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Autora: Profa. Camila Kimie Ugino Colaboradores: Prof. Maurício Manzalli Profa. Ivy Judensnaider Economia Política Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Professora conteudista: Camila Kimie Ugino Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas (2005), mestrado em Economia Política (2011) e doutorado em andamento em Ciências Sociais com ênfase em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente, é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Paulista, ministrando disciplinas de Introdução à Economia, Economia Política, Economia Internacional e Economia do Setor Público. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia dos Programas de Bem-Estar Social, Economia Política e Políticas Públicas. Atuou no mercado financeiro nos bancos Unibanco e Citibank nas áreas de planejamento corporativo e área de risco e em empresa privada em Campinas no ramo farmacêutico-veterinário. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) U26p Ugino, Camila Kimie. Economia política. / Camila Kimie Ugino. – São Paulo: Editora Sol, 2016. 172 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2-016/16, ISSN 1517-9230. 1. Economia política. 2. Valorização de capital. 3. Teorias do imperialismo. I. Título. CDU 33 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Lucas Ricardi Juliana Mendes Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Sumário Economia Política APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 MARX E A ECONOMIA POLÍTICA CLÁSSICA INGLESA ....................................................................... 11 1.1 Economia Política e Economics ...................................................................................................... 11 1.2 A evolução da problemática da Economia Política ................................................................ 15 1.2.1 O problema da Teoria do Valor no mercantilismo ..................................................................... 15 1.2.2 Adam Smith e a problemática da Economia Política clássica .............................................. 19 1.2.3 David Ricardo e a estruturação da Teoria do Valor-Trabalho ............................................... 32 1.3 Conflitos sociais e o declínio da Economia Política clássica .............................................. 37 2 O PERCURSO TEÓRICO DE MARX ATÉ O CAPITAL .............................................................................. 43 2.1 Da Filosofia à crítica da Economia Política ................................................................................ 43 2.2 Uma obra considerável, multiforme e inacabada ................................................................... 48 2.3 A crítica de Marx ao objeto da Economia Política .................................................................. 51 3 O PENSAMENTO ECONÔMICO DE MARX COMO ANÁLISE CRÍTICA DO CAPITALISMO ........ 56 3.1 Introdução ............................................................................................................................................... 56 3.2 Mercadoria, duplo caráter do trabalho e fetichismo ............................................................. 64 3.3 Capital e mais-valia ............................................................................................................................. 80 3.3.1 As definições de capital ........................................................................................................................ 80 3.3.2 O que é e qual a origem da mais-valia? ........................................................................................ 84 4 O PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DE CAPITAL ....................................................................................... 93 4.1 Formas de mais-valia: mais-valia absoluta e mais-valia relativa ..................................... 98 4.2 Métodos de produção de mais-valia: cooperação, manufatura e grande indústria .........................................................................................................................................100 Unidade II 5 REPRODUÇÃO DO CAPITAL E TENDÊNCIAS DA ACUMULAÇÃO ..................................................112 5.1 Reprodução simples e reprodução das relações de classe ................................................114 5.2 Reprodução ampliada e lei geral da acumulação capitalista ...........................................118 6 LEI GERAL DA ACUMULAÇÃO CAPISTALISTA E TENDÊNCIAS DA ACUMULAÇÃO ................120 7 TEORIAS DO IMPERIALISMO: HOBSON E HILFERDING ...................................................................129 7.1 Hobson e o estudo do imperialismo ...........................................................................................132 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 7.2 Hilferding e o fenômeno do capital financeiro ......................................................................137 8 TEORIAS DO IMPERIALISMO: LUXEMBURG E LENIN.......................................................................146 8.1 Rosa Luxemburg e a acumulação de capital...........................................................................146 8.2 Lenin e o imperialismo como etapa superior do capitalismo ..........................................150 7 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 APRESENTAÇÃO A Ciência Econômica, que usualmente tratamos simplesmente como a Economia, não é uma ciência unificada e homogênea. Por mais que tenhamos contato com ela em livros-textos e manuais, que versam sobre os grandes campos da análise econômica (microeconomia, macroeconomia etc.), a composição e o material que embasa essa ciência são bastante diversificados. Ao estudarmos macroeconomia, por exemplo, lidamos com correntes às vezes opostas de pensamento econômico – “novos clássicos” versus “pós-keynesianos” etc. Reconhecer o caráter plural da CiênciaEconômica, em que é muito difícil se defender ideias inquestionáveis, é indispensável para a discussão de Economia Política. Uma piada recorrente entre economistas é a de que se dois economistas forem questionados sobre um assunto, é muito provável que tenhamos três posições diferentes. O que esse tipo de anedota destaca é justamente esse caráter plural de abordagens sobre os fenômenos econômicos. Essa pluralidade, e as polêmicas subjacentes a ela, revela-se de maneira intensa quando tratamos de Economia Política. A Economia Política, que historicamente é nome de “batismo” de toda a Ciência Econômica, carrega desde sua gênese uma série de polêmicas. Polêmicas entre mercantilistas, posições diferentes sobre o problema do valor, debates sobre a Teoria do Valor-Trabalho etc. Mas a Economia Política, por ser o nome original da Ciência Econômica e hoje com pouco uso pelos economistas em geral, não é apenas um ramo da história do pensamento econômico. A própria definição de Economia Política, mesmo na atualidade, continua a carregar um conjunto de problemas sobre como se abordar a realidade econômica, e é dado esse conjunto de questões que o presente livro- texto se estabelece. De início, cabe destacar que este livro-texto de Economia Política trata centralmente das considerações do pensador alemão Karl Marx em sua crítica da Economia Política. Mas isso não significa, por si só, que as considerações aqui trazidas se refiram a socialismo, comunismo ou algo semelhante. O ponto é justamente outro, é apresentar a contribuição crítica de Marx ao entendimento das relações sociais que se estabelecem no modo de produção capitalista, isto é, compreender com certo rigor qual é a lógica da economia capitalista de acordo com Marx. Atenção: como veremos durante nosso percurso, essa discussão não é um exercício de arbitrariedade política. Pelo contrário, ela é uma forma de aprofundarmos nosso contato com as polêmicas inerentes ao debate econômico. Ao final do curso, espera-se que o aluno tenha uma compreensão mais sistematizada não apenas sobre Marx, mas inclusive sobre essa Ciência Econômica a que dedicamos nossos estudos. Seu objetivo é estimular a percepção crítica dos fenômenos político-econômicos que cercam a Economia e que são indispensáveis para uma análise mais cuidadosa dos cenários econômicos brasileiro e internacional. 8 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 INTRODUÇÃO Se Economia Política é o nome que se dava à Ciência Econômica em sua gênese, nosso primeiro desafio é precisar o que significa hoje o seu estudo. Estudar hoje Economia Política é estudar história do pensamento econômico? Como veremos de início, a abordagem aqui oferecida aponta que não. Contudo, para explicar por que Economia Política não é simplesmente história, temos de retornar às suas primeiras discussões, especialmente o chamado problema do valor. O que dá valor aos objetos produzidos pelos seres humanos numa economia de mercado? Essa pergunta, que pode parecer não ter muito sentido hoje em dia, quando colocada em seu contexto histórico (isto é, no período da transição histórica para o capitalismo, o que, lembremos, nem sempre existiu), revela sua importância até mesmo nos dias atuais. Considerando que hoje vivemos em uma economia centrada num mercado mundial, as perguntas sobre o valor das mercadorias e sobre as condições de produção desses valores são ainda elucidativas e têm muito a contribuir para uma análise ponderada da realidade social e histórica, não só do Brasil, mas também do mundo. Sem embargo, ao aceitarmos que a Economia Política pode contribuir para nossas análises da atualidade, temos um novo desafio pela frente. Ao recuperarmos os problemas abertos pela Economia Política, percebemos que junto a autores como Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill está também um autor que destoa dos demais: Karl Marx. Esse nome é facilmente reconhecido quando relacionado às experiências históricas do socialismo (por exemplo, da antiga União Soviética), ou quando encontramos nele a referência a uma série de críticas ao capitalismo (ou, como comumente é chamado, à “economia de mercado”). Contudo, além de ser considerado um dos fundadores do chamado “socialismo científico”, Marx foi um profundo estudioso do capitalismo. Vale lembrar que, de sua vasta obra, uma parte expressiva é dedicada ao estudo do modo de produção capitalista. Se compararmos esse estudo às considerações sobre socialismo ou comunismo, veremos que a análise das condições concretas do comunismo é bastante resumida. Não significa aqui defender que Marx não tenha relação alguma com o comunismo. Não apenas ele tinha, como sua análise sobre o modo de produção capitalista tem sua razão de ser como um objetivo de desvendar as condições de superação do capitalismo. Todavia, em nosso curso esse não é o assunto. O assunto é fundamentalmente compreender a análise de Marx sobre O Capital, isto é, elucidar sua crítica à Economia Política. Recorrentemente, teremos de precisar de que “crítica” se trata e examinar qual o método desenvolvido por Marx em sua “obra magna” O Capital. Essas considerações, como veremos, são indispensáveis a uma compreensão rigorosa da análise de Marx. 9 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Como sabemos, Marx foi um autor que escreveu sua obra no século XIX. Porém, não podemos concluir daí que aquilo que ele escreveu esteja superado historicamente. Cabe primeiro entendermos sua teoria, seu objeto de análise e seu método, para com isso talvez examinar a atualidade de suas formulações. Ademais, a obra de Marx não foi tratada historicamente como uma obra acabada. Seja pelos méritos de sua análise e das tendências que ela apontava, seja pela afinidade política aberta por ela para outras gerações, o marxismo, entendido aqui como um conjunto amplo de tradições de pensamento que declaradamente se inspiram em Marx (e Engels, seu maior parceiro intelectual), buscou sempre avançar a compreensão crítica do capitalismo. Em nosso curso, nós abordaremos uma parte da chamada tradição clássica do marxismo, especificamente aquela que desenvolveu a temática do imperialismo. Tem-se por imperialismo o modo pelo qual ficou conhecido o momento histórico que antecede a Primeira Guerra Mundial, como também o conjunto de teorias sobre ele que se difundiram no início do século XX. Vale dizer que inicialmente esse tema e sua tentativa de teorização e precisão não foram algo inaugurado por autores marxistas. Ele começou a se destacar e a expressão imperialismo começou a se difundir muito antes das análises marxistas –, tanto pela qualidade e pelo impacto das análises empreendidas por diversos autores marxistas (Rosa Luxemburg, militante do amplo Partido Social-Democrata Alemão, e Vladimir I. Lenin, um dos líderes do Partido Bolchevique e da Revolução Russa) quanto pelos seus efeitos históricos concretos. Por fim, ao final do curso, são apresentados de forma sintética alguns dos campos em que a Economia Política, particularmente em seu viés marxista, tem se desenvolvido pelo mundo na atualidade. 11 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Unidade I 1 MARX E A ECONOMIA POLÍTICA CLÁSSICA INGLESA 1.1 Economia Política e Economics Antes de começarmos a tratar de Marx e sua contribuição para as investigações e análises do capitalismo, é interessante compreendermos um pouco o estado da Ciência Econômica em sua época. Essa iniciativa pode nos trazer dois benefícios: i) desmitificar um pouco aquilo que, às vezes, em nosso senso comum, acabamos atribuindo a Marx e às tradições de pensamento nele inspiradas;ii) ajudar a entender melhor que tipo de trabalho foi realizado por Marx, qual a sua análise e sua crítica, particularmente em sua obra mais importante para o nosso campo de estudos, O Capital. Nossa primeira tarefa é evitar considerar os sistemas teóricos construídos pelos economistas na história do desenvolvimento social como um mero conjunto de propostas práticas ou simples curiosidades teóricas de um tempo passado que não nos diz mais respeito. Reconhecermos a necessidade de certa familiaridade, por exemplo, com as teorias de Adam Smith pode proporcionar condições mais favoráveis ao estudo dos problemas relacionados às teorias do valor. Esses não são problemas simples, eles se apresentam a nós em toda a sua magnitude e abrangência, e mesmo para leitores já familiarizados são de extraordinário valor intelectual e pedagógico. Por exemplo, uma pergunta importante para a compreensão da dinâmica de alguns mercados hoje em dia é sobre o papel do conhecimento. É bastante comum se abordar o conhecimento como algo genérico (sem precisar exatamente de que tipo de conhecimento se trata), que as pessoas ou empresas adquirem de variadas maneiras e para variados objetivos (de maximização de ganhos particulares a até mesmo melhoria da “vida espiritual”). Contudo, seguem perguntas que podem nos colocar num outro patamar de investigação: é o conhecimento uma mercadoria? Como tal, pode o conhecimento ser transacionado em mercados específicos? Ora, digamos que a resposta seja “sim” para ambas as perguntas. Isso nos coloca uma nova inquietação: qual o valor da mercadoria conhecimento? Como ela é produzida? Como se dá sua distribuição? Outra forma de questionamento pode ser a seguinte: dadas as características do conhecimento na atualidade, como maximizar os benefícios sociais e individuais que ele pode trazer aos agentes econômicos? Essas são perguntas a que a ciência que você está estudando procura responder. Mas, como se pode observar, elas são sensivelmente diferentes. Aliás, tratando de perguntas, qual é a ciência que você estuda? Que curso você está fazendo no momento? 12 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Caso você tenha respondido “Eu estudo Economia”, você respondeu sobre o objeto que você estuda, mas não necessariamente sobre a ciência que lhe permite entender esse objeto. Lembre-se: nos dias atuais, as ciências que estudam a dinâmica e os problemas da Economia são as Ciências Econômicas. De modo direto e polêmico, o curso que você faz não é Economia, mas sim Ciências Econômicas. Economia é apenas um dos objetos (o principal, pode-se dizer) que nós estudamos durante o curso. Todavia, fique tranquilo (ou tranquila) se você respondeu Economia. Esse é o ponto que se busca destacar aqui: por mais que possa parecer algo óbvio, a própria definição de Ciência Econômica ou de Economia é envolvida em certa polêmica. Tomando como referência a maioria dos manuais de Economia usados como material de ensino, é possível encontrar predominantemente a definição de Economia como a ciência que estuda a alocação (eficiente) e a administração (racional) de recursos escassos. Mas nem sempre essa foi a compreensão dominante do que seja a Ciência Econômica, tampouco ela é unânime, mesmo na atualidade. Uma outra definição, que pode até parecer semelhante, é a de que a Ciência Econômica é a ciência (ou área do conhecimento) que estuda os problemas da sociedade relacionados com a produção, a acumulação, a circulação e a distribuição de riquezas (além das proposições práticas associadas a tais problemas). É possível ilustrar essa diferença usando o manual de Introdução à Economia, de Nicholas Gregory Mankiw (2009), um livro bastante utilizado ao redor do mundo como material básico de cursos de graduação em Ciências Econômicas. O primeiro capítulo desse manual apresenta “Dez Princípios de Economia”, mas não é preciso discutir todos esses princípios para ilustrar a questão que se procura destacar aqui. Considere o “Princípio 2”; esse princípio seria o de que “o custo de alguma coisa é aquilo de que você desiste para obtê-la” (MANKIW, 2009, p. 5). Pode parecer aceitável esse princípio; afinal, ele aponta para a existência de tradeoffs (expressão que indica a existência de escolhas conflitantes, isto é, quando eu escolho adquirir algo, essa escolha imediatamente elimina outras possibilidades – isso envolve a suposição de que os agentes econômicos em geral lidam com recursos limitados, ou seja, escolher uma coisa é abrir mão de alguma outra, já que é impossível se “ter tudo”). Todavia, quando eu afirmo que o “custo” se define desse modo, eu acabei estabelecendo o terreno inicial de discussão para uma teoria sobre o valor das coisas e sobre a forma de se atribuir preço aos fenômenos econômicos, e isso não é um “princípio” inconteste e completamente evidente de Economia. Definir o custo de alguma coisa como aquilo de que se precisa abrir mão para se obter algo é defini- lo como custo relativo (inclusive incorporando oportunidades) e como preço relativo e que implica geralmente uma determinação subjetiva (é a relação intersubjetiva existente na sociedade que determina a relação entre os preços – mediante preferências e restrições orçamentárias ao se escolherem bens e serviços –, aquilo que vimos quando estudamos microeconomia). 13 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Ora, os princípios da interpretação dominante em microeconomia são apresentados por Mankiw (2009) como princípios gerais de Economia, sem polêmica ou questionamento. Se nos perguntássemos no século XIX “O que é Economia”, certamente encontraríamos outras definições. Mas o que tudo isso tem a ver com Economia Política? Economia Política era precisamente o nome daquilo hoje chamado de Economia ou Ciência Econômica. Mesmo autores que são considerados precursores do pensamento marginalista (e da Teoria Neoclássica) deram a suas obras o título de Economia Política. Exemplos: • William Stanley Jevons (1835-1882): The Theory of Political Economy (A Teoria da Economia Política), de 1870. • Carl Menger (1840-1921): Princípios de Economia Política, também de 1870. • Léon Walras (1834-1910): Eléments d’Economie Politique Pure (Elementos de Economia Política Pura), de 1874. Observação Esses três autores são considerados os fundadores da chamada revolução marginalista, que é usualmente tratada como a fundação da Teoria Neoclássica (e da microeconomia). Como argumenta Aloísio Teixeira (2000), Walras é praticamente o único dos fundadores do pensamento neoclássico moderno que discute o conceito de Economia Política (o que para os outros autores não é uma deficiência teórica, afinal o termo era tão utilizado como definição da ciência particular que analisavam que era possível até mesmo dispensar maiores precisões e comentários sobre o assunto). Para Walras (apud TEIXEIRA, 2000, p. 89), a Economia Política pura compreendia “a teoria do valor de troca e da troca, isto é, a teoria da riqueza social considerada em si própria”. Sem embargo, como aponta o mesmo Walras, a definição da Economia Política não é fácil, já que, “de todas as definições já feitas, nenhuma teve o consenso definitivo que é o signo das verdades conquistadas pela ciência” (WALRAS, p. 29, 1996). A primeira “lição” de Walras é justamente problematizar as definições propostas, de Adam Smith a Jean-Baptiste Say, algo em si muito diferente daquilo desenvolvido por Mankiw ao apresentar, sem problematização, os seus “dez princípios de Economia”. Por ora, cabe ressaltar que é com a obra de Alfred Marshall, Principles of Economics (Princípios de Economia), de 1890, que a Economia Política passa a ser tratadaapenas como Economia (Economics). Como afirma Aloísio Teixeira (2000), é com essa troca de nomes (de Economia Política – Political Economy – para simplesmente Economia – Economics) que o termo Economia Política começou a perder seu sentido original e passou a receber outras acepções. 14 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I A primeira acepção seria uma de caráter muito mais “ideológico”, mas que seria quase um sinônimo de Economics, utilizando as mesmas categorias de análise e aceitando até mesmo conclusões semelhantes. Reivindicar a investigação como Economia Política seria per se uma tomada de posição diante de conflitos sociais, o que de certo modo vai ao encontro do seguinte comentário de Marx (ainda no prefácio de O Capital): No domínio da economia política, a livre investigação científica não só se defronta com o mesmo inimigo presente em todos os outros domínios [como proceder à investigação científica], mas também a natureza peculiar do material com que ela lida convoca ao campo de batalha as paixões mais violentas, mesquinhas e execráveis do coração humano, as fúrias do interesse privado (MARX, 2013, p. 80). Uma segunda acepção é a que utiliza o termo Economia Política para se referir a um momento da história do pensamento econômico, para designar os pensadores da escola clássica (inclusive também Karl Marx). Nessa acepção, Economia Política seria o mesmo que economia clássica, referindo-se basicamente a uma pré-história do pensamento econômico, não tendo, portanto, grande atualidade, e que apresentaria problemas que em geral já teriam sido resolvidos no desenrolar histórico da Ciência Econômica. Essa é, aliás, como lembra Aloísio Teixeira (2000), o “ponto de vista que se tornou ‘oficial’ no Brasil”, dadas as regulamentações do Ministério da Educação. Já se adianta ainda neste tópico que não são essas as acepções adotadas neste livro-texto. Uma terceira acepção é aquela que vem sendo adotada não só por economistas, mas destacadamente por cientistas políticos que visam produzir entendimentos mais amplos dos fenômenos sociais. Nessa linha, Economia Política poderia ser entendida de modo bastante geral como Economia mais (e, com) política. Segundo a argumentação de Aloísio Teixeira (2000), mesmo essas três acepções para o termo Economia Política, considerando o conteúdo substantivo que as reveste (do que elas tratam e o que produzem), não conseguem recuperar o vigor analítico que se tinha no passado. Se Economia Política é entendida como sinônimo de Economia, não há razões científicas relevantes para avançar nessa temática. Assim, introdução à Economia é simplesmente introdução à Economia Política e vice-versa. Iniciar a análise econômica discutindo economia clássica ou elementos introdutórios a microeconomia e macroeconomia não traz diferenças significativas aos resultados obtidos pela teoria e pela prática. Se Economia Política é entendida como a “pré-história” do pensamento econômico (ou uma “economia clássica”, encerrada com John Stuart Mill), sendo sua história marcada inicialmente pelos trabalhos pioneiros dos primeiros marginalistas, tem-se um vazio, no qual Marx não encontra lugar (TEIXEIRA, 2000). No entanto, se Economia Política é compreendida como as doutrinas econômicas que se baseavam na teoria do valor-trabalho, seria possível ler Smith, Ricardo e mesmo Marx como uma linha sucessória 15 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA de análise, podendo-se chegar à conclusão, talvez, de que Marx não passaria de um “ricardiano menor” (como sugeriu Schumpeter em sua História da Análise Econômica). A questão de fundo, que se buscará destacar no decorrer do livro e que é indispensável ao aprendizado da crítica da Economia Política de Marx (e de alguns de seus sucessores), é que, ao criticar as ideias de seus antecessores, notadamente Adam Smith e David Ricardo, Marx não apenas constitui um método diferente de pesquisa em Economia Política como, em especial, aborda um novo objeto de investigação, com uma também nova teoria. Inicialmente, trataremos do estado da Economia Política na época de Marx. Posteriormente, veremos seu percurso teórico até O Capital, obra que será nossa referência para as discussões mais detalhadas apresentadas na sequência, já que ela é não apenas sua obra mais robusta, mas também aquela que se dedica a investigar o modo de produção capitalista e suas correspondentes relações de produção e circulação. Retomaremos posteriormente essa questão da mudança de objeto, método e teoria empreendida por Marx em O Capital, que ficará mais clara apenas depois de iniciado nosso percurso. Afinal, como nos lembra Marx (2013, p. 77): “todo começo é difícil, e isso vale para toda ciência”. 1.2 A evolução da problemática da Economia Política Já na primeira página de O Capital, nós nos deparamos com nomes como Nicholas Barbon e John Locke. O próprio Marx reconhece (no prefácio da primeira edição de O Capital) que “a compreensão do primeiro capítulo, em especial da parte que contém a análise da mercadoria, apresentará a dificuldade maior”. Ora, “na análise das formas econômicas não podemos nos servir de microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração [Abstraktionskraft] deve substituir-se a ambos” (MARX, 2013, p. 78). Um estudo impaciente da obra O Capital poderia concluir que isso não passa de sutilezas, mas, novamente seguindo a apresentação de Marx, essas sutilezas são semelhantes àquelas que analogamente interessam à anatomia micrológica quando estudamos Biologia. Desse modo, o resgate e o posicionamento da problemática da Economia Política (anterior a Marx) não devem ser vistos como um capricho ou apenas a demonstração de domínio da literatura existente; sua causa é muito mais séria e profunda. 1.2.1 O problema da Teoria do Valor no mercantilismo Ainda dentro da literatura mercantilista inglesa (em meados do século XVII), a necessidade de se justificar algumas medidas práticas como as proibições à exportação de moedas exigiu uma crescente preocupação com a teoria (RUBIN, 2014). Nesse período sequer havia isso que chamamos de Ciência Econômica; e muito menos uma sistematização teórica que fosse reconhecida como Economia Política; mesmo assim, já com uma forma moderna, surgiu o problema do valor. 16 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Figura 1 – Pátio da antiga Bolsa de Amsterdã, que reunia os mais importantes mercadores da Europa A figura representa a importância de Amsterdã como um dos centros do capitalismo comercial. As práticas mercantilistas predominaram na Europa entre os séculos XV e XVIII. O momento histórico, em que o problema do valor é exatamente aquele da formação dos Estados nacionais e de expansão e generalização de relações mercantis, colocava a questão da gestão da Política Econômica na ordem do dia daqueles interessados por assuntos econômicos (TEIXEIRA, 2000). Essas questões atraíam desde pensadores de Filosofia Política até aqueles voltados para problemas eminentemente práticos (gestão das moedas nacionais, formas de tributação, práticas comerciais, processo de formação dos preços nos mercados etc.). Mas, afinal, que problema é esse? Ora, durante o período das oficinas medievais (guildas e corporações de ofício baseadas ainda em vínculos sociais feudais), os preços dos bens eram determinados e regulados pelas guildas de artesãos e comerciantes, bem como pelas autoridades municipais. Esses preços eram fixados com vistas a garantir um “retorno digno”1 pelo trabalho empreendido. É com o desenvolvimento da economia capitalistaque a questão da formação dos preços passa a ser tratada como um problema prático2 (e teórico). Aquela regulação feudal estava sendo substituída pela 1 Já nos escritos canônicos do século XIII – por exemplo, em São Tomás de Aquino –, encontramos a afirmação de que o preço de um produto depende da quantidade de trabalho e dos gastos em sua produção. Contudo, o que esses textos apontavam não era para um preço estabelecido pela concorrência em mercados, mas sim o chamado preço justo, que deveria ser estabelecido pelas autoridades medievais para manter as condições de vida dos artesãos. Ou seja, trata-se de um terreno econômico de produção artesanal, e não de produção capitalista moderna. 2 Observando a “trajetória profissional” de alguns dos precursores da Economia Política, eles não poderiam ser considerados “economistas profissionais”; os problemas econômicos costumam ser examinados muito mais por meio da apropriação de métodos e perspectivas de outras ciências do que de reflexões específicas de uma nova ciência. Como afirma Aloísio Teixeira (2000, p. 94): “Basta lembrar que Wiliam Petty e Quesnay eram médicos; Say trabalhou em bancos e companhia de seguro, posteriormente foi jornalista e empresário têxtil, e, finalmente, professor de Economia; Ricardo foi um homem de negócios que fez fortuna na Bolsa; Malthus era sacerdote da Igreja Anglicana; Marx estudou Direito, em Bonn e Berlim, mas defendeu sua tese de doutoramento em Filosofia; David Hume vem da Filosofia Moral, bem como Adam Smith. O mais próximo da exceção foi Stuart Mill – filho de um economista, James Mill –, que não só teve uma educação acadêmica formal, mas desde cedo iniciou-se no estudo dos problemas econômicos, orientado pelo pai”. 17 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA formação dos preços em mercado, resultado de novos fenômenos como a concorrência e a relação entre produtores e consumidores de mercadorias. A questão normativa [o dever ser] do “preço justo”, baseada em noções particulares de justiça e autoridade, agora deveria ser tratada de uma outra forma. A pergunta não é mais “Qual deve ser o preço? ”, mas sim “Como construir uma teoria científica capaz de responder o que regula a formação dos preços tal qual ela ocorre no mercado? ”. Essa vai ser uma das perguntas que terão uma resposta sistemática e consistente teoricamente apenas com Adam Smith, autor que expressa precisamente o ápice das investigações naquilo que posteriormente a ele será chamado de Economia Política. Não se trata aqui de considerarmos que os autores anteriores a Smith tenham sido menos capazes cientificamente em dar uma boa resposta. A questão é que, durante o desenvolvimento primitivo do capitalismo, encontrar uma regularidade para a formação dos preços não era uma tarefa fácil para ninguém, afinal a livre-concorrência era ainda uma realidade bastante limitada e atacada pelas corporações medievais e mesmo pelas regulações mercantilistas (por exemplo, os direitos de monopólio atribuídos a companhias de comércio). Hoje em dia, pode parecer algo supérfluo continuarmos “perdendo tempo” com esse tipo de questão. Isso deveria ser algo para estimular apenas a curiosidade de historiadores e que não teria mais muita relação com a Economia propriamente dita. Afinal, sabemos hoje que o que regula os preços é precisamente a relação entre oferta e demanda, informação essa que é, aliás, cotidianamente reafirmada no jornalismo econômico. Mas o que nos diz a chamada Lei da Oferta e da Demanda? Em termos mais simples, dado um bem específico, se há um volume de demanda superior à capacidade de oferta, é de se esperar que o preço desse bem suba; já se a relação entre oferta e demanda for inversa (mais oferta do que demanda), é de se esperar que o preço caia. Bem, como aponta Rubin (2014), essa resposta, que pode parecer satisfatória e atual, não é tão nova assim. Apenas a título de ilustração, em 1691, o filósofo John Locke, em Considerações sobre as Consequências da Redução do Juro, já afirmava isso. Em certo sentido, é possível afirmar que essa ideia, inserida nos primeiros passos da Teoria da Oferta e da Demanda, é basicamente uma alternativa ao insucesso de descobrir alguma regularidade determinada por leis econômicas objetivas para o problema da formação dos preços. Por que é possível afirmar isso? Quando se trata assim da chamada Lei da Oferta e da Demanda, o que temos é simplesmente aquilo que a Economia Política clássica chamou de valor de troca (e que exploraremos em mais detalhes no decorrer do curso). Esse valor de troca só pode ser tomado como algo singular, casual, já que ele só pode ser entendido num determinado lugar e num dado momento. 18 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Assim, a conclusão só pode ser a de que nenhuma mercadoria possui um valor ou um preço determinável de modo preciso, conclusão essa que, como sabemos, é uma das bases das teorias subjetivas do valor. Cabe apontarmos aqui uma pergunta curiosa. Seguindo nossa discussão, os primeiros elementos da Teoria da Oferta e da Demanda e mesmo das teorias utilitaristas são anteriores à obra de Adam Smith, tendo sido já colocados por escritores considerados mercantilistas. Por que então Adam Smith, David Ricardo e mesmo Karl Marx não trabalharam nessa problemática? Há mais de uma resposta para essa questão. Por ora, mencionaremos apenas uma primeira resposta (outras serão apresentadas mais adiante): o próprio desenvolvimento econômico capitalista, com a expansão da livre-concorrência e o surgimento do capitalismo industrial, apontou o aspecto insuficiente de se considerar a formação dos preços como algo quase acidental, ou simplesmente natural. O capitalista industrial já não considerava seu preço de venda como o mero resultado acidental entre oferta e demanda. Esse industrial deveria avaliar qual o nível esperado de demanda no futuro, e seu preço de venda deveria, no limite, compensar seus custos de produção (o que hoje comumente chamamos de considerar os custos mais a margem de lucro para formar o preço). Desse modo, podemos afirmar que o próprio desenvolvimento econômico alterou a problemática dos preços para além da relação entre oferta e demanda. Para precisar esses custos, se deveria calcular a quantidade de mercadorias produzidas pelos trabalhadores, o valor dos meios de subsistência dos trabalhadores, o valor das matérias-primas e dos insumos utilizados na produção e o valor dos instrumentos de trabalho envolvidos na atividade. Essa é, como aponta Rubin (2014), a Teoria dos Custos de Produção de James Steuart (1712–1780), um dos últimos “economistas mercantilistas”. Segundo sua análise, o somatório desses elementos envolvidos na produção (o “valor real” da mercadoria) não poderia ser maior do que o preço de venda do bem. A diferença entre o preço da mercadoria e seu “valor real” (noutros termos, o mais-valor expresso por essa diferença) seria precisamente o lucro do manufaturador. Resta assim apenas uma pequena questão: o que determina a magnitude desse lucro? Ainda segundo Rubin (2014), esse foi precisamente um limite fundamental da teoria de James Steuart (1713–1780), pois ela foi incapaz de responder satisfatoriamente a essa questão. Para os mercantilistas, uma nação se tornava rica quando mantinha uma balança comercial favorável, isto é, exportava mais do que importava. Assim, seria possível acumular metais preciosos a partir da comercialização de produtos. 