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Leila Amaral O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa: sobre a possibilidade do “Diálogo” no Encontro Etnográfico NOTAS o,LETRAS £ iõ rc iria .(^ S d ito ra . JU IZ DE FORA 2 0 0 5 m Copyright 2004 by Leila Amaral Coordenação Editorial: Mara Justiniano da Silva Conselho Editorial: Geysa Silva; Joel Cardoso; Leila Amaral; Carolina Magaldi; Ana Maria Oliveira Ramos; Maria Helena de Araújo Vassão. Revisão: Vagner Barbosa Projeto Gráfico e Editoração: Amarílio Dias Impressão e Acabamento: T4 Gráfica e Editora Ltda. CIP- Brasil. Catalogação nafonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ A515m — - — Amaral, Leila, 1946- O momento da emergência de uma antropologia interpretativa: sobre a possibilidade do “diálogo” no encontro etnográfico. / Leila Amaral - Juiz de Fora, MG: Irmãos Justiniano , 2004 p. : , ( Ensaios) ISBN 85-98770-03-5 1. Antropologia, 2. Etnologia, 3. Intertextualidade. I. Título. II. Série 04-3140 CDD 306 CDU 316.7 10.11.04 16.11.04_______________________________ 0Q8310 Proibida a reprodução total ou pardal sem autorização escrita do autor. Livraria e Editora Notas & Letras - 2004 R: Braz Bernardino, 105 loja 242 - Juiz de Fora MG CEP 36010-030 Sumário Introdução ..............................................................................................7 Capítulo 1 A Reflexão Hermenêutica Sobre o Processo Interpretativo no Movimento da Compreensão............................................................ 11 1.1 - A hermenêutica metódica de Dilthey: para uma interpretação válida e objetiva............................................................................ 12 1.2 - Gadamer: a primazia ontológica da tradição............................... 14 1.3 - Emilio Betti: o projeto da reformulação de uma teoria metodológica geral da interpretação....................................................................16 1.4 - Críticas de Hirsch a Gadamer.......... ........................................... 19 1.5 - Crítica de Habermas a Gadamer..................................................20 1.6- Ricoeur dirige-se a Gadamer e a Habermas...............................22 Capítulo 2 Antropologia Dialógica InterpretativarÀ Procura de UmSaber Negociado............................................................................................. 25 2.1 - Geertz: a condição da análise para operacionalizar a “compreensão” na etnografia.................................................................25 2.2 - De onde falam os antropólogos pós-modemos......................... 26 2.3 - A crítica à perspectiva interpretativa de Geertz........................27 2.3.1- A crítica de Dwyer............................................................ 28 2.3.2- A crítica de Webster.........................................................30 2.4 - A inevitabilidade da perspectiva dialogai....................................32 2.4.1 - O diálogo de Crapanzano e Tuhami................................ 33 2.4.2 - Dwyer: a ênfase no encontro etnológico........................ 35 Capítulo 3 A Experiência de Campo e a Escrita Etnográfica: Um Novo Estilo do “Fazer Antropológico”................................................................. 37 Considerações Finais Bibliografia Leila Amaral Introdução A partir da década de 60, com a consciência do “encontro colonial” e com o reordenamento das nações entre os chamados Primeiro e Segundo Mundo, desencadeia-se, entre os antropólogos americanos, uma suspeita em relação aos velhos cânones da disciplina e uma ação frente ao desmascaramento ideológico da escrita antropológica na sua ligação com o imperialismo. Aguça-se a percepção da atividade científica motivada por opções que encontram seus fundamentos para além das prescrições metodológicas, lógicas e rigorosas, alcançando as relações de poder envolvidas na produção do conhecimento antropológico. Todos os discursos, inclusive o da ciência, são vistos não apenas como sintagmáticos - estruturados internamente, logicamente expressos e portadores de uma seqüência histórica progressiva - mas essencialmente