDADES FÍSICO-QUÍMICAS E ATIVIDADE BIOLÓGICA As propriedades físico-químicas de determinados grupamentos funcionais são fundamentais na fase farmacodinâmica da ação dos fármacos, etapa essa, de reconhecimento molecular, uma vez que a afinidade de um fármaco por seu receptor depende do somatório das forças de interação dos grupamentos farmacofóricos com sítios complementares do sítio receptor. A fase farmacocinética, de absorção, distribuição, metabolização e excreção, apresentam resultados diretos sobre a biodisponibilidade e no tempo de meia-vida (t 1/2) do fármaco na biofase, também pode ser afetada de forma drástica pela variação das propriedades físico-químicas de um fármaco. As principais propriedades físico-químicas de uma micromolécula capazes de alterar o perfil farmacoterapêutico são: (b) (a) AN02FREV001/REV 4.0 70 Coeficiente de partição – expressa a lipofilicidade relativa das moléculas. Coeficiente de ionização – expresso pelo valor de pKa, que traduz o grau de contribuição relativa de espécies ionizada e não ionizada. 16 COEFICIENTE DE PARTIÇÃO E EQUAÇÃO DE HANSCH Lipossolubilidade (Log P) é conceituada como o coeficiente de partição de uma substância entre uma fase orgânica e uma fase aquosa, isto é, a razão entre a concentração de fármaco que tende a ficar na fase orgânica e a concentração de fármaco que tende a permanecer na fase aquosa em um modelo de dois compartimentos (Figura 46). Este modelo mimetiza o que ocorre no organismo, dando a informação sobre o perfil de afinidade do fármaco ao óleo (octanol) ou a água. AN02FREV001/REV 4.0 71 FIGURA 46 Modelo de dois compartimentos, com ênfase para a estrutura do octanol, constituinte da fase orgânica (com estrutura semelhante a um fosfolipídeo). FONTE: (Adaptado de BARREIRO e FRAGA, 2008). Lipossolubilidade é a razão entre a concentração de fármaco na fase orgânica e concentração de fármaco na fase aquosa (lipossolubilidade = Corg/Caqua) (Figura 46), portanto quanto maior a lipossolubilidade maior a afinidade do fármaco pela fase orgânica (oleosa), isto é, maior a facilidade desse fármaco atravessar as membranas plasmáticas constituídas de uma bicamada lipídica (fosfolipídios) (Figura 47). Octanol AN02FREV001/REV 4.0 72 FIGURA 47 – ESTRUTURA DE UM FOSFOLIPÍDIO (UNIDADE QUE FORMA A BICAMADA LIPÍDICA DA MEMBRANA PLASMÁTICA) FONTE: (LÜLLMANN e cols., 2008). Hansch e colaboradores demonstraram as correlações existentes entre atividade biológica e parâmetros físico-químicos (p. ex., lipofilicidade) e também demonstraram que Log P é uma propriedade aditiva e possui um considerável caráter constitutivo. Por analogia à equação de Hammett utilizando derivados benzênicos substituídos, eles definiram a constante hidrofóbica do substituinte, x: x = Log (Px/PH) E, portanto, o coeficiente de partição (Log Px) de um derivado funcionalizado com um substituinte X, pode ser calculado empregando-se a equação abaixo, acrescentando o valor de contribuição da constante hidrofóbica do substituinte X tabelada ao logaritmo do coeficiente de partição do derivado não substituído (Log PH). Log Px = Log PH + x AN02FREV001/REV 4.0 73 Podemos exemplificar o emprego desta equação calculando o coeficiente de partição do paracetamol a partir do benzeno (Figura 48): FIGURA 48 - USO DA EQUAÇÃO DE HANSCH NA PREDIÇÃO DO LOG P DO PARACETAMOL FONTE: (Adaptado de Barreiro e Fraga, 2008). Neste exemplo, com a utilização da equação de Hansch, podemos calcular o coeficiente de partição do paracetamol, conhecendo o coeficiente de partição do benzeno e utilizando constante hidrofóbica dos substituintes (OH e NHCOCH3), já conhecidos e tabelados: Log P paracetamol = Log P benzeno + (OH + NHCOCH3) Log P paracetamol = 2,13 + (-1,67 + (-0,97)) Log P paracetamol = 0,46 Podemos observar então, que o valor de Log P do paracetamol calculado (0,49) é bastante aproximado do valor obtido experimentalmente (0,46) (utilizando o modelo de 2 compartimentos octanol-água). A seleção de substâncias com propriedades lipofílicas, desde a antiguidade é de grande importância, pois como já vimos facilita a absorção desta pelas membranas biológicas até seu sítio de ação. O uso de produtos de fonte natural Benzeno Log PH = 2,13 Paracetamol Log Px = 0,49 (calculado) Log Px = 0,46 (experimental) OH = -1,67 NHCOCH3 = -0,97 AN02FREV001/REV 4.0 74 como remédio foi muito comum na Antiguidade, período geralmente chamado de pré‐científico, quando já se verificava a importância da utilização de substâncias botânicas na forma de óleos, tais como os óleos de oliva, gergelim, rícino, entre outros, graças a sua facilidade de passagens pelas membranas. Na Índia da Antiguidade, pode-se encontrar escritos de 3000 anos a.C., que indicavam a utilização de óleos viscosos para o tratamento de diversas doenças. A maior utilização desses óleos foi observada principalmente no século V a.C. Claudius Galeno, médico e filósofo grego (129‐216 d.C), conhecido como o Pai da Farmácia, foi um importante observador científico dos fenômenos biológicos. Dos mais de trezentos tratados escritos por Galeno, cerca de cento e cinquenta são aceitos atualmente, inclusive suas famosas prescrições, conhecidas como preparações galênicas, que foram reestudadas em 1963 e tiveram a composição dos seus inúmeros óleos determinados. Outro fato notório da história é o trabalho de farmacologia de Pedanius Dioscórides, médico grego militar nascido na Cicília (40‐90 d.C.), que já descrevia em sua obra “De Materia Medica”, mais de mil remédios entre óleos, beberagense unguentos. Dentre seus relatos destaca‐se que Dioscórides já descrevia o uso de ópio como medicamento e como veneno. Mas somente no século XX é que se descobririam os componentes farmacologicamente ativos no ópio (Figura 49), compostos da classe dos alcaloides, como a morfina (de origem natural do ópio), que por sua vez pode gerar a heroína (derivado sintético obtido por acetilação da morfina, Figura 50). E podemos destacar que a heroína apresenta atividade psicotrópica mais elevada pelo maior transporte e maior absorção cerebral, por apresentar à maior solubilidade em óleo (lipossolubilidade) devido à ocorrência de grupos hidroxílicos (da morfina) se apresentarem acetilados (Figura 50). AN02FREV001/REV 4.0 75 FIGURA 49 – ESQUEMA DA OBTENÇÃO DA TINTURA DE ÓPIO A PARTIR DA PAPOULA FONTE: (Lüllmann e cols., 2008). AN02FREV001/REV 4.0 76 FIGURA 50 Estrutura química da morfina e da heroína, com destaque para os grupos hidroxílicos encontrados na morfina se apresentarem acetilados na heroína, tornando-a assim mais lipofílica. FONTE: (NOGUEIRA, 2009). 