19 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Exportações Importações Figura 2 Saiba mais James Steuarté o autor de An Inquiry into the Principles of Political Economy, Being an Essay on the Science of Domestic Policy in Free Nations (1767), tido por muitos como provavelmente o primeiro tratado sistemático escrito em inglês sobre economia e o primeiro livro em inglês com o termo Economia Política no título. STEUART, J. An inquiry into the principles of Political Economy, being an essay on the science of domestic policy in free nations. Londres: Millar and Cadell, 1767. Com o já mencionado desenvolvimento econômico capitalista, esse ponto, que pode ficar em aberto durante o período mercantilista, se estabeleceu como algo central na problemática estabelecida pela Economia Política clássica (especialmente Adam Smith e David Ricardo), tendo importantes repercussões e centralidade no arcabouço teórico de Marx. 1.2.2 Adam Smith e a problemática da Economia Política clássica É importante lembrarmos que, diferentemente de alguns escritores mercantilistas, Smith não poderia ser considerado um “homem prático” (entendido como um debatedor de questões práticas cotidianas), tendo se voltado desde a juventude ao estudo de Filosofia. Aos 28 anos, ele se estabeleceu como professor na Universidade de Glasgow, ministrando ali um admirável curso de Filosofia Moral que não se limitava somente à ética, indo desde Teologia e Direito Natural ao que hoje podemos chamar de Política Econômica. 20 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Lembrete Na época de Smith, a Universidade de Glasgow não tinha um curso específico de Economia Política, afinal ela não era considerada uma ciência independente. Será após Smith que isso mudará. Novamente, é interessante destacar que a menção à trajetória de Smith não é simples ilustração. Ela aponta para um ponto importante: a Teoria Econômica de Smith é profundamente vinculada a sua doutrina do direito natural.3 Podemos estabelecer, de modo simplificado, o problema central da Filosofia Política de sua época da seguinte maneira: como compreender a vida social sem necessariamente recorrermos a pressupostos metafísicos (por exemplo, os seres humanos são naturalmente bons ou os seres humanos são naturalmente egoístas)? A resposta dada na Idade Média era a de que a coesão social é mantida por dois princípios fundamentais, a autoridade e a fé, sendo ambos sustentados pela suposição da existência de Deus. Com o desenvolvimento de um pensamento social moderno, o problema tornou-se o seguinte: Como é possível a vida em sociedade se esses dois princípios e a sua justificação metafísica são deixados de lado? As primeiras tentativas modernas consagradas de resposta afirmavam que, sendo os seres humanos naturalmente egoístas, é impossível a existência de vida social sem um Estado absoluto. A autoridade desse Estado, por sua vez, não está fundamentada na fé ou na obediência religiosa, mas se baseia no monopólio do poder (que não necessita de legitimação). Os cidadãos, por sua vez, conscientes de um “contrato social” e motivados pelo instinto de sobrevivência e desejo de segurança, não podem fazer outra coisa senão obedecer. Assim, é o poder que dá fundamento ao Estado, e é esse Estado que torna possível a vida social harmoniosa. Contudo, com as chamadas revoluções burguesas do século XVII (a Revolução Gloriosa, de 1688, e a Declaração dos Direitos do Homem, de 1689), temos um novo questionamento: se é verdade que “dinheiro é poder”, as classes sociais emergentes (criadas pelo desenvolvimento capitalista) têm direitos (que não são reconhecidos pelos Estados absolutistas). 3 Conjunto de teorias que apontam haver uma “ordem natural” que pressupõe a livre expressão da atividade humana. Nessa linha, a “ordem positiva”, baseada em leis e convenções estatais, só será legítima se não estiver em conflito com a “ordem natural”. 21 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Ora, é necessária então uma nova Filosofia Política capaz de justificar a sociedade civil de um modo independente do Estado. A grande genialidade de Smith vai se assentar exatamente no modo pelo qual ele responde a esses questionamentos abertos pela Filosofia Política. Continuemos pacientemente um pouco mais nessa trilha; em breve ela nos oferecerá respostas bastante interessantes. Primeiro, vamos sintetizar as questões colocadas anteriormente numa só, tomando a Filosofia Política de Thomas Hobbes (aquele da famosa afirmação de que “o homem é o lobo do homem”): Se o Leviatã assumiu o egoísmo natural dos indivíduos para justificar o Estado, agora se torna necessário demonstrar como uma vida social livre é possível, mesmo na presença de indivíduos egoístas. Observação Como uma esfera de destaque do egoísmo é a atividade econômica, veremos que a resposta passará pela mudança de foco da política para a economia, com uma “Economia Política”. Como apontam Screpanti e Zamagni (2005), uma resposta é aquela articulada em torno das filosofias do direito natural, mas que traz consigo um outro problema: como o direito natural, balizado por uma certa base “igualitarista”, é capaz de justificar a desigualdade na distribuição da propriedade e da riqueza? Outra resposta, alternativa, é pressupormos não o egoísmo, mas sim a existência de uma “benevolência natural” (ou “sentimento moral“) que os seres humanos experimentam entre si. Nessa linha, não sendo naturalmente egoístas, as pessoas tendem espontaneamente a associar-se (sem necessidade de intervenção externa que dê sentido à vida social). O infortúnio dessa resposta é que ela simplesmente assume uma estrutura diferente de comportamento humano, ou seja, ainda carrega uma suposição metafísica arbitrária, e, para piorar, contrária ao senso comum. O percurso teórico de Smith se dá inicialmente na trilha dos sentimentos morais; contudo, em Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações (1776), temos um retorno à problemática estabelecida pelo naturalismo egoísta. 22 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Figura 3 Ora, mas se na obra A Riqueza das Nações Smith volta a transitar no terreno do egoísmo natural, quais são afinal sua tão citada genialidade e seu brilhantismo? Sua principal contribuição, que o tornaria tanto um dos pais fundadores da Ciência Econômica como do liberalismo moderno, foi inovar dentro dessa tradição do Direito Natural. A superação está em aceitar a existência de um “princípio de altruísmo” como dominante em todas as esferas do comportamento humano, exceto uma em particular, na qual impera o egoísmo, sendo essa justamente a que se relaciona com a obtenção de riquezas materiais (TEIXEIRA, 2000). O procedimento “genial” de Smith é seguir nessa trilha até as suas últimas consequências lógicas, o que significa excluir inclusive a hipótese arbitrária de benevolência. Sua proposta se baseará em demonstrar única e simplesmente que os indivíduos servem ao interesse coletivo, precisamente, por serem guiados por interesses próprios (SCREPANTI; ZAMAGNI, 2005). Aliás, é basicamente assim que devemos entender o chamado teorema da mão invisível de Smith. Isso porque, como destaca Rubin (2014), para o autor, o progresso econômico abre um caminho para si mesmo, independentemente da estrutura jurídica ou do regime político. Escreve Smith: [...] no organismo político, o esforço natural que cada pessoa faz continuamente para melhorar sua própria condição representa um princípio de preservação suscetível de evitar e corrigir, sob muitos aspectos, os maus efeitos, até certo ponto, de uma Economia Política parcial e opressiva. Tal Economia Política,ainda que indubitavelmente retarde, em grau maior ou menor, o impulso natural de uma nação rumo à riqueza e à prosperidade, nem sempre é capaz de sustentá-lo inteiramente, e muito menos de fazê-lo retroceder. Se uma nação não pudesse prosperar a não ser desfrutando de 23 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA liberdade e justiça completas, jamais haveria no mundo uma única nação que conseguisse ter prosperado (SMITH, 1985, livro 2, p. 159). Essa passagem é ilustrativa desse fundamental procedimento teórico que significa separar o estudo da Economia Política do estudo do direito natural. Como aponta Smith, as forças econômicas baseadas no egoísmo e no princípio da preservação são superiores e dispensam o exame do ambiente político no qual se dá “o esforço natural de cada pessoa” (SMITH, 1985, livro 2, p. 159). Podemos dizer que é através da radicalização dos pressupostos do direito natural, a ponto de torná-lo dispensável, que Smith apresenta uma das mais importantes realizações da Economia Política clássica: converter-se em uma ciência autônoma. A necessidade do Estado é simplesmente garantir que quando cada indivíduo buscar realizar seus interesses, isso não impeça os demais de buscarem realizar os deles. Contudo, os resultados alcançados por Smith não serão sem custos, algo que será apontado posteriormente por Marx ao executar sua crítica da Economia Política. Ao mesmo tempo que a proposição básica do autor escocês assinala uma concepção sociológica que vê nos fenômenos socioeconômicos o resultado das ações individuais ditadas pelo autointeresse, portanto, dotados de um aspecto “natural” (as leis econômicas apresentam uma regularidade “natural”, lembre-se, independentemente do corpo político), faz de Smith um dos fundadores dos economistas teóricos (RUBIN, 2014), e um dos mais importantes porta-vozes do liberalismo econômico. Isso porque essa “naturalidade” tem também um sentido prático: quando os fenômenos econômicos se dão “naturalmente”, leia-se sem a interferência do Estado, eles trazem o máximo de benefício para todos os indivíduos e, portanto, para toda a sociedade. Essa é uma das razões pelas quais Marx utilizará, às vezes de modo intercambiável, os termos Economia Política clássica e Economia Política burguesa, apontado para o fato de que é impossível separar completamente o teórico do ideológico (porta-voz do interesse de um grupo ou uma classe social particular). Isso ficará mais claro ainda se resgatarmos um pouco da Teoria da Distribuição da Riqueza Econômica, de Smith. Antes de apresentar sinteticamente alguns elementos da Teoria da Distribuição de Smith, avalie o seguinte: “O governo civil, na medida em que é instituído para garantir a propriedade, de fato o é para a defesa dos ricos contra os pobres, ou daqueles que têm alguma propriedade contra os que não possuem propriedade alguma” (SMITH, 1985, livro 2, p. 192). Essa frase, que num outro contexto muitos poderiam presumir ser de Marx, é na realidade uma passagem de A Riqueza das Nações. Ela pode ser examinada no quadro da Teoria Sociológica existente no texto de Smith. Como apontam Hunt e Lautzenheiser (2013), o tipo de relação de propriedade existente num dado território pode ser considerado a chave para se determinar e compreender a forma de governo. Além disso, segundo esses autores, há em Smith uma análise própria das circunstâncias particulares de subordinação social (tanto institucionalizada quanto coercitiva). Colocando esse tópico de maneira clara, em Smith (bem como em Ricardo), a Teoria da Distribuição parte da descrição da sociedade dividida em classes sociais. 24 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Temos assim já um ponto relevante de desmistificação e tentativa de superação de algumas incompreensões e resistências a argumentos de Marx. A existência de classes sociais, bem como o reconhecimento de conflitos entre elas, não é produto exclusivo do pensamento de Marx. A propósito, o próprio Marx reconhece não ter sido ele o primeiro a identificar tais fenômenos. De fato, a inventividade analítica dessa divisão social em classes se tornaria um ponto pacífico para todas as obras relevantes da Economia Política clássica. Dessa forma, é inevitável reconhecer que a genialidade de Smith não se resume no modo pelo qual ele “resolve” o problema da Filosofia Política de sua época; ela é mais ampla e, nesse mesmo sentido, mais intricada. Ao mesmo tempo que será considerado um dos arautos do liberalismo econômico, o mesmo Smith apresenta uma Teoria da Distribuição que reconhece classes sociais e lutas de classes. Como é possível essa curiosa conciliação entre liberalismo e análise de classes? A resposta apontada por Marx, e sustentada por muitos historiadores do pensamento econômico, está no momento histórico da obra de Smith. Segundo Isaac Rubin (2014): As visões otimistas de Smith – que, com todas as reservas que ele pôs sobre elas, fizeram dele o fundador do liberalismo econômico – só podiam aparecer numa época em que a burguesia industrial ainda desempenhava um papel progressivo e seu interesse coincidia com as necessidades do desenvolvimento econômico global da sociedade. O objetivo de Smith nunca foi de defender os interesses estreitos de mercadores e industriais, aos quais ele não nutria qualquer simpatia particular (RUBIN, 2014, p. 220, grifos do autor). Mas, afinal, como Smith operacionaliza seu raciocínio de modo a ser levado a concluir que os interesses da burguesia coincidem com os interesses gerais da sociedade? Vejamos: • A Teoria da Distribuição da Renda considera as “classes sociais básicas” (capitalistas, trabalhadores e proprietários de terra). Os critérios de diferenciação dessas classes são dados pelos recursos produtivos que possuem (capital, trabalho e terra) e pelo tipo de rendimento que auferem (lucros, salários e aluguéis). • Dada a relação entre recursos produtivos possuídos pelas classes e as formas de gasto de seus rendimentos, temos que: — Proprietários de terras: – não possuem capital produtivo; – não se interessam por crescimento; 25 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA – não têm estímulos para poupar e acumular capital, logo eles têm uma “propensão a poupar” igual a zero. – Conclusão parcial: não contribuem para o crescimento da riqueza da nação. — Trabalhadores: – só possuem o seu trabalho; – “caracterização sociopolítica”: a coalização dos capitalistas e sua influência no governo e no parlamento, além da competição no mercado de trabalho, tendem a empurrar os salários reais a níveis de subsistência. – Assim, a “propensão a poupar” também é zero. — Conclusão parcial: contribuem para a produção, mas não para o crescimento da riqueza de uma nação. — Capitalistas: – possuem capital produtivo e buscam sua ampliação. Logo, têm uma alta “propensão a poupar”. – Conclusão parcial: mais lucros significam maior crescimento da riqueza da nação. A conclusão geral desse raciocínio é que o interesse geral da nação coincide com o da classe capitalista (burguesa). Afinal, essa é a única classe que, além de contribuir para a produção de riqueza, tem capacidade de fazer a riqueza da nação se expandir. Junto a essa dimensão socioeconômica colocada por Smith, que parte de uma caracterização das classes e seus papéis, há ainda aquilo que Hunt e Lautzenheiser (2013) denominam de Teoria da História de Smith. Percorrendo com atenção a discussão colocada pela Riqueza das Nações, é possível concluir que a maneira pela qual os seres humanos produzem e distribuem as necessidadesmateriais é para Smith o mais importante determinante das instituições sociais de qualquer sociedade (o que engloba as relações interpessoais e de classe). Mais uma vez, cabe apontar que ela está nas críticas mais recorrentes não a Smith, mas, curiosamente, a Marx. Para algumas opiniões “razoáveis” e “sensatas”, ainda que se possa afirmar que Marx seja um autor relevante para o pensamento econômico, ele seria datado e superado, dentre outras coisas, pelo seu determinismo e economicismo. A crítica é que em Marx tudo acaba sendo subordinado a esse “negócio chamado capital”, não reconhecendo outras esferas tão ou mais importantes da vida social. Por ora, nesta etapa de nosso livro-texto, cabe desmistificar um pouco esse ponto. 26 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Cabe considerar que o modo pelo qual os seres humanos estabelecem relações para produzirem e reproduzirem a riqueza social é determinante para se entender a sociedade; é completamente diferente de afirmar que esse “modo de produzir”, em sua dimensão meramente econômica, esgota a análise da vida social. Na verdade, muito da confusão em torno dessa questão da relação entre Economia e sociedade está ligada a incompreensões em torno da Teoria do Valor, aquele problema que persegue o estudo do âmbito econômico desde pelo menos os escritos mercantilistas (para fazer um corte desse ponto apenas no seu aspecto mais “moderno”). É importante passarmos por esse terreno, muito mais árido e argucioso, do problema do valor, já que, em O Capital propriamente dito, assunto que abordaremos mais adiante, a dificuldade mais evidente de compreensão é ser o seu início uma discussão exaustiva da Teoria do Valor. Longe de ser algo trivial, ou mesmo supérfluo para o estudo contemporâneo de Ciência Econômica, os problemas vinculados a teorias do valor estão na base de desafios teóricos e práticos mais avançados, como economia monetária e financeira. Nesse ponto, é possível indagar o seguinte: que questão é essa que perpassa pela Teoria do Valor, e por que a insistência nesse ponto? A compreensão usual é que uma Teoria do Valor deve servir basicamente para permitir a explicação dos preços de mercado das mercadorias, ou seja, explicar as proporções pelas quais as mercadorias se trocam no mercado. Não é assim que, por exemplo, nós iniciamos a discussão em microeconomia? Depois de se discutir um pouco sobre mercado, para entrar no tema da escola do consumidor, coloca-se a questão das preferências e da utilidade (uma teoria subjetiva do valor). Contudo, mais uma vez, no caso de Smith, isso não é tão simples assim. Como lembra Carcanholo (2012), o próprio título de sua mais importante obra (Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações) já aponta para o fato de que produzir uma Teoria do Valor capaz de explicar os preços de mercado não era, necessariamente, o objetivo central de seu trabalho. Atentando-nos ao título de sua obra, é possível afirmar que, dentre seus objetivos, a Teoria do Valor aparece para subsidiar a compreensão e a análise da natureza da riqueza (na época capitalista). Desse modo, a problemática mercantilista (a relação direta de troca entre mercadorias), que será colocada novamente na realidade por David Ricardo, é atribuída equivocadamente também a Smith como questão central. Esse tipo de leitura, que acaba sendo autoritária – já que exige do autor respostas para aquilo que não coloca como questão –, atribui à Teoria do Valor a obrigatoriedade de ser imediatamente uma explicação para os preços de mercado das mercadorias. 27 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Tanto no caso de Smith como no de Marx (que veremos adiante), para se entender a relação entre valores e preços é indispensável compreender antes a natureza da riqueza. De acordo com a resposta sobre o caráter da riqueza, particularmente na época capitalista, é possível distinguir que valor e preço não são sinônimos, mas sim referem-se a fenômenos de níveis diferentes. O que é importante reter nesse momento é que, a despeito de leituras “ricardianas” ou “neoclássicas” de Smith e também de Marx, para se apreender as relações de troca é preciso responder antes a algumas questões sobre riqueza: i) Qual é a forma social específica e o propósito da riqueza?; ii) Qual a magnitude da riqueza e como ela é distribuída? Dessas duas questões surge uma terceira: qual é a medida específica da riqueza? Smith desenvolve sua resposta nos primeiros capítulos de A Riqueza das Nações problematizando a questão em termos “históricos”. Nos três primeiros capítulos de sua obra (mais gerais), a riqueza (seja ela social ou individual) é concebida como um conjunto maior ou menor de bens materiais úteis que são produto do trabalho humano, ou seja, um conjunto heterogêneo de bens, cujo crescimento é explicado pela divisão do trabalho. No quinto capítulo, todavia, a riqueza recebe uma outra distinção. Riqueza (social ou individual) é concebida como a capacidade de comandar, ou controlar, trabalho humano alheio (CARCANHOLO, 2012), ou seja, a forma social específica da riqueza, particularmente na época capitalista, é de uma relação social de domínio sobre seres humanos. Esse é na realidade um dos pontos de partida de Marx em O Capital e será indispensável para a superação das dificuldades encontradas pela Teoria Clássica do Valor-Trabalho. Podemos nos perguntar aqui o seguinte: apresentar duas concepções sobre a natureza da riqueza não seria algo incoerente?4 A resposta é negativa por dois motivos. O primeiro é que devemos reconhecer que o terreno da discussão nesses capítulos é histórico, ele diferencia o pré-capitalismo da época moderna. O segundo motivo é que tal diferenciação acaba estabelecendo uma dupla determinação para a riqueza – de um lado há o conteúdo material da riqueza (bens úteis, produtos do trabalho) e, de outro, há a forma social específica da riqueza (que é fruto da expansão das relações mercantis e da transformação da sociedade em um corpo social subordinado ao mercado). O problema de fato que existe em Smith é o de que o próprio autor não aceitará essa dupla determinação da riqueza descoberta por ele, buscando assim representá-la ora de uma forma, ora de outra (CARCANHOLO, 2012). 4 Essa indagação é, aliás, feita por David Ricardo, que aponta haver em Smith uma confusão na sua Teoria do Valor entre trabalho contido e trabalho comandado. 28 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Localizar e apreender essa problemática da Economia Política clássica inglesa é indispensável para o entendimento mais preciso dos procedimentos desenvolvidos por Marx em O Capital. Para destacar essa posição, tomemos o começo do capítulo 5 do livro I de A Riqueza das Nações. Afirma Smith: O preço real de cada coisa — ou seja, o que ela custa à pessoa que deseja adquiri-la — é o trabalho e o incômodo que custa a sua aquisição. O valor real de cada coisa, para a pessoa que a adquiriu e deseja vendê-la ou trocá-la por qualquer outra coisa, é o trabalho e o incômodo que a pessoa pode poupar a si mesma e pode impor a outros. O que é comprado com dinheiro ou com bens, é adquirido pelo trabalho, tanto quanto aquilo que adquirimos com o nosso próprio trabalho. Aquele dinheiro ou aqueles bens na realidade nos poupam este trabalho. Eles contêm o valor de uma certa quantidade de trabalho que permutamos por aquilo que, na ocasião, supomos conter o valor de uma quantidade igual. O trabalho foi o primeiro preço, o dinheiro de compra original que foi pago por todas as coisas. Não foi por ouroou por prata, mas pelo trabalho, que foi originalmente comprada toda a riqueza do mundo; e o valor dessa riqueza, para aqueles que a possuem, e desejam trocá-la por novos produtos, é exatamente igual à quantidade de trabalho que essa riqueza lhes dá condições de comprar ou comandar (SMITH, 1996, livro 1, p. 87-88, grifos nossos). Como apontam Screpanti e Zamagni (2005), há pelo menos duas maneiras de “interpretar” a teoria smithana do valor (que são, de fato, produto de correntes diferentes de pensamento econômico). Aquela que será apropriada pela Economia Política clássica e problematizada por Marx coloca a ênfase do argumento na produção dos valores das mercadorias (na quantidade de trabalho). Trabalho é assim assimilado como um investimento de energia, no limite, um serviço produtivo que pode ser especificado e medido. Nessa linha de interpretação, as relações de produção são fenômenos objetivos, assim como são objetivas as relações de troca. Isso significa que o papel produtivo do trabalho e o valor são independentes das escolhas dos indivíduos e de fatores psicológicos. Dentre as implicações dessa perspectiva, a Teoria da Distribuição deve se basear em noções de salário (salário natural, valor da força de trabalho etc.), e o excedente econômico (lucro) é visto como uma dedução do produto do trabalho, ele não necessita de fundamentações microeconômicas. Assim, a Teoria do Valor baseada no trabalho (seja ele incorporado, seja sua capacidade de comando de outros trabalhos) não pode deixar de ser uma teoria objetiva do valor e não requer fundamentos psicológicos. 29 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Uma outra interpretação, que se difundirá após Marx (veremos brevemente um dos porquês na próxima unidade), é aquela aceita por praticamente todos os economistas de origem “neoclássica”. Nessa outra linha, o destaque da citação de Smith é dado à dificuldade do trabalho (“o incômodo que a pessoa pode poupar a si mesma e pode impor a outros”). Trabalho é assim entendido como qualquer esforço doloroso da mente ou do corpo com vista a uma condição futura melhor do agente econômico. A implicação dessa outra linha interpretativa é a de que o trabalho é vinculado a uma utilidade negativa, sendo sua medida dada em dor, portanto impossível de ter uma definição objetiva. Afinal, cada indivíduo tem sua própria ideia de como o seu próprio trabalho é “doloroso”. A Teoria do Valor, vista como uma teoria subsidiária à teorização sobre preços, necessita fundamentos microeconômicos, pois ela centra sua análise nas escolhas individuais. Isso significa que tanto a Teoria da Distribuição da Riqueza como a Teoria do Valor são subjetivas (SCREPANTI; ZAMAGNI, 2005). Assim como Ricardo o fará, Marx não considerará como cientificamente válida a teorização subjetiva do valor – o que, apesar das possíveis críticas indevidas de Ricardo a Smith, pode ser considerado mais consoante com o sistema econômico do autor escocês. Seguindo as considerações de Carcanholo (2012), em Smith, a riqueza expressa uma relação social de domínio sobre trabalho alheio (dá a ideia de trabalho comandado). O trabalho, por sua vez, deve ser compreendido como o fundamento da riqueza. Sendo ele o fundamento da riqueza, a quantidade de trabalho é a grandeza da riqueza (sua magnitude). Essas considerações, portanto, nos permitem avaliar que a posse de uma mercadoria representa uma determinada riqueza, e a quantidade dessa riqueza é medida pela capacidade de comandar trabalho alheio. Tais elementos, ainda que insuficientes para termos uma visão ampliada do pensamento de Smith, o que também não é nosso objetivo aqui, contribuem para avaliarmos alguns elementos: • Existem classes sociais e elas são indispensáveis para se analisar e compreender a sociedade capitalista (“moderna”). • A Ciência Econômica é uma ciência autônoma e tem como objeto de estudo o modo pelo qual os seres humanos se organizam para produzir, circular e distribuir a riqueza socialmente criada. • O valor é um fenômeno objetivo, e a Teoria do Valor-Trabalho é porta de entrada para o esclarecimento dos demais pontos colocados à Ciência Econômica. • A mercadoria, expressão de uma forma social particular de produção de riqueza, possui um duplo caráter (conteúdo material e forma social), assim como a riqueza possui – sendo essa uma das mais importantes descobertas da Economia Política clássica. 30 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Ora, mas se de Smith podemos extrair todas essas considerações, o que haveria de novo nos economistas clássicos a ele subsequentes? Apesar de termos em Smith o ápice da sistematização científica para um conjunto de questões colocadas pela economia pré-clássica, há nele algumas contradições e incongruências (as primeiras delas tendo sido difundidas e reconhecidas amplamente com a obra de David Ricardo). Apoiado no próprio Marx, Francisco Teixeira (1995) enfatiza que em Smith parece haver uma contradição entre o fundamento/aspecto essencial dos fenômenos e a expressão positiva desses fenômenos existentes na produção capitalista, o que faz seu pensamento se mover sobre uma série de inconsistências (e mesmo incoerências). Em alguns momentos, Smith sustenta a dimensão essencial do problema, renunciando à devida compreensão da forma pela qual os fenômenos aparecem na realidade; noutros momentos, ele faz o movimento inverso. Contudo, mesmo aí há uma demonstração da genialidade de Smith, como destacam Carcanholo (2012) e Francisco Teixeira (1995). O nosso autor escocês acaba descobrindo algo que será exaustivamente enfatizado por Marx: o fato de que a realidade capitalista é contraditória. Nos termos colocados pelo próprio Marx: Smith move-se com grande ingenuidade em contradição contínua. Ora investiga as conexões causais das categorias econômicas ou a estrutura oculta do sistema econômico burguês. Ora junta a essa pesquisa as conexões tais como se exteriorizam na aparência dos fenômenos da concorrência, se manifestam, portanto, ao observador não científico e, do mesmo modo, ao que na prática está preso e interessado no processo da produção burguesa (MARX, 1980, p. 597-598). A quais contradições mais precisamente refere-se Marx? Sabemos que um dos objetos centrais de estudo por Smith é o valor de troca e que há uma diferença de cunho histórico entre os primeiros capítulos de A Riqueza das Nações e do quinto capítulo em diante. Nos primeiros capítulos, Smith estabelece sua Teoria do Valor com base num estágio primitivo da sociedade, o que para o autor significa, dentre outras coisas, a inexistência de propriedade privada. Nesse grau de desenvolvimento social, todo o produto do trabalho é de propriedade dos próprios trabalhadores, e, assim, a quantidade de trabalho incorporado nesses produtos é o único elemento que regula as relações de troca entre as mercadorias (a possibilidade de comandar o trabalho alheio mediante o próprio trabalho).5 5 A linha de raciocínio da possibilidade de comandar trabalho é relativamente simples e bastante interessante. Numa relação de troca entre os sujeitos A e B, tem-se um aspecto social importante: quando A troca sua mercadoria com a mercadoria de B, ele foi capaz de comandar o trabalho executado por B, que criou uma mercadoria diferente daquela produzida por A e que por ele agora é apropriada. 31 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Ora, seguindo os preceitos do direito natural, o valor produzido pelo trabalhador lhe pertence integralmente e, como a relação de troca se dá entre equivalentes, a remuneraçãodo trabalhador é igual ao valor do produto (salário e valor são de magnitudes idênticas). Contudo, com o desenvolvimento social para uma forma capitalista de produção de riqueza, é possível e esperado que o trabalho contido nas mercadorias seja capaz de comandar quantidades de trabalho alheio superiores. Como indica Rubin (2014), Smith herda dos mercantilistas o problema de encontrar uma medida para o valor. Ou seja, a tarefa da Teoria do Valor é encontrar a medida do valor. Além disso, o próprio raciocínio individualista de Smith lhe coloca como questão prática a ser respondida aquilo que diz respeito imediatamente ao indivíduo: “Qual a importância que uma mercadoria tem para mim?”, isto é, “Qual é a medida do valor de troca?”. A resposta apontada é que a medida do valor de uma mercadoria é a quantidade de trabalho que pode ser adquirida e comprada em troca dessa mercadoria. Seguindo Rubin (2014, p. 238), quando dizemos que numa sociedade de simples produtores de mercadorias todos os seus membros trocam o seu próprio trabalho, usamos o termo troca em dois sentidos diferentes. Nesse estágio “primitivo” (sem propriedade privada), os produtos do trabalho (mercadorias) são efetivamente trocados no mercado, contudo a atividade laboral dos indivíduos (o “trabalho”) não é comprada ou vendida, ela é apenas equiparada. Desse modo, afirmar que há uma troca de trabalho significa apenas que eles são socialmente iguais, mas não significa que eles são igualados no mercado. Esse é um ponto fundamental para a compreensão dos primeiros capítulos de O Capital de Marx: não existe troca entre trabalhos, mas tão somente entre produtos do trabalho. É apenas assumindo isso que podemos chegar à diferenciação entre trabalho e força de trabalho. Cabe apontar ainda que esse ponto persegue não apenas a Ciência Econômica em seus primórdios, mas praticamente todo o pensamento econômico contemporâneo que não diferencia capitalismo de uma economia de produtores livres e iguais. Isso fica claro no próprio Smith, quando ele passa ao estágio capitalista de desenvolvimento social. Se com a introdução da propriedade privada capitalista e da acumulação de capital há de se remunerar o empresário (garantir seu lucro na distribuição dos rendimentos), o trabalhador deve receber menos que a quantidade de trabalho comandável pelas mercadorias criadas. Colocando a questão noutros termos, o trabalhador deve trabalhar por um tempo superior ao tempo necessário para pagar o seu salário e, assim, garantir o lucro do capitalista. Detalhe: essa conclusão é do próprio Smith, e não de Marx.6 6 Ainda que a conclusão de Marx possa parecer semelhante, ela é sensivelmente mais sofisticada, como veremos adiante. 32 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Resgatando a citação anterior de Marx, ingenuamente, Smith chega a um limite conclusivo: a necessidade de se diferenciar o trabalho como função social e o trabalho como mercadoria, conclusão essa que ele é incapaz de extrair, mas que já se encontra em sua própria obra, algo que não passará despercebido por Marx. Se o trabalho atua na sociedade capitalista como objeto passível de compra e venda, como pode ele mesmo servir como medida de valor? Caso Smith sustente que as mercadorias são trocadas de acordo com o tempo de trabalho nelas contido, ele deve ser obrigado a reconhecer que a troca entre capital e trabalho é uma troca de não equivalentes – posto que o trabalhador recebe uma quantidade de trabalho menor que aquela que ele entrega ao capitalista. Já no caso de Smith abandonar o tempo de trabalho como base da relação de equivalência entre mercadorias, é impossível explicar, seguindo seu próprio sistema teórico, o lucro a partir do trabalho (TEIXEIRA, 1995). Mas, afinal, é esse um limite de toda a Teoria do Valor-Trabalho? Muitos economistas e historiadores do pensamento econômico afirmarão que sim (em Ricardo, a situação apenas se complicará). E Marx, não sabia disso quando formulou sua Teoria do Valor? Como pôde ele insistir em uma teoria incoerente já em sua época? Sem dúvida Marx sabia desses problemas. Apenas adiantando um ponto, a saída de Marx será alterar a pergunta, que deixará de ser sobre o valor de troca, e alterar a problemática, que não será mais a de uma Teoria do Valor voltada para a medida dos valores, além de fazer modificações mais profundas, como de método e de objeto de análise. 1.2.3 David Ricardo e a estruturação da Teoria do Valor-Trabalho É razoavelmente aceito que a Teoria do Valor de David Ricardo, em seus aspectos mais precisos, não é de fácil apropriação, vide as diferentes versões que o autor apresentou para o primeiro capítulo de Princípios de Economia Política e Tributação (1817, com reedições em 1819 e 1821), como destaca, por exemplo, Carcanholo (2012). 