paradigmáticos - entendidos nos termos de seu significado contextuai e como resultado histórico de diferentes formas de vida. A Antropologia submete a sua própria prática à crítica. A partir de inserções em contextos históricos e culturais particulares, surgem divergências na forma pela qual as diversas construções teóricas apreendem a natureza do objeto e a relação sujeito-objeto. Diferenciam-se também na elaboração e aplicação de categorias fundamentais de análise, no tratamento da realidade e na exploração de questões consideradas relevantes. A necessidade de tomar clara essa inerência cultural pela análise paradigmática foi fundamental para perceberem-se as implicações políticas do impacto do conhecimento científico ocidental sobre as sociedades sob seu olhar e domínio. Esse conhecimento, por seu discurso autoritário, tende O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa a provocar reações no ambiente social estudado tanto no que diz respeito ao modo de conceber o real, pelos indivíduos e grupos que o compõem, como em relação às atitudes frente a esse real. Tal tendência influi na criação de uma nova normatividade pela exclusão da “fala do outro”, através da intervenção nos seus sistemas cognitivos, levando ao que Bob Scholte chamou de “epistemocídio” - cooptação e redução das formas de conhecimento não-ocidentais ou não-científicas (Scholte, 1983). Começa-se a questionar o monopólio antropológico pelo qual o antropólogo se coloca como o porta-voz da sociedade estudada e suspeita- se da própria descrição cultural. Antropologia e contexto de dominação são vistos na sua relação íntima, gerando uma crítica aguda que associa o abalo moral que sacudiu a descolonização - e, correlativamente o “estar lá” (Geertz, 1988) - com o abalo epistemológico que tem sacudido a fé na representação etnográfica - e, correlativamente o “estar aqui” (Geertz, 1988). Suspeita-se dos padrões de construção do texto etnológico, nos termos modernistas, colocando em questão a própria possibilidade da autoria, discutida ora como um problema moral, ora como um problema epistemológico - ou ambos.1 Tal apelo crítico levou os antropólogos da geração pós 60 a compreender a própria Antropologia como uma invenção cultural, sujeita a circunstâncias históricas e sociais, a desmistificar a ideologia da “ciência normal”, assentada no princípio da neutralidade epistemológica e a anunciar a possibilidade de reinventar uma A ntropologia, através da “antropologização” da sua própria tradição. A Antropologia parecia sofrer, aos olhos desses novos antropólogos, de uma crise intelectual, devido a um desencantamento com a “ciência normal” e à agitação política denunciadora do colonialismo-imperalismo, do qual a Antropologia tradicional teria sido cúmplice. A reinvenção crítica da Antropologia parecia-lhes possível porque, 1 Ao diferenciar os momentos de produção antropológica do séc. XIX ao final do séc. XX, Marilyn Strathem apresenta a seguinte classificação: a) período “moderno", representado pela produção evolucionista do séc. XIX; b) período modernista, quando a produção antropológica se baseava na monografia com a exploração exaustiva de contextos, de Malinowski ao dcclfnio do Estruturalismo na década de 70; e c) período pós-moderno, a partir da década de 80. A discussão sobre o caráter ficcionista da Antropologia, isto é, da percepção da Antropologia como texto, cuja escrita estaria necessariamente atada aos parâmetros do discurso ou de sua operação retórica, surge apenas no período pós-moderno, a partir de questões antecipadas por Clifford e Geertz. 