17 COEFICIENTE DE IONIZAÇÃO E CÁLCULO DO COEFICIENTE DE IONIZAÇÃO- PKA A maioria dos fármacos são ácidos ou bases fracas (Figura 51). Fármacos de natureza básica (BH+) podem ser protonados, levando a formação de espécies catiônicas, enquanto fármacos de natureza ácida (HA) podem ser desprotonados, levando a formação de espécies aniônicas (A-), como pode ser observado na Figura 52. AN02FREV001/REV 4.0 77 FIGURA 51 – VALORES DE PKA DE ALGUNS FÁRMACOS ÁCIDOS E BÁSICOS FONTE: (RANG e cols., 2004). AN02FREV001/REV 4.0 78 FIGURA 52 – GRAU DE IONIZAÇÃO E ABSORÇÃO PASSIVA DE BASE E ÁCIDOS FRACOS FONTE: (Adaptado de Goodmann & Gilman, 2011). A constante de ionização de um fármaco é capaz de expressar a contribuição percentual relativa das espécies ionizadas (BH+ ou A-) e não ionizadas (B ou AH), dependendo de sua natureza química e do pH do meio. Esta propriedade é fundamental na fase farmacocinética, pois as espécies não ionizadas, mais lipofílicas, conseguem atravessar a membrana plasmática por transporte passivo (sem gasto de energia e sem a necessidade de transportador); já as espécies carregadas são polares e normalmente se encontram solvatadas por moléculas de água, dificultando o processo de absorção passiva (Figura 50). Essa propriedade físico-química também se faz importante na fase farmacodinâmica, devido à formação de espécies ionizadas que podem interagir complementarmente com resíduos de aminoácidos do sítio receptor da biomacromolécula por ligação iônica ou interações do tipo íon-dipolo, que foram discutidas no módulo anterior. A partir da equação de Henderson-Hasselbach para ionização de ácidos fracos. HA H + + A - H + + A - HA H + +B BH + BH + H + + B MEIO EXTRACELULAR MEIO INTRACELULAR AN02FREV001/REV 4.0 79 pKa = -pH – Log [espécie ionizada] [espécie não ionizada] A fração ionizada atribui-se o termo α de forma que em termos percentuais a fração não ionizada corresponderia a 100 – α, chegando então à equação para cálculo do percentual de ácidos, descrita a seguir: % de ionização (α) = 100 - 100 1 + antilog (pH – pKa) De maneira similar, a equação de Henderson Hasselbach para cálculo do grau de ionização de bases pode ser desenvolvida, produzindo a equação a seguir: % de ionização (α) = 100 - 100 1 + antilog (pKa – pH) Essas equações podem ser utilizadas para dar uma previsão de como será o comportamento farmacocinético (absorção, distribuição e excreção) de fármacos, conhecendo-se previamente o pH dos principais compartimentos biológicos (mucosa gástrica, pH = 1,0, mucosa intestinal, pH = 5,0 e plasma, pH = 7,4), permitindo em alguns casos auxiliar na otimização de propriedades físico-químicas de alguns análogos. Segue abaixo um exemplo (Figura 53), para melhor compreensão dos cálculos para determinação da porcentagem de ionização dos fármacos, neste exemplo ilustramos o comportamento do ácido acetilsalicílico, fármaco de natureza ácida que apresenta pKa = 3,5, nas mucosas gástrica (pH = 1,0) e intestinal (pH = 5,0). AN02FREV001/REV 4.0 80 FIGURA 53 - GRAU DE IONIZAÇÃO DO ÁCIDO ACETILSALICÍLICO (AAS) NA MUCOSA GÁSTRICA E NA MUCOSA INTESTINAL FONTE: (Adaptado de Barreiro e Fraga, 2008). Na equação da Figura 53 para fármacos ácidos, calculamos α, porcentagem de ionização, do AAS nas mucosas gástrica e intestinal, a partir desses valores pode obter a porcentagem de AAS não ionizado, isto é, o apto a atravessar a membrana por difusão passiva: % de AAS não ionizado = 100 – α % de AAS não ionizado mucosa gástrica = 99,78% % de AAS não ionizado mucosa intestinal = 3,07% Portanto, podemos concluir que o AAS por se tratar de um fármaco ácido apresenta maior absorção na mucosa gástrica (pH = 1,0). ácido acetilsalicílico (AAS) pKa = 3,5 % de ionização (α) mucosa gástrica = 100 - 100 = 0,32% 1 + antilog (1,0 – 3,5) % de ionização (α) mucosa intestinal = 100 - 100 = 96,93% 1 + antilog (5,0 – 3,5) AN02FREV001/REV 4.0 81 18 COEFICIENTE DE PARTIÇÃO VS COEFICIENTE DE IONIZAÇÃO A união de propriedades físico-químicas favoráveis e de alta afinidade do ligante ao seu receptor permite que baixas doses dos fármacos alcancem o efeito terapêutico desejado. Mas em alguns casos, as diferenças de pKa não são capazes de explicar diferenças no perfil farmacoterapêutico de determinados fármacos, como exemplo temos o caso dos antagonistas seletivos de receptores β1, metoprolol e atenolol, que apesar de apresentarem pka similares, 9,7 e 9,6, respectivamente, apresentam coeficientes de partição muito distintos, 1,88 e 0,16, respectivamente. Isso se deve a variação dos substituintes de cadeia lateral (-CH2OCH3 vs CONH2), como podemos observar na Figura 53. Apesar de estes anti-hipertensivos apresentarem propriedades farmacodinâmicas similares a possibilidade de emprego terapêutico é distinta, já que o metoprolol é lipossolúvel (alto Log P), metabolizado por efeito de primeira passagem, cujo uso clínico é contraindicado para pacientes com distúrbios no sistema nervoso central (SNC), devido a sua tendência de atravessar a barreira hematoencefálica (BHE). Já o atenolol por ser hidrossolúvel (baixo Log P) tem uso clínico contraindicado para pacientes com problemas renais, devido ao estresse provocado pela excreção renal do fármaco na forma não modificada (Figura 54). AN02FREV001/REV 4.0 82 FIGURA 54 – PERFIL COMPARATIVO DE PROPRIEDADES FÍSICO-QUÍMICAS DO METOPROLOL E DO ATENOLOL E SUAS CONTRAINDICAÇÕES EFEITO ADVERSO SNC Estresse renal FONTE: (Adaptado de BARREIRO e FRAGA, 2008). 