33 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Figura 4 – Primeira edição dos Princípios de Economia Política e Tributação, de Ricardo É também reconhecido que a motivação inicial de suas investigações teóricas não era científica, mas eminentemente política, o que se evidencia com as reações a sua doutrina praticamente imediatamente após a sua morte e que se sustentaram pelo menos até a chamada Revolução Marginalista. Sem embargo, coube a Ricardo consolidar algumas das características mais gerais daquilo que ainda hoje chamamos de Economia Política. Primeiramente, já com o seu Ensaio Acerca da Influência do Baixo Preço do Cereal sobre os Lucros do Capital (1815), e, posteriormente, com os Princípios, tem-se o estabelecimento de um estilo específico à Economia Política: a construção de modelos abstratos (e dedutivos) de interpretação da dinâmica econômica (SCREPANTI; ZAMAGNI, 2005). O objeto da Economia Política também recebe uma definição precisa: determinar as leis que regem a distribuição do produto (da terra, por meio de trabalho, máquinas e capital) entre as três classes fundamentais (proprietários de terras, donos de capital e trabalhadores). Sabemos que dentre as “incoerências” de Smith está aquela em que se evidenciam suas próprias influências: a produção de uma Teoria do Valor que se concentra ora na quantidade objetiva de trabalho despendido (e suas relações também objetivas), ora em determinantes subjetivos dos esforços e “utilidade negativa” do trabalho. No interior das questões abertas por Smith, a saída formal encontrada por Ricardo para construir sua Teoria do Valor-Trabalho foi abandonar as tentativas de encontrar uma medida dos valores que fosse invariável. Na sua visão, o problema enfrentado por Smith se devia basicamente a se utilizar dois conceitos diferentes para o valor. 34 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Para superar os dilemas enfrentados por Smith, a própria noção de riqueza e o conceito de valor serão modificados e, pode-se dizer, inclusive empobrecidos. Riqueza será entendida como simplesmente um conjunto heterogêneo de bens e valor definido apenas pela dificuldade de se produzir mercadorias (particularmente, a quantidade de trabalho). Além disso, valor é sempre tratado como valor de troca (valor relativo ou preço relativo). Inclusive, a leitura de Marx inspirada numa visão proveniente de Ricardo e um dos elementos que prejudicam a compreensão da Teoria Marxiana. Se para Ricardo valor e valor de troca são sinônimos e devem expressar os preços relativos, para Marx não apenas valor é diferente de valor de troca, como eles não necessariamente expressam preços relativos. Dentre os méritos de Ricardo está o de deslocar definitivamente a problemática da economia capitalista doâmbito da circulação (que no caso do valor aparece sob a forma de trabalho comandável via mercado) para o âmbito da produção (valor determinado pelo trabalho incorporado nas mercadorias). Ricardo, quando publicou sua obra-prima em 1817, já havia incorporado nos seus estudos os avanços da Revolução Industrial inglesa. A seguir, uma imagem das máquinas industriais britânicas: Figura 5 Como ainda veremos, umas das operações de Marx será realizar uma “síntese” entre forma e conteúdo (fundamento e expressão dos fenômenos) que apareciam cindidas em Smith e que foram unilateralmente definidas em Ricardo. Outro elemento importante, e que ainda hoje nos ajuda a entender a tranquilidade com a qual Marx transita pelos resultados da Economia Política clássica, é a discussão apresentada por Ricardo já nas primeiras páginas dos seus Princípios sobre por que a utilidade (e mesmo o valor de uso) não é um tema relevante para reflexão. Primeiro, é óbvio que para um bem ter valor de troca ele deve ser útil, logo, a utilidade é indispensável para as mercadorias, mas disso não deriva ser ela determinante do valor. É usual se afirmar que a própria Ciência Econômica é a ciência que estuda a alocação eficiente de recursos escassos; porém, dentro do quadro colocado pela Economia Política clássica, e na crítica a esse 35 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA sistema teórico empreendida por Marx, isso não passa de uma compreensão “ingênua” (ou proveniente de má-fé, diria Marx) do objeto de análise. Ainda que, segundo Ricardo, o valor de troca tenha duas fontes – a escassez e a quantidade de trabalho –, ao se ter como objetivo analisar a reprodução da acumulação de capital, é indispensável reconhecer que a escassez não é tão relevante para a análise. Nas palavras de Ricardo: Sem dúvida, a maioria dos bens que são demandados é produzida pelo trabalho. E esses bens podem ser multiplicados não apenas num país, mas em vários, quase ilimitadamente, se estivermos dispostos a dedicar-lhes o trabalho necessário para obtê-los. Ao falar, portanto, das mercadorias, de seu valor de troca e das leis que regulam seus preços relativos, sempre nos referiremos somente àquelas mercadorias cuja quantidade pode ser aumentada pelo exercício da atividade humana, e em cuja produção a concorrência atua sem obstáculos (RICARDO, 1996, p. 24). Essa passagem não deve ser vista como uma colocação trivial ou ingênua proferida por um economista do início do século XIX. Como destaca Rubin (2014), essa é na realidade uma demonstração de profunda maturidade de pensamento, na medida em que delimita sua investigação a um quadro de desenvolvimento que pressupõe uma produção industrial de grande escala e de livre-concorrência (o que tende a expandir a variedade de bens reprodutíveis pelo trabalho humano). Outro avanço de Ricardo está em como ele responde às questões ligadas à reprodução determinada pela quantidade de trabalho despendido na produção. Por exemplo, quando nós examinamos o trabalho despendido, devemos considerar apenas o trabalho gasto diretamente na criação de um produto, ou devemos incluir todo o trabalho previamente despendido na manufatura (ferramentas, implementos, edificações etc.)? Essa pergunta, como aponta Rubin (2014), de fato questiona se o exame do trabalho despendido deve partir de seu aspecto subjetivo (direto) ou objetivo (mediado). A resposta adotada por Ricardo é que o valor deve ser examinado em seu aspecto objetivo, eliminando assim qualquer dúvida relacionada a esforços realizados no trabalho ou determinação de valor pela capacidade de comando de trabalho na esfera da circulação (mercado). Novamente, nos termos colocados por Ricardo, temos: Que este é realmente o fundamento do valor de troca de todas as coisas, à exceção daquelas que não podem ser multiplicadas pela atividade humana, eis uma doutrina de extrema importância na Economia Política; pois de nenhuma outra fonte brotam tantos erros nem tanta diferença de opinião, nesta ciência, quanto das ideias confusas que estão associadas à palavra valor. 36 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Se a quantidade de trabalho contida nas mercadorias determina o seu valor de troca, todo acréscimo nessa quantidade de trabalho deve aumentar o valor da mercadoria sobre a qual ela foi aplicada, assim como toda diminuição deve reduzi-lo (RICARDO, 1996, p. 25). Tal posição adotada por Ricardo não apenas o colocou contra a dualidade conceitual presente em Smith, levando-o a abdicar da busca de uma medida constante do valor (investigação aberta desde os escritores mercantilistas), como também abriu a possibilidade de se exporem exaustivas críticas à frágil Teoria da Oferta e da Demanda. Em seu sistema teórico, as mudanças quantitativas do valor (preço relativo, lembremos) das mercadorias são causalmente dependentes de mudanças na própria quantidade de trabalho despendido na produção. A relação entre oferta e demanda pode ter apenas um efeito temporário sobre o preço das mercadorias, sendo a produtividade do trabalho a causa última das mudanças de valor. Ainda nessa perspectiva, de acordo com o modo pelo qual o valor das mercadorias é determinado, não há uma relação entre a determinação do valor (dado na produção) e a forma pela qual o valor é repartido entre trabalhadores e capitalistas (dado na circulação). Segundo Ricardo, o “preço natural do trabalho”, o valor das mercadorias que o trabalhador recebe sob a forma de salário, é determinado pelo preço de bens necessários para sustento e reprodução do trabalhador e de sua família. Temos assim um avanço em direção a algo que será posteriormente precisado por Marx: a existência de uma diferença entre preço do trabalho e valor da força de trabalho. Contudo, para se realizar essa diferenciação, algo que estava latente em Smith deveria ser resgatado, a saber, a forma social do valor (para além de seus aspectos quantitativos). Essa não é uma questão menor, curiosidade de um tempo passado da Ciência Econômica, mas produz impactos importantes sobre a forma pela qual também o dinheiro deve ser analisado. Caberá a Marx resgatar a questão qualitativa da forma social específica da riqueza e o modo pelo qual ela se apresenta na realidade capitalista: valor, dinheiro, capital. Ora, se os preços relativos de duas mercadorias devem ser proporcionais aos trabalhos contidos nelas, o preço relativo de uma mercadoria claramente “depende da quantidade relativa de trabalho necessário para sua produção, e não da maior ou menor remuneração que é paga por esse trabalho” (RICARDO, 1996, p. 23). Como destacam Hunt e Lautzenheiser (2013), ao formular sua teoria, Ricardo primeiro afirma que os preços relativos das mercadorias são estritamente proporcionais ao trabalho nelas empregado (durante o processo produtivo), o que na realidade é uma hipótese simplificadora. Ao detalhar a discussão, ele é obrigado a reconhecer que esse princípio é modificado, dadas algumas circunstâncias. 37 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Supondo a uniformidade de taxa de lucro nos diferentes ramos empresariais (algo estabelecido pela livre concorrência), surge uma questão: uma modificação salarial acaba implicando uma alteração inversa na taxa geral de lucro. Isso se deve ao fato de que algumas empresas (mais intensivas em trabalho) serão mais afetadas que outras (que utilizam menos trabalho em relação ao capital). Desse modo, devido à alteração salarial, há uma tendência a se encontrar taxas de lucro diferentes. O reajuste nas taxas de lucro (movidopela concorrência entre os capitalistas) implica um reajuste em toda a estrutura de preços relativos (alguns preços se elevam e outros baixam). Assim, aquele princípio da proporcionalidade entre preços relativos e trabalho despendido acaba desaparecendo. Esse é um limite objetivo ao qual Ricardo não será capaz de oferecer uma resposta satisfatória (CARCANHOLO, 2012). De modo mais preciso, o que é colocado em questão com esse problema de diferentes composições produtivas (relação entre volume de capital e trabalho) é a explicação consistente da formação do excedente econômico (o processo de geração de mais-valor). Afinal, Ricardo não é capaz de explicar por que a jornada de trabalho, se materializada numa determinada magnitude de valores dos produtos, deve ser maior que o valor dos salários. A implicação, já reconhecida pelo próprio Adam Smith, é a de que na sociedade capitalista, com a acumulação de capital e sua exigência de lucros (supostamente uniformes), os preços não podem ser proporcionais aos trabalhos incorporados. Esse será tido como um limite crucial da Teoria do Valor-Trabalho formulada pela Economia Política clássica. Figura 6 – A vista aérea da cidade industrial inglesa de Sheffield, em 1855, permite observar as transformações geográficas na cidade 1.3 Conflitos sociais e o declínio da Economia Política clássica Os quarenta anos que separaram a publicação de A Riqueza das Nações (1776) de Smith dos Princípios de Economia Política e Tributação (1817) foram marcados por grande entusiasmo e otimismo. A Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa (1789) marcavam uma nova fase política e social na Europa e que se espraiava pelo mundo. 38 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Figura 7 – A Revolução Francesa, inauguradora dos ideais de liberdade, igualdade e... propriedade. Posteriormente, seria apropriada como referência para a emancipação humana Não é casual que, por exemplo, a obra de Smith seja capaz de transmitir uma visão progressista e harmoniosa da vida social inaugurada como mundo burguês. Não se tratava de romanticamente defender relações tradicionais feudais, vínculos de servidão e mesmo de agitação religiosa. Esse novo mundo burguês que se constituía exigia a compreensão não do “sentimentalismo”, mas das relações de troca generalizadas, do comportamento dos mercados, da nova divisão social do trabalho, não mais fundada em fé ou autoridade feudal. Foi, portanto, um período revolucionário que marcou um redesenho da Europa (sem contar a América). Contudo, a perspectiva de harmonia social apresentada pela Economia Política nascente conflitava com a eclosão de novos conflitos sociais, abertos pela revolução industrial e pela reorganização da divisão social. Por exemplo, ainda durante a gênese da revolução industrial, surgiram dentre as formas de rebelião dos trabalhadores as ações de destruição de máquinas. A compreensão dos trabalhadores era usualmente de que as máquinas haviam tomado seus empregos (e não de que elas haviam sido introduzidas para garantir maximização de lucros capitalistas). Em 1758, Hunt e Lautzenheiser (2013) apontam que, após ações de trabalhadores ingleses que destruíram muitas das primeiras máquinas de tosar lã, o parlamento inglês, em pânico, aprovou uma lei que ameaçava executar qualquer trabalhador que fosse apanhado destruindo uma máquina. Ainda segundo Hunt e Lautzenheiser (2013), a década de 1790, na Inglaterra, marcada pelo furor da Revolução Francesa, foi de generalizada inquietação trabalhista e de frequentes tentativas de criação de sindicatos. O temor com a crescente influência de autores radicais e com os movimentos sindicais fez que “os ingleses ricos” instituíssem a Lei da Associação (de trabalhadores), de 1799. O objetivo dessa lei era destruir o movimento sindical e preservar a fraqueza política dos trabalhadores. 39 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Figura 8 – Movimento cartista, manifestação dos trabalhadores como “classe social” Saiba mais O filme As Vinhas da Ira, de John Ford, retrata a Grande Depressão estadunidense e as consequências sociais. Neste filme, uma família pobre de trabalhadores rurais planeja migrar para a Califórnia, pois lá não faltava trabalho. O filme percorre toda essa expectativa de encontrar um lugar melhor. Veja o filme para saber o que aguardava a família: AS VINHAS da ira. Dir. John Ford. EUA: 20th Century Fox, 1940. 128 minutos. Como atestam Hunt e Lautzenheiser (2013), o cumprimento da lei era exercido com muita severidade, bastando muitas vezes argumentos acusatórios falhos, sem razoáveis evidências, para que as punições fossem aplicadas. A publicação dos Princípios de Ricardo se inscreve no momento histórico que ficou conhecido como Era da Restauração (período entre o Congresso de Viena de 1815 e as revoluções de 1848). Esse período foi marcado por transformações econômicas e sociais profundas, bem como por mudanças políticas significativas. A Restauração foi a tentativa aristocrática de restaurar a ordem absolutista tradicional, abalada pelos impactos da Revolução Francesa, particularmente pelas guerras napoleônicas. As características mais marcantes desse período podem ser extraídas dos dois países mais avançados da Europa na época: Inglaterra e França. 40 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Como apontam Screpanti e Zamagni (2005), é possível compreender o sistema político desses dois países dividindo as forças políticas em três grandes “partidos”: reacionário, liberal e democrata.7 A fase de 1815 a 1830 é, segundo os autores, o período estrito da Era da Restauração, em que o poder foi mantido firmemente pelas forças reacionárias. Em 1830, com a frente política entre as duas outras forças (liberais e democratas), foram instituídos os regimes parlamentaristas e constitucionais na França e na Inglaterra. Observação O Reform Act 1832 na Inglaterra, também conhecido como Grande Lei de Reforma, visou eliminar o sistema de bairros pobres, em que as regiões do campo, controladas pelos proprietários de terra, tinham maior representação parlamentar que os distritos eleitorais das cidades mais populosas, onde a maioria dos trabalhadores industriais e burgueses vivia. Após as reformas, a burguesia estava razoavelmente satisfeita. Todavia, o Partido Democrata se tornou cada vez mais radicalizado, adquirindo contornos socialistas. É nesse período que, na Inglaterra, alguns radicais se juntam ao movimento sindical, criando o Partido Cartista – uma agremiação política que lutava pela extensão dos direitos políticos a trabalhadores e que batalhavam por melhores condições sociais para o proletariado. Não foram poucas as tentativas de unificar reivindicações políticas democráticas e liberais a objetivos mais abrangentes de emancipação social (SCREPANTI; ZAMAGNI, 2005). Sem embargo, em vez de diminuírem, as lutas de classes se intensificaram a partir da década de 1830. O conflito de destaque até esse momento era aquele entre “proprietários de terras” e “capitalistas”. É nessa chave política que se deve ler as Teorias da Distribuição de Adam Smith e David Ricardo. A partir de 1830, o destaque passou a se dar na sociedade com o conflito entre massas populares e classes privilegiadas. Lembrete Em ambas as teorias, de Smith e Ricardo, os proprietários de terra são considerados uma classe social improdutiva. Ela não apenas vive de rendas provenientes das classes produtivas como compromete o crescimento econômico. Era nesse contexto de mudanças políticas e sociais que se moviam asinvestigações teóricas e propostas práticas da Economia Política. 7 Como ressaltam Screpanti e Zamagni (2005), esses “partidos” assumiam diferentes nomes, programas e estruturas políticas. O destaque é que essa estrutura “tripartite” do sistema político se manteve constante durante o período. O conceito adotado de partido é, portanto, diferente daquele usualmente utilizado, de uma agremiação política com objetivos político-eleitorais. Partido é aqui utilizado para identificar forças sociais bem-definidas em um contexto político também específico. 41 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Após a morte de David Ricardo (em 1823), começaram a surgir diversas críticas a sua teorização econômica. Mesmo em vida, Ricardo se deparou com correntes de pensamento econômico opostas à sua. Muito das polêmicas se estabelecia explicitamente em torno da contraposição entre protecionismo e livre-comércio. Além disso, a Teoria da Acumulação de Ricardo (sua discussão sobre a tendência à redução do valor de troca das mercadorias com o progresso técnico e as tendências da taxa de lucro) também era recorrentemente combatida, muitas vezes por meio de censuras morais (DOBB, 1973). No que se refere especialmente ao problema do valor, os ataques se deram criticando a noção de valor como algo incorporado na mercadoria. Para muitos críticos, o caso correto seria retornar à temática do valor relativo, como algo determinado pela interação entre oferta e demanda basicamente. Segundo Dobb (1973), a doutrina de Ricardo conseguiu manter sua influência até meados do século XIX, muito pela divulgação e pelos trabalhos de John Stuart Mill. Os ataques “reacionários” (no sentido de reagir e recuperar um momento anterior do passado) serão lidos por Marx (e mesmo por John Stuart Mill) como um “retrocesso” da investigação científica produzida pela Economia Política. Essa é uma das razões por que Marx chamará a maioria dos economistas posteriores a Ricardo e Mill de “economistas vulgares”. Num contexto de intensificação de lutas sociais, tomado pelos atores políticos envolvidos como luta de classes, considerar os interesses dos proprietários de terra opostos ao interesse de toda a sociedade (como sugeria Smith e como apresentou Ricardo) significava oferecer instrumentos teóricos para a prática política radical, já de viés socialista. Poderia dizer uma pessoa dessa época, razoavelmente ilustrada e comprometida com as condições de vida dos trabalhadores, o seguinte: “Ora, se segundo Ricardo o que cria valor é o trabalho, por que então a classe social que vive do trabalho tem condições de vida tão desfavoráveis? Não são os trabalhadores aqueles que produzem a riqueza da sociedade?”. A resposta a essas questões foi dada, por exemplo, por Thomas Hodgskin (1787-1869), um autor que exerceu forte influência sobre o movimento operário inglês (isso na década de 1820). A sua formulação sobre lucros e capital seguia claramente uma perspectiva aberta pela Teoria do Valor-Trabalho estabelecida por Ricardo. Mesmo que não apresentasse de modo sistematizado uma teoria sobre o problema do valor ou a origem do lucro, sua visão radical adquiriu razoável penetração social. Em sua análise, se o capital é produto do trabalho e o lucro nada mais é que parte dos produtos do trabalho, o lucro e a renda são na verdade “roubo legalizado”, nada mais. Está claro o perigo de se aceitar a teoria de Ricardo, ou qualquer teoria do valor fundamentada no trabalho. Isso, tempos depois, não passaria despercebido a Marx. Nos termos de nosso autor: Tomemos o caso da Inglaterra. Sua economia política clássica coincide com o período em que a luta de classes ainda não estava desenvolvida. Seu último grande representante, Ricardo, converte afinal, conscientemente, a antítese entre os interesses de classe, entre o salário e o lucro, entre o lucro e a renda da terra em 42 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I ponto de partida de suas investigações, concebendo essa antítese, ingenuamente, como uma lei natural da sociedade. Com isso, porém, a ciência burguesa da Economia chegara a seus limites intransponíveis (MARX, 2013, p. 85). Não são problemas de ordem científica que se impuseram como limite à Economia Política; foi o desenvolvimento dos conflitos sociais e das lutas de classes. Enquanto essas lutas eram ainda incipientes e marcadas pelo conflito entre capitalistas e proprietários de terras, a Economia Política foi capaz de sistematizar cientificamente a oposição entre os interesses de classes (como atestam Smith e Ricardo); porém, com a intensificação dessas lutas e a ascensão das lutas dos trabalhadores, a Economia Política encontraria seu limite intransponível (já que era intimamente vinculada a posições burguesas de classe). É diante desse contexto que Marx, por exemplo, dedicará severas considerações sobre os chamados “economistas vulgares”. Nesse contexto de difusão de movimentos sindicais, voltada para a obtenção de melhores condições de trabalho, uma das lutas importantes da época foi aquela pela regulamentação da jornada de trabalho de 10 horas e que contou com ferrenha oposição de economistas políticos (“vulgares”, qualificaria Marx). Um desses economistas foi Nassau Senior (1790-1864). Senior foi um dos primeiros formuladores da chamada Teoria da Abstinência, que afirma que o juro é um prêmio pela poupança. Em sua formulação, quando o capitalista se abstém de consumir, ele disponibiliza recursos a terceiros, recebendo uma remuneração pelo uso de sua renda poupada. Essa remuneração é o juro, um prêmio por não consumir. Algo parecido não é ensinado em manuais de Economia até hoje? Pois Senior tinha plena consciência das implicações sociais de suas formulações, sendo notória sua violenta oposição ao sindicalismo. Como apontam Hunt e Lautzenheiser (2013), o grande perigo na visão de Senior era que os sindicatos lutassem para estabelecer e difundir a ideia de que os salários deveriam refletir as necessidades da família de cada operário, e não somente o livre jogo entre oferta e demanda. Para Senior, as Leis dos Pobres, que se baseavam em um sistema de remuneração familiar para desempregados e pessoas carentes, diminuíam o incentivo dos empregados para o trabalho e geravam posturas arrogantes nos operários, que passavam a achar que suas famílias tinham direito a existir. Posição essa que, vale dizer, encontra eco mesmo nos dias atuais. Esse é também um dos motivos por que Marx identificava os “economistas vulgares” como sicofantas. Sobre esse tema, afirmaria Marx em O Capital: Tão logo os trabalhadores desvendam, portanto, o mistério de como é possível que, na mesma medida em que trabalham mais, produzem mais riqueza alheia, de como a força produtiva de seu trabalho pode aumentar ao mesmo tempo que sua função como meio de valorização do capital se torna cada vez mais precária para eles; tão logo descobrem que o grau de intensidade da concorrência entre eles mesmos depende inteiramente da pressão exercida pela superpopulação relativa; tão logo, portanto, procuram organizar, mediante trade’s unions [sindicatos] etc., uma cooperação planificada entre empregados e os desempregados com o objetivo de eliminar ou amenizar 43 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA as consequências ruinosas que aquela lei natural da produção capitalista acarreta para sua classe, o capital e seu sicofanta, o economista político, clamam contra a violação da “eterna” e, por assim dizer, “sagrada” lei da oferta e demanda (MARX, 2013, p. 715-716, grifos nossos). De modo sintético e esquemático,Screpanti e Zamagni (2005) dividem os economistas políticos ingleses após Ricardo em três grupos: ricardianos, ricardianos socialistas e antirricardianos. Na obra de Marx, é possível uma diferenciação sutilmente distinta; além dos evidentes antirricardianos, encontramos os ricardianos de esquerda e os ricardianos de direita (que Screpanti e Zamagni denominam socialistas e simplesmente ricardianos, respectivamente). Como veremos adiante, é muito difícil enquadrar Marx nessas linhas de pensamento pós-David Ricardo – primeiramente, porque Marx terá um contato com o movimento operário francês, muito mais radicalizado que na Inglaterra, e segundo, porque seu contato com a Economia Política já se inaugurará com um texto seminal de um jovem alemão que morava na Inglaterra chamado Engels. Como lembraria Marx já em sua maturidade, esse texto teria sido responsável por partir sua cabeça ao meio, o que veremos a seguir. Ainda neste livro-texto, discutiremos em mais detalhes o caráter da crítica empreendida por Marx. 2 O PERCURSO TEÓRICO DE MARX ATÉ O CAPITAL 2.1 Da Filosofia à crítica da Economia Política Marx nasceu na cidade de Trier8 em 1818, ano em que Simón Bolívar declara a Venezuela independente da Espanha. Em outubro de 1836, matricula-se no curso de direito em Berlim. A universidade era marcada pela sobriedade (diferente da outra, em Bonn, que frequentara até meados de 1836) e pela influência intelectual de seu fundador e maior filósofo que o mundo tivera pouco tempo antes: Georg Wilheim Hegel, falecido em 1831 (KONDER, 1983; MEHRING, 2014). Seu primeiro trabalho de razoável fôlego foi sua tese de doutorado sobre A Diferença da Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro, defendida em 1841. Observação Ter defendido uma tese de doutorado não significa que Marx fez o doutorado que hoje conhecemos, um curso de pós-graduação stricto sensu. Quem integralizava o curso (graduação) de Filosofia, escrevendo uma monografia, recebia o título de doutor, o que dava a possibilidade de lecionar na universidade. 8 Cidade na região da Renânia (próxima da fronteira com a França e Luxemburgo), atual estado de Renânia-Palatinado na Alemanha. Entre 1798 e 1814, a cidade havia pertencido à França. Com a derrota de Napoleão, a Prússia anexou a região ao seu reinado. 44 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Para além de um trabalho maçante, ele já sugere alguns dos temas fundamentais que serão perseguidos durante sua trajetória intelectual. Numa obra em parceria com Engels intitulada A Sagrada Família (uma crítica a pensadores de influência hegeliana), bem como em A Ideologia Alemã, ficam claras as dívidas com o materialismo filosófico clássico (COLLIN, 2010). Ainda em 1841, Marx não consegue uma vaga como professor, e a situação se mostra agora mais adversa, com a ascensão de Frederico Guilherme IV ao trono da Prússia. O projeto de se tornar professor universitário é interrompido. Marx assume um emprego como jornalista, tornando-se editor-chefe de um jornal de oposição burguesa ao governo prussiano. É nesse período que nosso autor toma contato com a chamada miséria alemã. De modo menos filosófico, essa miséria alemã era compreendida como a profunda defasagem entre as instituições sociais e políticas da Alemanha, que não experimentou uma revolução burguesa de tipo clássica (em referência à Revolução Francesa) e que sequer se constitui como um Estado Nacional – o que havia era uma confederação germânica composta por cerca de 40 estados ainda marcados pelos vínculos com a religião. A miséria alemã se expressa como uma contradição entre uma cultura erudita e instituições sociopolíticas provenientes ainda do antigo regime. Aquele filósofo interessado em Filosofia grega, agora como editor de um jornal, precisa a partir de então lidar com os mais diversos assuntos e temas, e isso num contexto, como mencionado anteriormente, de intensos conflitos sociais. Por exemplo, responder filosoficamente a um conflito envolvendo “roubo” de lenha (com a mudança de uma lei, passou a ser crime pegar lenha de terras comunais) por camponeses. Sem contar as temáticas da publicidade dos debates parlamentares, a independência do Estado em relação à religião e liberdade de imprensa. Em vez de se resignar diante dessa “miséria”, Marx se opõe a ela, o que, é importante notar, é per se uma “tomada de partido”. Diante de um quadro marcado pela censura do Estado prussiano, após seu casamento Marx estabelece como projeto editar um periódico em Paris. Nesse momento, Marx já é um democrata radical e um materialista. Seu objetivo é articular o melhor do pensamento filosófico alemão à crítica social francesa, e encontra no liberal alemão Arnold Ruge as condições iniciais para tanto. No final de 1843, Marx chega a Paris (e ficaria ali até fevereiro de 1845). Mas uma pergunta relevante é: quem é (intelectualmente) esse Marx que chega a Paris? Ele é, ainda, um filósofo materialista. É na sua estadia em Paris que Marx terá os encontros decisivos de sua vida, que alterariam todo o seu horizonte e demarcariam seu universo intelectual. Tomando os debates filosóficos, que pela temática e pelo peso da censura já haviam se tornado eminentemente políticos, Marx empreende uma “revisão crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. Sua polêmica é com a questão da monarquia constitucional, que aparece na obra de Hegel como uma das expressões da realização da razão. 45 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Estando envolvido e preocupado com política, dada sua experiência como jornalista, Marx assume que para entender a política é indispensável entender o Estado. Como não adianta uma teorização do poder sem uma Teoria do Estado, Marx se dispõe, ainda como filósofo, a analisar a obra filosófica mais autorizada de sua época: Hegel. A introdução de seu estudo é publicada no periódico organizado por Arnold Ruge. Além da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (a introdução publicada e o manuscrito completo disponibilizado ao público no século XX), Marx redige seus Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 (também conhecidos como Manuscritos de Paris). Nos Manuscritos, seguindo Engels (que publicara um Esboço de Crítica da Economia Política no mesmo periódico organizado por Arnold Ruge), Marx recusa a Teoria do Valor, tal qual ela se apresentava na Economia Política inglesa. Pouco tempo depois, em 1847, na Miséria da Filosofia, uma crítica ao socialismo utópico, o mesmo Marx passa a recuperar a Teoria do Valor. Mas o que essa descrição de obras e trajetória tem a ver com nosso curso? Essa “descrição” é uma demonstração de que, desde suas obras de juventude, o pensamento de Marx é um pensamento aberto, não apenas a novas questões, como destacadamente à retificação de equívocos. Não se trata de doutrina ou dogma. Durante um trabalho intelectual que duraria quatro décadas, uma das características de Marx e Engels será o comprometimento da investigação teórica com a realidade concreta, e, como a realidade muda, o modo consequente de proceder é também transformando o pensamento. Sem embargo, a grande guinada intelectual de Marx se dá entre 1844 e 1846. É nesse período que se encontra o seu caráter verdadeiramente inovador. Aquele jovem que queria ser professor (aliás, por isso sua tese foi um estudo comparado entre dois filósofos gregos – dentre as exigências para assumir o cargo de professor estava a de avaliar se o candidato tinha domínio das línguas clássicas da Filosofia) é agora um materialista, um crítico da filosofia hegeliana e do idealismo filosófico alemão (inclusive criticando seus próprios amigos). Ao estudar a filosofia de Hegel, Marx identifica que háuma inversão no tratamento da sociedade civil (o reino dos interesses privados e de operação do mercado). Na perspectiva filosófica de Hegel, a sociedade é tomada como reino da miséria física e moral; é o Estado que introduz o princípio de racionalidade à totalidade social. A universalização racionalizada é introduzida pelo Estado (que tem como forma superior, lembremos, a monarquia constitucional). Contrapondo a Filosofia do Direito (e da História) de Hegel à realidade, a conclusão de Marx é de que não é possível que o Estado represente qualquer universalidade, exceto se essa tal universalidade for tomada de forma abstrata, sem parâmetro na realidade. Na perspectiva de Marx, um democrata radical, uma verdadeira universalidade concreta apenas poderia se realizar num regime inverso ao da monarquia, isto é, apenas na democracia. Todavia, mesmo observando essa inversão e já tendo uma posição clara, suas “conclusões” são articuladas apenas como oposição política à perspectiva de Hegel. Marx não dispõe de elementos teóricos para superar ou resolver a operação empreendida por Hegel. Se os princípios da universalidade e da racionalidade não estão no Estado, como sustenta a filosofia de Hegel, mas sim na sociedade, 46 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I é necessário entender a sociedade e, depois, o Estado. O problema é: como entender a sociedade, considerando que o maior representante da Filosofia (clássica) alemã não oferece condições para tanto? Em Paris, as chaves de resposta lhe serão apresentadas. O jovem filósofo e jornalista encontraria simultaneamente algumas figuras histórico-concretas (em aproximadamente seis meses). Primeiro, ele tem um encontro com a classe operária. Enquanto na Alemanha o operariado era ainda incipiente, Paris já dispunha de um forte movimento de trabalhadores. A título de ilustração, pouco tempo antes, em 1839, uma associação clandestina havia tentado tomar o poder na cidade. A crítica teórica de Marx encontra um sujeito histórico visto como capaz de realizar a transformação prática da sociedade, o sujeito da transformação política e material do mundo – o proletariado, cuja tarefa histórica é transformar radicalmente a realidade, fazer a “revolução”. (NETTO, 2012). De democrata radical, Marx torna-se comunista. Veja a figura a seguir. As revoluções de 1830 e 1848 tiveram como epicentro a França. Ao se espalharem pela Europa, elas foram marcadas pelo nacionalismo e pelo internacionalismo (socialista). As revoluções de 1848 ficaram conhecidas como Primavera dos Povos. Povos com uma mesma cultura, etnia e língua clamavam contra a partilha do Congresso de Viena. Além disso, essas revoluções apresentaram, pela primeira vez, um claro potencial socialista, com destaque para o proletariado urbano. Figura 9 A relação estabelecida com os trabalhadores é o que dará sentido à vida e à pesquisa de Marx. Mesmo que ele tenha plena consciência de não ser um proletário e de muito menos querer se passar por um, Marx faz uma opção política de classe. Começa aqui uma relação, a relação com os trabalhadores, que dará sentido à vida e à pesquisa de Marx – o comunismo marxiano, na medida em que sua opção toma corpo, é um comunismo proletário: Marx faz uma opção de classe. Ele tem plena consciência de que não é um proletário, nem quer fazer-se passar como tal – sem abrir mão de sua condição de intelectual, que lhe impõe requisições específicas (teóricas), vincula-se ao proletariado assumindo a sua perspectiva de classe e os seus interesses emancipatórios universais. 