8 Leila Amaral se, por'umlado ela era prisioneira da história intelectual de uma cultura específica, por outro, a especificidade de sua prática permitiria uma reflexão radical, não somente lógica, mas etnológica. Nesse sentido, a conseqüência mais importante da análise paradigmática foi desencadear a radicalidade na consideração do potencial relativizador2 que a noção de cultura pode levar para o interior mesmo do campo da racionalidade. Esse é o desafio a ser enfrentado pela pesquisa e pelas reflexões antropológicas pós-modemas, além de tomar a si mesmas como objeto de compreensão e crítica.3 Abre-se, no final da década de 60, um novo espaço para a emergência de uma “Antropologia Interpretati va” (Clifford, 1986) e dialógica que, a partir dos anos 70 - 80, vem apontando para um novo “estilo do fazer etnográfico”. Geertz, em Local Knowlledge, dá os primeiros sinais para uma Antropologia dialógica, salientando que, para penetrar na maneira de pensar de um povo não implica em abandonar o papel ativo do antropólogo no ato da interpretação, mas em investir na conexão elucidadora entre os esquemas conceituais do analista - “os conceitos de “experiência distante” - com os esquemas conceituais do nativo - “os conceitos de experiência próxima”. Na década de 80, em Works and Lives: The Anthropologist as Author, Geertz chama a atenção para a abordagem essencialmente textual da Antropologia, mostrando que a capacidade de convencimento do autor-antropólogo não se dá tanto a partir da adequação de seu trabalho de campo, mas dos recursos de escrita de que lança mão. Enfim, é Geertz o primeiro antropólogo a enfatizar o pápel ativo da escrita etnográfica como interpretação de segunda ordem da cultura do “outro”, isto é, interpretação (do antropólogo cultural e historicamente orientado) ’ Será sugerido, neste ensaio, que o potencial relativizador da Antropologia se refere ã capacidade dessa disciplina de oferecer um instrumento argumentativo para enfrentar as deformações de visão da cultura do intérprete sobre a cultura do interpretado e também a dc Corrigi.- .os excessos de etnocentrismo, tanto em relação à imagem romanceada do "bom selvagem” quanto cai relação a uma manifestação de superioridade depreciadora do “outro”. ’ Roberto Cardoso de Oliveira, em As Categorias do Entendimento na Formação da Antropologia (1983), observa que as questões levantadas pelo estudo das categorias na Antropologia vêm mostrando sua fecundidade não só para a interpretação do pensamento dc povos distantes e de culturas alheias às do antropólogo, mas também para a própria interpretação critica do “pensamento antropológico”. Isso é o que tem sido feito no período pós-modemo de autocrítica desta disciplina, quando tem - se levado em conta a impregnação dos horizontes conceituais da Antropologia (seus ideais e valores) em ligação com significados culturais particulares erigidos pela civilização ocidental. Em outras palavras, quando se considera como parte ativa da interpretação do “outro” a própria cultura do antropólogo-intérprete. 9 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa de interpretações (dos nativos em relação a sua própria sociedade). Com Geertz, abre-se uma nova possibilidade interpretativa para a Antropologia, que vem a concretizar-se especialmente no período pós-modemo, com a admissão da posição histórica do próprio pesquisador como condição do convencimento, um exorcismo da objetividade e da neutralidade do pesquisador como condição do ideário cientificista. As questões levantadas por Geertz, aliadas às leituras desconstrutivistas inspiradas na teoria da retórica de Nietzsche, que afirmava, para a teoria literária, que a linguagem é mais retórica do que representacional ou expressiva de um referencial, vieram a influenciar, nos anos 70 e 80, o clima da descrença na fácil referencialidade da linguagem e, conseqüentemente, nc clima de desilusão com a “representação adequada” dos modernistas. Serão retomados, neste livro, os aspectos que parecem comuns aos novos experimentos de apreensão etnográfica e os pronunciamentos decorrentes para uma crítica que se pretende radical ao pensamento (ou ao discurso) ocidental. A discussão em foco será centrada nas questões epistemológicas relativas à interpretação e descrição de realidades culturais e nas novas formas de representação que passaram a ser sugeridas no período “pós-modemo”. O problema central, tal como já se encontra em Geertz, é o da possibilidade de conhecimento antropológico enquanto “compreensão” da maneira de ser, pensar e perceber de um grupo culturalmente diverso do grupo do pesquisador4. Aliás, foi Geertz um dos principais pensadores a apresentar os novos antropólogos, muitos deles seus alunos, ao problema da “compreensão” e incitá-los a refletir sobre a construção dos textos etnográficos, visando aos novos modos de escrita que lhes permitissem explorar as possibilidades do diálogo. 