19 METABOLISMO DE FÁRMACOS As características lipofílicas dos fármacos tão importantes para sua absorção e distribuição pelo organismo, dificultam sua eliminação. A excreção renal do fármaco de forma inalterada desempenha um papel modesto na eliminação da maioria dos agentes terapêuticos, porque as substâncias lipofílicas filtradas pelos glomérulos são reabsorvidas em grande parte para a circulação sistêmica durante aAN02FREV001/REV 4.0 83 passagem pelos túbulos renais. O metabolismo dos xenobióticos em metabólitos mais hidrofílicos é essencial para sua eliminação. Na maioria das vezes, o processo de biotransformação de fármaco leva a perda de sua atividade farmacológica. Entretanto, alguns sistemas enzimáticos transformam substâncias inativas em substâncias farmacologicamente ativas ou tóxicas (Figura 55). O metabolismo ou reações de biotransformação são classificados em dois tipos (Figura 55): Reações de fase I ou reações de funcionalização de fármacos Reações de fase II ou reações de conjugação As transformações enzimáticas promovidas sobre a estrutura química dos fármacos podem levar a alterações na resposta terapêutica, uma vez que modificações moleculares, embora algumas vezes simples, podem alterar significativamente o grupo farmacofórico ou seu arranjo espacial, dificultando sua interação com o sítio receptor. Além disso, essas alterações podem favorecer novas interações com outras biomacromoléculas, correspondendo a novos e diversos efeitos biológicos, algumas vezes responsáveis por efeitos tóxicos e/ou teratogênicos. Em razão desses fatores a OMS recomenda que os estudos sobre o metabolismo de fármacos sejam parte obrigatória dos programas de avaliação pré- clínica e clínica de qualquer novo candidato a medicamento. AN02FREV001/REV 4.0 84 FIGURA 55 – POSSÍVEIS REAÇÕES DE BIOTRANSFORMAÇÃO QUE UM FÁRMACO PODE SER SUBMETIDO PARA SUA ELIMINAÇÃO DO ORGANISMO FONTE: (KATZUNG, 2006). Os sistemas de enzimas envolvidos no processo de metabolismo de fármacos estão localizados principalmente no fígado. Outros órgãos que também podem apresentar função metabólica significativa são: trato gastrointestinal (TGI), rins e pulmões. Após a administração por via oral de um fármaco, uma porcentagem significativa da dose pode ser inativada por processo metabólico já na mucosa intestinal ou fígado, antes que o fármaco chegue à circulação sanguínea, esse processo é conhecido como efeito de primeira passagem. Em determinada célula, a maior parte da atividade metabólica dos fármacos é encontrada no retículo endoplasmático liso no citosol, embora essa metabolização possa ocorrer na mitocôndria, no invólucro nuclear e na membrana plasmática. Os AN02FREV001/REV 4.0 85 sistemas enzimáticos envolvidos com as reações de funcionalização de fármacos estão localizados principalmente no retículo endoplasmático, enquanto os sistemas enzimáticos envolvidos com o processo de conjugação de fármacos são predominantemente citosólicos. As enzimas de fase I possibilitam a introdução de grupos funcionais, adicionando aos xenobióticos os seguintes grupamentos: -OH, -COOH, -SH, -O- ou NH2. A adição desses grupos funcionais aumenta um pouco a hidrossolubilidade desse composto, mas pode alterar profundamente suas propriedades farmacológicas. Essas reações estão fortemente associadas à inativação dos fármacos ativos (Figuras 56 e 57). Já as enzimas de fase II (conjugação) facilitam a eliminação dos fármacos e a inativação dos metabólitos eletrofílicos potencialmente tóxicos produzidos pela oxidação. Estas reações produzem metabólitos mais hidrossolúveis com pesos moleculares maiores, o que facilita sua eliminação (Figuras 56 e 57). FIGURA 56 – ENZIMAS METABOLIZADORAS DOS XENOBIÓTICOS Enzimas Reações “Oxigenases” da fase I Citocromo P450 Oxidação do C ou O, desalquilação e outras Mono-oxigenases contendo flavinas (FMO) Oxidação do N, S ou P Hidrolases do epóxido (mEH, sEH) Hidrólise dos epóxidos “Transferases” da fase II Sulfotransferases (SULT) Acréscimo de sulfato UDP-glicuronosiltransferase (UGT) Acréscimo de ácido glicurônico Glutationa-S-transferase (GST) Acréscimo de glutationa N-acetiltranferases (NAT) Acréscimo de grupos acetila Metiltransferase (MT) Acréscimo de grupos metila AN02FREV001/REV 4.0 86 Outras enzimas Alcooldesidrogenases Redução dos álcoois Aldeidodesidrogenases Redução dos aldeídos NADPH-quinona oxidoredutase Redução das quinonas FONTE: (Adaptado de GOODMANN & GILMAN, 2010) FIGURA 57 – METABOLISMO DA FENITOÍNA PELAS ENZIMAS P-450 DA FASE I E PELA UGT DA FASE II Esta reação converte uma molécula muito hidrofóbica em um derivado hidrofílico maior, que é eliminado na bile. FONTE: (GOODMAM & GILMAN, 2010). AN02FREV001/REV 4.0 87 19.1 REAÇÕES MEDIADAS PELA FAMÍLIA P-450 As enzimas P-450 ou CYP, constituem uma superfamília de enzimas, das quais todas contêm uma molécula de heme ligada de maneira não covalente à cadeia polipeptídica (Figura 58). Essas enzimas estão localizadas no retículo endoplasmático e são responsáveis pelas reações de fase I, onde o heme liga-se ao O2 como parte do ciclo catalítico destas enzimas. Essas enzimas utilizam o O2 e o H+ derivados do fosfato dinucleotídeo de adenina e nicotinamida reduzido por cofator (NADPH) para realizar a oxidação dos substratos. O H+ é fornecido pela NADPH- citocromo P450 oxirredutase. A biotransformação de um substrato mediado pela CYP consome uma molécula de O2 e produz um substrato oxidado e uma molécula de água (Figura 59). AN02FREV001/REV 4.0 