47 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA O segundo encontro (lembremos, não necessariamente nessa ordem, eles foram “simultâneos”) foi com a Economia Política. Se esse campo do conhecimento é a ciência da propriedade privada e do enriquecimento (aliás, algo que até os dias atuais costuma ser apresentado dessa forma, pois estudar economia é aprender o bom uso do dinheiro e do capital), é nela que se encontra a chave da crítica social. Ao ter contato com um artigo de um jovem filho de industrial, chamado Friedrich Engels, Marx passa a se dedicar ininterruptamente ao estudo de seus principais teóricos (Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill etc.). O encontro com Engels em 1844 inauguraria uma das maiores parcerias intelectuais do mundo moderno. Aquele jovem, que em 1843 considerava o comunismo uma abstração dogmática, em 1844 se afirma comunista e se decida à Economia Política. Expulso da França, sob pressão do governo alemão, em fevereiro de 1845, Marx emigra para a Bélgica. Em 1847, no prefácio de A Miséria da Filosofia, Marx se coloca como “alemão e economista”. Como lembra Collin (2010), o socialismo e o comunismo da década de 1840 eram bandeiras de seitas que se fechavam sob a boa vontade de quimeras, por meio de utopias e invenções de engenharia social, além de uma alta carga de religiosidade. Se o socialismo é ainda utópico, a Economia Política clássica é naturalista. Reconhecendo que “no princípio era a ação”, não basta com isso simplesmente incitar a ação. Após avançar sobre a crítica da Filosofia idealista alemã, é preciso passar para a crítica da Economia Política, essa ciência que recorrentemente se dá o desfrute de apresentar a lei do juro como se fosse semelhante às Leis de Newton (COLLIN, 2010). Figura 10 – Frontispício da primeira edição do Manifesto Comunista, de 1848. Escrito por Marx e Engels, foi o primeiro panfleto de lançamento de um partido que inicia sua apresentação com uma discussão “teórica” e de “conjuntura” econômica, política e social 48 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Contudo, criticar a Economia Política não significa diferenciar nos economistas o conhecimento “bom” do “mau”. A crítica do conhecimento “consiste em trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os seus condicionamentos e os seus limites – ao mesmo tempo em que se faz a verificação dos conteúdos desse conhecimento a partir dos processos históricos reais” (NETTO, 2011, p. 18). Um exame racional só é possível, na concepção de Marx, justamente pela tomada de posição junto à classe operária e à perspectiva comunista. Como afirma Marx em certa altura de O Capital: “A economia política clássica chega muito próximo à verdadeira relação das coisas, porém sem formulá-la conscientemente. Ela não poderá fazê-lo enquanto estiver coberta com sua pele burguesa” (MARX, 2013, p. 612). Como apresenta José Paulo Netto (2012), é no período de 1857 a 1865 que Marx começar a apresentar os primeiros resultados concretos de sua crítica da Economia Política. Nesse período, agora em sua plena maturidade intelectual e política, e apoiado em mais de dez anos de estudos, Marx começa a consolidar sua crítica. Desde o final da década de 1840, Marx anunciava aos amigos o desenvolvimento de uma pesquisa crítica sobre Economia Política. Contudo, com a crise econômica de 1857, ele interrompe parcialmente a pesquisa e publica em 1859 seu livro Contribuição à Crítica da Economia – na realidade, uma introdução crítica com comentários ainda não plenamente acabados. Os rascunhos que deram origem a esse material e que formam o primeiro “ensaio geral” do que seria publicado posteriormente como O Capital vieram à luz pública apenas no século XX, recebendo o título de edição de Grundisse – Manuscritos Econômicos de 1857-58 (Grundisse quer dizer rascunho em alemão). Como afirma Rosdolsky (2001), esse material dispõe a “gênese e estrutura de O Capital”. O Capital propriamente dito seria publicado quase uma década após a elaboração dessesmanuscritos e a publicação da Contribuição à Crítica... Além disso, quando publicada em 1867, a obra apresentava apenas o Livro I, sobre o processo de produção, com o compromisso de Marx de publicar mais dois livros (sobre a circulação e a reprodução do capital). Como veremos adiante, Marx não chegaria a publicar em vida esses dois livros, tarefa essa que seria assumida por Engels. 2.2 Uma obra considerável, multiforme e inacabada Como afirma Collin (2010), a obra de Marx, a despeito do que possam sugerir algumas críticas vulgares, é: i) considerável, ii) multiforme; iii) inacabada. Ela é considerável em volume. Ainda hoje não há nenhuma edição das obras completas de Marx e Engels, ainda que tenham existido projetos para tanto. Desses projetos, cabe destacar as Marx-Engels Werke (MEW), publicadas pelas antiga República Democrática Alemã, e a Marx-Engels Gesamtausgabe (Mega). 49 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Figura 11 –Karl Marx e O Capital (primeira edição alemã) Como lembra Gerald Hubmann (2012, p. 33), “as dificuldades no trato da obra completa e com o legado póstumo de Marx começaram já imediatamente depois da sua morte”. A obra econômica madura de Marx que recebe o nome O Capital compreende três livros. Vale destacar que existe um quarto livro (Livro 4), publicado com o título Teorias da Mais-Valia. Por não ter sido publicado por Engels, mas sim por Karl Kautsky (em 1905), ele não recebeu o título O Capital. Esse livro é, apesar de disponível, muito pouco estudado e conhecido, especialmente pela tradução que costuma receber (como História das Ideias Econômicas), o que acaba sugerindo ser uma obra de história do pensamento econômico, o que na realidade não é. Saiba mais Caso tenha interesse, esse livro pode ser facilmente encontrado na internet. Há, por exemplo, diversas versões disponíveis no excelente site <www.marxists.org>. Lá você pode encontrar não apenas muitas obras de Marx como também de autores marxistas e mesmo de não marxistas mencionados por Marx e importantes para o marxismo (por exemplo, textos de John Locke e James Steuart). O Livro 1, que analisa o processo de produção do capital, foi publicado originalmente em 1867, recebendo uma segunda edição em 1872. O Livro 2, sobre o processo de circulação do capital, foi publicado pela primeira vez em 1885, isto é, dois anos após a morte de Marx; esse livro foi organizado e editado por Friedrich Engels a partir dos manuscritos deixados por Marx. O mesmo ocorreu com o Livro 3, que trata do processo global de reprodução do capital, também publicado por Engels, mas já em 1894. Ou seja, o próprio Marx publicou apenas um livro de O Capital. 50 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Hubmann (2012) destaca que, apenas entre 1864 e 1875, Marx deixou ao todo 847 folhas de caderno e que apenas sobre as três primeiras seções do capítulo 1 foram deixadas mais de duzentas páginas manuscritas. Uma pergunta que pode surgir ao leitor é: por que então Engels se deu ao exaustivo trabalho de decifrar (afinal, num manuscrito quase ninguém se preocupa com a qualidade da caligrafia), organizar e mesmo redigir (inclusive algumas partes incompletas nos manuscritos originais) através de manuscritos de diversas épocas a obra de um defunto? Como ressalta Hubmann (2012), e que se pode extrair do próprio Engels (1986; 2013), o que tornou necessária a publicação dos livros foram as expectativas políticas criadas com a obra. Vale lembrar que, em diversos momentos da exposição no Livro 1, Marx faz menção a um posterior retorno do tema discutido nos Livros 2 e 3 (de modo mais concreto e mais sistematizado), o que acabava criando o caráter de suspense com o desenrolar do livro. Tanto companheiros e aliados políticos quanto adversários queriam saber o que eram esses livros faltantes de O Capital, chegando muitos a suspeitarem de que Marx jamais teria escrito nada sobre eles. Dentre os objetivos políticos estava também aquele de tornar o legado de Marx politicamente funcional e acessível aos trabalhadores. Aqui também vale lembrar que o “público-alvo” planejado por Marx para O Capital eram trabalhadores (tendo sido alguns capítulos de O Capital publicados inclusive sob a forma de fascículos de jornais operários). Voltaremos em breve a esse ponto sobre público-alvo e a atualidade. A primeira empreitada de realizar uma edição completa de Marx e Engels se deu logo após a Revolução Russa de 1917 com a criação do Instituto Marx-Engels, sediado em Moscou. O planejamento original envolvia quarenta volumes e abarcaria todo o material deixado pelos dois autores alemães. Esse é o projeto que foi chamado de primeira Mega (totalizaria 43 volumes, tendo sido efetivamente publicados 11 volumes). Em 1975, depois de diversos percalços políticos e ideológicos envolvidos no contexto da Guerra Fria e do estalinismo, foi organizado o primeiro volume da segunda Mega; essa nova edição foi organizada para ter 165 volumes duplos (o texto editado e o seu aparato crítico correspondente – com explicações dos editores, indicações textuais e correções feitas pelos próprios Marx e Engels). A título de curiosidade, esse foi o maior empreendimento de cooperação internacional entre soviéticos e alemães na área de ciências humanas, tendo envolvido cerda de 150 pessoas (HUBMANN, 2012). Retomando a afirmação inicial de Collin (2010), além de considerável, a obra de Marx é multiforme. Ela compreende obras propriamente filosóficas (destacadamente no período 1846-1847), obras de Economia Política (dentre as quais O Capital, nosso referencial de discussão no livro-texto, é a obra magna), ensaios, panfletos e artigos de intervenção política e social na realidade, com análises perspicazes e seminais sobre processos sociopolíticos concretos – por exemplo, O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte (sobre o golpe de Estado perpetrado na França em 1851) e As Lutas de Classe na França (sobre a Comuna de Paris, de 1871), em que a tomada de posição política e a centralidade da “luta de classes” passam a figurar com destaque. Para “complicar ainda mais”, além de ser considerável e multiforme, a obra de Marx é essencialmente inacabada. Exemplos: i) a primeira exposição filosófica do chamado materialismo histórico, fundado 51 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA por Marx e Engels, deu-se com A Ideologia Alemã, um livro que nunca foi publicado pelos autores, tendo sido “dedicado à crítica roedora dos ratos”, e que veio à luz apenas na década de 1930. Isto é, os primeiros marxistas e revolucionários do final do século XIX e início do século XX nunca tiveram contato com esse material; ii) um manuscrito responsável por reacender os debates no interior do marxismo (dominado pela visão oficial imprimida pelo estalinismo), que recebeu o título de Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 (ou simplesmente Manuscritos de Paris), só foi descoberto no século XX, tendo sua primeira edição ao público apenas em 1932. Nesses manuscritos, Marx pela primeira vez esboça um empreendimento de crítica filosófica à Economia Política inglesa (destacadamente Adam Smith, Jean Baptiste Say e David Ricardo). Não é de surpreender a variedade de usos (práticos e políticos, teóricos e analíticos, e variadas interpretações) que O Capital e as demais obras de Marx (e Engels) tenham adquirido na vida social até os dias de hoje. No caso do O Capital, como qualquer outra obra considerada socialmente um “clássico” (o que se dá independentemente de nossa posição individual sobre o assunto), sua compreensão não é imediatamente acessível,e seu alcance só se dá através da espessura histórica e da cultura. Como lembra Bidet (2010), a diversidade possível de acolhimento de O Capital provém ao mesmo tempo das divergências entre os variados “marxismos”, da divisão de trabalho entre as especialidades acadêmicas nas quais Marx é lido e destacadamente dos diversos tipos de interesses dirigidos à teoria – e que recebe as marcas das lutas sociais. 2.3 A crítica de Marx ao objeto da Economia Política À primeira vista, a grande obra de Marx, O Capital, parece ser um tratado de Economia Política. Seu assunto seria o mesmo de A Riqueza das Nações de Adam Smith ou dos Princípios de Economia Política e Tributação de David Ricardo. É isso que sugere o seu subtítulo, Crítica da Economia Política. Contudo, é precisamente o subtítulo que merece maior atenção. O que significa a crítica da Economia Política? Os críticos e detratores de O Capital, desde a época de Marx, censuraram a obra por ser demasiadamente filosófica, com um excessivo recurso à filosofia hegeliana. Além disso, seria uma obra evidentemente “tendenciosa”, dado o fato de recorrentemente se referir à luta de classes, como se o autor fosse um correspondente de guerra (COLLIN, 2010). Diante dessa série de “problemas”, essa obra, por volumosa que seja, não teria a capacidade de oferecer muitos instrumentos a quem pretendesse fazer da Economia Política uma ciência. Contudo, o que O Capital apresenta é algo muito mais profundo e rico. Primeiramente, o objetivo da obra não é ser uma teoria geral das sociedades humanas. Devemos assumir rigorosamente o título da obra: ela trata de uma crítica da Economia Política, e como o objeto da Economia Política é o modo de funcionamento das economias de mercado, a crítica deve ser a essa “coisa” chamada capital, que parece mover essas economias. Ou seja, o objeto de O Capital é justamente o capital, ou, mais precisamente, um certo tipo particular e histórico de relação social, uma forma sócio- histórica de produção e distribuição de riqueza humana. 52 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Se o objeto do capital não é uma teoria geral da riqueza, ele também não é a sociedade capitalista. Isso que nós às vezes podemos chamar de sociedade capitalista não existe em estado puro. Quando nos referimos a sociedades capitalistas, nós estamos nos referindo a formações sociais, isto é, um todo social, em seu sentido mais vasto, em um dado momento de existência histórica – por exemplo, a Inglaterra da Revolução Industrial, os Estados Unidos de Barack Obama, ou seja, formações sociais são “objetos” sempre originais e singulares. O objeto de O Capital é o capital como relação social particular de um modo de produção. Esse modo de produção (capitalista) é uma espécie de ideal-tipo, como sugere Collin (2010). É um objeto “abstrato- formal” que, a rigor, não existe concretamente na realidade. Isso não significa dizer então que a análise de Marx é metafísica ou idealista. A questão é que, para analisar as formações sociais concretas, o procedimento adequado é, seguindo as descobertas de Marx, examinar o modo de produção dominante na formação social. Observação Uma formação social pode ter mais de um modo de produção. Pense no Brasil no início do século XX. Podemos dizer que o Brasil no início do século XX era um país capitalista, já que o modo de produção dominante era capitalista, mas isso não significa dizer que não existiam outros modos de produção. Por exemplo, no interior do país ainda existiam regiões marcadas por baixíssima troca monetária e voltadas para uma economia de subsistência. Marx, sem dúvida, aponta que é preciso entender as relações sociais de produção de riqueza como realidades históricas, identificando inclusive esse como o principal erro da Economia Política clássica (ela “naturaliza” relações “históricas”). Contudo, como ressalta Collin (2010), a ordem de exposição de O Capital nos conduz a uma discussão muito mais lógica do que exatamente histórica. Esse é, aliás, um dos desafios dos primeiros capítulos de O Capital. Ele nos oferece uma espécie de anticlímax. Em vez de começar a discutir Economia propriamente dita, como algumas pessoas esperariam, Marx realiza uma discussão sobre a mercadoria, sobre as formas do valor das mercadorias, o que cria um certo suspense ou até mesmo enfado para alguns. Há uma razão para isso. Como apontara Marx cerca de dez anos antes da publicação do Livro 1 de O Capital: Se consideramos um dado país de um ponto de vista político-econômico, começamos com sua população, sua divisão em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos de produção, a importação e a exportação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias etc. Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela 53 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações. A primeira via foi a que tomou historicamente a Economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., começam sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos Estados etc.; mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem por meio da análise. Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e abstraídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. O último é manifestamente o método cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação (MARX, 2011, p. 54). Essa longa passagem sobre o método da Economia Política é indicativa da riqueza e da profundidade mencionadas anteriormente. Começar a análise pela maneira como a realidade se apresenta imediatamente a nós é um equívoco. Por exemplo: tomar o Brasil em 2016 e sua população como objeto de análise é assumir uma representação completamente caótica e que não passa de uma abstração mental. Primeiro teríamos de definir o que se entende por Brasil: um Estado nacional, composto por agrupamentos sociais diferenciáveis, com dinâmicas econômicas regionais diferentes, com característicasdemográficas variadas, regido por um direito moderno – que, portanto, trata todos os cidadãos abstratamente como sujeitos jurídicos iguais –, marcado por relações econômicas de produção modernas, mas que, ao mesmo tempo, apresenta casos que podem ser configurados como análogos a trabalho escravo, de significativa desigualdade social, que exigem investigar as origens dessa desigualdade etc. 54 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I O Brasil em 2016, a respeito do qual as pessoas têm em geral uma opinião e uma posição, é concreto, e dele podemos até falar porque ele é o resultado de uma série de sínteses, de determinações. Esse Brasil é um resultado mental, mas que não obrigatoriamente deve ser nosso ponto de partida para entendê-lo. No entanto, uma categoria econômica como o valor, que, conforme vimos anteriormente, supõe uma população, relacionando-se de forma historicamente determinada, supõe também um tipo de Estado (não faz sentido perguntar-se sobre o valor das mercadorias em uma sociedade que não produz mercadorias – objetos úteis voltados para venda, por exemplo). Poderíamos também querer investigar relações de propriedade (para examinar os ganhos provenientes dela, como os ganhos de capital), mas a propriedade significa um tipo de relação de posse sobre objetos. Contudo, novamente entrando nesse círculo abstrato, rigorosamente a posse supõe a existência de famílias e também de relações de dominação. O mérito da Economia Política identificado por Marx foi realizar esse movimento de abstração, eliminando o caráter caótico que encontramos imediatamente na realidade. Como comenta Marx (2011), um imenso progresso de Adam Smith foi descartar todas as singularidades do trabalho, tratando-o como atividade criadora de riqueza, como simplesmente trabalho (não um trabalho comercial, um trabalho manufatureiro, um trabalho agrícola), com a universalidade criadora de riqueza abstrata. E, a partir daí, elaborar seu sistema teórico. O problema da Economia Política, como destacamos anteriormente, estava em elaborar sistemas econômicos com vistas a produzirem recomendações de ordem prática. Isso fica evidente em Ricardo, que na defesa da classe capitalista produz uma Teoria da Renda da Terra que aponta como a classe dos proprietários de terra é no fundo de “parasitas” do excedente econômico produzido pelas demais classes. As teorias que fundamentavam as recomendações práticas dos economistas políticos tinham um caráter instrumental, que com o desenrolar de contradições e conflitos sociais foram inclusive perdendo seu caráter científico. Lembre-se, Adam Smith é tomado por Marx como um economista político sério, comprometido com descobertas científicas; o mesmo não se poderia falar de Nassau Senior, um economista vulgar que elabora argumentos com vistas a defender suas posições (e da classe que lhe provê seu sustento – os capitalistas) contra os trabalhadores e a massa popular, sendo, na perspectiva de Marx, um sicofanta. Como se enquadra a crítica da Economia Política? Como destaca Louis Althusser: [...] “criticar” a economia política não pode significar a censura ou retificação desta ou daquela inexatidão ou questão de pormenor de uma disciplina existente – nem mesmo o preenchimento de lacunas, de espaços em branco, dando prosseguimento a um trabalho de exploração já amplamente feito. “Criticar a economia política” significa contrapor-lhe uma nova problemática e um novo objeto: portanto, questionar o objeto mesmo da economia política. (ALTHUSSER, 1980, p. 105). Simplificando a discussão realizada por Althusser sobre o objeto da Economia Política, Aloísio Teixeira (2000) aponta que ao executar a crítica da Economia Política, Marx elabora um novo programa de pesquisa, reconceituando o domínio em que se dão as investigações econômicas científicas. 55 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Remetendo àquela longa citação sobre o método da Economia Política, Marx aponta que a crítica é, antes de tudo, metodológica. Os economistas tomavam os dados diretamente da realidade e os formulavam imediatamente como conceitos, ficando presos à superficialidade do real, à percepção imediata das coisas. Vejamos um exemplo atual daquilo que é criticado por Marx. Ao começarmos o estudo de microeconomia neoclássica (matriz dominante do pensamento econômico contemporâneo, essa microeconomia que nós aprendemos em todos os cursos de graduação em economia), é usual adotar seguinte procedimento: • Considerando o modo de escolha dos agentes econômicos entre dois bens A e B, como se estabelece a escolha ótima? • É de se supor que a renda dos agentes não é infinita, logo os agentes dispõem de uma restrição orçamentária. • Os agentes têm preferências subjetivas próprias, mas que podem ser reveladas tomando um plano que relacione os diversos preços das duas mercadorias. Há diversos pontos nesse plano que representam as “cestas” dessas mercadorias e que podem ser ligados, formando uma curva de indiferença de acordo com a utilidade extraível. • A escolha ótima do consumidor é o ponto de encontro entre a reta de restrição orçamentária e a curva superior de indiferença que tangencia essa reta restritiva. • Ou seja, como diria Paul Samuelson, há apenas um princípio simples no núcleo dos problemas econômicos: o estudo matemático de funções de maximização sob condições de restrição. Esse “método” se assenta no “princípio universalmente válido” (para os neoclássicos) de recursos escassos para a satisfação de necessidades ilimitadas. Seguindo a fundo a crítica da Economia Política de Marx, esse procedimento que acabamos de ilustrar tem a mesma validade científica que a observação da atuação da gravidade. Ele simplesmente constata que, no planeta Terra, devido à gravidade, os objetos soltos no ar caem. A título de ilustração (lembre-se), tomando a explicação sobre a escolha ótima dos “agentes”, tem o mesmo estatuto científico de se observar objetos caírem, isto é, nulo. Ou, de modo mais generoso, esse exercício é de praxiologia (um estudo, que pode até ser interessante, sobre atuação e comportamento). Marx não se satisfazia em repetir que toda ciência seria supérflua se a aparência e a essência das coisas coincidissem. Fazer ciência seria apenas um exercício enfadonho – afinal, se houve tal coincidência imediata, bastaria olhar as coisas meticulosamente. A minha opinião sobre Economia e a de meu pai (que nunca estudou Economia), por exemplo, teriam o mesmo estatuto, seriam opiniões. 56 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Para Marx, “fazer ciência” não se trata de descrever fenômenos concretos tal qual eles são percebidos na realidade, oferecendo uma explicação organizada. Trata-se de construir o concreto como um concreto pensado (TEIXEIRA, 2000). Mas esse “fazer ciência” é simultaneamente criticar a Economia Política, posicionar um novo objeto e desenvolver e assumir uma nova teoria e um novo método. Algo que encontraremos em O Capital é uma lógica diferente daquela com que usualmente nos deparamos em outras obras, como nos demais economistas políticos. É uma lógica dialética, herdada da Filosofia clássica alemã, porém também criticada, invertida, negada e reorganizada em novas bases. Como nosso curso é de economia, não cabe aqui se tecer muitos comentários sobre esse tema, que não é simples e que, “para variar”, também se envolve em suas próprias polêmicas. A menção a essa lógica é para um indicativo de leitura. Marx trabalha em O Capital com variados níveis de abstração, isso em todos os livros que compõem a obra. Não devemos,portanto, supor que o Livro 1 contenha o essencial da contribuição de Marx e que os demais livros vão apenas acrescentando elementos da realidade ao que foi exposto no primeiro livro. Na realidade, ao ler O Capital, descobrimos que afirmações presentes no Livro 1 serão negadas posteriormente. Mas isso se deve não a um erro do autor, mas a uma imposição do próprio objeto de análise (o modo de produção capitalista). O nível geral de abstração de Marx, como destacado neste tópico, não é o capitalismo, tal qual se manifesta concretamente no real. Isso não porque o termo capitalismo só tenha se difundido depois da obra de Marx (como sugerem alguns comentadores), mas sim porque o objeto concreto de análise, para o qual são tomadas ilustrações sobre a Inglaterra ou o período histórico em que escreve, é um objeto abstrato-formal, o modo de produção capitalista. O objeto de Marx está nas leis do movimento do capital e, como destaca Aloísio Teixeira (2000, p. 107): “o conceito de economia política que constrói, a partir da crítica de seus antecessores, é o da ciência que estuda essas leis”. Isto é, a dinâmica (contraditória) da reprodução do capital (e das relações sociais capitalistas). Nesses termos, se numa formação social imperasse e dominasse o modo de produção capitalista, a crítica da Economia Política empreendida por Marx continuaria válida. De modo direto, afirmar que a crítica de Marx é superada, justificando simplesmente que assim o é porque estamos em um século diferente do seu, significa desconhecer por completo o objeto de análise do autor. 3 O PENSAMENTO ECONÔMICO DE MARX COMO ANÁLISE CRÍTICA DO CAPITALISMO 3.1 Introdução De início, é interessante resgatarmos uma questão que já se coloca na abertura do primeiro capítulo de O Capital e que diz respeito a um questionamento presente na Economia Política desde 57 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA pelo menos Adam Smith: qual o propósito da produção em sociedades em que a riqueza é criada sob a forma de mercadorias? Um dos objetivos dessa pergunta é precisamente radicalizar um elemento latente no sistema teórico smithiano a possibilidade de “desnaturalizar” as relações sociais. Como é possível extrair de Smith nos primeiros capítulos de A Riqueza das Nações, a produção de objetos que têm a forma social de mercadorias não é um dado natural. O próprio percurso e a “decadência” da Economia Política clássica (esta última expressa num autor como John Stuart Mill) já nos permitem extrair uma observação interessante. Muito aquém de uma visão otimista e harmônica sobre o progresso social, simplesmente não existem elementos capazes de sustentar de modo inconteste que a introdução da maquinaria no capitalismo atue de modo a reduzir a labuta diária dos trabalhadores. Como enfatizará Marx, a maquinaria é fundamentalmente um meio de produção de mais-valor. Contudo, essas considerações só podem ser avaliadas em sua exaustão caso nós partamos de uma compreensão diferente acerca da riqueza material no capitalismo. Esse procedimento não tem nada de absurdo, afinal, ele diz respeito a questionamentos tradicionais em economia, por exemplo: quanto há de riqueza? Como a riqueza é distribuída? Remete também a uma questão incluída decisivamente por Marx: quais são o propósito e a forma social específica da riqueza? (MURRAY, 2004). Na perspectiva inaugurada por Marx, é apenas caracterizando o propósito e a forma social da riqueza que podemos responder às demais questões (crescimento e distribuição de riqueza). Daí uma das razões de Marx iniciar O Capital com a discussão sobre o valor das mercadorias. Como veremos, uma das conclusões dessa análise é a de que a finalidade da produção capitalista é basicamente a valorização de mais-valor (em termos convencionais, lucro), algo que vai de encontro a interpretações “ingênuas” (ou deliberadamente opostas) que afirmam ser a produção capitalista um meio para se maximizar o bem-estar social. Desconsiderar ou abstrair da análise a forma social e do propósito específico da riqueza significa esvaziar da historicidade a produção teórica. Essa é, aliás, umas das primeiras críticas de Marx à Economia Política clássica: ela foi capaz de compreender apenas o duplo caráter das mercadorias (dispõem de valor de uso e valor de troca). Esse limite da Economia Política clássica se manifesta com a necessidade imposta de se definir de modo unilateral o caráter determinante da riqueza. Por exemplo, resgatando aquilo que já vimos, em Adam Smith parecem existir duas definições de valor – uma determinada pelo trabalho contido e outra pelo trabalho comandado –, o que cria um problema para se examinar a formação dos preços; já para David Ricardo, a definição do valor é precisa (como trabalho contido), mas essa definição se complica porque valor é tomado como preço relativo (valor de troca), o que torna quase impossível essa Teoria do Valor chegar a uma teoria satisfatória dos preços. 58 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Como Marx efetivamente avança nessa problemática do caráter da riqueza, do valor e do trabalho? A especificidade da teoria produzida por Marx é de que ela mantém aberto esse conjunto de questões em toda a sua análise, o que nos leva a retermos uma observação importante: é por isso que não encontraremos definições unilaterais em O Capital – sobre o que é valor, o que é capital ou mesmo quais as tendências da acumulação de capital. Para esclarecer um pouco mais esse ponto, façamos aqui uma breve comparação com uma definição convencional em Economia: o que é capital – afinal, esse é o próprio título da obra mais importante de Marx. Usualmente, capital é tratado com uma definição bastante simples: ele é qualquer forma de riqueza que possa ser usada para produzir mais riqueza. Nessa linha de argumentação, mesmo a capacidade de trabalho, que pode ser negociada no mercado, é vista como capital, como um “capital humano”. Seguindo esse raciocínio, em linhas gerais, todo indivíduo é um capitalista em potencial – afinal, qualquer um possui pelo menos esse chamado “capital humano”. Contudo, há um problema aqui. Se não há diferença entre rendas de capital e rendas provenientes do trabalho (salário é visto também como uma renda de capital), como se pode discutir questões econômicas relevantes relacionadas à distribuição de renda? Além disso, se todo rendimento provém de algum tipo de capital (capital humano, capital cultural, capital de conhecimento etc.), nós podemos encontrar em toda a história alguma forma de capital, portanto não haveria nenhuma especificidade histórica no capital (e, no limite, no capitalismo). O que temos como resultado dessa definição convencional simples de capital, como riqueza que gera mais riqueza, é que o capital não é resultado de qualquer processo histórico particular; suas bases são naturais. Não existiria, portanto, nenhum vínculo entre o conceito de capital e o conceito de modo de produção. Enfatizando esse ponto, temos que, no limite, nossa compreensão se torna demasiadamente genérica e a-histórica, não carregando nenhum tipo de determinação histórica particularizada em relações sociais (MURRAY, 2004), ou seja, teríamos capital (e capitalismo) sem relações sociais, o que está relacionado a uma outra crítica, de cunho mais metodológico, também presente em todo o percurso teórico desenvolvido em O Capital. Para abordá-la, seguindo Lebowitz (2009), vamos estabelecer agora duas novas perguntas. • O que é válido para a prática individual tomada isoladamente também é aplicável para todos os indivíduos simultaneamente? Em termos mais gerais, o que se pode extrair da análise de atos individuais e isoladospode ser extrapolado para a totalidade daquilo que visamos analisar? • Afinal, de onde provém efetivamente aquele mais-valor que se agrega à riqueza durante a atividade econômica? Para além da produtividade natural da terra (como se defendeu antes do advento da Economia Política moderna), pensando numa ampla economia de mercado, de onde provém o lucro? 