4 Geertz define o projeto antropológico como uma tentativa de perceber como o que i profundamente diferente pode ser profundamente conhecido sem tomar-se nienos diferente ou “como as criações de outrps povos podem ser tão completamente suas e tâo profundamente parte de nós" (citado por José Jorge de Carvalho, in Anuário Antropológico 86, nota 12, pág. 168). 10 Leila Amaral Capítulo 1 A Reflexão Hermenêutica Sobre o Processo Interpretativo no Movimento da Compreensão Serão apresentadas, a seguir, algumas vertentes da tradição hermenêutica que lidam com a problemática da interpretação, a fim de situar alguns pontos dessa tradição filosófica que estão na base das questões epistemológicas que informam as novas experiências do “fazer etnográfico” em foco neste livro. Em destaque, as questões da relação sujeito-objeto, correlatas à discussão sobre objetividade e subjetividade, na especificação da prática interpretativa e no processo de comunicação humana inerente à constituição do conhecimento. Após a apresentação dos principais aspectos constitutivos da hermenêutica de Dilthey, passar-se-á ao debate que se estabelece entre os dois pólos que se evidenciam na constituição do pensamento hermenêutico contemporâneo: o dos partidários da tradição de Dilthey e o dos seguidores de Heidegger. Os primeiros abordam seus temas orientados pela questão de como obter interpretações válidas - representados, neste ensaio, por Emilio Betti e E. D. Hirsch - e os últimos dirigem suas preocupações para a natureza da própria compreensão, cujo representante mais conhecido é O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa Hans-Georg Gadamer. Por isso, se essas posições apresentam diferenças, como será aqui ressaltado, não são, contudo, totalmente antagônicas, mas complementares. Uma hermenêutica orientada para o métodp e uma hermenêutica centrada na historicidade esclarecem aspectos diferentes e permitem importantes abordagens sobre o problema da “compreensão”. No sentido de marcar a pluralidade de pontos de vista e com o objetivo de entender o que está em jogo no processo interpretativo, a hermenêutica de Gadamer será colocada no centro deste debate para, a partir de sua posição, estender o debate a outros hermeneutas que retomaram a mesma discussão. Com o mesmo intuito, serão incluídas, no final da seção, as contribuições de Habermas e de Ricoeur relativas à posição de Gadamer. 1.1- A hermenêutica metódica de Dilthey: para uma interpretação válida e objetiva Propondo uma hermenêutica como fundamento das Geisteswissenschaften5, Dilthey, em contraposição ao positivismo, nos finais do século XIX, sugere uma distinção entre as “Ciências Humanas” e as “Ciências Físicas”. As primeiras serviam àquelas cujo objetivo é a “compreensão” interna das obras humanas, isto é, a apreensão dos significados das formas de expressão simbólica. As segundas seriam aquelascuja tarefa é a “explicação” dos fenômenos a partir do seu exterior. Como tomar a “compreensão” uma interpretação válida e objetiva é a tarefa de Dilthey. Ele busca, portanto, formular uma metodologia que permita às Ciências Humanas estudar cientificamente formas particulares da existência humana, consciente de que o problema epistemológico mais difícil é a possibilidade de apreender objetivamente o processo cognitivo de uma individualidade distinta da do intérprete. Ele propõe, como primeira condição, que a “compreensão” seja sempre retrospectiva, selecionando para análise aquelas expressões permanentemente fixadas para que se possa, sempre que necessário, a elas retomar. Essa “compreensão metódica” é denominada por Dilthey de 5 Disciplinas que ínteipretam as expressões de vida interior do homem, quer sejam gestos, atos históricos, leis codificadas ou obras de arte. 12 Leila Amaral “exegese” ou “arte da interpretação”, e ele mostra que seu desenvolvimento tem sido gradual e vagaroso. Observa, também, que o conflito