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Ensaio Teorias Antropológicas Contemporânea - Gênero, Corpo e Sexualidade no Futebol de Mulheres

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Gênero, Corpo e Sexualidade no Futebol de Mulheres*
Luciana Bohrer Mentz
Resumo: O presente ensaio trata da representação dos corpos, do gênero e da sexualidade no futebol de mulheres, fazendo uma revisão histórica sobre os diferentes enfoques da literatura brasileira sobre o assunto para entender quais os processos que levaram à desvalorização e aos estereótipos do futebol feminino.
Palavras-chaves: Futebol feminino; Gênero; Corpo; Sexualidade; Esporte de mulheres.
O objetivo desse trabalho é avançar na compreensão de como as mulheres jogadoras operam e percebem as questões relacionadas ao corpo, ao gênero e à sexualidade no futebol. A importância de agencia dessas mulheres se da uma vez que se percebe que todo discurso construído a cerca dessa questão pouco inclui as narrativas, vivências e opiniões das jogadoras. Portanto, busca-se entender a constituição histórica do futebol no país para compreender os processos que deram origem ao futebol de mulheres da forma como ele se apresenta nos dias de hoje.
No dia 26 de janeiro de 2017 saiu a notícia de que os clubes de futebol que não apresentarem times femininos até 2019 não poderão participar da Copa Libertadores[footnoteRef:1]. Hoje, apenas 7 clubes dos 20 que disputam a Série A, possuem equipes femininas. Esse dado poderia indicar que o futebol feminino é um fenômeno recente no Brasil, no entanto, a presença da mulher nesse campo esportivo remete, inclusive, ao início da prática do futebol no país. [1: *Trabalho final entregue à disciplina de “Teorias Antropológicas Contemporâneas”, ministrada pelo Prof. Jean Segata, no Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 
¹ http://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/2017/01/clube-sem-futebol-feminino-ficara-fora-da-libertadores-partir-de-2019.html (acesso em 01/2018)] 
	Inicialmente as mulheres se vinculavam ao esporte como torcedoras. Inclusive, o adjetivo “torcedor” tem origem na presença das mulheres nos campos de futebol no início do século XX, essas mulheres vestiam luvas, chapéus e vestidos, que, em função do calor, tiravam suas luvas e, nervosas com a partida, torciam-nas. Assim, passaram a serem chamadas de “torcedoras” (GOELLNER, 2014). Por outro lado, as primeiras partidas disputadas por mulheres foram registradas na década de 1920,
Referir tal acontecimento é muito importante para entendermos algumas das desigualdades ainda existentes entre os homens e as mulheres neste campo específico. Em primeiro lugar, cabe destacar que há poucos registros sobre a presença das mulheres no esporte em geral e no futebol em particular. Tal fato acontece porque esta não era uma prática indicada para elas, porque era considerada como violenta para a natureza de seu sexo e para a conformação de seu corpo, identificado como frágil. Além disso, o futebol era observado como um elemento que poderia prejudicar uma função social que, naquele período, era reconhecida como o destino de toda mulher: a maternidade. (GOELLNER, 2014, p. 1).
	Portanto, a inserção da mulher no futebol acompanha o processo de construção e afirmação do discurso dominante sobre os papéis de gênero. Esse discurso tem implicações no lugar que as mulheres devem ocupar na sociedade assim como a função que devem exercer. Maluff e Mott (1998) demonstram que os discursos que tentavam deslegitimar a introdução das mulheres em outras áreas sociais, nas primeiras décadas do século XX, eram sustentados por uma idealização da “natureza feminina” que determinava o papel social da mulher como de reprodutora, gerando e educando os filhos da pátria e futuros cidadãos. Desta forma, as realizações femininas se limitavam a esfera privada não fazendo sentido que ocupassem espaços públicos. Essa lógica correspondia ao que era pregado pela Igreja, legitimado pelo Estado e ensinado por setores da sociedade. Ou seja, as instituições sociais autenticavam a inflexibilidade dos papeis desempenhados pelas mulheres.