59 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA A primeira pergunta está relacionada com o individualismo latente no método da Economia Política clássica, particularmente em Smith. A segunda se refere a uma questão fulcral para o desenvolvimento da análise econômica moderna; como se imaginava na época de transição do feudalismo para o capitalismo, lucro é resultado simplesmente de se comprar barato e vender caro? Veremos pelo modo de ambas as respostas serem desenvolvidas que elas são interdependentes e têm implicações gigantescas sobre o método estabelecido por Marx e as suas descobertas. Tomemos a liberdade de adiantar alguns pontos, reposicionando nossa discussão num terreno mais próximo de nossa realidade cotidiana. Por exemplo, um empresário capitalista pode ampliar sua margem de lucro elevando o preço da sua mercadoria? Pela observação cotidiana, podemos afirmar que sim. Contudo, é possível que todos os capitalistas, simultaneamente elevando seus preços, expandem a lucratividade? A resposta é não. Claro que essa pergunta pode parecer uma pegadinha, afinal a generalização do argumento nos leva diretamente à noção de inflação (aumento generalizado do nível de preços). Contudo, o mais interessante é a estrutura subjacente da pergunta. Seguindo Lebowitz (2009), é possível reformular esse tipo de pergunta para temas aparentemente desconexos. Por exemplo: em qualquer país se pode reduzir drasticamente os salários para aumentar a competividade internacional (pense no caso da China), mas se todos fizerem o mesmo... Outra formulação capciosa (já nos aproximando do estilo de Marx) é a seguinte: pode um trabalhador se tornar um capitalista? Ora, claro que sim, qualquer trabalhador, tomado isoladamente, pode se tornar capitalista, não há nenhum obstáculo a isso. Mas se todos os trabalhadores se tornassem capitalistas, quem trabalharia? Outra questão interessante, próxima da realidade macroeconômica, é a de que empresários podem decidir emprestar seu capital-dinheiro a juros, em vez de empregar tal capital na indústria. Novamente, qualquer indivíduo (ou grupo de capitalistas) tem plena liberdade de escolha do seu portfólio; contudo, todos os capitalistas não podem simplesmente aplicar seu capital a juros e não produzirem nada. O que podemos extrair desse conjunto de questões é que, tomando o geral, isto é, considerando a totalidade do capital social, muitas possibilidades colocadas para o ato individual e isolado não são válidas para o todo, sendo algumas completamente absurdas. Mas atenção, o que temos não é apenas um apontamento sobre as condições e características diferentes estabelecidas entre o todo e suas partes, mas especialmente a forma pela qual a interação das partes afeta suas condições de existência e a constituição do todo. A perspectiva de análise deve visar a esse todo, que, ratifiquemos, não é a soma das partes individualizadas e separadas, mas sim reconhecer a diferença entre o modo pelo qual as coisas aparecem e a essência (o fundamento) dessa aparência. Não obstante, esse procedimento não significa argumentar que todos os atores individuais são iludidos (ou alienados, tomando esse termo pelo seu senso comum). O que Marx enfatiza é precisamente 60 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I o contrário: o capitalista individual e o trabalhador isolado não estão errados ao tomarem o modo pelo qual as coisas aparecem como verdade. A aparência da realidade também é uma parte importante e constitutiva do real. Pense como as coisas aparecem para o capitalista individual, ou melhor, como verdadeiramente são para ele. O que busca um capitalista (ou empresa capitalista)? Nem precisamos de Marx para responder a isso, basta um pouco de elementos de microeconomia para saber que a busca é de lucro (certamente não qualquer lucro, mas lucro máximo). O que é esse lucro para o capitalista? Bem, ele pode ser visto basicamente como a diferença entre o preço de venda e o preço de custo de sua mercadoria. Esses preços não são o resultado do somatório das remunerações dos salários, aluguéis, juros de capital adiantado e, por fim, o que sobra é o lucro? Nada mais “correto” então do que uma das teorias de preços de Smith: preço é igual ao somatório das remunerações (salários, aluguel de terras, juros do capital-dinheiro e lucro do capital produtivo), ou, em termos mais modernos, de acordo com as suposições elementares da Teoria Microeconômica, preço (em condições de equilíbrio perfeito) é igual ao custo marginal (que remunera adequadamente todos os fatores de produção – trabalho, capital e terra). Assim, é plenamente compreensível que qualquer pessoa que tome a perspectiva do capitalista isolado como verdade jamais poderá aceitar que a exploração da mercadoria força de trabalho tenha algo a ver com a origem de um mais-valor criado no processo produtivo. É plenamente consequente que, portanto, dentro de uma perspectiva de Economia clássica (e mesmo variantes neoclássicas, como a microeconomia, que nos é ensinada durante a graduação), examinar os preços relativos é uma questão central. Se em um país os salários e a renda são relativamente baixos, enquanto noutro país o juro é baixo, será de se esperar que no primeiro país se utilizem mais trabalho e terra, e que um capitalista do outro país utilize relativamente mais capital. Algo difundido exaustivamente desde David Ricardo. Contudo, não é apenas buscando obter insumos pelo menor preço possível que um capitalista individual é capaz de alcançar seu objetivo (de lucro máximo), mas destacadamente usando esses insumos eficientemente. Assim, quase qualquer meio para se ampliar a produção com uma dada quantidade de insumos deve ser buscado. As consequentes avaliação e radicalização desse raciocínio nos permitem observar que há uma lógica para se expandir a jornada de trabalho (intensificando-a ou prolongando-a). Desse modo, não apenas o capitalista pode obter uma maior produção de cada trabalhador, como também, relativamente, ele economiza com capital fixo. Ainda neste ponto, pode-se compreender por que todo capitalista (mesmo tomado isoladamente) tem interesse no aumento da produtividade. Maior produtividade significa precisamente mais produtos no mesmo tempo, o que reduz o custo das mercadorias em comparação com os concorrentes (que não introduziram aumentos de produtividade). 61 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA As ações do capitalista expressam a consciência de imposição da realidade: a existência da concorrência. O desempenho dos capitalistas individuais é avaliado de acordo com a habilidade apresentada na concorrência (seja um capitalista responsável pela inovação, seja aquele que segue uma inovação bem-sucedida de outros). Visando, por exemplo, ampliar sua rentabilidade, o capitalista, após uma expansão de sua produtividade, é capaz de baratear seu produto, mesmo que seja um percentual um pouco menor que o de seus concorrentes. Essa ação se impõe sobre os demais capitalistas do ramo ou setor como um imperativo para a adoção generalizada desse novo método de produção que foi capaz de ampliar a produtividade. O resultado importante é que, diante da ação da concorrência que moveu, digamos, um capitalistaa introduzir a inovação, o novo preço que pode ser formar após a generalização desse método tende a ser menor para todos, fazendo desaparecer aquele ganho diferencial do início da rodada. Esse é um ponto destacado pelo próprio Marx e que nos serve de um exemplo para as duas colocações anteriores: i) a ação individual não é um erro, mas dispõe de racionalidade e finalidade próprias; ii) o resultado coletivo, a reprodução global, produz um resultado diferente da simples soma das ações individuais e, por seu turno, deve ter uma explicação diferente da racionalidade individualizada. Todavia, a particularidade do raciocínio de Marx não está no destaque desses dois pontos, que, aliás, podem ser extraídos também de uma leitura inspirada em David Ricardo, por exemplo. Essa particularidade está na conexão estabelecida por Marx entre o avanço da produtividade presente na ação isolada dos capitalistas e a evolução do valor da força de trabalho, bem como a capacidade de extração de mais-valor pelo capital. Não há nenhuma relação para o ato individual e isolado entre a redução de preços produzida pela concorrência, que aparece na realidade capitalista, e a expansão da mais-valia extraída, aspecto esse sim essencial para a continuidade da acumulação de capital Como destaca Lebowitz (2009), o problema, em suma, não é com os atores individuais, afinal eles percebem corretamente a realidade – do modo pelo qual ela se impõe imediatamente a eles. Uma das críticas centrais expostas em O Capital é às análises econômicas que tentam explicar a reprodução do sistema capitalista tomando como base o modo pelo qual as coisas aparecem imediatamente aos agentes. É esse tipo de postura, inclusive, que Marx chama de economia vulgar (a que se fará menção aqui em breve). Essa economia vulgar “de fato apenas traduz as estranhas concepções dos capitalistas, perturbados pela concorrência, para uma linguagem aparentemente mais teórica, generalizante, e se esforça em construir a correção dessas concepções” (MARX, 1986, p. 176). O que essa “perspectiva econômica” (vulgar) não é capaz de apreender é que a própria reprodução do modo de produção capitalista produz as condições adequadas para si – não somente reproduzindo as condições materiais necessárias, mas especialmente as relações sociais indispensáveis a ela. 62 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Para avaliar essa questão, tomemos o modo pelo qual os direitos naturais dos seres humanos aparecem no capitalismo como quase o Jardim do Éden, seguindo a crítica de Marx. É notório que os trabalhadores sob o capitalismo são livres, afinal os contratos de trabalho são voluntários e estabelecidos entre sujeitos juridicamente iguais. Ademais, o sustento do trabalhador e de seus dependentes é de responsabilidade praticamente exclusiva do próprio trabalhador (o contrato de trabalho não exige garantias à família do trabalhador, exceto em casos muito excepcionais que envolvem autorrisco, mas não no geral). Ora, se o trabalhador não tiver autoconfiança e autoestima em sua atividade, o risco será dele e de seus dependentes. Além disso, o trabalhador assalariado trabalha para si, o seu salário é de uso livre; logo, para garantir as melhores condições para si, ele deve atuar de forma “egoísta”. Como os salários são pagos em dinheiro, e o trabalhador pode livremente escolher o que comprar com seu dinheiro, a responsabilidade do controle do dinheiro é exclusivamente dele. Se é com dinheiro que tanto os trabalhadores como os capitalistas adquirem bens, na esfera da circulação das mercadorias eles são qualitativamente iguais, portanto somos todos (independentemente do lugar ocupado na produção) consumidores. Qualquer trabalhador sabe que existe uma variabilidade nos salários; trabalhos diferentes são remunerados em magnitudes diferentes. Logo, é o trabalhador, ao escolher sua atividade, que determina o seu destino. A conclusão usual é a de que o tamanho do salário depende da escolha e do talento individual. Por fim, como a riqueza no capitalismo aparece sob a forma de mercadorias, e essas mercadorias são adquiridas com dinheiro, é de se imaginar que toda atividade econômica tem como finalidade gerar dinheiro, não existindo diferenças qualitativas (só de quantidade) entre salários, lucros, juros ou aluguéis. Assim, é quase óbvio que os trabalhadores, e também os capitalistas, são apenas consumidores, que devem ser egoístas, autointeressados e autoconfiantes e que recebem dinheiro de acordo com seu talento, além de que riqueza é igual a dinheiro. Seguindo essa linha de raciocínio, não é porque é possível assumir que os agentes econômicos em geral tenham certas características psicológicas que essas características devam ser tomadas como o ponto de partida da análise. Elas são na realidade o ponto de chegada. A teoria deve ser capaz de explicar inclusive por que os agentes têm essas tais características, e não simplesmente tomá-las como naturais. Dentre as críticas de Marx, particularmente à “economia vulgar” (mas também à Economia Política clássica inglesa), está o fato de que a explicação não se encontra numa dita natureza humana evidente, mas que cabe à ciência explicar por que certas características aparecem como naturais e qual a relação entre essa aparência e as condições essenciais da reprodução do próprio modo, historicamente determinado, de se produzir riqueza pelos seres humanos. Como destaca Lebowitz (2009), o problema, em suma, não é com os atores individuais, afinal eles percebem corretamente a realidade – do modo pelo qual ela se impõe imediatamente a eles. 63 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Uma das críticas centrais expostas em O Capital é às análises econômicas que tentam explicar a reprodução do sistema capitalista tomando como base o modo pelos quais as coisas aparecem imediatamente aos agentes. Seguindo Murray (2004), daí a importância de questionarmos antes de tudo o que é riqueza e, na trilha de Marx, radicalizar (no sentido de ir à raiz) o porquê de determinada forma de aparecer da realidade. Muito longe de um trabalho datado e superado, essa crítica de Marx pode ser, como aponta Lebowitz (2009), direcionada inclusive à Teoria Econômica Neoclássica, que toma essa linguagem ostensivamente mais teórica e generalizada (porém vulgar para Marx ) – que a cada passo de sua teorização toma como ponto de partida a maneira pela qual as coisas aparecem para os atores individuais e que são de fato os resultados da própria reprodução do capitalismo (relações juridicamente livres entre capitalistas e trabalhadores, trocas sob a forma-dinheiro, responsabilidade individual pelo seu destino etc.) A “vulgaridade” está em começar com a pressuposição de certas condutas individuais que, ao final, apenas são reafirmadas pelas conclusões, ou seja, uma explicação pretensamente científica da realidade que apenas reafirma a aparência dessa mesma realidade. Tomando a aparência como a totalidade disponível do real, é certamente impossível se apresentar e explicar qualquer coisa parecida com mais-valia ou qualquer relação coercitiva que permeie a realidade impondo certos padrões de conduta econômica aos agentes. Uma das chaves para a compreensão da mais-valia está precisamente na diferenciação exigida desde os resultados da Economia Política clássica, que é a diferenciação entre trabalho e força de trabalho. O que um trabalhador vende não é o seu trabalho, mas sim a sua força de trabalho. Essa é uma diferenciação teórica importante, condição para se fazer ciência, mesmo que na superfície da sociedade o salário apareça como um preço do trabalho, como uma certa quantidade de dinheiro que é paga parauma determinada quantidade do trabalho. Afinal, se o modo pelo qual as coisas aparecem fosse idêntico à realidade, fazer ciência seria mesmo algo completamente dispensável; bastaria olhar para as coisas e compreendê-las imediatamente, sem nenhum tipo de reflexão. Mas uma das tarefas elementares da ciência é nos oferecer a capacidade de diferenciar o essencial do secundário, desvendar as relações não evidentes e que inclusive contrariam a observação cotidiana. Como afirma Marx: Parece também paradoxal que a Terra gire ao redor do Sol e que a água seja formada por dois gases altamente inflamáveis. As verdades científicas serão sempre paradoxais, se julgadas pela experiência de todos os dias, a qual somente capta a aparência enganadora das coisas (MARX, 1996, p. 98). 64 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I 3.2 Mercadoria, duplo caráter do trabalho e fetichismo A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma “imensa coleção de mercadorias” e a mercadoria individual como sua forma elementar. Nossa investigação começa, portanto, com a análise da mercadoria (MARX, 1996, p. 165). Essa citação é do primeiro parágrafo de O Capital. Como apontado anteriormente, logo na abertura de sua exposição Marx apresenta seu objeto de estudo. Apenas isso já o coloca na contramão de outras análises econômicas: a reflexão não é sobre como se formam os preços, quais as condições ótimas para o funcionamento dos mercados, como deve ser a política econômica de um país ou qual a melhor estratégia para o desenvolvimento econômico. Ainda que essas questões sejam muito importantes e devam ser bem-respondidas, não é tomando-as como perguntas elementares que chegamos às melhores respostas, afinal elas mesmas são respostas fruto da análise de objetos produzidos pelo conhecimento e pela ciência. Também nesse primeiro parágrafo já se evidencia algo que percorreu nossa discussão até este momento: a riqueza é o objeto de estudo e ela aparece como uma imensa coleção de mercadorias. Atenção (as palavras não são fortuitas, e seus sentidos são fundamentais para a elaboração conceitual): Marx não afirma que a riqueza é, mas sim como ela aparece (ela parece ser). Ela aparece assim porque isso é uma “obviedade”: para nos alimentar, vestir, para viajar e mesmo trabalhar (pense no transporte), precisamos adquirir mercadorias. Aqueles que têm muitas mercadorias não são considerados ricos? Claro, como lembra Carcanholo (2011), alguém poderia afirmar que riqueza é dinheiro, mas para que serve intuitivamente o dinheiro senão para adquirir mercadorias? Ou guardar um papel sujo sob o colchão tem alguma outra serventia? Assim, o ponto de partida da análise, não por uma arbitrariedade pessoal, mas sim por necessidade da investigação, deve ser essa tal mercadoria, olhada com um pouco mais de cuidado. Nos dois parágrafos seguintes, ainda da abertura de O Capital, afirma Marx: A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa. Aqui também não se trata de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se imediatamente, como meio de subsistência, isto é, objeto de consumo, ou se indiretamente, como meio de produção. Cada coisa útil, como ferro, papel etc., deve ser encarada sob duplo ponto de vista, segundo qualidade e quantidade. Cada uma dessas coisas é um todo de muitas propriedades e pode, portanto, ser útil, sob diversos aspectos. Descobrir esses diversos aspectos e, portanto, os múltiplos modos de usar as coisas é um 65 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA ato histórico. Assim como também o é a descoberta de medidas sociais para a quantidade das coisas úteis (MARX, 1996, p. 165, grifos nossos). Como já fora apontado pela Economia Política clássica, que Marx resgata, essa tal mercadoria tem um duplo caráter: ela é um valor de uso, que satisfaz necessidades humanas; e também é valor de troca, já que tem a capacidade de se trocar por outras mercadorias. Ainda seguindo essa última citação, a descoberta da medida social (o valor de troca) da quantidade de coisas úteis (valor de uso) é um ato histórico, o que afasta Marx da definição oferecida por Ricardo e seus sucessores. Valor de troca não é um dado qualquer, mas um dado social. Contudo, rapidamente já aparece uma questão curiosa: “o valor de troca aparece, de início, como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam” (MARX, 1996, p. 166). Tem-se, por ora, o seguinte: • Mercadoria é valor de uso e valor de troca. • Valor de troca é a relação de troca entre os valores de uso. Considerando essas duas afirmações, parece que temos a definição do valor de troca como uma contradição em termos: ele é algo inerente à mercadoria e, ao mesmo tempo, relativo, posto que a relação de troca entre duas mercadorias pode variar constantemente no tempo e no espaço. Para esclarecer esse ponto, é necessário continuar a reflexão colocando o foco no valor de troca. Isso porque, segundo a colocação de Marx, fora de uma relação de troca a mercadoria nada pode responder a respeito de seu valor de troca (ou valor). De modo mais preciso, de acordo com Marx, fora de uma relação de troca sequer podemos afirmar categoricamente que um determinado objeto ou atividade é uma mercadoria, já que esse objeto não experimenta nenhuma relação social de produção (ele sequer tem valor de troca). Por exemplo, não faz o menor sentido considerarmos o almoço produzido pelos nossos familiares e consumido por nós como mercadorias, ainda que se possa ver nesse almoço um valor de uso. Nos termos de Marx, quando um valor de uso é indiferente a qualquer determinação econômica formal (tomado como um valor de uso isoladamente de qualquer outro elemento), ele sequer entra no domínio da Economia Política. Apenas quando esse valor de uso serve como uma base material para uma relação econômica é que se pode falar do valor de troca de uma mercadoria. Isso pode parecer uma obviedade, especialmente quando nos lembramos dos argumentos da Economia Política clássica; contudo, já se coloca uma questão fundamental para a reflexão de Marx: a relação de troca é, portanto, uma relação social e, como tal, é determinada historicamente. Além disso, pode-se considerar uma outra condição “óbvia” para que uma relação de troca faça sentido: os objetos trocados devem ser qualitativamente diferentes (afinal, não faz sentido trocar um litro de leite de vaca por um outro litro idêntico de leite de vaca). 66 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Contudo, outra vez, essa obviedade coloca para o começo da análise alguns pontos que, à medida que a análise avança, vão se transformando: • A necessidade não possuidora de um indivíduo precisa coincidir com a posse não necessária de outro. • Aqueles “objetos” que não têm valor de uso efetivo para seus proprietários (não valores de uso) precisam ser valores de uso para os não proprietários. Retornando então ao valor de troca, é ainda possível dizer que uma mercadoria tem tantos valores de troca quanto a quantidade de mercadorias diferentes dela que existirem no mercado e que por ela pudessem ser trocadas. Por exemplo: 1 camiseta = 10 quilos de chá = 40 quilos de café = 0,5 bermuda = 10 meias = 1/x carro popular etc. A única alternativa é reconhecer que na realidade o valor de troca só pode ser a manifestação de algodiferente dele. O valor de troca só pode ser a expressão de uma outra substância que dele se pode distinguir. Após se prescindir do valor de uso da mercadoria, resta-lhe simplesmente a propriedade de ser produto do trabalho. Nos termos colocados por Marx: Na própria relação de troca das mercadorias seu valor de troca apareceu-nos como algo totalmente independente de seu valor de uso. [...]. O que há de comum, que se revela na relação de troca ou valor de troca da mercadoria, é, portanto, seu valor (MARX, 1996, p. 168). Para ilustrar seu argumento, Marx nos lembra um exemplo geométrico que conhecemos. Quando é necessário comparar a área de figuras retilíneas, o procedimento é decompor essas figuras em triângulos. Para encontrar a área desses triângulos é preciso multiplicar a base pela altura e dividir o produto pela metade. O que Geometria tem a ver com Economia Política? A ilustração é apenas para nos lembrar que para se obter uma resposta científica, muitas vezes é necessário alterar os termos de comparação. Segundo Marx, com a questão dos valores de troca ocorre algo semelhante: esses valores devem ser reduzidos a algo comum (que eles representam). 67 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Mas, no nosso caso, esse algo comum não é geométrico, físico, químico ou qualquer coisa natural, ele é algo puramente social (e histórico). Como apontado, a resposta dada por Marx é que o que resta da redução dos valores de troca a algo comum é o fato de as mercadorias serem produtos do trabalho humano. Bem, essa realmente parece uma afirmação arbitrária. Um jovem estudante de Economia poderia simplesmente afirmar que não, outras coisas podem ser definidas como “o algo em comum” das mercadorias (por exemplo, uma utilidade subjetiva). Primeiro vamos recapitular alguns pontos: 1. A mercadoria tem um duplo caráter: ela é valor de uso e é valor de troca. 2. O valor de uso isoladamente sequer faz de um objeto útil uma mercadoria, para ser uma mercadoria esse objeto útil deve ser direcionado à troca. 3. Valor de troca é precisamente a relação de troca entre as mercadorias. Mas valor de troca parece algo variável (muda no espaço e com o tempo) e relativo (é uma característica que aparece quando duas mercadorias são colocadas em igualdade). 4. Existe algo comum às mercadorias que lhes permite manifestar seus valores de troca, já que o mercado coloca mercadorias qualitativamente diferentes como iguais (mudando apenas as quantidades trocadas). O ponto 4 parece ser pacífico e evidente; contudo, ao chegarmos a ele, algo se alterou na discussão. Podemos nomear esse algo comum de uma forma diferente de valor de uso ou valor de troca, já que ele é outra coisa. A esse algo comum Marx dá o nome de valor. Atenção, isso significa que em Marx valor e valor de troca não são sinônimos. O valor de troca é a forma de manifestação do valor, a expressão do valor. O valor é uma qualidade da mercadoria, uma propriedade dela. Essa propriedade é a capacidade que ela tem de comprar outras mercadorias. Quando essa capacidade se manifesta, ela é chamada de valor de troca. Carcanholo (2011) oferece uma ilustração perspicaz de um fenômeno conhecido que é semelhante: um ímã é capaz de atrair um objeto metálico, pois ele tem uma propriedade chamada magnetismo. Como lembra o autor, é possível olhar um ímã de todos os lados, mas jamais veremos ou saberemos da existência de sua imantação, exceto pela sua manifestação – a capacidade de atração ou repulsão. Do mesmo modo, só o valor de troca é evidente. Mas devemos tratar esse “evidente” em dois sentidos: i) ele é visível; ii) ele evidencia algo (diferente dele, chamado valor). 68 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Assim, o procedimento de Marx que o leva até o valor não é algo arbitrário. É “apenas” o reconhecimento de que as mercadorias (esses produtos do trabalho humano), ao serem trocadas, adquirem uma realidade socialmente homogênea, distinta da sua heterogeneidade como objetos úteis (perceptíveis aos sentidos). Diferentemente do que um jovem estudante de Economia poderia sugerir, ao se encontrar com Marx após seus primeiros estudos de microeconomia (ou de elementos de Economia), de que esse algo valor pode ser muitas coisas, e não só trabalho, cabe ressaltar que, no caso de Marx: Essa propriedade-valor que as coisas possuem na sociedade mercantil não é natural a elas. Em outras palavras, as coisas não têm valor por serem coisas; só possuem valor porque encontram-se dentro de uma sociedade mercantil. É essa sociedade, ao igualar o trigo com o milho no mercado [por exemplo], que confere ao trigo sua propriedade de ser valor; ela e só ela lhe confere o poder de comprar. Então, o valor é uma qualidade entregue às coisas pela sociedade, mas não por qualquer sociedade, exclusivamente pela sociedade mercantil. Logo, o valor é uma qualidade social e histórica das coisas. Algo, quando é produto do trabalho humano, adquire valor porque na sociedade ocorre intercâmbio mercantil. Este é resultado da existência de certo tipo de relações sociais entre os produtores, de relações entre produtores formalmente independentes e autônomos, que produzem uns para os outros, para a troca (CARCANHOLO, 2011, p. 35-36, grifos nossos). O que Carcanholo nos apresenta ao abordar a questão do valor em Marx é que, na verdade, o autor alemão apenas pressupôs algo já sugerido no seu primeiro parágrafo de O Capital: de que vamos tratar do modo de produção capitalista. Assim, em sua perspectiva, o valor é produto não de uma qualidade natural das mercadorias, mas sim de um conjunto de relações sociais de produção estabelecidas historicamente entre os seres humanos – relações essas que inclusive fazem da mercadoria o que ela é (mercadoria também não é algo natural, afinal nem sequer sempre existiu na história como expressão generalizada e aparente da riqueza). Esse algo em comum das mercadorias, chamado valor, não é um simples dado de pesquisa para se formular a teoria, ele é a própria manifestação de um conjunto de relações sociais que atribuem uma qualidade social às coisas, fazendo delas mercadorias. Ainda segundo Carcanholo (2011, p. 36): “o valor é uma espécie de carimbo que a sociedade estampa sobre a materialidade física de cada valor de uso, transformando-o em mercadoria. Essa marca indelével, impressa na face da mercadoria, diz: Valor. Indelével, mas invisível”. Tem-se então que aquela primeira afirmação (sobre o modo pelo qual a riqueza aparece) de que “mercadoria é valor de uso e valor de troca” deve ser ajustada, de acordo com a essência das relações sociais de produção, para mercadoria é valor de uso e valor. 69 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Considerando ainda o modo pelo qual as trocas são efetuadas na realidade, e considerando que as mercadorias são produtos da atividade humana que transforma a realidade (ou seja, trabalho), devemos reconhecer um outro ponto, descoberto por Marx. Se a Economia Política clássica já havia descoberto o duplo caráter da mercadoria (valor de uso e valor de troca determinado pelo tempo de trabalho), é Marx quem demonstrará que por trás desse duplo caráter das mercadorias há um duplo caráter do trabalho que as cria. É bastante difundido que, para Marx, valor é quantidade de trabalho, muitas vezes apresentando as suas conclusões em bastante proximidade com aquelas de David Ricardo. Para compreendermos o porquê dessa afirmação e precisar seus argumentos, vamos abordar antes a que trabalho se refere Marx. Voltando à questão da relação de troca,sabemos que ela opera uma cisão nos próprios produtos do trabalho (as mercadorias): de um lado, como coisas úteis (valores de troca), e, de outro, como valores sociais. Essa cisão é feita, segundo Marx, a partir do momento em que os objetos são produzidos para serem trocados, ou seja, quando os objetos se tornam mercadorias. Cabe examinar que atividade é essa que constituiu a mercadoria. De início, temos um trabalho útil, um trabalho privado de um produtor voltado para a satisfação de uma determinada necessidade (e como esse produtor visa à troca, essa necessidade já deve ser vista como indiretamente social). em contrapartida, quando o produto do trabalho chega ao mercado para ser trocado por outra mercadoria, o que se coloca socialmente é o valor. Essa propriedade da mercadoria de comprar outras mercadorias, que chamamos de valor, tem uma substância. Essa substância é precisamente o elemento que torna permutável um tipo de trabalho privado por outro tipo de trabalho privado. Quando duas mercadorias são igualadas no mercado, os seus valores de uso são “suspensos” (eles não entram na cena social), e o que se tem é uma operação curiosa que é capaz de igualar trabalhos úteis diferentes (por exemplo, o trabalho de um pedreiro pode ser igualado ao trabalho de um padeiro, já que ambos têm valor). Esses dois trabalhos que são concretamente diferentes (a atividade de um padeiro é visivelmente diferente da atividade de um pedreiro) são colocados lado a lado sob a mesma forma, como trabalhos privados que satisfazem necessidades sociais (como componentes do trabalho total da sociedade). Devemos reconhecer que os trabalhos privados também têm um duplo caráter: eles são, ao mesmo tempo, trabalhos diferentes (atividades diferentes) e trabalhos iguais (já que podem ser comparados no mercado). Enquanto trabalhos concretos, eles são incomparáveis, mas quando chegam ao mercado e são colocados em igualdade, suas características que os diferenciam são abstraídas, e eles são tomados simplesmente como trabalho humano em geral. Colocando a discussão em termos mais precisos, quando se abstrai o valor de uso (como foi apontado anteriormente), abstrai-se também o trabalho que concretamente criou a mercadoria, restando apenas a propriedade de que as mercadorias envolvidas na troca são produtos de trabalho em geral. 70 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Como afirma Marx: Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. Entretanto, o produto do trabalho também já se transformou em nossas mãos. Se abstraímos o seu valor de uso, abstraímos também os componentes e formas corpóreas que fazem dele valor de uso. Deixa já de ser mesa ou casa ou fio ou qualquer outra coisa útil. Todas as suas qualidades sensoriais se apagaram. Também já não é o produto do trabalho do marceneiro ou do pedreiro ou do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados, e desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano abstrato (MARX, 1996, p. 167-168). Assim, diante de um processo de abstração e desaparecimento, as diferenças vão sendo reduzidas até uma igualdade completa de diferentes trabalhos. A abstração é precisamente a abstração do desigual, fenômeno social capaz de os igualar. Se as mercadorias são diferentes, como elas se igualam e se comparam no mercado? Esta parece uma pergunta simples, que nem se precisaria fazer quando estudamos Economia, afinal ela já está dada. Se as mercadorias se igualam no mercado, cabe ao economista entender quais os determinantes dessa igualdade, quais os determinantes dos preços e suas condições de otimização. A dificuldade desse começo de O Capital é precisamente porque Marx nos desloca do lugar comum, das obviedades da observação. A pergunta “Como é possível que objetos desiguais entrem em igualdade?” não é nada óbvia! Segundo Marx, apenas se analisando o duplo caráter do trabalho que produz as mercadorias (trabalho concreto e trabalho abstrato) se chega à compreensão rigorosa de como é possível e efetivada a igualdade dos desiguais. No caso, é a própria forma assumida pelo trabalho no capitalismo que lhe torna possível produzir mercadorias. A mercadoria, que aparece inicialmente como duas coisas – valor de uso e valor de troca –, guarda ainda um duplo caráter no próprio trabalho que a criou. Como trabalho concreto se cria valor de uso e como trabalho abstrato gera valor. Assim, não é o simples fato de as mercadorias serem fruto do trabalho que permite a Marx afirmar que valor é trabalho, como muitos pensam. A simples atividade concreta de seres humanos que transforme a realidade (um trabalho concreto) não é suficiente para que os produtos desse trabalho sejam constituídos como produtos para outras pessoas. A forma social da riqueza, expressa como mercadoria, e que é igualada em um espaço social específico chamado mercado (que também é expressão de relações sociais 71 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA de produção historicamente determinadas), produz uma abstração na própria realidade, que Marx chama de trabalho abstrato. O que devemos reter aqui é que essa abstração destacada por Marx não é uma simples escolha intelectual dele, não é uma construção mental do pesquisador, mas algo produzido pela própria realidade. Como afirma o próprio Marx: Esta redução [de diferentes trabalhos a um trabalho abstrato] aparece como uma abstração que se faz diariamente no processo de produção social. A redução de todas as mercadorias a tempo de trabalho não é uma abstração maior nem menos real que a redução a ar de todos os corpos orgânicos (MARX, 2003, p. 15). Tem-se então que, diferentemente de David Ricardo, para quem valor, valor de troca ou preços relativos podem ser tomados como termos análogos, a exposição de Marx, já no primeiro capítulo de O Capital, aponta para uma diferença entre a noção de valor de troca (ou preço relativo) e o conceito de valor. Essa distinção é indispensável para a devida compreensão do problema do valor (que, lembremos, remete aos primórdios da Economia Política) em Marx. A simples análise do valor de troca é incapaz de capturar as particularidades histórico-sociais abertas pela forma da riqueza capitalista. O valor de troca é a forma de manifestação do valor. Logo, as suas características denotam apenas as características quantitativas do valor. Todavia, o valor não tem apenas características quantitativas, ele tem forma (que se revela na própria mercadoria) e tem uma substância (que o constitui). Como afirma Marx: Portanto, um valor de uso ou bem possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato. Como medir então a grandeza de seu valor? Por meio do quantum nele contido da “substância constituidora do valor”, o trabalho. A própria quantidade de trabalho é medida pelo seu tempo de duração, e o tempo de trabalho possui, por sua vez, sua unidade de medida nas determinadas frações do tempo, como hora, dia etc. (MARX, 1996, p. 168). Uma leitura convencional, despreocupada com o método de exposição aplicado por Marx, poderia concluir que o valor é medido pela quantidade de trabalho, à imagem e semelhança da formulação de David Ricardo. Mas, para a surpresa de muitos (inclusive de um vasto contingente de economistas), essa afirmação está, a rigor, equivocada. Nacitação que acabamos de apresentar, Marx não afirma apenas que valor é trabalho; sua análise é mais tênue e precisa. O que se tem é que um bem tem valor por ser a materialização do trabalho humano, mas não qualquer trabalho humano, e sim o “trabalho humano abstrato”. Como já apontado, 72 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I ele é a substância do valor, uma substância que não apresenta um átomo sequer de “natural”, sendo uma substância puramente social. Como medir a grandeza do valor? Como sabemos, os modos de se medir os fenômenos são diferentes, de acordo com as características desses fenômenos. Por exemplo, para se medir distância podemos usar o sistema métrico; já para medir pressão, o sistema métrico não tem muito sentido, e o mais adequado pode ser usando um barômetro (um tubo cheio de mercúrio). O que Marx aponta é que, para se avaliar a grandeza da substância social do valor, que é o trabalho humano, o modo mais adequado é pela própria quantidade desse trabalho. Sendo obrigados a reconhecer isso, qual a medida mais adequada? A resposta apontada por Marx (2003) é meramente que a medida imanente (inerente) da existência (afinal, o trabalho existe) é o tempo. Aliás, o que são nossos anos de vida? Eles não são a medida no tempo de nossa existência? É isso o que permite a Marx afirmar ser, “portanto, apenas o quantum de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para produção de um valor de uso o que determina a grandeza de seu valor” (MARX, 1996, p. 169, grifos nossos). Ainda que aparentemente sutil, o procedimento de Marx nada tem de absurdo. Simplesmente devemos reconhecer que substância, grandeza e medida do valor são coisas diferentes – ainda que o fundamento seja o trabalho humano. Lembrete Resgatando o que foi discutido anteriormente, essa é uma diferença significativa entre a Teoria do Valor de Marx e a Teoria do Valor-Trabalho desenvolvida pela Economia Política clássica. Recapitulando a discussão, “a mercadoria apareceu-nos, inicialmente, como algo dúplice, valor de uso e valor de troca. Depois, mostrou-se que também o trabalho, à medida que é expresso no valor, já não possui as mesmas características que lhe advêm como produtor de valores de uso” (MARX, 1996, p. 171, grifos nossos). Devemos diferenciar valor de troca e valor, substância e medida do valor. Essa tarefa é resultado da análise do duplo caráter do trabalho que produz as mercadorias (trabalho concreto e trabalho abstrato). Ainda segundo Marx: “Essa natureza dupla da mercadoria foi criticamente demonstrada pela primeira vez por mim. Como esse ponto é o ponto crucial em torno do qual gira a compreensão da Economia Política, ele deve ser examinado mais de perto” (MARX, 1996, p. 171, grifos nossos). Uma visão um pouco mais cética em relação a Marx poderia questionar o seguinte: mas, se Marx afirma que o que abstrai as diferenças dos trabalhos concretos, tornando-os homogêneos, é o mercado, essa não é uma afirmação compatível com a Economia Política clássica e mesmo com algumas tradições econômicas heterodoxas não marxistas? Para responder a esse questionamento, primeiro precisamos resgatar que o tipo de abstração a que se refere Marx não é uma abstração mental simplesmente, mas uma abstração que é realizada pela 73 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA própria realidade. Segundo, o duplo caráter do trabalho, no qual se concretiza o trabalho abstrato, é um resultado histórico e, portanto, localizado em um modo particular de produção de riqueza humana – na economia capitalista (BORGES NETO, 2007). Como afirma Borges Neto (2007), de acordo com Marx, algo como uma “utilidade em geral” pode ser concebida apenas como uma generalização mental sem existência própria, daí porque ela deve ser descartada como possível fundamento dos valores. A problemática colocada por Marx não é se uma teoria do valor baseada na utilidade tem ou não consistência lógica (aliás, ela pode até ter, como é o caso geral do pensamento neoclássico), mas sim se essa chamada utilidade em geral tem alguma existência real. Ainda segundo Borges Neto (2007), podemos explicar isso do seguinte modo: é impossível usar alimentos sólidos para matar a sede de alguém; em um deserto não há quantidade de alimento sólido que seja capaz de saciar a sede. Ora, se a utilidade em geral realmente existisse, isso seria possível, já que a distinção seria apenas relativa e quantitativa. Essa relação quantitativa e relativa se manifesta apenas na esfera do mercado, como valores (fruto da abstração real, que é o trabalho abstrato), e não como objetos úteis (simples valores de uso tomados subjetivamente). Porém, o duplo caráter do trabalho, ainda que nos ajude a precisar o teor da crítica de Marx a outros modos de explicação do valor e da relação entre os valores, não é um ponto de conclusão da análise sobre mercadoria e fundamentos do valor. Isso porque, como lembra Andrade (2010), a abstração real não resolve a oposição interna à mercadoria entre valor de uso e valor. Dentro de um processo de circulação simples de valores (supondo que as relações de troca sejam generalizadas e que, desse modo, os indivíduos sejam todos produtores livres de mercadorias voltadas para trocas), as mercadorias precisam se realizar como valores antes de poderem se realizar como valores de uso, e vice-versa. Como destaca Marx, antes da troca as mercadorias precisam evidenciar ao conjunto da sociedade que são valores de uso (esses valores de uso devem ser reconhecidos como tais). Isso significa que o trabalho desempenhado na produção das mercadorias precisa receber aquele selo chamado valor. Todavia, esse signo de valor recebido pelas mercadorias só é confirmado com a troca efetiva de mercadorias. Como afirma Andrade (2010, p. 36), “isso significa que uma mercadoria não pode expressar o seu valor e sua utilidade [social] se não for vendida, não importando quanto tempo de trabalho foi gasto para produzi-la”. Esse ponto reabre, sob novos termos, a discussão sobre valor. Não é porque uma mercadoria é produzida visando à troca e porque o “mercado” produz uma abstração real dos trabalhos efetuados que se pode afirmar categoricamente que a mercadoria tem valor. Por exemplo, digamos que eu produza chá de boldo engarrafado visando vender meus produtos no mercado. Caso a minha quantidade produzida seja vendida, isso significa que o valor das minhas mercadorias foi “chancelado” (considerado) como uma cota-parte do tempo de trabalho da sociedade. 