entre tendências e escolas - nas suas variadas tentativas de interpretação de expressões simbólicas de natureza diversa (bíblicas, jurídicas, artísticas, . linguísticas, etc.) - motivou uma busca de procedimentos corretos em direção a uma compreensão válida e profunda. A arte da interpretação, à medida em que historicamente vai solucionando conflitos e respondendo a pressões, dá acesso à formulação de regras que são organizadas e sistematizadas de acordo com o estado do saber num dado período. Dilthey reconhece que é nos trabalhos de Schleiermacher que se estabelecem as condições para uma formulação mais ampliada de regras para serem observadas em toda interpretação válida de signos: a hermenêutica geral. A “compreensão”, como recurso de análise, é o processo pelo qual se conhece algo intemo a partir de sinais dados externamente, através dos sentidos. Mas não se trata, para Dilthey, de uma captação intuitiva de significados, porque a compreensão tem que estar submetida a um método que, corretamente seguido, assegura a objetividade dos resultados: as regras da hermenêutica. Os trabalhos de um poeta, de exploradores, de um gênio religioso, de um filósofo, de um literato, de um pintor, por exemplo, podem ser interpretados com completa objetividade. Dois aspectos fundamentais se destacam na hermenêutica de Dilthey: a) A apreensão de uma “totalidade significativa” ou a interdependência do todo em relação às suas partes. O objeto de análise deve ser tomado como um sistema, o que previne o intérprete contra a atomização positivista. A relação entre as partes e o todo, nos sistemas culturais, é intrinsecamente significativa: o todo deve ser entendido nos termos de suas partes individuais e as partes individuais em termos do todo. A esse trânsito, Dilthey dá o nome de “círculo hermenêutico”. Enfatiza, assim, o caráter singular de toda totalidade. Toóavia, através da sistemática relação parte-todo, sugere que, apesar de sua singularidade, cada totalidade pode ser inserida como parte de um todo ainda maior. Portanto, a interpretação é sempre relativa e nunca pode ser 13 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa completada. Provém daí a situação vantajosa do intérprete em relação ao interpretado, porque é ao intérprete que é dado o conjunto da obra como um todo, já constituído, permitindo-lhe a objetividade de seus resultados. Além do mais, como já apontamos, a compreensão é, em Dilthey, sempre “retrospectiva”. b) A identidade sujeito-objeto A compreensão é possível se, e somente se, as expressões da outra pessoa não contiverem nada que não seja também parte do observador. Só é possível “compreender” aquilo de que o próprio intérprete também é produtor: propósitos, fins e valores. É porque os homens compartilham de uma natureza comum que a “comuni cação” e a “compreensão” entre eles tomam-se possíveis, permitin do o uso da “comparação” nas Ciências Humanas por um processo de transposição experimental de nosso próprio ser a fim de penetrar na experiência interna, na “mentalidade” de um “outro”. 1.2 - Gadamer: a primazia ontológica da tradição A interpretação é caldatária da tradição, diz Galdamer, porque um intérprete projeta-se nas leituras que faz dos fatos do passado, a partir de um pensamento que se orienta por uma estrutura antecipada - uma “pré- compreensão” determinada pelo lugar de onde fala o intérprete - que é condição e possibilidade de toda compreensão. Não existe, portanto, para Gadamer, a versão correta com pretensão de verdade em termos de princípio. Qualquer leitura de um texto é resultante da existência de um repensar de leituras anteriores, confiáveis através da “tradição”, porque é fruto de um “acordo prévio”. Gadamer tenta, assim, reabilitar conjuntamente o papel positivo do “preconceito”, da “tradição” e da “autoridade”. O “preconceito” não é o pólo oposto de uma razão sem pressuposição, mas ele faz com que alguma coisa com a qual entramos em contato diga algo para nós. Seu papel está ligado ao de “autoridade”, que Gadamer distingue de “obediência cega”. 