88 FIGURA 58 – LOCALIZAÇÃO DA CYP NA CÉLULA FONTE: (GOODMAM & GILMAN, 2010). AN02FREV001/REV 4.0 89 FIGURA 59 – MECANISMO DE MONO-OXIGENAÇÃO CATALISADA PELO CITOCROMO P-450 (CICLO DO CITOCROMO P-450) FONTE: (BARREIRO e cols, 1996). As CYPs são responsáveis por diversas reações enzimáticas, entre elas estão a O-desalquilação, a N-desalquilação, a hidroxilação aromática, a N-oxidação, a S-oxidação, a desalogenação e a desaminação. As CYPS são uma das enzimas mais estudadas, sendo responsáveis pela metabolização de 70% dos xenobióticos (Figura 60). Há mais de 50 enzimas CYP identificadas nos seres humanos. Essas enzimas são complexas e variáveis em sua regulação e em sua atividade catalítica. Existem 102 genes potencialmente funcionais e 58 pseudogenes nos seres AN02FREV001/REV 4.0 90 humanos. Com base na semelhança das sequências dos aminoácidos, estes genes são agrupados em famílias e subfamílias. Denominadas CYP seguidas de um número que designa a família, uma letra que designa a subfamília e outro número para assinalar o gene (p.ex., CYP3A4: família 3, subfamília A e gene número 4). FIGURA 60 – PERCENTUAL DE FÁRMACOS METABOLIZADOS PELAS PRINCIPAIS ENZIMAS DA FASE I FONTE: (GOODMAM & GILMAN, 2010). As maiores quantidades de enzimas CYP são encontradas no fígado, assegurando dessa forma a eficiência do metabolismo de primeira passagem. Mas esta família de enzimas também é encontrada em todos TGI e em menores quantidades nos pulmões, nos rins e até mesmo no SNC. AN02FREV001/REV 4.0 91 As diferentes enzimas da família P-450 podem diferir bastante em consequência de exposições ambientais e hábitos alimentares aos indutores, ou devido às variações interindividuais resultantes de diferenças polimórficas hereditárias dos indivíduos. Assim, portanto, padrões específicos de cada tecido podem influenciar no processo de biotransformação e na eliminação dos fármacos. As enzimas da família P-450 mais ativas no metabolismo de fármacos pertencem às subfamílias: CYP2C, CYP2D e CYP3A, onde a CYP3A4 é a mais expressa e envolvida no metabolismo de aproximadamente 50% dos fármacos utilizados na clínica. Interações entre fármacos e família P-450 Na maioria dos casos em que são observadas diferenças na taxa de metabolismo de um fármaco devidas a interações farmacológicas, se deve a fármacos metabolizados por enzimas da família P-450. Quando fármacos são administrados simultaneamente esão metabolizados pela mesma enzima (p.ex., estatinas e antifúngicos) ocorrem alterações nas concentrações plasmáticas destes fármacos. Como a maioria destas interações é devida às CYP, torna-se essencial a determinação da especificidade da enzima do CYP que metaboliza determinado fármaco e evitar assim a administração concomitante de outros fármacos que sejam metabolizados pela mesma enzima. Independentemente de serem substratos das CYP, alguns fármacos podem ser indutores ou inibidores de determinada enzima desta família. Assim, administrando-se um fármaco inibidor de determinada enzima, podemos aumentar a concentração plasmática de outro fármaco, utilizado concomitantemente, que seja substrato desta enzima. AN02FREV001/REV 4.0 92 19.2 REAÇÕES DE FASE I A fase I do metabolismo de fármacos se caracteriza por envolver reações redox ou hidrofílicas responsáveis pela conversão de um fármaco lipofílico em um primeiro metabólito mais polar (hidrofílico). Na maioria das vezes, esta etapa envolve a família do citocromo P450 hepático, responsável por levar a inserção de um átomo de oxigênio, originário de uma molécula de oxigênio na estrutura do fármaco, como já pudemos observar na Figura 59. O principal sistema enzimático envolvido no metabolismo de fármacos é sistema das enzimas microssomais hepáticas, que compreende o citocromo P450 e uma flavoproteína, NADPH-citocromo-C redutase, que associada a lipídeos, formam o sistema de oxidades de função mista, conhecido como MFO. Várias reações de conversão de diferentes grupos funcionais podem ocorrer na fase de funcionalização de fármacos (fase I), na Figura 61 podemos observar as possíveis reações do sistema de enzimas microssomais hepáticas. AN02FREV001/REV 4.0 93 FIGURA 61 – PROCESSOS MICROSSOMAIS DE BIOTRANSFORMAÇÃO FONTE: (BARREIRO e cols., 1996). Existem também processos não microssomais, dentre os quais se encontram as oxidações de álcoois por ação de desidrogenases hepáticas (LAD), também encontradas nos pulmões e rins. Por ação das LAD, os álcoois primários produzem aldeídos. Esta reação é a primeira no processo de inativação que sofrem AN02FREV001/REV 4.0 94 as prostaglandinas por ação da prostaglandina desidrogenase, enzima plasmática responsável pela oxidação do álcool alílico em C-15, produzindo um metabólito inativo, que sequencialmente sofre redução da insaturação em C-13 e subsequentemente sofre ação da β-oxidase dando origem ao metabolito hidrofílico final (Figura 62). FIGURA 62 – REAÇÕES NÃO MICROSSOMAIS ENVOLVIDAS NA INATIVAÇÃO DA PROSTAGLANDINA E FONTE: (BARREIRO e cols., 1996). Outro complexo enzimático não microssomal é a monoaminoxidase (MAO), capaz de gerar a cisão oxidativa da ligação C-N de aminas primárias. Nessa reação, ocorre a oxidação do carbono α ao heteroátomo, que resulta na formação de um aza-cetal, instável, produzindo o produto de X-dealquilação, onde X é um heteroátomo (N, O, S), como podemos observar na Figura 63. Desidrogenase Redutase Β-oxidase AN02FREV001/REV 4.0 95 FIGURA 63 – PROCESSO DE X-DEALQUILAÇÃO DE FÁRMACOS FONTE: (BARREIRO e FRAGA, 2008). O metabolismo de fase I compreende também reações hidrolíticas que podem ocorrer no fígado e no plasma. Estas reações são catalisadas por hidrolases que transformam amidas, ésteres e outras funções derivadas dos ácidos carboxílicos (ácidos hidroxâmicos, hidrazidas, nitrilas e carbamatos) em metabólitos polares. Na figura 64, podemos observar exemplos de reações hidrolíticas. AN02FREV001/REV 4.0 96 FIGURA 64 – EXEMPLOS DE BIOTRANSFORMAÇÕES POR HIDRÓLISE ENZIMÁTICA FONTE: (BARREIRO e cols., 1996). AN02FREV001/REV 4.0 97 A figura 65 mostra as principais reações não microssomais ocorridas: FIGURA 65 – PRINCIPAIS REAÇÕES DE BIOTRASFORMAÇÃO NÃO MICROSSOMAIS FONTE: (BARREIRO e cols., 1996). 