74 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Contudo, caso eu não consiga vender minha mercadoria, na prática, o meu trabalho individual não teve reconhecimento social. Logo, é como se esse trabalho não existisse, desaparecendo inclusive o seu valor. Não foi destacado que o valor é social? Se a sociedade não o reconhece, mesmo que se tenha dispêndio de trabalho humano concreto, o valor não existirá. A implicação desse argumento desenvolvido por Marx é que, novamente, valor não é trabalho (contido), uma simples qualidade dada das mercadorias; o valor deve ser constantemente ratificado como social nas relações sociais de produção. Essa é uma das razões pelas quais, já nos primeiros capítulos de O Capital, Marx afirma que o trabalho humano abstrato aponta para o fundamento da crise (GRESPAN, 1994). Em linhas gerais, quando uma imensa coleção de mercadorias não encontra consumidores no mercado, o que se tem é o questionamento não meramente do preço dessas mercadorias, mas fundamentalmente do valor, o caráter social dos trabalhosprivados nelas materializados. Essa questão, da constituição dos diversos trabalhos privados (trabalho concreto) em um tempo não diferenciado (tempo de trabalho abstrato), é abordada por Marx da seguinte maneira: Cada possuidor de mercadorias só quer alienar sua mercadoria por outra mercadoria cujo valor de uso satisfaça sua necessidade. Nessa medida, a troca é para ele apenas um processo individual. Por outro lado, ele quer realizar sua mercadoria enquanto valor, em qualquer outra mercadoria que o agrade do mesmo valor, quer a sua própria mercadoria tenha ou não valor de uso para o possuidor da outra. Nessa medida, a troca é para ele um processo genericamente social. Mas o mesmo processo não pode ser simultaneamente para todos os possuidores de mercadorias apenas individual e, ao mesmo tempo, apenas genericamente social. Vista a coisa mais de perto, percebe-se que para todo possuidor de mercadoria toda mercadoria alheia funciona como equivalente particular de sua mercadoria, sua mercadoria, portanto, como equivalente geral de todas as outras mercadorias. Mas como todos os possuidores de mercadorias fazem o mesmo, nenhuma mercadoria é equivalente geral e por isso as mercadorias não possuem também nenhuma forma valor geral relativa, na qual elas possam equiparar-se como valores e comparar-se como grandezas de valor. Portanto, elas não se defrontam, de modo algum, como mercadorias, mas apenas como produtos ou valores de uso (MARX, 1996, p. 210-211, grifos nossos). Como afirma Borges Neto (2002), isso parece um círculo vicioso. Para o possuidor isolado de uma mercadoria, o ato de troca de sua mercadoria é puramente individual. Todavia, para que a troca ocorra, sua mercadoria deve ter o seu valor reconhecido diante de todas as outras mercadorias – logo, sua ação deve se inserir em um processo social. Como é possível que o mesmo ato seja, ao mesmo tempo, individual e social? 75 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Digamos que: 1 casaco = 20 metros de linho. O que se tem é que, na relação de troca dessas duas mercadorias (casaco e linho), o valor (do casaco) precisa tomar a forma de uma mercadoria completamente diferente para se expressar (o linho). É possível dizer, então, que o valor se autonomizou de seu valor de uso, fazendo-se valer pelo valor de uso de outra mercadoria. Pensando essa forma bastante simples de troca entre duas mercadorias, é necessário que o trabalho específico que criou a mercadoria (o casaco, em nosso exemplo) seja reconhecido como unidades abstratas de trabalho social, sendo o valor de uso do linho o suporte para sua manifestação (a expressão do valor de troca). Novamente, sendo o trabalho abstrato uma realidade social historicamente determinada, ele apenas tem existência quando a troca é tomada pela sociedade como uma forma econômica geral de sociabilidade, e é a extensa generalização dessa forma que exige a constituição de um equivalente geral (uma mercadoria que seja o equivalente de todas as demais) – ou seja, do dinheiro. Colocando noutros termos, essa objetividade impalpável que é o trabalho humano abstrato precisa ser expressa de uma forma capaz de suspender (no duplo sentido de suprimir e elevar) o confronto entre os múltiplos valores de uso das mercadorias, restando às mercadorias apenas o fato de elas serem simples “geleia de trabalho humano indiferenciado” (MARX, 2013, p. 116). Mas afinal, como superar esse tal “círculo vicioso”? Segundo Marx: Toda pessoa sabe, ainda que não saiba mais do que isso, que as mercadorias possuem uma forma comum de valor, que contrasta de maneira muito marcante com a heterogeneidade das formas naturais que apresentam seus valores de uso – a forma dinheiro. Aqui cabe, no entanto, realizar o que não foi jamais tentado pela economia burguesa, isto é, comprovar a gênese dessa forma dinheiro [...]. Com isso desaparece o enigma do dinheiro (MARX, 1996, p. 176-177). Novamente, em vez de recorrermos a alguma abstração ideal, cabe examinar a origem (ainda que lógica) disso que chamamos dinheiro e que desempenha um papel real que é capaz de superar essa aparente contradição de um ato que é individual e social, simultaneamente. Desse modo, para que o mais simples trabalho individual possa ser capaz de operar uma troca, o tempo de trabalho individual precisa colocar-se como um tempo de trabalho geral, e, além disso, a própria ação social precisa fazer de uma determinada mercadoria o equivalente geral. Isso significa afirmar que o “dinheiro, como medida do valor, é a forma necessária de manifestação da medida imanente do valor das mercadorias: o tempo de trabalho” (MARX, 1996, p. 219). 76 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Seguindo o argumento de Marx, é a própria ação social, desempenhada pelo conjunto das mercadorias, que elege uma mercadoria específica para ser a representante dos valores. O curioso é que essa representação é inscrita no próprio corpo da mercadoria, independentemente de um valor de uso natural. Assim, “ser equivalente geral passa, por meio do processo social, a ser a função especificamente social da mercadoria escolhida. Assim ela torna-se – dinheiro” (MARX, 1996, p. 211). É por isso que mesmo um “pedaço de papel sujo” – se fôssemos olhar apenas para a natureza óbvia de nosso dinheiro mais aparente – pode ser tomado socialmente como dinheiro. Jogar fora um papel sujo qualquer é totalmente compreensível; rasgar o “papel sujo que foi eleito como dinheiro”, bem, dizem que isso é loucura. O que Marx aponta com sua discussão sobre esse aparente círculo vicioso das trocas é que, diferentemente da economia burguesa – que trata o dinheiro como um simples instrumento, como uma conveniência –, o dinheiro é uma “necessidade lógica, econômica e social” (ANDRADE, 2010, p. 39). Ele é a própria expressão da oposição entre valor de uso e valor e entre trabalho concreto e trabalho abstrato (BORGES NETO, 2002). Tratando desse caráter necessário e histórico do dinheiro, afirma Marx: O cristal monetário é um produto necessário do processo de troca, no qual diferentes produtos do trabalho são, de fato, igualados entre si e, portanto, convertidos em mercadorias. A ampliação e aprofundamentos históricos da troca desenvolvem a antítese entre valor de uso e valor latente na natureza da mercadoria. A necessidade de dar a essa antítese representação externa para a circulação leva a uma forma independente do valor da mercadoria e não se detém nem descansa até tê-la alcançado definitivamente por meio da duplicação da mercadoria em mercadoria e em dinheiro. Na mesma medida, portanto, em que se dá a transformação do produto do trabalho em mercadoria, completa-se a transformação da mercadoria em dinheiro (MARX, 1996, p. 211-212, grifos nossos). Desse modo, é possível afirmar que o próprio desenvolvimento histórico das relações de troca, um dos pressupostos do modo de produção capitalista, impõe a necessidade econômica prática da duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro como uma necessidade lógica capaz de garantir a consistência social e a regularidade econômica das trocas. Com a constituição do dinheiro como o equivalente geral e, portanto, como a mercadoria universal, todas as demais mercadorias são convertidas em simples equivalentes singulares do dinheiro. Tem-se com isso que, em Marx, a análise da mercadoria e, consequentemente, do valor não está separada da análise do dinheiro. Como destaca Andrade (2010), não se pode afirmar que dinheiro e mercadoria sejam simplesmente coisas diferentes; isso faz sentido apenas quando se contrapõem as várias mercadorias entre si, mas quando a oposição é entre dinheiro e mercadoria,tem-se uma espécie de tensão entre ambos (eles se atraem e se repelem mutuamente). 77 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA O dinheiro (forma de expressão necessária do valor das mercadorias) agora pela sua própria forma social pode se apresentar de modo autônomo em relação às mercadorias. Com isso, o valor, autonomizado na forma de dinheiro, aparece simplesmente como algo intrínseco a ele, quase como algo natural, como se o dinheiro fosse a verdadeira encarnação do valor. O problema é que esse fenômeno social explicado por Marx é, ainda hoje, usualmente tomado de duas formas: i) por um convencionalismo, ou ii) com um caráter fetichista. O convencionalismo significa supor que, no caso do dinheiro, ele seja simplesmente o produto de uma decisão coletiva e arbitrária dos seres humanos – como algo convencionado pelos seres humanos para facilitar as trocas, por exemplo. Já o fetichismo implica uma naturalização das relações sociais que dão suporte para a existência da forma do dinheiro, ou seja, avalia-se como se o dinheiro não fosse o resultado da expressão dos valores de todas as mercadorias (como afirma Marx), mas sim que as mercadorias se expressam no dinheiro simplesmente por ele ser dinheiro (por exemplo, como se ouro e prata, quando eram referências paras as moedas nacionais, fossem naturalmente dinheiro e, por serem dinheiro, as mercadorias naturalmente devessem ser trocadas por eles). Seguindo o raciocínio de Marx exposto até agora, tem-se que o valor é resultado do processo de abstração real, um desdobramento não do duplo caráter das mercadorias, mas sim do duplo caráter do trabalho que produz mercadorias. O valor é, portanto, a objetivação (no sentido de se tornar objeto e de se considerar objetivo – e não algo subjetivo) da abstração real das diferenças dos trabalhos concretos. Já o dinheiro, como forma de autonomização do valor, coloca-se como uma exteriorização (patente e visível aos olhos de todos) dessa mesma abstração real, como a abstração “aí no mundo”. A figura a seguir resume, brevemente, parte de nosso trajeto até aqui. Abstração real (produzida pelo “mercado“) Expressão das relações sociais de produção Trabalho objetificado Objetivação da abstração real do trabalho Forma de existência imediata do valor Exterioração da abstração real Ser-aí do valor Dinheiro como mercadoria universal Desdobramento da própria forma-valor Trabalho abstrato Valor Dinheiro Resultado Figura 12 – Do trabalho abstrato ao dinheiro 78 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Antes de dar sequência a uma discussão pormenorizada do dinheiro e de como ele expressa o valor, é importante retomar o que foi mencionado anteriormente sobre fetichismo (e convencionalismo). O fetichismo, que tem como uma de suas características o aspecto de naturalizar as relações sociais, não é um fenômeno exclusivo do dinheiro. A rigor, Marx trata desse fenômeno ainda no primeiro capítulo de O Capital. Afirma nosso autor alemão: “à primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas” (MARX, 1996, p. 197). Tomadas pelos seus valores de uso, as mercadorias não apresentam nenhuma surpresa, elas simplesmente atendem a necessidades humanas (das mais diversas). Consideradas pelas determinações (quantitativas) do valor, as mercadorias também não carregam nenhum segredo. Assim como é evidente que os seres humanos modificam a natureza (matérias naturais) ao produzir mercadorias, é compreensível que o dispêndio ou a quantidade de trabalho envolvido nessa transformação influenciam a grandeza do valor. Desse modo, as sutilezas metafísicas da mercadoria não provêm nem do valor de uso, nem da grandeza do valor. A questão colocada por Marx é, então, a seguinte: “De onde provém, então, o caráter enigmático do produto do trabalho, tão logo ele assume a forma mercadoria?” (MARX, 1996, p. 198). O interessante é a resposta dada por Marx em seguida: “Evidentemente, dessa forma mesmo” (MARX, 1996, p. 198). Ou seja, o caráter misterioso da mercadoria provém da própria forma-mercadoria. Essa forma reflete aos seres humanos as características dos produtos do trabalho como meras propriedades naturais das coisas. As relações sociais de troca aparecem como relações físicas entre coisas físicas, mesmo que saibamos que tanto a mercadoria quanto o valor não são dados da natureza. Com essa inversão, colocada pela própria realidade, os produtos da atividade humana aparecem como independentes de qualquer ação humana. Portanto, os homens relacionam entre si seus produtos de trabalho como valores não porque consideram essas coisas meros envoltórios materiais de trabalho humano da mesma espécie. Ao contrário. Ao equiparar seus produtos de diferentes espécies na troca, como valores, equiparam seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Não o sabem, mas o fazem. Por isso, o valor não traz escrito na testa o que ele é. O valor transforma muito mais cada produto de trabalho em um hieróglifo social (MARX, 1996, p. 200, grifos nossos). Mais uma vez o destaque está não na construção mental, mas na dinâmica da realidade. É a própria dinâmica social (capitalista) que converte os produtos do trabalho em mercadorias, mas que, ao mesmo 79 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA tempo, encobre as características sociais do trabalho humano, apresentando-as como propriedades inerentes à coisa criada pelo trabalho. Com isso, tem-se um processo de “coisificação” das relações sociais (como se a relação de troca se desse unicamente entre coisas e não envolvesse seres humanos em sociedade), o que converte a forma mercadoria em praticamente um “hieróglifo social”. A própria relação de troca, que transfere de mãos as mercadorias trocadas, opera como se transferisse inclusive o lugar social dos seres humanos nessa troca – como se a relação fosse simples e unicamente entre as mercadorias, sem intervenção humana. Em vista disso, aquela afirmação de Marx (de que a mercadoria parece algo trivial, mas que, na verdade, guarda sutilezas metafísicas) deve ser tomada com bastante cuidado. Como destaca Andrade (2010), o sentido do argumento de Marx não é o de que seja possível esclarecer, com a devida análise crítica, que aquilo que parece ser algo misterioso tem na verdade sua origem em um fenômeno ordinário da vida real. O argumento de Marx é precisamente o contrário: aquilo que, à primeira vista, parece algo trivial, após a análise crítica é que revela suas sutilezas e artimanhas. Slavoj Žižek dá um exemplo desse argumento do seguinte modo: [...] quando um marxista crítico encontra um sujeito burguês mergulhado no fetichismo da mercadoria, a censura do marxista não é: “A mercadoria pode lhe parecer um objeto mágico dotado de poderes especiais, mas na verdade é apenas a expressão reificada das relações entre pessoas”; a verdadeira censura marxista é antes: “Talvez você ache que a mercadoria lhe pareça mais uma simples encarnação das relações sociais (que o dinheiro, por exemplo, é apenas um tipo de vale que dá direito a uma parte do produto social), mas não é assim que as coisas realmente lhe parecem; em sua realidade social, por meio de sua participação na troca social, você comprova o fato estranho de que a mercadoria realmente lhe parece ser um objeto mágico dotado de poderes especiais”. Em outras palavras, podemos imaginar o sujeito burguês tomando aulas de marxismo que falam sobre o fetichismo da mercadoria;entrando, depois do curso, ele procura novamente o professor, queixando-se de ainda ser vítima do fetichismo da mercadoria. O professor lhe diz: “Mas agora você sabe como as coisas são, que as mercadorias são apenas expressões das relações sociais, que não há nada de mágico nelas!”, e o aluno retruca: “É claro que sei, mas parece que as mercadorias com que trabalho não sabem!” (ŽIŽEK, 2008, p. 459). Como explica Andrade (2010), a anedota de Žižek indica precisamente os limites de uma crítica desmistificadora do fetichismo. Esse é um dos fatores que separam Marx da Economia Política clássica. Não é a determinação do valor em Marx, ou a noção de valor como algo social, nem mesmo a necessidade do dinheiro, que o separa da Economia Política clássica (especialmente de Ricardo e dos ricardianos de esquerda), mas sim destacadamente o caráter da crítica desenvolvida por Marx. 80 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Se comparado diretamente com Smith, um mérito de Ricardo, como vimos, foi o de deslocar os problemas da Economia Política do reino fascinante da circulação (de mercadorias e valores) para a esfera da produção (condições materiais objetivas de produção de valor e extração de lucro). O movimento realizado por Marx não é o de criticar o feito de Ricardo, retornando assim novamente a Smith, mas sim dar um “duplo giro” em toda a Economia Política clássica. Não é que a forma (expressa na circulação das mercadorias) não importe, interessando somente a essência ou o conteúdo das relações. Não se pode descartar a forma, tampouco considerá-la uma simples forma qualquer, trivial e sem segredos. Quando Marx afirma que eles não sabem o que fazem, mas ainda assim o fazem, já temos, como afirma Žižek (2008), um nível fundamental daquilo que pode ser chamado, em termos marxistas, de ideologia. A ideologia não é uma ilusão que mascara a verdade das coisas, ou um desconhecimento do funcionamento das coisas – como se fosse um dado subjetivo –; ela é, digamos, uma ilusão objetiva, uma fantasia que desempenha um papel indispensável na estruturação da própria realidade social. Após essa exposição sobre o fetichismo, podemos retomar a discussão sobre dinheiro e avançar sobre as considerações de Marx a respeito de capital. 3.3 Capital e mais-valia 3.3.1 As definições de capital A explicação sobre o que é capital e sua origem é oferecida por Marx por meio da análise de dois circuitos de troca. O primeiro é o circuito mercadoria, dinheiro e mercadoria (M – D – M), ou seja, duas mercadorias diferentes são trocadas através da mediação do dinheiro. O outro circuito é o do dinheiro, mercadoria e novamente, dinheiro (D – M – D). Carcanholo e Sabadini (2011) apresentam uma simulação do pensamento de Marx, como se fosse um raciocínio imaginário de Marx discorrendo em sua própria cabeça, recapitulando algumas de suas descobertas até o momento. Vejamos: a) Pelo que já sei da mercadoria e do valor, entendo perfeitamente a circulação, que pode ser expressa da seguinte maneira: M1 – D – M2 b) O que isso representa? O produtor da mercadoria do tipo 1 troca sua mercadoria pela do tipo 2, troca esta intermediada pelo dinheiro. M1 não era um valor de uso para o primeiro produtor, mas M2, sim. É justamente o contrário o que acontece com o segundo produtor. Depois da troca efetuada, ambos os produtores são possuidores de bens que consideram respectivamente valores de uso para si. Ambas as mercadoria sairão agora da circulação e se destinarão ao consumo. 81 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA c) No entanto, observo agora a realidade e vejo que há um tipo de circulação que até este momento não me é compreensível teoricamente: D – M – D’ d) Trata-se de uma lógica diferente da circulação anterior: o dinheiro é lançado na circulação para se obter mais dinheiro, pois D’ é maior que D. O objetivo não é a troca de valores de uso, mas, sim, ganhar dinheiro. Dissemos que essa circulação não é compreensível teoricamente, embora sejam perfeitamente claros seus objetivos. e) Darei um nome a esse dinheiro que é lançado na circulação para se incrementar: o nome é capital. Ainda não sei sua natureza, ainda não tenho explicação sobre sua existência e sobre como funciona, mas já lhe dei um nome (CARCANHOLO; SABADINI, 2011, p. 123-124, grifo dos autores). Seguindo esse raciocínio de Marx, podemos nomear também os circuitos apresentados. O circuito M1 – D – M2, ou simplesmente M – D – M, é o circuito de troca da circulação simples. A suposição é que todos os agentes econômicos são produtores livres independentes, que trocam suas mercadorias nesse lugar social chamado mercado, utilizando o dinheiro como equivalente geral para essas trocas. Já o circuito D – M – D é aquele característico de relações capitalistas plenamente constituídas. Como se pode observar, a diferença entre ambos os circuitos é que enquanto na circulação simples (M – D – M) temos duas mercadorias nos extremos, o que evidencia o objetivo final da atividade, a saber, a satisfação de necessidades, no circuito D – M – D (fórmula geral do capital, como veremos) é o próprio valor de troca (manifestação do valor), transfigurado sob a forma dinheiro (exteriorização do valor), o objetivo da atividade. Na circulação simples, o dinheiro opera como meio para que o detentor de uma mercadoria seja capaz de satisfazer suas necessidades (trocar a mercadoria que tem por outra que deseja). Isso se inverte com o circuito D – M – D: nele, a mercadoria não é um meio de vida, já que sua finalidade é conseguir, ao final do processo, dinheiro. Com efeito, temos que a existência de necessidades humanas capazes de serem satisfeitas com a mercadoria é que é um meio para se acessar o dinheiro (a mercadoria universal). Essas são constatações empíricas que “apenas” reconhecem a diferença entre a circulação simples e a circulação do dinheiro (como capital). Sem embargo, mesmo essa constatação novamente diferencia Marx de outras abordagens (“vulgares”). Considerar capitalismo como uma simples economia de mercado baseada na interação dentre agentes livres, que trocam mercadorias, é tomar o movimento do capital um movimento de circulação simples. Ora, a mera constatação de que M – D – M é diferentemente de D – M – D já aponta para o fato de que isso que chamamos de capitalismo não é uma singela economia de mercado. Indiscutivelmente, parece haver algo de errado com esse circuito D – M – D, afinal, por que alguém buscaria trocar dinheiro por mercadorias para depois reaver dinheiro? Isso só poderá fazer sentido se a 82 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I magnitude de dinheiro extraída ao final for superior ao volume de dinheiro desembolsado no início do processo (D – M – D’). Então, o circuito D – M – D significa exatamente que o valor (autonomizado sob a forma dinheiro), inserido num processo, deve alterar sua magnitude, obtendo ao final desse processo um mais-valor (dinheiro acrescido de dinheiro). Essa é a definição elementar daquilo que Marx apresenta como mais-valia, que podemos tratar de modo mais preciso como um mais-valor. Recordando a conceituação do dinheiro, o agente desse circuito iniciado com o dinheiro é o próprio valor. Tomando o circuito D – M – D em sua radicalidade (lembre-se, tomando-o pela sua raiz), o que ele expressa é um movimento do próprio valor, agora em processo, que é capaz de alterar a sua magnitude, convertendo-se num valor-capital. Capital é basicamente o nome reduzido do valor-capital. Essas são as definições elementares de mais-valia e capital. Colocadasassim, chegam até a surpreender as censuras apresentadas pelos detratores de Marx ou de qualquer coisa semelhante. Mas tão logo se avança na discussão, começam a ficar um pouco mais claras algumas raízes dessas censuras. Retomemos: a atividade na circulação simples (Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria) serve de meio a um fim que se dá fora da circulação (satisfazer necessidades humanas por meio do consumo de mercadorias, que são retiradas do mercado e, portanto, da circulação); já na circulação do dinheiro como valor-capital, a satisfação de necessidades é que é um meio, enquanto a atividade tem uma finalidade em si (dinheiro que retorna como dinheiro) e de forma ilimitada (dinheiro que gere mais dinheiro crescentemente). Como lembra Andrade (2010), essa é a principal distinção de Marx diante da Economia Política clássica ao caracterizar a economia capitalista. O desenvolvimento inicial e elementar do conceito de capital já nos aponta que o impulso à acumulação crescente de riqueza não é um desvio moral ou uma falha de qualquer ordem; ele é parte constituinte e fundante da lógica interna à acumulação. Dessa forma, é necessário passar a reconhecer que a mudança do circuito M – D – M para o circuito D – M – D não é simplesmente uma inversão de ordem, essa mudança se inscreve também na própria conceituação de capital. Se, como afirmado anteriormente, capital (o valor-capital) significa o movimento do valor em processo, não se pode afirmar que capital seja então simplesmente dinheiro ou que seja simplesmente mercadoria, muito menos afirmar que ele seja dinheiro e mercadoria. Ele é exatamente o processo, ou seja, dinheiro a se tornar mercadoria e mercadoria a se tornar dinheiro. Essa é a primeira dificuldade encontrada quando se busca definir de modo fixo o capital; ele não tem uma definição firme, imóvel, já que o próprio conceito aponta para um movimento, um deixar de ser algo e vir a ser outro, mantendo-se o mesmo durante todo o processo. Novamente, cabe destacar que a acumulação de dinheiro pelo dinheiro não tem nada de louca ou bárbara. Para se constituir socialmente como capitalista, o possuidor do dinheiro deve obrigatoriamente assumir como sua finalidade subjetiva o movimento objetivo de expansão do valor. 83 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Esse ponto é interessante, pois ele nos ajuda a desconstruir uma pré-noção (preconceito) em relação à abordagem crítica de Marx. Nesse ponto da análise, capitalista é basicamente o possuidor de dinheiro que o lança na circulação visando obter racionalmente mais dinheiro. Observe, portanto, que não há nenhum critério moral envolvido na definição de capitalista, muito menos um juízo sobre a conduta social desses sujeitos (os tais capitalistas). Como reconhece Andrade (2010, p. 53): “na realidade a própria subjetividade do capitalista é comprometida nesse processo, motivo pelo qual o próprio Marx localiza não na pessoa do capitalista, mas no ‘seu bolso’ a origem e ‘eterno retorno’ do movimento do valor”. É desse modo que Marx se refere ao capitalista quando desenvolve o conceito de capital (como portador consciente do movimento insaciável do capital). Tomando o movimento do capital como sua finalidade subjetiva, qualquer capitalista sabe que “todas as mercadorias, por mais esfarrapadas que elas pareçam ou por pior que elas cheirem, são, na verdade e na fé, dinheiro [...] meios milagrosos para fazer de dinheiro mais dinheiro” (MARX, 1996, p. 274). O que se coloca em jogo é tão somente que o valor criado nesse movimento do valor em processo (do capital) possa ser superior ao valor originário. Como afirma Marx (1996, p. 261): “Ele se distingue, como valor original, de si mesmo como mais-valia, assim como Deus Pai se distingue de si mesmo como Deus Filho, e ambos são de mesma idade e constituem, de fato, uma só pessoa”. A analogia de Marx com a doutrina cristã da Santíssima Trindade ressalta o fato de que o valor- capital em processo parece dispor de uma propriedade oculta que lhe permite gerar mais valor, tão naturalmente quanto uma pereira dá peras. Como é de se supor, esse fenômeno certamente não é lá tão natural quanto parece, mas é mesmo assim que ele tende a aparecer. Por quê? E, afinal, qual a definição de capital para Marx? Vejamos: [...] Na circulação D – M – D, pelo contrário, ambos, mercadoria e dinheiro, funcionam apenas como modos diferentes de existência do próprio valor, o dinheiro o seu modo geral, a mercadoria o seu modo particular, por assim dizer apenas camuflado, de existência. Ele passa continuamente de uma forma para outra, sem perder-se nesse movimento, e assim se transforma num sujeito automático. Fixadas as formas particulares de aparição, que o valor que se valoriza assume alternativamente no ciclo de sua vida, então se obtêm as explicações: capital é dinheiro, capital é mercadoria. De fato, porém, o valor se torna aqui o sujeito de um processo em que ele, por meio de uma mudança constante das formas de dinheiro e mercadoria, modifica a sua própria grandeza, enquanto mais-valia se repele de si mesmo, enquanto valor original, se autovaloriza. Pois o movimento, pelo qual ele adiciona mais-valia, é seu próprio movimento, sua valorização, portanto autovalorização (MARX, 1996, p. 273-274). 84 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Essa passagem nos permite apreender sinteticamente a riqueza da definição do que é capital: é um movimento que tem formas de existência alternadas (forma dinheiro e forma mercadoria); é valor em expansão, um movimento que modifica sua própria grandeza; é um movimento de valor que se valoriza, dinheiro que gera dinheiro, ou seja, um movimento repetitivo (tautológico); é o próprio sujeito do movimento de capital, um agente que se relaciona consigo mesmo etc. Observação Como já pode ter ficado claro nessa altura de nossa discussão, a rigor, segundo o método apresentado por Marx em O Capital, não existem definições fixas, o mais importante é a apreensão da realidade semovente (que se move por si) através de um pensamento que seja capaz de reproduzir no cérebro esse movimento. É por essa riqueza de definições (móveis) de capital que diversas abordagens marxistas, como o próprio título da principal obra de Marx denota, se referem usualmente ao Capital como se ele fosse um sujeito, afinal é ele o protagonista do seu processo de valorização. O que se tem não é nem mesmo aquele fetichismo da mercadoria abordado anteriormente (que oculta as relações sociais e as apresenta como relações entre coisas), mas um tipo de fetichismo mais abrangente, à imagem e semelhança de seu próprio protagonista, um fetiche do capital que apresenta seu movimento como uma relação privada consigo mesmo, como se o capital dispusesse de um impulso vital próprio e independente dos outros viventes. 