	Com o passar do tempo as mulheres começaram a ocupar esses espaços entendidos como pertencentes aos homens de forma mais evidente, um desses espaços é o campo esportivo, e neste, o futebol. No entanto, o discurso dominante sobre os papéis de gênero continuou apresentando implicações à prática esportiva dessas mulheres reafirmando desigualdades. Assim, 
[...] não há um calendário organizado de competições, poucos clubes investem em equipes femininas, os espaços de lazer como parques e praças são majoritariamente apropriados para meninos e homens, a educação física escolar pouco investe no futebol como um conteúdo a fazer parte da educação corporal de meninas e adolescentes. Tal cenário implica afirmar que as mulheres são sub-representadas no futebol brasileiro, têm pouca visibilidade e suas conquistas são simbolicamente anuladas porque são pouco comemoradas ou mesmo mencionadas na mídia, inclusive esportiva. Por exemplo, você sabia que a Copa do Brasil de Futebol Feminino acontece desde 2007 e já teve oito edições? Que o Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino de 2013 teve 20 equipes participantes? Que a Copa Libertadores da América de Futebol Feminino acontece desde 2009 e todas as edições foram realizadas no Brasil? Que o Brasil possui duas medalhas de ouro nos Jogos Pan-Americanos (Santo Domingo 2003 e Rio de Janeiro 2007) e uma de prata (Guadalajara 2011)? Que nossa seleção conquistou duas medalhas de prata nos Jogos Olímpicos (Atenas 2004 e Pequim 2008), o segundo lugar na Copa do Mundo de Futebol Feminino da China (2007) e o terceiro nos Estados Unidos (1999)? (GOELLNER, 2014, p. 2)
Mas a presença da mulher no esporte, ainda que nessa situação, se coloca como um problema/fenômeno a ser discutido socialmente: bom, as mulheres estão jogando futebol e com todas conquistas do futebol feminino já mencionadas, campanhas da sociedade civil[footnoteRef:2], a mídia que por muito silenciou a categoria, aos poucos passa a conferir mais atenção, e torna-se um ator importante na disputa sobre as representações da mulher no esporte. A literatura brasileira sobre a temática apresenta a mídia como um dos principais atores na reprodução das desigualdades entre homens e mulheres no futebol. Em geral, afirma-se que a mulher jogadora é representada a partir dos seus atributos estéticos, tirando o foco da prática esportiva em si (MOURÃO, 2008). Reafirmando, assim, padrões de feminilidade e representando o corpo da mulher enquanto mercadoria, desvinculando o lócus do esporte para a apreciação da beleza feminina. [2: como por exemplo a #joguecomoumamenina durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016.] 
Por outro lado, poucos trabalhos apresentam outros atores importantes nessa disputa sobre a representação da mulher no futebol. Poderíamos citar o Estado, com suas campanhas sobre o futebol feminino, ações de grupos da sociedade civil, e a própria equipe na qual as mulheres atuam, levando em conta as próprias jogadoras e equipe técnica. 
O Brasil hoje é conhecido mundialmente como o país do futebol. Por ser um esporte de fácil acesso acabou se massificando rapidamente entre as elites e as classes populares no início do século XX no país. Aos poucos este esporte foi sendo incorporado discursivamente à identidade nacional (GOLLNER, 2005) e por momentos da história se tornou um elemento de esperança da população. Assim como outros esportes, o futebol foi constituído nacionalmente a partir de uma lógica estrutural masculina feito por homens e para homens.
Mesmo não sendo reconhecidas como sujeitos históricos na constituição do futebol no país, as mulheres sempre estiveram participando de sua construção, ainda que nos bastidores, ao encontrar formas não institucionalizadas de praticar o esporte. Porém, toda vez que uma mulher tenta sair do espaço privado do lar que lhe é destinado e procura vivenciar outros espaços sociais surge um movimento contrário para deslegitimar a presença feminina em espaços públicos. No futebol não foi diferente. Para garantir a ausência feminina nos campos utilizaram-se argumentos que pressupunham uma essênciafeminina, idealizando a “natureza feminina”, ou seja, a participação das mulheres no esporte e suas práticas se oporiam a um ideal de feminilidade. Os esportes agressivos demais poderiam pôr em risco a conduta ou a integridade física da mulher, impedindo que ela cumprisse o seu dever de ser mãe e educar os filhos da nação (SALVIANI; SOUZA; JÚNIOR, 2016).