19.3 REAÇÕES DE FASE II Os metabólitos de fase I, de modo geral, apresentam um coeficiente de partição menor que seus fármacos de origem, dependendo do nível de variação estrutural do fármaco. Porém, esta maior hidrossolubilidade do metabólito de fase I não suficiente para assegurar sua eliminação renal, sendo esse o motivo desses metabólitos, subsequentemente sofrerem reações enzimáticas de fase II, conhecidas como conjugação, formando conjugados altamente hidrossolúveis, que são facilmente excretados na urina ou na bile. As principais reações de conjugação que sofrem os fármacos são: glicuronidação, sulfatação, conjugação com o glutatião, conjugação com a glicina, acetilação e metilação, que estão expostas na Figura 66. Podemos destacar que as AN02FREV001/REV 4.0 98 reações de metilação e acetilação, ao contrário das demais, não aumentam a polaridade do metabólito, apenas contribuem para sua bioinativação. FIGURA 66 – REAÇÕES DE CONJUGAÇÃO FONTE: (BARREIRO e cols., 1996). Podemos exemplificar algumas das reações de conjugação: a) Conjugação com ácido glicurônico Os agentes tóxicos absorvidos pelo organismo que possuem em sua estrutura: -OH, -COOH, -NH2 e –SH estão sujeitos a serem conjugados pelo ácido glicurônico, por substituição do hidrogênio (Figura 67). AN02FREV001/REV 4.0 99 FIGURA 67 – EXEMPLOS DE REAÇÃO DE CONJUGAÇÃO COM O ÁCIDO GLICURÔNICO FONTE: (KOROLKOVAS,1988). AN02FREV001/REV 4.0 100 b) Sulfatação Conjugação com sulfato ocorre com álcoois, fenóis e aminas primárias, com reação do substrato com o PAPS (3 – fosfoadenosina – 5 – fosfosulfato) (Figura 68). FIGURA 68 – EXEMPLOS DE REAÇÕES DE SULFATAÇÃO FONTE: (KOROLKOVAS, 1988). c) Acetilação Aminas aromáticas são acetiladas pela acetilcoenzima A (Figura 69). AN02FREV001/REV 4.0 101 FIGURA 69 – EXEMPLO DE REAÇÃO DE ACETILAÇÃO FONTE: (KOROLKOVAS, 1988). Uma reação que merece destaque é a reação de conjugação com o glutatião, um tripeptídeo sulfidrílico (GSH), que promove reações de inativação de eletrólitos biológicos. 19.4 GRUPO AUXOFÓRICO E GRUPO TOXICOFÓRICO Além do termo grupo farmacofórico discutido anteriormente, é necessário o conhecimento de mais dois termos bastante empregados em química farmacêutica: Grupo auxofórico: Segundo a IUPAC (União internacional de Química Pura e Aplicada), grupos auxofóricos são grupamentos funcionais capazes de apresentar sítios de interação que promovem o reconhecimento molecular do fármaco pelo biorreceptor. Esse grupo auxilia o reconhecimento do fármaco pelo receptor somando-se ao reconhecimento primário que é responsabilidade do grupo farmacofórico. AN02FREV001/REV 4.0 102 Este grupo também pode ser denominado: ponto farmacofórico, grupamento secundário ou farmacóforos auxiliares. Grupo toxicofórico: Também segundo a IUPAC, grupo toxicofórico é subunidade(s) estrutural(is) ou fragmento(s) molecular(ES) responsável(is) por uma resposta tóxica dos fármacos direta ou indiretamente. E são formados por grupamentos toxicofóricos ou toxicóforos. A toxicidade de diversas subunidades estruturais relaciona-se a sua propriedade intrínseca ou a sua capacidade de transformar-se em metabólitos ou intermediários eletrolíticos, por meio do processo de biotransformação. A Figura 70 ilustra alguns dos principais fragmentos moleculares com potencial tóxico (grupos toxicofóricos). AN02FREV001/REV 4.0 103 FIGURA 70 – SUBUNIDADES ESTRUTURAIS POTENCIALMENTE TOXICOFÓRICAS FONTE: (BARREIRO e FRAGA,2008). Para alguns fármacos, o grupo farmacofórico compartilha a mesma estrutura química do grupo toxicofórico, um exemplo disso é o cloranfenicol, antibiótico inibidor da biossíntese de proteínas em micro-organismos patogênicos, cuja presença da função α,α-dicloroacetamida foi identificada como a principal unidade farmacofórica deste fármaco. Em razão da presença dessa mesma função na estrutura do cloranfenicol, esse fármaco apresenta propriedades tóxicas acentuadas e com inúmeros efeitos adversos, desse modo, essa substância tem sido proscrita em diversos países. AN02FREV001/REV 4.0 104 Com elucidação do mecanismo molecular em que a função α,α- dicloroacetamida do cloranfencol causa a inibição suicida de enzimas fisiológicas foi possível explicar seus efeitos tóxicos e identificar este grupo farmacofórico como sendo também um grupamento toxicofórico, como podemos observar na Figura 71. Essa função confere uma grande labilidade ao grupo metílicodiclorado, que por sua vez, sofre hidroxilação enzimática e subsequente transformação da α-cloridrina transiente no cloreto de ácido correspondente. Esses intermediários, bastante reativos, sofre o ataque nucleofílico da lisina (Lys), presente no sítio receptor de enzimas associadas ao ciclo evolutivo dos micro-organismos e das células do hospedeiro humano, formando adutos1 fármacos-proteínas ligados de maneira irreversível, responsável pelo potencial toxicofórico deste antibiótico, de maneira mecanismo dependente (Figura 71). FIGURA 71 – MECANISMO MOLECULAR DO CLORANFENICOL FONTE: (BARREIRO e FRAGA, 2008). 