3.3.2 O que é e qual a origem da mais-valia? Até o momento, tratamos do conceito de capital e, de forma mais elementar, da noção de mais-valia. Cabe expor a origem concreta desse mais-valor que é resultado e motor do movimento do capital. Retomando a fórmula geral D – M – D, todas as mudanças de forma e indicativos de alteração na quantidade de valor não são capazes de explicar como o valor se altera no processo. Isso porque D – M – D significa que o montante de dinheiro do início é o mesmo do final. Contudo, um dos elementos que definem o movimento do capital é necessariamente a expansão da grandeza do valor. Logo, como aponta Marx, toda a discussão deve se tratar na verdade de D – M – D’, em que D’ = (D + ∆D), ou seja, fixar a reflexão no modo pelo qual é possível que dinheiro lançado na circulação seja capaz de gerar mais dinheiro.Uma primeira sugestão de resposta pode ser a de que o capitalista (personificação do capital em processo) compra a mercadoria de um agente econômico por um preço e revende essa mesma mercadoria a outro por um preço maior. Dessa forma, o capitalista, na prática um intermediário comercial, obtém um lucro (um mais-valor ou uma mais-valia). Sem embargo, surge uma questão: quando o capitalista comprou inicialmente a mercadoria, ele a pagou pelo seu valor, ou não? 85 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Se considerarmos que ele não pagou o valor no início (e apenas depois é que a revendeu pelo valor), temos que um outro agente (que produziu efetivamente a mercadoria comprada pelo capitalista para ser revendida) então não recebeu pela venda o valor integral da mercadoria. Dessa forma, somos obrigados a reconhecer que, do ponto de vista agregado, não houve criação de valor novo, mas apenas a transferência de valor entre os agentes econômicos (comprar barato e vender caro implica que alguém saiu perdendo uma cota-parte de valor na transação). Porém, podemos considerar que o capitalista, ao comprar a mercadoria, paga o valor e, quando revende essa mercadoria, recebe um mais-valor. Estamos assim supondo que o simples ato de troca (o comércio) é capaz de produzir mais valor. Mas como é possível que a simples troca da posse de mercadorias possa ser capaz de aumentar o valor social? Temos ainda um outro problema vinculado a essa consideração: ninguém é apenas (comerciante) capitalista, não consumindo mercadoria alguma; assim, mesmo que o comércio seja capaz de criar mais valor para quem revende, em toda transação alguém terá de arcar com essa diferença (no caso, todo ato de consumo é um ato de perda, já que é preciso pagar pela mercadoria o seu valor e também um mais-valor). Com efeito, explicar a origem do mais-valor (mais-valia, ou simplesmente o lucro) tomando a esfera da circulação nos permite, tão somente, encontrar modos de transferência de valor. Não é possível explicar como se cria valor sem que alguém seja ludibriado, ou que saia perdendo na relação de troca. O próprio Marx atesta que a relação capitalista não pode ser considerada uma relação de generalização de enganação e/ou fraude universalizada. Em vista disso, devemos supor que os preços das mercadorias transacionadas no mercado correspondem aos valores. Uma explicação rigorosa do lucro, para Marx, não pode estar simplesmente na circulação. Ela até pode aparecer na circulação, mas seu fundamento deve ser encontrado noutra esfera econômica, provavelmente no âmbito da produção dos valores. Cabe destacar que a simples diferença material entre as mercadorias (as diferenças entre os valores de uso ou mesmo a utilidade subjetiva que os agentes atribuem às coisas) não é capaz de explicar a origem do mais-valor (da mais-valia), posto que essa diferença é exatamente o motivo da troca (troca-se precisamente para se trocar os valores de uso, pelo menos é o que podemos extrair do senso comum – adiante veremos que é possível trocar sem ter como objetivo valores de uso). Para analisar a esfera da produção é necessário ampliar a visão sobre o circuito D – M – D’. A forma estendida desse circuito pode ser expressa da seguinte maneira: D – M ... p ... M’ – D’ Dinheiro acrescido de mais dinheiro Mercadoria acrescida de mais-valor Processo produtivo Figura 13 – Processo de produção de mais-valor 86 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Cabe destacar que o processo que acabamos de apresentar é de uma lógica em nada surpreendente, ele é simplesmente o fruto da observação da fórmula geral do capital. Sem embargo, é importante notar que esse processo e sua lógica não exigem nenhum questionamento sobre ética, moral, princípios ou práticas do capitalista. Aliás, não é preciso sequer apontar a presença do capitalista, ele pode simplesmente ser pressuposto. Isso, que pode parecer evidente, é um dos pontos destacados por Marx quando ele afirma ser o valor-capital o sujeito do processo. Nesse nosso grau de abstração, podemos afirmar tranquilamente que quem paga os fatores de produção, quem determina a produção e quem vende é o próprio capital. Mas como o capital é capaz de acrescentar valor às mercadorias, após o processo produtivo, e realizar esse valor quando vende a mercadoria e recebe seu dinheiro acrescido de dinheiro? Considerando o momento M’ – D’, ou seja, a mercadoria acabada (após o processo produtivo), ela já está acrescida de algum valor novo que será trocado por dinheiro. O mesmo pode ser dito do momento inicial D – M, o dinheiro apenas é convertido em mercadorias, sem alterar os valores (estamos supondo que o volume de dinheiro despendido na compra de mercadorias paga o valor dessas mercadorias). Pelas leis mercantis os produtos são trocados de acordo com seus valores, e isso vale inclusive para o dinheiro. Como destacamos, não há engodo ou transferência de valor na relação de troca. Isso significa então que o problema não está nos valores das mercadorias, mas possivelmente nas próprias mercadorias. A pergunta que surge é a seguinte: será que não existe no mercado alguma mercadoria que tenha um valor de uso capaz de aumentar os valores? Recorrendo à Teoria do Valor de Marx, que já vimos, será que não existiria “uma mercadoria cujo próprio valor de uso tivesse a característica peculiar de ser fonte de valor, portanto, cujo verdadeiro consumo fosse em si objetivação de trabalho, por conseguinte, criação de valor?” (MARX, 1996, p. 285). A resposta de Marx é que sim, existe essa mercadoria, ela é a força de trabalho (a capacidade de trabalho). Por força de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espécie (MARX, 1996, p. 285). Mas por que essa tal força de trabalho? De modo geral, é pacífico aceitar que a atividade criadora dos seres humanas é aquilo capaz de transformar a realidade. Podemos até radicalizar um pouco mais o argumento: o que diferencia os seres humanos dos outros animais ou seres vivos? Muitos responderiam que é a razão, o intelecto; contudo, é plenamente concebível imaginar uma cenoura pensante. 87 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA O simples fato de a cenoura pensar, ter consciência de sua existência, não alteraria em nada o fato de ela continuar debaixo da terra, sem poder se mover ou alterar o seu meio. De modo um pouco mais materialista, devemos reconhecer que o que diferencia o ser humano de outros seres orgânicos é precisamente a sua capacidade de transformar a realidade, e essa não é qualquer capacidade, essa capacidade é o trabalho. Claro, para que a realidade possa ser transformada de acordo com a vontade humana, é indispensável que o ser humano seja capaz de raciocinar com vistas ao seu objetivo. Como destaca Marx em O Capital, caso comparemos um enxame de abelhas ao mais inábil pedreiro, é possível que as abelhas sejam capazes de fazer uma colmeia muito mais exuberante que a construção do pedreiro. Todavia, há uma diferença fundamental entre as abelhas e o pedreiro, por mais inapto que ele seja: antes de construir, ele é capaz de imaginar uma casa completamente acabada, definir uma finalidade para sua ação, estabelecer um momento ideal e alcançar o objetivo com seu trabalho. Esse é também um dos motivos pelos quais Marx aponta para a centralidade da categoria trabalho humano. Mas, lembremos, o trabalho enquanto atividadetransformadora da realidade, como trabalho concreto, é apenas o conteúdo material das mercadorias. No modo de produção capitalista, essa atividade genérica chamada trabalho recebe uma forma social (e histórica) muito particular que faz dela também trabalho abstrato. A questão é que, nesse espaço social que muitos chamam de mercado de trabalho, o que os trabalhadores vendem não é o trabalho. É impossível vender trabalho, trabalho é uma capacidade humana. O que os trabalhadores vendem é a força de trabalho, um tempo específico de suas vidas, que dá direito ao capitalista de utilizar visando produzir algo. É interessante notar que, como as palavras não são inocentes, a própria noção de mão de obra obscurece e mascara a questão da força de trabalho. Quando acordamos pela manhã e pegamos um ônibus, nós vemos um amontoado de mãos isoladas se deslocando, ou vemos pessoas inteiras carregando suas forças de trabalho ao lugar onde são empregadas? Se os trabalhadores vendem força de trabalho, ela é uma mercadoria e, como qualquer outra mercadoria, deve ter um valor de uso e um valor de troca. O valor de troca da força de trabalho é o salário, afinal o valor de troca de uma mercadoria (seu preço) é a quantidade de dinheiro (equivalente geral) que se recebe ao vendê-la. Mas é o valor de uso da força de trabalho? Para encontrar o valor de uso de qualquer mercadoria, devemos nos perguntar a finalidade de sua aquisição. Se alguém compra água é porque tem interesse em seu valor de uso, nas propriedades materiais da água, que podem ser matar a sede ou irrigar uma plantação. E quem compra a força de trabalho? Quem compra força de trabalho é a pessoa que detém dinheiro e deseja produzir alguma coisa, ou seja, que pretende inserir esse dinheiro no circuito D – M ... p ... M’ – D’. Já sabemos quem é esse sujeito, ele é o capitalista (aquela pessoa qualquer que personifica o movimento do capital). 88 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I O empresário capitalista compra a força de trabalho precisamente porque pretende combiná-la a meios de produção para ampliar o valor (gerar mais-valia). É justificável reconhecer então que o valor de uso da força de trabalho é a capacidade de produzir valor e mais-valia. E como se tem acesso ao valor de uso das mercadorias? Consumindo-as. E como se consome o valor de uso da mercadoria força de trabalho? Colocando-a para produzir valor, ou seja, colocando-a para trabalhar. Como a mercadoria força de trabalho é uma capacidade que não pode ser separada do corpo do trabalhador que a vendeu, é necessário que o trabalhador esteja presente, trabalhando, para que o valor de uso da sua mercadoria vendida possa ser consumido. Respondemos assim, inclusive, o que é trabalho (no capitalismo). Trabalho é exatamente o ato de consumir o valor de uso da força de trabalho. Temos agora algumas respostas: • O que os trabalhadores vendem não é trabalho, mas força de trabalho. • O valor de troca da força de trabalho é o salário. • O valor de uso da força de trabalho é a capacidade de produzir valor e mais-valia. • Trabalho é o ato de consumir o valor de uso da força de trabalho. Já encontramos a mercadoria específica capaz de produzir mais valor, já sabemos o seu valor de troca e compreendemos o seu valor de uso. Mas há um detalhe: como vimos anteriormente, valor de troca e valor são categorias diferentes para Marx. O valor de troca é a manifestação, a objetivação do valor. O valor de troca pode variar em função do lugar e no tempo, sem que o valor tenha se alterado. Felizmente, já sabemos que a substância do valor é trabalho, e como estamos tratando de força de trabalho as coisas ficam mais simples. Precisamos saber apenas qual a grandeza do valor dessa mercadoria força de trabalho. Como expõe Marx, lá no começo de O Capital, a grandeza do valor é a quantidade de trabalho socialmente necessário para se produzir a mercadoria. Já que estamos tratando de uma mercadoria que está inserida num processo sem limites (que é o movimento do capital), podemos afirmar que o valor da força de trabalho é a quantidade de trabalho socialmente necessária para reproduzir a mercadoria força de trabalho. Bem, a mercadoria força de trabalho não pode ser separada materialmente do seu vendedor, que é o trabalhador; logo, reproduzir a mercadoria força de trabalho representa reproduzir o trabalhador. Reproduzir o trabalhador significa reproduzir as condições necessárias para que o trabalhador possa continuamente consumir o valor de uso de sua mercadoria, ou seja, trabalhar. Isso implica alimentação, moradia, transporte até o lugar de trabalho, saúde etc. Claro, estamos pensando já em trabalhadores 89 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA adultos, mas como o movimento do capital é contínuo e os seres humanos são finitos, reproduzir a força de trabalho implica também garantir as condições de reprodução da parte da população que trabalha (ou seja, garantir a sobrevivência não somente do trabalhador, mas também de sua família). Desse modo, deve-se incluir também a educação e a formação profissional. Tudo isso deve ser contabilizado como valor da força de trabalho. E onde está a mais-valia? A mais-valia se verifica porque o trabalhador, via de regra, produz mais valor ao trabalhar do que o valor de sua força de trabalho. Exemplo: Digamos que para repor o valor da sua força de trabalho uma pessoa precise trabalhar duas horas por dia durante o mês. Acontece que esse valor da força de trabalho que deve ser reposto (para garantir a reprodução da mercadoria força de trabalho) não tem influência direta sobre a jornada de trabalho. Podemos imaginar tranquilamente que esse mesmo trabalhador estabeleceu um contrato de oito horas diárias de trabalho. A mais-valia se efetua porque o capitalista, ao comprar a mercadoria força de trabalho pelo seu valor, paga na prática duas horas diárias de trabalho, enquanto o trabalhador, pelo contrato firmado, trabalha oito horas por dia. Assim, apesar de o capitalista pagar a força de trabalho pelo seu valor, é direito afirmar que a mais-valia, apropriada pelo capitalista, é de seis horas diárias, ou seja, a diferença entre a jornada de trabalho e o valor da força de trabalho. Agora temos elementos necessários para discutir mais a fundo a mais-valia (o mais-valor que surge com o movimento do capital). Observe que até agora não apareceu em nenhum momento a palavra exploração e, muito menos, capitalista explorador. Dentro dos objetivos que foram apontados anteriormente, desmistificar a análise de Marx é indispensável para a compreensão do autor. Para entrar na discussão sobre exploração, sigamos o procedimento desenvolvido por Carcanholo e Sabadini (2011), na trilha aberta pelo método de Marx. Tratemos da mais-valia sob dois “pontos de vista”: i) do ato individual e isolado; ii) da perspectiva global, totalizante, da questão. • Ponto de vista individual e isolado (relação entre um empresário e um trabalhador): — O empresário compra matérias-primas, equipamentos, meios de trabalho, edificação e força de trabalho pagando todas as mercadorias pelos seus respectivos valores (ou seja, ele paga o valor da força de trabalho). – Digamos que o contrato de trabalho seja de oito horas diárias. Nessas oito horas, no processo de produção, temos a transformação dos meios de produção e o consumo da força de trabalho, criando um valor novo incorporado às novas mercadorias produzidas. 90 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I – O empresário pretende vender essas mercadorias segundo o valor. Para isso,ele irá contabilizar os valores consumidos das máquinas, equipamentos e instalações e a parte dos valores que foram transferidas para a nova mercadoria, além de incluir o valor criado pela força de trabalho (que, seguindo nosso exemplo anterior, foi de oito horas – o tempo completo da jornada de trabalho). – Onde está a mais-valia? Bem, do ponto de vista do empresário, ele pagou todas as mercadorias pelo seu valor; logo, não se pode falar de nenhum tipo de exploração. – Portanto, para o capitalista não faz o menor sentido querer estabelecer relações entre esse negócio chamado força de trabalho e a jornada de trabalho. O que importa é que não houve qualquer tipo de coação, pelo contrário, o contrato de trabalho firmado com o trabalhador foi um contrato entre iguais (juridicamente) e estabelecido livremente. O trabalhador poderia simplesmente não aceitar os termos do contrato caso não lhe interessasse. — O trabalhador recebeu, de acordo com todos os pré-requisitos da lei, o salário negociado por oito horas de trabalho. O combinado foram exatamente essas oito horas (nem mais, nem menos). – É até possível que por uma variedade de determinantes o trabalhador considere que ele seja “explorado”, que ele trabalhe demais; contudo, se o contrato foi estabelecido livremente não há muito que ele possa fazer (pelo menos não isoladamente, que é o nosso foco aqui). • Perspectiva global, totalizante, da questão: — Sendo uma perspectiva global, já não se trata de considerar o empresário e o trabalhador isoladamente. — Qual o significado do dinheiro que é recebido pelo conjunto dos trabalhadores sob a forma de salário? O salário é um amontoado de equivalentes gerais (dinheiro) que permite aos trabalhadores adquirem as mercadorias que necessitam e/ou desejam. — Que agentes econômicos foram responsáveis pela criação do valor novo gerado pela produção? Ou seja, quem trabalhou e, portanto, consumiu o valor de uso da força de trabalho, garantindo a geração do mais-valor? Resposta: os próprios trabalhadores. — Então, os trabalhadores recebem, sob a forma de salários, uma parte do produto criado por eles mesmos. E o que acontece com os salários recebidos pelos trabalhadores? Ora, eles são usados para adquirir bens que serão vendidos pelos próprios capitalistas. — Logo, é de se concluir que o que os empresários capitalistas gastaram coletivamente sob a forma de salários retornará a eles como pagamento das mercadorias, que foram produzidas pelos trabalhadores, mas que esses trabalhadores terão de pagar para as adquirir. Seguindo esse raciocínio, somos obrigados a concluir que há alguma coisa que pode ser chamada de exploração nessa relação entre o conjunto dos trabalhadores e o conjunto dos capitalistas. 91 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA O que esse raciocínio, com base nos argumentos de Marx e apresentado por Carcanholo e Sabadini (2011), nos permite avaliar é que, na sociedade capitalista, há e não há exploração. Se tomarmos apenas a perspectiva do capitalista isoladamente, seremos forçados a concluir que não há exploração. Contudo, ao se examinar a totalidade das relações produtivas envolvidas, devemos reconhecer que há exploração – não do trabalho, mas sim da força de trabalho, que, “por acaso”, envolve diretamente o conjunto dos trabalhadores. Tomar como perspectiva única e privilegiada de análise a perspectiva isolada do capitalista é chamado por Marx de adotar uma perspectiva burguesa da realidade social – o que, por ser limitado, capaz de observar apenas a superfície das relações sociais, pode ser tratada como uma ideologia burguesa. Antes de dar prosseguimento, cabe uma precisão sobre o termo exploração, adotado por Marx em O Capital. É muito comum se atribuir forte conotação moral ao termo exploração; todavia, é importante apontar para as diferenças entre uma dimensão moral e o aspecto econômico da exploração. Como apontado noutros momentos de nosso livro-texto, a crítica de Marx não é uma crítica moral do capitalismo, e, no caso da mais-valia, tem-se basicamente a identificação de que a exploração do valor de uso de uma mercadoria particular (a força de trabalho) é capaz de produzir um excedente (um mais-valor, ou mais-valia) que não é apropriado pelo produtor direto. Esse excedente é apropriado pelo sujeito que personifica o capital em processo (o capitalista), já que como comprador da mercadoria força de trabalho ele tem o direito de consumir seu valor de uso. Desse modo, exploração aqui se assemelha muito mais ao ato de explorar a jazida de algum minério do que a um abuso da boa-fé ou da ignorância de alguém. Considerando uma das principais reivindicações trabalhistas do século XX, o direito ao emprego (que poderia ser lido, no limite, como o direito a ser explorado por algum capital), essa questão da exploração sequer é uma questão colocada por muitos trabalhadores assalariados. Todavia, mesmo que ela não se manifeste (apareça) dessa forma na realidade, sendo soterrada pela perspectiva capitalista do ato individual e isolado, ela não é nem um pouco natural e envolve condições históricas particulares relevantes. Saiba mais Para ter uma dimensão sobre essa discussão acerca da exploração e o poder das empresas, o filme-documentário A Corporação apresenta a exploração da força de trabalho barata no Terceiro Mundo e as consequências sobre a natureza com o aumento da produção. A CORPORAÇÃO. Dir. Mark Achbar e Jennifer Abbott. Canadá: Big Picture Media Corporation, 2003. 145 minutos. É importante assinalar que a transformação das pessoas em trabalhadores assalariados e a conversão da força de trabalho em uma mercadoria (muito especial, como vemos, já que é capaz de produzir um excedente apropriável pelo capitalista) foi um fator indispensável para a constituição do capital e do capitalismo. 92 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Primeiramente, para que o detentor da mercadoria força de trabalho possa dela dispor, é indispensável que ele seja considerado juridicamente como um sujeito capaz de exercer atos de vontade e que seja concebido como um livre-proprietário. Além disso, o livre-contrato exercido entre os sujeitos (de direito) deve versar sobre uma relação de venda com prazo determinado, nunca sendo uma venda definitiva. A venda definitiva implicaria a venda de si, transformando esse vendedor num escravo (de um possuidor livre de uma mercadoria, ele mesmo se converteria em mercadoria). A segunda condição, apontada por Marx para que o detentor de dinheiro possa encontrar a força de trabalho convertida em uma mercadoria, é a de que o detentor da mercadoria força de trabalho precise vendê-la, não sendo capaz de vender outras mercadorias (nas quais sua força de trabalho estaria materializada). Nos termos de Marx: Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro precisa encontrar, portanto, o trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre no duplo sentido de que ele dispõe, como pessoa livre, de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem outras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho (MARX, 1996, p. 287, grifos nossos). Como a “natureza não produz de um lado possuidores de dinheiro e de mercadorias e, de outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho” (MARX, 1996, p. 287), a ênfase de Marx na liberdade vai de encontro a um conjunto de temas tratados pelas filosofias políticas do direito natural (algo com que tivemos contato quando discutimos Adam Smith). Mesmo a noção de liberdade deve ser tomada em seu caráter social e histórico: ela aparece, numaspecto, como a liberdade individual e, por outro, como a liberdade em relação a todos os meios necessários à reprodução individual das condições de vida. Com isso, a explicação sobre o que é e qual a origem da mais-valia, bem como a exposição dos pontos de vista inerentes aos agentes envolvidos na troca da mercadoria força de trabalho com o dinheiro, Marx apresenta por que a esfera da circulação (bastante privilegiada em outras abordagens econômicas) aparece como um verdadeiro “Éden dos direitos naturais do homem”. Ao final de seu capítulo sobre como o dinheiro se transforma em capital, afirma Marx: [...] O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas sobre o seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo. O único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses 93 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA privados. E justamente porque cada um só cuida de si e nenhum do outro, realizam todos, em decorrência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma previdência toda esperta, tão-somente a obra de sua vantagem mútua, do bem comum, do interesse geral. Ao sair dessa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, da qual o livre-cambista vulgaris [economista vulgar] extrai concepções, conceitos e critérios para seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já se transforma, assim parece, em algo a fisionomia de nossa dramatis personae [personagens do drama]. O antigo possuidor de dinheiro marcha adiante como capitalista, segue-o o possuidor de força de trabalho como seu trabalhador; um, cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, contrafeito, como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto o – curtume (MARX, 1996, p. 293). 4 O PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DE CAPITAL O processo de produção capitalista não é um fenômeno natural. Ele envolve uma dimensão material, aparentemente: uma das condições para a vida humana é a produção de valores de uso, de elementos capazes de atenderem às necessidades humanas. A essa dimensão do processo de produção da capitalista, Marx dá o nome de processo de trabalho. Contudo, o processo de produção capitalista não é simplesmente um processo de criação (e distribuição) de valores de uso, ele é destacadamente um processo de valorização de capital. Recapitulando elementos anteriores: se, quando pensamos numa situação de mera circulação de mercadorias (M – D – M), o valor expresso em dinheiro aparece como um meio para a satisfação de necessidades humanas, o que caracteriza e diferencia a circulação de capital é que nela são as necessidades humanas que servem de meio (de suporte) para a valorização do valor-capital (D – M – D’). Isto é, o que marca o caráter específico da produção capitalista é ser sua finalidade a valorização do valor (que foi adiantado pelo capitalista para produzir mercadorias voltadas à venda). Ou alguém imagina que uma empresa capitalista que, por exemplo, vende água engarrafada atua para satisfazer necessidades humanas? Essas necessidades são meios para se obter lucro (mais valor do que aquele adiantado inicialmente no negócio). Como afirma Marx: O produto – a propriedade do capitalista – é um valor de uso, como o fio, as botas etc. Mas apesar de as botas, por exemplo, constituírem, de certo modo, a base do progresso social e nosso capitalista ser um “progressista” convicto, ele não as fabrica por elas mesmas. Na produção de mercadorias, o valor de uso não é, de modo algum, a coisa qu’on aime pour lui-même [que se ama por ela mesma]. Aqui, os valores de uso só são produzidos porque e na medida em que são o substrato material, os suportes do valor de troca. 94 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I E, para nosso capitalista, trata-se de duas coisas. Primeiramente, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, isto é, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. Em segundo lugar, quer produzir uma mercadoria cujo valor seja maior do que a soma do valor das mercadorias requeridas para sua produção, os meios de produção e a força de trabalho, para cuja compra ele adiantou seu dinheiro no mercado. Ele quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria; não só valor de uso, mas valor, e não só valor, mas também mais-valor (MARX, 2013, p. 263). A diferença entre processo de trabalho e processo de valorização é significativa. Como processo de trabalho, a produção capitalista considera os valores de uso qualitativamente, eles são trabalhos concretos de diferentes qualidades e características. Contudo, quando se examina o processo de valorização, que também constitui a produção capitalista, o que importa é produzir valores de uso que disponham de um valor superior à soma dos valores das mercadorias gastas na sua produção; o que importa é a diferença quantitativa entre os valores. E como se forma exatamente esse tal mais-valor no processo de produção capitalista? Seguindo o exemplo apresentado por Marx, vamos supor que as transações se deem pelo valor expresso em dinheiro. O exemplo de Marx é da produção de fio (vamos substituir as unidades de medida utilizadas por Marx por outras mais próximas de nosso cotidiano – esse procedimento em nada compromete o exemplo). Para essa produção de fio, são necessários 10 quilos de algodão, que “valem” 10 reais; essa produção utiliza e desgasta os fusos (bobinas de fiar) num valor de 2 reais. O valor dos meios de produção (algodão mais o fuso) é de 12 reais. Ao converter esses valores em horas de trabalho necessárias à produção, Marx supõe que os 10 quilos de algodão junto com o uso e o desgaste do fuso consumiram dois dias de trabalho (duas jornadas de trabalho, cada uma de 12 horas). Como sabemos, o valor da força de trabalho não tem relação direita com as condições materiais de produção, ele é dado pelas condições de reprodução da mercadoria força de trabalho. Vamos considerar que o valor da força de trabalho seja de três reais (esse valor corresponde a seis horas de trabalho, a quantidade de trabalho requerida para produzir a quantidade média dos meios de subsistência diários do trabalhador). O total de horas gastas para produzir essas mercadorias foi: Valor dos meios de produção + Valor da força de trabalho 12 h x 2 (já que são duas jornadas de trabalho) + 6 h 24 h + 6 h = 30 horas 95 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Se o capitalista resolvesse fazer as contas de quanto ele gastou, qual deverá ser o valor do seu produto? Ora, ele gastou 15 reais (12 reais com os meios de produção e 3 reais com a força de trabalho). Mas com isso teríamos que ele não lucrou nada com essa atividade. E sua parte, como fica? Como muitos tendem a suspeitar, parece que a única alternativa para que o lucro capitalista exista é que ele venda sua mercadoria acima do valor. Mas mesmo essa alternativa tem problemas, afinal ele não é o único capitalista existente. Caso ele venda acima do valor, não há nadaque impeça os demais capitalistas de fazerem o mesmo. Ele vai poder até ter lucro em seu negócio quando for vender, mas quando ele for a mercado consumir, ele perderá seu ganho. Supor isso, que pode parecer evidente para quem dispõe apenas de sua força de trabalho e que necessita gastar quase tudo o que ganha, no caso da produção capitalista em geral não faz sentido. Significaria dizer que não existe acumulação de capital e que o lucro é apenas um fenômeno momentâneo (ele só existe na circulação das mercadorias). Aliás, sendo um pouco mais contundente, o capitalista poderia pensar ser melhor nem ter se envolvido com o negócio; bastaria ele comprar o produto já acabado no mercado. Nesse ponto, Marx é sarcástico: É possível que o capitalista, instruído pela economia vulgar, diga que adiantou seu dinheiro com a intenção de fazer mais dinheiro. Mas o caminho para o inferno é pavimentado com boas intenções, e sua intenção poderia ser, igualmente, a de fazer dinheiro sem produzir nada. Ele ameaça todo tipo de coisa e está resolvido a não se deixar apanhar novamente. De agora em diante, em vez de ele próprio fabricá-la, comprará a mercadoria pronta no mercado. Mas se todos os seus irmãos capitalistas fizerem o mesmo, onde ele encontrará mercadoria no mercado? E dinheiro ele não pode comer. Prega, então, um sermão. Diz que é preciso levar em conta sua abstinência. [...] Ele se empertiga, desafiante, apoiando-se nas patas traseiras. Poderia o trabalhador, apenas com seus próprios meios corporais, criar no éter configurações do trabalho, mercadorias? Não é verdade que ele, nosso capitalista, forneceu ao trabalhador os materiais com os quais – e nos quais – ele pode dar corpo a seu trabalho? E considerando-se que a maior parte da sociedade consiste de tais pés-rapados [Habenichtsen], não prestou ele um inestimável serviço à sociedade por meio de seus meios de produção, seu algodão e seus fusos, para não falar do serviço prestado ao próprio trabalhador, a quem ele, além de tudo, ainda guarneceu dos meios de subsistência? E não deve ele cobrar por esse serviço prestado? [..] E eis que nosso amigo, até aqui tão soberbo, assume repentinamente a postura modesta de seu próprio trabalhador. Ele próprio, o capitalista, não trabalhou? Não realizou ele o trabalho de controle e supervisão do tecelão? 96 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I E esse seu trabalho também não gera valor? Mas seu próprio overlooker [supervisor] e seu gerente dão de ombros. Enquanto isso, ele já assumiu, com um largo sorriso, sua fisionomia usual. Ele nos rezou toda essa ladainha, mas não dá por ela nem um tostão. Esses e outros subterfúgios e truques baratos ele deixa aos professores de economia política, que são pagos para isso. Já ele, ao contrário, é um homem prático, que nem sempre sabe o que diz quando se encontra fora de seu negócio, mas sabe muito bem o que faz dentro dele (MARX, 2013, p. 268-269, sublinhado nosso). Seguindo Marx, enquanto os economistas e professores de Economia (lembre-se: na época de Marx, Economia Política era o nome dado à Ciência Econômica em geral) se encarregam de encontrar justificativas para o lucro do capitalista, este, como ser prático, já teve sua resposta. Vejamos: O capitalista sabe, e assim pregam as leis naturais da Economia (uma ironia recorrente de Marx, já que não existe nada de natural na discussão), que quem compra uma mercadoria tem o direito de consumi-la. O capitalista comprou a mercadoria força de trabalho, e seu consumo lhe pertence, como o de qualquer outra mercadoria utilizada na produção. O processo de trabalho não se encerra simplesmente quando se recuperam os valores dos meios de produção e da força de trabalho. O trabalhador vende sua força de trabalho por 3 reais, e esse dinheiro corresponde a seis horas de trabalho (para produzir os meios de produção que ele necessita diariamente para se reproduzir). Onde está registrado que, após vender sua força de trabalho, ele trabalha por apenas seis horas? Ao comprar a força de trabalho, o capitalista pode muito bem ter negociado, segundo a média do mercado de trabalho, uma jornada diária de trabalho de 12 horas. Pode parecer um exagero para alguns supor uma jornada de trabalho diária de 12 horas para um trabalhador nos dias atuais. Contudo, como mostra o próprio Marx em O Capital (destaque para o capítulo 24 do Livro 1), baseando-se em estatísticas e documentos oficiais ingleses de sua época, essa era uma jornada mais do que comum (encontravam-se jornadas de, por exemplo, 14 ou 16 horas diárias durante a Primeira e a Segunda Revolução Industrial). Saiba mais Uma sugestão, aos mais céticos especialmente, é o livro de Engels intitulado A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra: Segundo a Observação do Autor e Fontes Autênticas. Bem, o título já diz alguma coisa. ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra: segundo as observações do autor e fontes autênticas. São Paulo: Boitempo, 2010. 