Este discurso foi valorizado e reproduzido culturalmente por diversos setores de prestígio da sociedade. O Estado da Era Vargas limitou institucionalmente a prática esportiva às mulheres através da implantação, em 1941, de um Decreto-Lei de número 3.199 que as proibia de praticarem esportes que não estivessem de acordo com a sua natureza (FRANZINI, 2005). Tal decreto foi implementado no ano de 1965 pelo Conselho Nacional de Desportes e as modalidades proibidas foram: a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball. A proibição de tais práticas esportivas teve como consequência um atraso em relação a outras modalidades não proibidas, pois impedidas de jogar institucionalmente, as mulheres não tinham como se aperfeiçoar tecnicamente nem se profissionalizar (SALVIANI; SOUZA; JÚNIOR, 2016). Mesmo sendo revogado entre o final dos anos 1970 e início dos 1980 as modalidades proibidas e suas praticantes continuaram carregando consigo o preconceito enraizado através de anos de proibição. 
Os obstáculos ao futebol feminino sempre foram carregados de preconceitos, tanto nas questões de gênero, em relação à masculinização dos corpos e à sexualidade, na visibilidade midiática e também no incentivo financeiro. O corpo feminino é tratado como um bem social, controlado para entretenimento e consumo masculino. As jogadoras devem desenvolver a feminilidade na medida certa, pois qualquer aproximação com o que é considerado da essência masculina é repudiada. Sendo o futebol um universo de dominação masculina, para que o futebol feminino deslanche, é preciso que haja consumo, para haver consumo é necessário que haja oferta e demanda e para haver oferta as jogadoras são incentivadas a performar um estereótipo do gênero feminino dentro e fora de campo em que a beleza e a feminilidade garantem um maior público, patrocínio e visibilidade (SALVIANI; SOUZA; JÚNIOR, 2016). Segundo Morel (2006), a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) estima que existem no Brasil cerca de 400 mil mulheres jogando futebol, embora a FIFA estime em cerca de sete milhões. A trajetória histórica de cada categoria explica a deficiência do futebol feminino em relação ao masculino quando se trata de divulgação midiática, patrocínio e incentivo aos jogadores. 
Enfim, este tema gera grandes discussões podendo ser ampliado pra diversas áreas do conhecimento como educação física, pedagogia e antropologia. As questões relacionadas ao gênero, corpo e sexualidade encontram grande oportunidade de debates dentro das ciências sociais e um enriquecimento e possibilidade de visibilidade a essas mulheres que estão desde sempre lutando para ganhar um mínimo de reconhecimento em seu esporte. 
Referências:
FRANZINI, Fábio. Futebol é" coisa para macho"?: pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. Revista Brasileira de História, v. 25, n. 50, p. 315-328, 2005.
GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 19, n. 2, p. 143- 151, 2005.
MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: SEVCENKO, Nicolau; NOVAIS, Fernando A. (Org.). História da Vida Privada no Brasil 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 367-421.
MOREL, Marcia; C. SALLES, José Geraldo do. Futebol feminino. Atlas do esporte no Brasil. Rio de Janeiro: Confef, 2006.
MOURÃO, Ludimila. As narrativas sobre o futebol feminino. Ver. Bras. Educ. Fís. Esporte, (São Paulo) 2016 Abr-Jun; 30(2):303-11
SALVINI, Leila; MARCHI JÚNIOR, Wanderley. “Guerreiras de chuteiras” na luta pelo reconhecimento: relatos acerca do preconceito no futebol feminino brasileiro. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, v. 30, n. 2, p. 303- 311, 2016.

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