1 Adultos: complexos, no caso de fármacos com proteínas. AN02FREV001/REV 4.0 105 19.5 METABOLISMO E TOXICIDADE O metabolismo de fármacos, tão importante para a excreção de substâncias, apresenta o seu lado perverso como resultado da oxidação microssômica. A partir da oxidação microssômica podem ser formados metabólitos tóxicos, que por sua vez podem formar ligação covalente e/ou não covalente com moléculas-alvo. As interações não covalentes (a peroxidação lipídica, a produção de espécies tóxicas de oxigênio e as reações causadoras de alteração da concentração de glutation e modificação de grupos sulfidril) podem resultar em citotoxicidade. Já as interações covalentes de metabólitos reativos à proteína podem produzir um imunógeno; a ligação ao DNA pode causar carcinogênese e teratogênese. Na Figura 72 temos o metabolismo do paracetamol, pelo qual podemos exemplificar vários mecanismos de lesão celular, em que pode ocorrer tanto por interação covalente como para não covalentes. Em doses indicadas para uso terapêutico, o paracetamol é excretado após conjugação ao ácido glicurônico ou ao sulfato. Nesse processo de excreção, normalmente ocorrido em doses de emprego clínico, pequenas quantidades são biotransformadas em metabólitos reativos intermediários (N-acetil-p-benzoquinonaimina, NAPBQI) e eliminados pelo varredor nucleofílico, glutation (GSH), na forma de ácido mercaptúrico. Como o glutation, no organismo, tem suprimento limitado e ainda pode ser depletado, por estresse oxidativo, por formação de adição entre NAPBQI e GSH (ligação covalente), a droga na forma de epóxido ou quinona pode atingir concentração suficiente para reagir com os constituintes celulares nucleofílicos, causando uma necrose hepática (mais comum) ou renal. AN02FREV001/REV 4.0 106 FIGURA 72 – METABOLISMO DO PARACETAMOL (METABOLISMO X TOXICIDADE) FONTE: (OSHIMA FRANCO e FRANCO, 2003). A dose de uso clínico em adultos de paracetamol varia de 325-650 mg a cada 4-6 horas, não devendo exceder 4 g/dia, devido ao risco de causar hepatotoxicidade. Iindutores potentes do metabolismo microssômico, os AN02FREV001/REV 4.0 107 hidrocarbonetos policíclicos acarretam o acúmulo de pequena quantidade de intermediários reativos, que se intercalam na molécula de DNA e iniciando o processo de carcinogênese. A Figura 73 mostra a classificação dos carcinógenos químicos. Podemos observar que: carcinógenos genotóxicos: causadores de mutação no gene. Podem ser classificados em: - primários: causam mutações por ação direta; - secundários: causam mutações após serem convertidos em metabólitos reativos. carcinógenos epigenéticos: são substâncias que, por si só, não causam lesão genética, no entanto, aumentam a probabilidade de causar câncer, por diversos mecanismos, como: - aumento de concentrações efetoras do genotóxico; - potencialização da biotransformação do genotóxico; - diminuição da desintoxicação de um genotóxico; - inibição do processo de reparo de DNA; - aumento da proliferação de células que tiveram seu DNA danificado. AN02FREV001/REV 4.0 108 FIGURA 73 – CARCINÓGENOS QUÍMICOS FONTE: (OSHIMA FRANCO e FRANCO, 2003). AN02FREV001/REV 4.0 109 Após o já exposto, podemos ressaltar que a ponte entre metabolismo de xenobióticos e toxicidade é o metabólito reativo intermediário, ou radical livre, capaz de causar graves danos, como as mutações, que podem levar à perda de informação e, finalmente, ao câncer. Portanto, cabe chamar a atenção sobre a responsabilidade do uso de drogas, lícitas ou ilícitas, terapêuticas ou não, pois essas drogas podem ser bastante prejudiciais ao organismo. 20 EFEITOS FARMACOLÓGICOS DE GRUPOS ESPECÍFICOS Os fármacos, em sua maioria, agem em um sítio específico (p.ex., enzima ou receptor). Os fármacos com estrutura semelhante (contendo conjunto de grupos químicos específicos), frequentemente, possuem a mesma atividade farmacológica. Entretanto, esses fármacos semelhantes estruturalmente apresentam diferenças de potência e efeitos adversos distintos, devido a pequenas diferenças estruturais entre os fármacos pertencentes a um mesmo grupo químico. Essas diferenças estruturalmente são referidas como relações estrutura-atividade (REA ou SAR). Um estudo de SAR de um protótipo e de seus análogos pode ser usado para determinar as partes da estrutura do protótipo que são responsáveis por sua atividade biológica (grupo farmacofórico) e por seus efeitos adversos. Essa informação é bastante relevante, pois pode ser utilizada para o desenvolvimento de novos fármacos que possuem atividade aumentada, isto é, sua SAR otimizada. O intuito dos estudos de SAR são aumentar a potência, reduzir os efeitos adversos e facilitar a administração ao paciente de novos fármacos. Investigações de SAR da maneira tradicional são realizadas, preparando-se um grande número de análogos do protótipo que serão testados em ensaios biológicos e, a partir daí obtidas informações entre as mudanças estruturais e sua repercussão no efeito biológico observado. Ao longo dos anos, vários protótipos foram investigados e obtidos um grande número de dados, que possibilitou na realização de generalizações amplas sobre os efeitos biológicos de alterações estruturais específicas. Estas alterações são classificadas como: AN02FREV001/REV 4.0 110 Alterações do tamanho e conformação; Alterações da natureza e do grau de substituição; Alterações na estereoquímica do protótipo. Os procedimentos de investigação de SAR tradicionais na busca de novos protótipos são dispendiosos e demorados, por esse motivo, várias tentativas foram e estão sendo utilizadas para o aprimoramento da técnica. Estas tentativas são responsáveis pelo nascimento da modelagem molecular, que vem sendo cada dia, mais empregada e com melhores recursos com o passar do tempo, auxiliando bastante na redução do tempo de dos custos com estudos de SAR. Alterações no tamanho e conformação espacial a) Alteração do número de grupamentos metila Alterando-seo número de grupamentos metila em uma cadeia ou em um anel, aumentamos o tamanho e a natureza do composto, tornando-o mais ou menos lipofílico. Podemos entender melhor esta ideia analisando os exemplos na Figura 74, em que o aumento de metilas na estrutura do composto da Figura 74a aumenta a atividade antibacteriana do composto, por aumentar a lipossolubilidade, que facilita