97 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Se o trabalhador agora trabalha 12 horas, e não apenas seis, a quantidade de meios de produção consumidos também aumentou. Vamos imaginar que a situação tenha dobrado como as horas de trabalho. Nesse novo caso, temos: • Força de trabalho = 3 reais (o valor da força de trabalho não se altera simplesmente porque alguém trabalha mais; quando fez o seu contrato, o trabalhador negociou 3 reais por 12 horas de trabalho). • Algodão = 20 reais. • Fusos (bobinas de fiar) = 4 reais. • Valor adiantado = 27 reais. Esse é o valor adiantado pelo capitalista para produzir os fios. Mas qual é o valor do produto? Se o dinheiro expressa o valor no nosso exemplo, o valor do algodão é 20 reais e o valor dos fusos é 4 reais. O detalhe está na força de trabalho: O capitalista pagou por ela 3 reais, mas esses 3 reais correspondem a seis horas e, pelo exemplo, o trabalhador negociou trabalhar 12 horas, logo o valor incorporado pelo trabalho na mercadoria é de 6 reais. O valor do produto é 30 reais. O lucro do capitalista é de 3 reais (diferença entre o valor do produto e o valor adiantado) justamente porque ele pagou 3 reais ao trabalhador. Ele pagou ao trabalhador o valor da sua força de trabalho. Essa força de trabalho pode ser reproduzida diariamente com apenas 6 horas de trabalho – ela corresponde a seis horas de trabalho. Mas o trabalhador teve uma jornada de 12 horas de trabalho, negociada em contrato. O que o contrato não revela é que em seis horas o trabalhador criou um valor novo igual ao valor de sua força de trabalho e nas outras seis horas o seu trabalho não teve contrapartida. O tempo a mais despendido pelo trabalho não tem relação direita com as condições de sua compra. Na esfera da circulação, a relação se deu livremente e entre iguais. Como destaca Marx: No final das contas, o truque deu certo. O dinheiro converteu-se em capital. Todas as condições do problema foram satisfeitas, sem que tenha ocorrido qualquer violação das leis da troca de mercadorias. Trocou-se equivalente por equivalente. Como comprador, o capitalista pagou o devido valor por cada mercadoria: algodão, fusos, força de trabalho. Em seguida, fez o mesmo que costuma fazer todo comprador de mercadorias: consumiu seu valor de uso. 98 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Do processo de consumo da força de trabalho, que é ao mesmo tempo processo de produção da mercadoria, resultou um produto de 20 libras de fio com um valor de 30 xelins [no nosso exemplo, 30 reais] (MARX, 2013, p. 271). É esse fenômeno,que ocorre no processo de produção capitalista, que Marx define como exploração da força de trabalho. Essa exploração é uma censura moral, ela é a constatação do seguinte: o capitalista adiantou seu capital em meios de produção e em força de trabalho, mas foi a força de trabalho que gerou um mais-valor (uma mais-valia) apropriado pelo capitalista e sem nenhuma contrapartida ao trabalhador. Como o capitalista não é capaz de explorar o trabalho sem adiantar capital (para comprar de máquinas, equipamentos, matérias-primas etc.), isso produz a percepção de que seu lucro é resultado de todo o seu capital disponibilizado na produção. 4.1 Formas de mais-valia: mais-valia absoluta e mais-valia relativa A partir da compreensão do processo de constituição do valor de uma mercadoria no processo produtivo, Marx decompõe esse valor, de acordo com sua composição, em c + v + m. Nessa expressão, c indica aquilo que Marx denomina como capital constante. Ele corresponde ao valor das máquinas e equipamentos que se desgastaram durante o processo produtivo e também o valor das matérias-primas que é repassado inteiramente ao produto final. Por sua vez, v denomina o capital variável, que corresponde ao valor da força de trabalho, que é completamente repassado para o valor da mercadoria. E, por fim, m designa a mais-valia, o valor excedente criado durante a jornada de trabalho e que é apropriado pelo capitalista, isto é, trabalho não pago. A equação c + v + m pode ser entendida também da seguinte maneira: o capital constante (c) é em sua essência trabalho passado que se materializou nos meios de produção, enquanto v + m representam o novo valor que é criado durante a jornada de trabalho (seja esse trabalho pago, como v, seja ele não pago, como m). A mais-valia pode ser obtida de mais de uma forma, ela não é resultado apenas da extensão da jornada de trabalho para além do valor da força de trabalho, como foi sugerido na explicação sobre a mais-valia. A forma que o capital utiliza para aumentar a massa de mais-valia produzida por um trabalhador, que consiste em prolongar a jornada de trabalho, ou a intensificar, é chamada de mais-valia absoluta. Tomemos um exemplo: • Suponha que a jornada diária de trabalho seja de oito horas. • Em três horas o trabalhador produz valor novo da mesma magnitude do valor da reprodução de sua força de trabalho, sendo as cinco horas restantes caracterizadas como mais-valia. • Se a jornada de trabalho for estendida para nove horas, a mais-valia passará de cinco para seis horas. 99 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Outra forma de expandir a mais-valia absoluta é através da intensificação da jornada de trabalho. A intensificação consiste de elevar o ritmo de atividade dos trabalhadores, fazendo que eles produzam um volume maior de mercadorias no mesmo tempo (trabalhem mais durante o mesmo período). Certamente, a expansão da mais-valia absoluta apresenta limites. Por óbvio, é impossível elevar a jornada de trabalho para além de 24 horas diárias, mas não só isso, se o capital ampliar a jornada de trabalho diária além do que a capacidade humana pode realizar, ele corre o risco de incapacitá-la. Ademais, há de se considerar também limites políticos para essa expansão. A intensificação da jornada, por ser mais evidente o desgaste humano que ela produz aos trabalhadores, tende a instigar lutas de trabalhadores contra os excessos da exploração capitalista. Uma outra forma de ampliar a produção de mais-valia sem aumento ou intensificação da jornada de trabalho é por meio da chamada mais-valia relativa. Para explicá-la, vamos retomar a suposição do exemplo anterior: • A jornada diária de trabalho é de oito horas. Vamos expressá-la por meio da linha A-C: A_______________________C • Em três horas, o trabalhador produz valor novo da mesma magnitude do valor da reprodução de sua força de trabalho, sendo as cinco horas restantes caracterizadas como mais-valia. Vamos estabelecer um ponto B entre o trabalho necessário (3 h) e o trabalho excedente (5 h). A________B______________C 3 h 5 h • Supondo que não seja possível expandir a jornada de trabalho (nem intensificá-la), a única maneira de expandir a mais-valia (segmento BC) é reduzindo o que é pago pelo valor da força de trabalho (segmento AB). A___A’___B______________C 2 h 1 h 5 h • Nessa nova distribuição da jornada de trabalho, a mais-valia agora é expressa pelo segmento A’C, representando seis horas da jornada de trabalho, e o valor do trabalho pago reduzido para duas horas (segmento AA’). A explicação oferecida por Marx não exige que o salário pago ao trabalhador caia; ele continuará a receber o mesmo salário real. A produção da mais-valia relativa (relativa a uma mesma jornada e aos valores nela expressos) é possível caso o valor da cesta de bens que representam o valor da força de trabalho caiam. Isso é possível com a elevação da produtividade. 100 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Essa elevação da produtividade é tratada por Marx como elevação da força produtiva do trabalho. Por elevação da força produtiva do trabalho entendemos precisamente uma alteração no processo de trabalho por meio da qual o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria é reduzido, de modo que uma quantidade menor de trabalho é dotada da força para produzir uma quantidade maior de valor de uso (MARX, 2013, p. 389, grifo nosso). Digamos que, dado um avanço na produtividade, o valor da força de trabalho não seja de três horas horas diárias, mas apenas de duas horas. Isto é, sem alteração na intensidade de trabalho, é possível produzir os mesmos bens (os mesmos valores de uso) em menos tempo (portanto, tendo um valor menor). A elevação da produtividade significa precisamente a redução do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria; ao consideramos os bens necessários à reprodução dos trabalhadores, o valor pode cair mesmo que os trabalhadores continuem consumindo a mesma cesta de bens. 4.2 Métodos de produção de mais-valia: cooperação, manufatura e grande indústria Segundo Marx, a produção capitalista (síntese de processo de trabalho e processo de valorização) só começa de fato quando o mesmo capital individual emprega simultaneamente um maior número de trabalhadores. Isso pode sugerir que a diferença entre produção capitalista e outras formas de produção de riqueza (que também envolvem troca de produtos no mercado) é meramente quantitativa. Aliás, essa é a forma pela qual muitos apologistas do modo de produção capitalista tendem a diferenciar esse modo de produção dos anteriores. Para eles, tudo não passaria de uma questão de tamanho (da produção, dos mercados etc.). Contudo, como explica Marx (2013, p. 399): “mesmo quando o modo de trabalho permanece o mesmo, o emprego simultâneo de um número maior de trabalhadores opera uma revolução nas condições objetivas do processo de trabalho”. Mesmo considerando uma base técnica de produção inalterada, a cooperação, entendida inicialmente como a reunião de vários trabalhadores em um mesmo local de trabalho, permite a expansão da mais-valia relativa. Do ponto de vista do capital constante, a economia no uso de meios de produção é perceptível. Marx dá o seguinte exemplo: Uma sala em que trabalham vinte tecelões com seus vinte teares tem de ser mais ampla do que a sala em que trabalham um único tecelão independente e seus dois ajudantes. Mas como a produção de uma oficina para vinte pessoas custa menos trabalho do que a produção de dez oficinas para cada duas pessoas, o valor dos meiosde produção coletivos e massivamente 101 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA concentrados não aumenta, em geral, na proporção de seu volume e efeito útil. Meios de produção consumidos em comum transferem uma parte menor de seu valor ao produto individual, em parte porque o valor total que transferem é simultaneamente repartido por uma massa maior de produtos [...] (MARX, 2013, p. 399, grifo nosso). Sem embargo, além da economia com meios de produção, a cooperação significa também economia de trabalho vivo, de força produtiva do trabalho. Como afirma Marx (2014), do mesmo modo que o poder ofensivo de um esquadrão de cavalaria ou de um regimento de infantaria militar difere dos poderes de cada cavaleiro ou soldado tomado individualmente, a soma das forças exercidas por trabalhadores isolados também difere da força social gerada quando muitas mãos atuam simultaneamente na mesma operação. O efeito combinado criado pelo trabalho não pode ser produzido pela simples soma de trabalhos isolados. A cooperação é um ato de criação de uma nova força produtiva (além de estender o âmbito espacial do trabalho – pense, por exemplo, em obras de construção civil). Figura 14 – A manufatura e a expansão das forças produtivas do trabalho Acontece que o capital não paga por essa força produtiva resultante da cooperação. Como a compra de força de trabalho é uma relação estabelecida entre sujeitos atomizados, quando o trabalhador se depara com o capitalista, ele se defronta como proprietário apenas de sua mercadoria individual força de trabalho. Nesse sentido, argumenta Marx: A força produtiva que o trabalhador desenvolve como trabalhador social é, assim, força produtiva do capital. A força produtiva social do trabalho se desenvolve gratuitamente sempre que os trabalhadores se encontram sob determinadas condições, e é o capital que os coloca sob essas condições. Pelo fato de a força produtiva social do trabalho não custar nada ao capital e, por outro lado, não ser desenvolvida pelo trabalhador antes que seu 102 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I próprio trabalho pertença ao capital, ela aparece como força produtiva que o capital possui por natureza, como sua força produtiva imanente. (MARX, 2013, p. 408). A própria cooperação, um método de extração de mais-valia (de extração de sobretrabalho), aparece como se fosse uma força produtiva do capital, e não do trabalho. A percepção burguesa assume como fato natural o capital possuir força produtiva – ou, conforme aprendemos com a Teoria Neoclássica, como se o capital tivesse uma produtividade que lhe fosse intrínseca.9 Mas a cooperação não significa simplesmente produção em maior escala; ela envolve, de modo mais complexo, a possibilidade de maior divisão do trabalho. Um exemplo histórico disso é demonstrado por Marx com a manufatura. É com a manufatura que torna possível a proposta de “qualificação de mão de obra” (TEIXEIRA, 1995). Nela, cada trabalhador passa a se especializar em determinada etapa ou função no processo de trabalho. Referindo-se ao artesanato (característico das corporações de ofício pré-capitalistas), Marx apresenta a dupla dimensão de surgimento da manufatura. O modo de surgimento da manufatura, sua formação a partir do artesanato, é portanto duplo. Por um lado, ela parte da combinação de ofícios autônomos e diversos, que são privados de sua autonomia e unilateralizados até o ponto em que passam a constituir meras operações parciais e mutuamente complementares no processo de produção de uma única e mesma mercadoria. Por outro lado, ela parte da cooperação de artesãos do mesmo tipo, decompõe o mesmo ofício individual em suas diversas operações particulares, isolando-as e autonomizando-as até que cada uma delas se torne uma função exclusiva de um trabalhador específico. Por um lado, portanto, a manufatura introduz a divisão do trabalho num processo de produção, ou desenvolve a divisão do trabalho já existente; por outro, ela combina ofícios que até então eram separados. Mas seja qual for seu ponto de partida particular, sua configuração final é a mesma: um mecanismo de produção, cujos órgãos são seres humanos (MARX, 2013, p. 413). A qualificação da mão de obra estimulada pela manufatura é, porém, um processo aparentemente paradoxal. A maior divisão do trabalho, bem como o aperfeiçoamento dos instrumentos de trabalho a ela também relacionado, produz uma contínua desqualificação dos trabalhadores. Na mesma medida em que a manufatura desenvolve a especialização unilateral do trabalho, ela faz da falta de todo esse desenvolvimento uma falta. Ao lado da hierarquização das especialidades, surge a simples separação entre trabalhadores qualificados e trabalhadores não qualificados (MARX, 2013). 9 Essa é uma demonstração prática de por que Marx toma como subtítulo de sua obra Crítica da Economia Política. A investigação crítica do modo de produção capitalista oferece os elementos de crítica às compreensões “naturalizantes” das relações sociais. 103 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA Esse aparente paradoxo, como se tratasse de uma contradição problemática ao capital, é um elemento que na verdade o dinamiza, a despeito do trabalhador envolvido nessa história de qualificação de mão de obra. Como ressalta Marx, a especialização tem como efeito reduzir os custos de aprendizagem da força de trabalho, gerando uma “desvalorização relativa da força de trabalho, [...] [que] implica imediatamente uma maior valorização do capital, pois tudo o que encurta o tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de trabalho estende, ao mesmo tempo, os domínios do mais-trabalho” (MARX, 2013, p. 424). Saiba mais O filme A Classe Operária Vai ao Paraíso é uma indicação para entender esses conceitos. O principal personagem, Lulu Massa, é um operário que é consumido pelo capital. Ele não reconhece que seu trabalho garante a produção daquilo que sustenta o sistema capitalista. As condições de trabalho não são das melhores, pelo contrário: há uma maior intensidade da produção com as quotas ou metas, o operário é hostilizado pelos outros companheiros de chão de fábrica e além disso ele perde um dedo na máquina, o que vai mudar sua vida e sua forma de enxergar a exploração a que está submetido. Certamente, um filme a ser visto para compreender as transformações do indivíduo no capitalismo. A CLASSE operária vai ao paraíso. Dir. Elio Petri. Itália: Euro International Film, 1971. 112 minutos. Temos também com a manufatura a possibilidade de nos aproximar um pouco mais daquilo que é específico ao modo de produção capitalista. Lembremos que nos primeiros capítulos de O Capital a exposição da discussão supõe uma divisão de trabalho na sociedade que é apenas a existente entre compradores e vendedores de diferentes produtos do trabalho. Afinal, essa é uma suposição indispensável à discussão do processo de troca (que a troca seja entre produtos diferentes). Agora, com a discussão da manufatura, a conexão que se manifesta é outra: é a da venda de diferentes forças de trabalho ao mesmo capitalista, que as emprega como força de trabalho combinada. Analisar as relações sociais capitalistas tomando como referência somente a circulação dos produtos do trabalho e as trocas por ela geradas não permite problematizar o seguinte: a divisão manufatureira do trabalho tem como condição a concentração dos meios de produção nas mãos de um capitalista. A concentração da produção, baseada na concentração dos meios de produção por um agrupamento social específico,não é uma falha do modo de produção capitalista ou um problema enfrentado por ele; essa dupla concentração é uma condição necessária ao funcionamento desse modo de produção. 104 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I Se, de início, o trabalhador é precisamente aquele que vende sua força de trabalho ao capital por não dispor de meios materiais próprios para produzir uma mercadoria, agora, com a manufatura, a própria força individual de trabalho é insuficiente caso não seja vendida ao capital. Contudo, um dos produtos mais importantes para a possibilidade de reprodução do capital foi a criação, pela manufatura, da oficina para a produção dos próprios instrumentos de trabalho. A especialização não é apenas especialização do trabalho. Trata-se, a rigor, da divisão social do trabalho necessário às condições de reprodução das relações capitalistas. Isso implica se estabelecerem condições para o desenvolvimento de um setor especializado na produção de máquinas e equipamentos, um setor voltado para a produção específica de capital constante. A necessidade de constante revolução do processo de produção com vistas a maximizar a produção de mais valor produz uma nova forma de organização do processo de trabalho: a grande indústria. É ela a base adequada à valorização do capital. O desenvolvimento da grande indústria não é uma consequência natural da manufatura. Em certo sentido, é correto afirmar que a grande indústria nega a divisão do trabalho colocada pela manufatura. Com a manufatura, eram os trabalhadores que utilizavam os meios de produção, enquanto na grande indústria são os meios de produção que empregam o trabalhador (o trabalhador se reduz à condição de um “apêndice” da maquinaria). Figura 15 – A grande indústria (moderna) e o trabalhador, “apêndice” da maquinaria Já no início do capítulo sobre maquinaria e grande indústria de O Capital, temos uma precisão do conceito de maquinaria. Diferentemente de uma concepção ingênua que vê na maquinaria uma invenção voltada para aliviar o esforço humano, Marx afirma que a maquinaria, como qualquer outro 105 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, tem como objetivo “baratear mercadorias e encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador necessita para si mesmo, a fim de prolongar a outra parte de sua jornada, que ele dá gratuitamente para o capitalista. Ela é meio para a produção de mais-valor” (MARX, 2013, p. 445). A maquinaria existente no modo de produção capitalista, portanto, não é um produto “neutro” da invenção humana. Ela é o produto de condições históricas específicas e que assume um caráter social adequado ao modo de produção no qual se encontra inserida. No capítulo “Maquinaria e Grande Indústria” de O Capital, a dimensão histórica da transformação dos instrumentos de trabalho em máquinas é um dos determinantes centrais da análise. Mas o que isso significa? A análise desenvolvida por Marx visa destacar que, em vez de o desenvolvimento da cooperação, da grande indústria e da maquinaria serem resultados de um simples desenvolvimento histórico da inventividade humana, com a constituição da forma capitalista de produção de riqueza e excedente, tem-se uma oposição entre uma economia camponesa ou produção artesanal independente e a cooperação capitalista. A partir das considerações sobre o papel da cooperação sobre a produção de mais-valia, Marx afirma: Assim como a força produtiva social do trabalho desenvolvida pela cooperação aparece como força produtiva do capital, também a própria cooperação aparece como uma forma específica do processo de produção capitalista, contraposta ao processo de produção de trabalhadores autônomos e isolados, ou mesmo de pequenos mestres. É a primeira alteração que o processo de trabalho efetivo experimenta em sua subsunção ao capital (MARX, 2013, p. 410). A noção de subsunção é central no argumento de Marx sobre as modalidades de produção de mais-valia. De modo mais simples e direto, essa noção ressalta a subordinação do processo de trabalho às necessidades capitalistas (de acumulação), isto é, o princípio da cooperação e da divisão manufatureira do trabalho adquire um caráter social particular quando o processo de trabalho é organizado de acordo com um sistema que objetiva a valorização do capital. Todavia, cabe destacar que, no seu desenrolar histórico, o capital (e as relações sociais que o sustentam) imprime uma subsunção (subordinação) formal. O aspecto formal dela se deve ao fato histórico de que os trabalhadores, num sistema de cooperação simples, detêm razoável controle sobre o processo de trabalho. Por exemplo, numa oficina de artesãos que trabalha para um capitalista comercial, os trabalhadores ali ocupados têm o conhecimento técnico de praticamente todo o processo de trabalho; o capitalista é o agente que opera a intermediação dos produtos dos artesãos até o mercado e realiza uma extração de mais-valia absoluta de acordo com a jornada de trabalho definida por ele. O mesmo já não se pode afirmar quando se analisa uma organização de grande indústria. Nessa grande indústria, as atividades particulares desenvolvidas durante o processo de trabalho são plenamente 106 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I subordinadas e coordenadas por uma unidade técnica, baseada em princípios técnico-científicos. Nesse caso, é inclusive compreensível a percepção de que o processo de trabalho não é executado pelos trabalhadores, mas pelo próprio capital, personificado na figura de seus gestores. Os trabalhadores não dominam o processo de trabalho, eles devem se subordinar ao ritmo de trabalho definido pela indústria e expresso materialmente na dinâmica da maquinaria instalada. Mas não é só o ritmo de trabalho que é controlado pelo capital, o que, lembremos, garante condições eficientes para elevação de produtividade e alteração da intensidade do trabalho. O próprio conhecimento do processo de trabalho é retirado dos trabalhadores. O processo de qualificação e especialização dos trabalhadores significa que cada trabalhador domina uma parte insignificante do conhecimento necessário à realização de todo o processo produtivo. Logo, esse processo de qualificação é, simultaneamente, um processo de desqualificação. A subordinação (subsunção) do trabalho ao capital é agora um fenômeno real, materializado na forma de máquinas. Figura 16 – Trabalhadores em uma linha de montagem Nesse sentido, afirma Marx: Tão logo a redução da jornada de trabalho – que cria a condição subjetiva para a condensação do trabalho, ou seja, a capacidade do trabalhador de exteriorizar mais força num tempo dado – passa a ser imposta por lei, a máquina se converte, nas mãos do capitalista, no meio objetivo e sistematicamente aplicado de extrair mais trabalho no mesmo período de tempo. Isso se dá de duas maneiras: pela aceleração da velocidade das máquinas e pela ampliação da escala da maquinaria que deve ser supervisionada pelo mesmo operário, ou do campo de trabalho deste último. A construção aperfeiçoada da maquinaria é, em parte, necessária para que se possa exercer uma maior pressão sobre o trabalhador e, em parte, acompanha por si mesma a intensificação do trabalho, uma vez que a limitação da jornada de trabalho obriga o 107 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA capitalista a exercer o mais rigoroso controle sobre os custos de produção (MARX, 2013, p. 484, grifos nossos).Essa subordinação real permite, além do destacado por Marx, que o capital possa executar uma rotatividade de trabalhadores (substituindo trabalhadores por outros com salários menores) sem que isso implique uma interrupção do processo de trabalho. Além disso, com essa divisão social do trabalho particular à grande indústria, descarta-se a necessidade de empregar trabalhadores altamente especializados à medida que o processo de trabalho se complexifica. A complexificação do processo de trabalho é simultaneamente um processo de simplificação das atividades individuais exercidas pelos trabalhadores. Nesse mesmo processo de desenvolvimento da grande indústria, a ciência passa a ter um papel específico. Ela se converte em uma tarefa particular, que permite também a apropriação e o direcionamento produtivo de conhecimentos humanos gerais com vistas à extração de maior sobretrabalho. Recapitular a discussão feita até o momento pode contribuir para tornar mais claras as conclusões de Marx sobre os métodos de produção de mais-valia. Mudanças qualitativas introduzidas com a cooperação: • Com uma escala ampliada de produção, as diferentes habilidades dos trabalhadores começam a se equilibrar o suficiente, a ponto de se apresentarem como um caráter socialmente médio do trabalho para cada ramo de produção. • Mesmo que não se considere uma alteração no método de trabalho, o emprego simultâneo de um grande número de trabalhadores produz já uma “revolução” nas condições objetivas do processo de trabalho. Exemplos: economia de escala (economia de meios de produção e barateamento de produtos) e, com isso, aumento da mais-valia e redução do valor da força de trabalho (dado o barateamento de produtos, inclusive dos bens que compõem a cesta de consumo dos trabalhadores). • Certas tarefas podem ser realizadas somente cooperativamente. A cooperação possibilita a realização de grandes tarefas (por exemplo, construção de uma barragem ou de vastas áreas de produção agrícola). Além disso, a cooperação permite maior concentração espacial dos esforços de trabalho, o que, por sua vez, possibilita maiores reduções de despesas. Essas novas condições do processo de trabalho, que aparecem na esfera da circulação como fruto de relações livres e igualitárias entre trabalhadores e capitalistas, revelam um aspecto formal já mencionado por Marx quando ele tratava da origem da mais-valia. São essas condições que permitem ao capitalista monopolizar os meios de subsistência dos trabalhadores e adquirir no mercado os meios de produção, os instrumentos de trabalho e a força de trabalho. Com a subordinação formal do trabalho ao capital, o caráter de classe da produção capitalista não se expressa em posições fixas, dadas, por exemplo, pelo nascimento. Independentemente 108 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I da origem social dos agentes, coloca-se que um agrupamento social reconhecível pelo seu papel na produção tem suas condições de subsistência determinadas pelo processo produtivo controlado por outro agrupamento social. De modo bastante elementar, esse agrupamento social subordinado é aquele chamado classe trabalhadora, enquanto o outro, que personifica o capital em seu processo de valorização, é o que se entende por classe capitalista. A localização estrutural (determinada no processo de subordinação) de classes não é uma localização determinada moralmente, muito menos um exagero discursivo radicalizado de um socialista delirante. Ela é o resultado da análise das condições de produção e da tão difundida divisão social do trabalho, tão comemorada e destacada pela Economia Política clássica. A divisão social do trabalho separa isso que é chamado de sociedade em pelo menos duas classes sociais fundamentalmente diferentes e opostas. É desenvolvendo esse ponto de modo mais sistemático que Marx passa a discutir o processo de acumulação de capital. Resumo Esta unidade apresentou as origens da problemática tratada pela Economia Política inglesa. Essa problemática se concentrou largamente em torno da questão do valor. Essa é uma das razões pelas quais a discussão de Marx também se inicia por aí. Sendo o objetivo estabelecido por Marx executar uma crítica da Economia Política, essa crítica toma como ponto de partida aquele que foi reconhecido como adequado pelo seu próprio objeto de crítica. Todavia, essa não é a única razão. De fato, a mercadoria, que revela de forma mais imediata, entre suas “qualidades”, a de ter valor, é a forma elementar em que aparece a riqueza capitalista. Logo, é por ela que se deve iniciar a análise da forma social e histórica que a riqueza assume. Esse ponto de partida da mercadoria, porém, é um ponto de partida já retrabalhado por Marx. É um mérito da Economia Política clássica ter descoberto o duplo caráter da mercadoria (valor de uso e valor de troca); o que ela não foi capaz de identificar é que por trás desse duplo caráter da mercadoria está o duplo caráter do trabalho, que produz mercadorias (trabalho concreto e trabalho abstrato). É a compreensão crítica desse duplo caráter do trabalho que abre a possibilidade de um novo entendimento sobre a forma social que os produtos do trabalho recebem – a forma mercadoria –, mesmo supondo condições de circulação simples. Longe de ser algo trivial e evidente, essa forma carrega sutilezas metafísicas e argúcias teológicas, fenômeno a que Marx dá o nome de fetichismo. O fetichismo se deve ao deslocamento objetivo produzido pelas 109 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA relações sociais: a relação social entre produtores se converte numa relação entre coisas (os produtos do trabalho, as mercadorias) e a relação entre as coisas (mercadorias) é que assume o caráter de relação social. Contudo, o fetichismo não é um fenômeno restrito e localizado na mercadoria: ele é um fenômeno relacionado ao próprio valor. O valor em Marx não é trabalho contido, como poderia sugerir alguma aproximação de sua abordagem às demais abordagens da Economia Política. O valor é, antes de tudo, uma relação social. Essa relação social tem uma grandeza, que é determinada pela quantidade de trabalho socialmente necessário (e reconhecido) para a produção da mercadoria, mas sua medida efetiva é o próprio dinheiro. Novamente, dados a forma social da riqueza e o caráter fetichista assumido por essas relações, o dinheiro aparece como o valor. Não é para menos que a fórmula geral do capital tenha seus extremos expressos em dinheiro (D – M – D’). O capital, versão resumida de valor-capital, é justamente o valor que se metamorfoseia (em mercadorias, meios de produção e força de trabalho), assumindo formas distintas, mas que tem como finalidade a expansão quantitativa do próprio valor. Nesse sentido, é correto considerar que o capital (valor em processo) se torna o sujeito de um processo que formalmente não tem limites. A questão que emerge é: como o valor é capaz de gerar mais-valor (mais-valia)? Como explicita Marx, não é possível que esse mais-valor seja resultado de algum mecanismo presente na circulação; ele é resultado de algum fenômeno que ocorre durante o processo de produção. A análise de processo de produção permite a Marx encontrar a origem desse mais-valor, da mais-valia. Ela é fruto de trabalho realizado pelo trabalhador e que é apropriado pelo capitalista como trabalho não pago. Agora, conhecendo a origem da mais-valia, cabe examinar os métodos de sua extração. Esses métodos são destacadamente a mais-valia absoluta (que se refere à extensão da jornada de trabalho) e a mais-valia relativa (que se dá por meio da redução do valor da força de trabalho). Mas esses métodosnão se desenvolvem num campo de análise vazio. Eles se materializam em formas (inclusive históricas) de extração de mais-valia, a cooperação, a manufatura, e têm como seu ápice a maquinaria e a grande indústria. Com esta última, a subordinação do processo de trabalho e dos trabalhadores ao capital se materializa na própria maquinaria e na organização da produção. A crítica da divisão social do trabalho, esse fenômeno tão aplaudido pela Economia Política clássica, leva Marx a abordar as condições de reprodução 110 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 Unidade I do capital, agora tomando não mais a perspectiva individual da relação contratual entre um capitalista e um trabalhador. Trata-se de examinar a reprodução do ponto de vista da totalidade da produção capitalista. Exercícios Questão 1. Segundo a Teoria da Acumulação do Capital, de Marx, não basta que o capital se apodere do processo de trabalho e apenas alongue sua duração. O capital tem de “revolucionar as condições técnicas e sociais do processo de trabalho, portanto o próprio modo de produção, a fim de aumentar a força produtiva do trabalho, [e] mediante o aumento da força produtiva do trabalho reduzir o valor da força de trabalho e, assim, encurtar parte da jornada de trabalho necessária para a reprodução deste valor” (MARX, K. O Capital. São Paulo: Abril Cultural. 1984, p. 251). Nessa passagem, Marx identifica uma das características centrais do modo de produção capitalista. Indique-a. A) Elevação constante da mais-valia absoluta decorrente do prolongamento da jornada de trabalho. B) Tendência à pauperização absoluta da classe trabalhadora por efeito da introdução de progresso técnico. C) Apropriação do resultado das horas trabalhadas pelo operário, mas não pagas, ou seja, da mais-valia. D) Aumento progressivo da importância da mais-valia relativa devido à introdução de máquinas. E) Redução do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção, por meio da introdução de progresso técnico. Resposta correta: alternativa C. Análise das alternativas A) Alternativa incorreta. Justificativa: nos processos capitalistas, o prolongamento da jornada de trabalho não é a única forma (ou a forma mais frequente) de aumentar a extração de mais-valia. O aumento da extração da mais-valia também ocorre com a manutenção dos salários em níveis suficientes apenas para a sobrevivência do trabalhador e para a reprodução da força de trabalho. B) Alternativa incorreta. Justificativa: a classe trabalhadora não é levada à pauperização absoluta em função única e exclusiva da introdução de novas tecnologias; o que leva a classe trabalhadora à pauperização absoluta é a elevação da apropriação da mais-valia somada à manutenção dos salários ao nível da sobrevivência e à mera reprodução da força de trabalho. 111 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 5/ 04 /1 6 ECONOMIA POLÍTICA C) Alternativa correta. Justificativa: esse mecanismo – o de apropriação das horas trabalhadas e não pagas – é central no processo de acumulação capitalista. D) Alternativa incorreta. Justificativa: a mais-valia diminui com a introdução de tecnologia, já que ela só pode ser extraída do trabalho humano, ou seja, da mão de obra utilizada na produção. E) Alternativa incorreta. Justificativa: a quantidade de horas necessárias para a sobrevivência do trabalhador não é reduzida em função do progresso técnico. Questão 2. “Numa de suas frases mais famosas, escrita em 1845, o pensador alemão Karl Marx (1818-1883) dizia que, até então, os filósofos haviam interpretado o mundo de várias maneiras. “Cabe agora transformá-lo”, concluía. Coerentemente com essa ideia, durante sua vida combinou o estudo das ciências humanas com a militância revolucionária, criando um dos sistemas de ideias mais influentes da história” (Disponível em: <http://educarparacrescer.abril.com.br/aprendizagem/karl-marx-307009. shtml>. Acesso em: 10 nov. 2010). Pelo pensamento de Marx e seus sucessores, a “extração da mais-valia” é a base do processo de acumulação de capital (= processo de acumulação de capacidade produtiva = processo de acumulação de riqueza): A) Na etapa mercantil do capitalismo. B) Somente na fase inicial do capitalismo industrial concorrencial. C) Apenas no processo de produção tipicamente capitalista, caracterizado pela posse dos meios de produção por determinada classe social e pela venda da força de trabalho por outra; é essa relação que permite a apropriação do resultado de horas trabalhadas e não pagas. D) Apenas nos sistemas de arrendamento de terra, para benefício dos proprietários em detrimento aos empresários agrícolas. E) Somente na etapa do capitalismo concentrado e estatizado. Resolução desta questão na plataforma.