sua passagem pelas membranas biológicas. Porém, esse aumento de atividade só é observado até a adição de 6 metilas, com uma adição de metilas a atividade farmacológica começa a ser reduzida, isso se deve a formação de micelas. A formação de micelas produz grandes agregados que, devido as suas dimensões, não conseguem ligar-se aos sítios receptores. Assim como observados na Figura 74a em que a adição de metilas aumenta a atividade farmacológica, na figura 74b podemos observar o aumento da potência do composto, sendo observado com a redução da concentração inibitória de 50% (IC50). AN02FREV001/REV 4.0 111 FIGURA 74 – EXEMPLO DE VARIAÇÃO DA CURVA DE RESPOSTA EM FUNÇÃO DO AUMENTO DA INSERÇÃO DE GRUPAMENTOS METILA FONTE: (THOMAS, G., 2003). b) Alterando o grau de insaturação A retirada de insaturações de uma molécula aumenta a flexibilidade desta molécula, o que pode facilitar o encaixe do análogo nos sítios receptores, fazendo com que assuma uma conformação mais adequada. Porém, em alguns casos o aumento de flexibilidade pode resultar na mudança ou perda de função da molécula. A adição de insaturações aumenta a rigidez estrutural, além de gerar esteroisômeros com atividades, muitas vezes, distinta. Análogos produzidos pela introdução de insaturações podem exibir diferentes potências (Figura 75) ou tipos diferentes de atividade farmacológica (Figura 76). a) b) AN02FREV001/REV 4.0 112 FIGURA 75 – EXEMPLO DA ADIÇÃO DE INSATURAÇÕES AUMENTANDO A POTÊNCIA (30 VEZES MAIOR) DA MOLÉCULA DE PREDNISONA EM RELAÇÃO AO SEU PRECURSOR (CORTISOL) FONTE: (THOMAS, 2003). FIGURA 76 – EXEMPLO DE QUE A ADIÇÃO DE INSATURAÇÃO PODE GERAR MOLÉCULAS DE ATIVIDADE FARMACOLÓGICA DISTINTA FONTE: (THOMAS, 2003). Grupo das Fenotiazinas (Antipsicóticos) Protriptilina (Vivactil) (Antidepressivo) AN02FREV001/REV 4.0 113 c) Introdução ou remoção de um sistema de anéis A introdução de um sistema de anéis muda a conformação e aumenta o tamanho global da nova molécula. Na maioria dos casos, o efeito dessas modificações sobre a potência ou tipo de atividade do análogo não é previsível. O aumento de tamanho pode ser útil para o preenchimento de uma fenda hidrofóbica, que haja, em um sítio receptor, o que pode fortalecer a interação fármaco-receptor (Figura 77). FIGURA 77 – ADIÇÃO DE ANEL CICLOPENTIL AUMENTANDO A AÇÃO ANTIDEPRESSIVA DO ROLIPRAM EM 10 VEZES EM RELAÇÃO AO SEU PRECURSOR FONTE: (Adaptado de THOMAS, 2003). A adição de sistema de anéis pode ser útil para ser utilizada para produzir análogos resistentes ao ataque enzimático por meio de impedimento estérico de acesso da enzima ao grupo funcional necessário para atividade farmacológica (Figura 78). 3-(3,4-Dimetoxifenil)-butirolactâmico Rolipram (10X mais potente) AN02FREV001/REV 4.0 114 FIGURA 78 – EXEMPLO DE ADIÇÃO DE SISTEMA DE ANÉIS PARA A PROTEÇÃO DE GRUPO FARMACOFÓRICO FONTE: (THOMAS, 2003). Introdução de novos substituintes a) Halogênios A adição de halogênios aumenta a lipossolubilidade dos novos análogos, portanto a adição desses análogos é feita para aumentar a penetração dos compostos nas membranas biológicas. Porém, devido ao aumento do coeficiente de partição há maior tendência de acúmulo destes fármacos no tecido adiposo. A introdução de um halogênio ou um grupamento que contenha halogênio pode resultar na mudança de potência, assim como sua posição na estrutura química. Um exemplo disso, é a clonidina com a sua substituição o,o-cloro (ED50 = 0,01 mg/kg) é mais potente que o análogo p,m-dicloro (ED50 = 3,00 mg/kg) (Figura 79). Esta alteração de potência se deve a imposição conformacional na estrutura da AN02FREV001/REV 4.0 115 clonidina, feita pelos grupamentos volumosos o,o-cloro, sendo provavelmente responsável pelo aumento de atividade observado. FIGURA 79 – POSIÇÃO DOS HALOGÊNIOS NA MOLÉCULA ALTERANDO SUA POTÊNCIA FONTE: (THOMAS, 2003). b) Grupamento hidroxi A adição de grupamentos hidroxi a molécula produz um análogo com maior hidrossolubilidade, reduzindo sua capacidade de atravessar as membranas biológicas, porém esta adição pode gerar um novo centro de interação com o receptor para a formação de pontes de hidrogênio. A introdução de grupamentos hidroxi também podem conferir ações farmacológicas específicas como a introdução de hidroxi em grupamentos fenólicos conferindo-lhes ação bactericida e a introdução de hidroxi em álcoois, conferindo ação narcótica. c) Grupamentos básicos Todos os grupamentos básicos encontrados nos fármacos (aminas, amidinas e guanidinas) podem formar sais nos meios biológicos (Figura 80). A introdução destes grupamentos pode levar a formação de sais nos meios biológicos, reduzindo a lipossolubilidade dos compostos. Portanto, quanto mais básico for o AN02FREV001/REV 4.0 116 análogo maior sua solubilidade em água e menor sua probabilidade de ser transportado pelas membranas. FIGURA 80 – GRUPAMENTOS BÁSICOS FONTE: (THOMAS, 2003). A adição de grupamentos básicos pode aumentar a ligação do análogo ao seu sítio-receptor por meio de formação de ligações de hidrogênio, entretanto, vários destes fármacos devem sua atividade à formação de sais, que lhes permitem fazer ligações iônicas com o sítio receptor (Figura 81). Acredita-se que muitos anestésicos locais são transportados como bases livres e convertidos em sais nos sítios de ação onde se ligam aos seus receptores. AN02FREV001/REV 4.0 117 FIGURA 81 – FORMAÇÃO DE LIGAÇÕES DE HIDROGÊNIO ENTRE O SÍTIO- ALVO E O GRUPAMENTO AMINA (A) E FORMAÇÃO DE LIGAÇÃO IÔNICA ENTRE O SÍTIO-ALVO E OS SAIS DE AMINA FONTE: (THOMAS, 2003). d) Metila Como já discutido anteriormente a introdução de metilas aumenta a lipossolubilidade do composto e aumenta sua hidrossolubilidade (Figura 82). FIGURA 82 – ADIÇÃO DE METILA ALTERANDO O COEFICIENTE DE PARTIÇÃO DAS MOLÉCULAS FONTE: (THOMAS, 2003). AN02FREV001/REV 4.0 118 A introdução de metila a uma substância pode impor restrições estéricas a este novo análogo, como podemos observar no exemplo da Figura 83, em que o análogo o-metil da difenidramina não exibe atividade anti-histamínica. Sugere-se que esse fato se deve a restrições de rotação em torno da valência C-O da cadeia lateral, imposta pelo grupamento o-metil, impedindo que a molécula adote a conformação necessária à atividade anti-histamínica. Já no análogo que recebeu o grupamento metila na posição para sua atividade é 3,7 vezes maior que a difenidramina. FIGURA 83 – GRUPAMENTO METILA RESPONSÁVEL POR IMPEDIMENTO ESTÉRICO FONTE: (THOMAS, 2003). e) Ácidos carboxílicos e sulfônicos A incorporação de grupamentos ácidos na estrutura de um composto resulta, geralmente, em análogos com maior solubilidade em água e menor capacidade de atravessar as membranas plasmáticas. De maneira geral a introdução de ácidos carboxílicos e sulfônicos a um protótipo produz análogos que podem ser eliminados prontamente. AN02FREV001/REV 4.0 119 A adição de grupamento de ácido carboxíco pode resultar na alteração da atividade biológica do novo análogo, exemplo da adição de ácido carboxílico ao fenol (antisséptico), resultando na formação do ácidosalicílico (anti-inflamatório) (Figura 84). FIGURA 84 – ESTRUTURA DO FENOL E DO ÁCIDO SALICÍLICO FONTE: (THOMAS, 2003). f) Grupamentos de enxofre De maneira geral, os grupamentos tiol e sulfeto não são introduzidos nos protótipos nos estudos de SAR são metabolizados via oxidação, formando muitas vezes metabólitos eletrofílicos. Entretanto, grupamentos tióis algumas vezes são introduzidos com o intuito de melhorar a quelação de metais. Alterando os substituintes já existentes na molécula Análogos também podem ser formados pela substituição de um substituinte já existente na estrutura de um protótipo por um novo substituinte. A escolha do substituinte é feita utilizando o conceito de bioisosterismo, que discutiremos no próximo módulo. AN02FREV001/REV 4.0 120 21 MECANISMO DE AÇÃO DE FÁRMACOS No que diz respeito ao mecanismo de ação dos fármacos, esses podem ser classificados em estruturalmente inespecíficos e estruturalmente específicos, como já discutido anteriormente no módulo I. No que diz respeito aos fármacos estruturalmente específicos, cuja interação com o sítio-receptor se faz essencial para a geração de resposta biológica , podemos destacar: 21.1 FÁRMACOS QUE INTERAGEM COM ENZIMAS Como exemplo de fármacos que interagem com enzimas, temos os anticolinesterásicos que, de forma reversível ou irreversível, inativam a acetilcolinesterase. Essa enzima, que metaboliza a acetilcolina, apresenta dois sítios ativos: o sítio aniônico, ao qual se liga o grupo trimetilamônio da acetilcolina, e o sítio esterásico, ao qual se liga a carboxila desse neurotransmissor. Esta enzima é inativada irreversivelmente pelo edrofônio, pela neostigmina e pela piridostigmina. O edrofônio liga-se ao sítio aniônico da enzima por meio de uma ligação eletrostática e ao sítio esterásico por meio de uma ligação de hidrogênio. A neostigmina e a piridostigmina formam uma ligação covalente com o sítio esterásico da enzima pela transferência de um grupo carbamato. Apenas após hidrólise da ligação carbamato-enzima, a enzima em questão torna-se novamente disponível para metabolizar a acetilcolina. Os anticolinesterásicos irreversíveis são representados pelos organofosforados que atuam por fosforilação do sítio esterásico, condicionando uma regeneração lenta da enzima. AN02FREV001/REV 4.0 121 Os anticolinesterásicos são usados na clínica para a reversão farmacológica do bloqueio neuromuscular, sendo também empregados em oftalmologia e na "miastenia gravis". 21.2 FÁRMACOS QUE INTERAGEM COM PROTEÍNAS CARREGADORAS A interação com proteínas carregadoras, proteínas que facilitam o transporte através da membrana plasmática, é o mecanismo de ação de certos fármacos, pertencentes a distintos grupos farmacofóricos. São exemplos de substâncias que atuam por este mecanismo, como as anfetaminas, a clorpromazina e os antidepressivos tricíclicos que bloqueiam a captação de noradrenalina no terminal adrenérgico. 21.3 FÁRMACOS QUE INTERFEREM COM OS ÁCIDOS NUCLEICOS São exemplos de fármacos que interferem com os ácidos nucleicos, os antibióticos, como o cloranfenicol, as tetraciclinas, os aminoglicosídeos e a eritromicina. Esses fármacos interferem com a síntese de proteínas dificultando a tradução da informação genética. Já outros fármacos interferem com a síntese do RNA, como a rifampicina, ou com a síntese do DNA, como a azacerina e a feomicina inibindo, respectivamente, o RNA polimerase e DNA polimerase. Fármacos antineoplásicos atuam nas diversas etapas de síntese de proteínas, interferindo com a síntese dos ribonucleotídeos e dos desoxirribonucleotídeos (mercaptopurinas e metrotexato) e com a formação do DNA e do RNA (doxorrubicina e fármacos alquilantes). AN02FREV001/REV 4.0 122 21.4 FÁRMACOS QUE INTERAGEM COM RECEPTORES A ação sobre receptores é um mecanismo de ação extremamente importante, pois se trata do mecanismo de ação da maioria dos fármacos em uso clínico atualmente. O conceito de receptor originou-se quando Paul Ehrlich apresentou a hipótese de que o protoplasma apresentava estruturas nas quais se acoplavam drogas, toxinas e antígenos. Essas ideias foram ampliadas por Langley, que propôs que a ação da acetilcolina era em consequência da sua fixação a uma "substância receptiva". Os receptores eram, inicialmente, uma entidade conceitual e passaram a ser uma realidade concreta depois de serem isolados e caracterizados, como já descritos anteriormente. A maioria dos fármacos existentes e de uso recorrente na clínica atua sobre receptores metabotrópicos ou ionotrópicos, por esse motivo são os mais estudados e relevantes. FIM DO MÓDULO II
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