14 Leila Amaral A presenta-se como “legitim idade” que brota da aceitação pelo reconhecimento da superioridade de um saber que é fruto de um acordo social fundamental. Autoridade é tradição, porque tradição é a autoridade que se tomou anônima e determina o nosso ser historicamente finito. Ela é o fundamento de validade de nossas disposições, comportamentos e pensamentos. Essa reabilitação do preconceito ou apologia da tradição e da autoridade é resultado do privilégio concedido por Gadamer à “consciência histórica”, que é a experiência de pertencer ao “devir histórico”, em contraposição a um “distanciamento alienante”. Toda compreensão humana, sob o regime da finitude, está submetida a condições históricas. Portanto, o saber histórico não pode libertar-se da dimensão histórica que precede e antecipa a reflexão de qualquer sujeito-intérprete e toma, por isso, sua investigação significativa. A consciência hermenêutica tem uma função decisiva, sem a qual os métodos da ciência histórica se tomariam estireis. Ela oferece sentido ao que é inquirido e a seus resultados. Entre a “ação da tradição” - o processo histórico - e investigação histórica - o conhecimento do processo - forma-se um pacto insuperável. A experiência hermenêutica é entendida, assim, como a experiência de fazer com que o estranho se tome familiar por meio de um processo de “tradução”, que se impõe, não a despeito, mas graças a um estranhamento e a um mal-entendido inicial que se estabelecem em toda comunicação humana. Justamente porque nosso ser é finito e particular, ele se vê impelido a abrir-se para a possibilidade infinita do “diálogo que somos nós”: síntese das mensagens significativas que fazem de nós o que somos. Chegamos, finalmente, ao mais rico conceito de Gadamer, o de “fusão de horizontes”. Como o “outro” não é inacessível, porque existe a possibilidade de nos transportarmos para o seu ponto de vista, não há “horizontes fechados”, mas proximidade do longínquo. No entanto, esse encontro não se faz no esquecimento do eu próprio - do sujeito como chave da compreensão - no “distanciamento alienante” como condição da objetivação do “outro” (objetivismo), mas numa tensão insuperável. Não existe, portanto, para Gadamer, um horizonte único ou saber absoluto. A ontologia da finitude do ser o impede de fazer de um único horizonte, um único saber. 15 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa 1 3 - Emilio Betti: o projeto da reformulação de uma teoria metodológica geral da interpretação A intenção principal de Betti é afirmar a possibilidade de interpretação válida de toda atividade prática, entendida como atividade objetiva do pensamento, “objetivaçãoda mente” ou “espírito objetivado”. Essas são “formas plenas de significado”, diz Betti, e o objetivo da interpretação é trazê-las à compreensão, num processô que tem a linguagem como mediação. Trata-se de reconhecer o pensamento interior criativo e inspirador de uma atividade alheia e que lhe dá significado, retraduzindo-o, reconstruindo-o e reconhecendo-o com a ajuda de nossas próprias categorias de pensamento, preconceitos e habilidade de entendimento. Nesse “ processo triático”, em que age tanto o “intérprete” - espírito ativo pensante - quanto o “espírito objetivado”, pela mediação das “formas plenas de significado”, dá-se uma “inversão hermenêutica”. Recria-se um pensamento “de dentro” do próprio intérprete, fazendo valer um elemento subjetivo que, inseparável da espontaneidade da compreensão, transfere uma subjetividade para uma outra, que difere da original. Ao falar da objetividade no ato da interpretação, vê-se que Betti não descarta o envolvimento da subjetividade do intérprete. Contudo, seu desafio é garantir a correspondência entre a construção de significado e o conteúdo significativo da “forma” em questão. Por isso, para resguardar a objetividade, toma-se necessário que a subjetividade penetre na estranheza do objeto. Caso contrário, o intérprete apenas conseguirá projetar a sua própria subjetividade no objeto da interpretação. Do ponto de vista de Betti, a historicidade da compreensão e a ontologia de Gadamer são obstáculos à possibilidade do conhecimento histórico objetivo. Gadamer não conseguiu, segundo ele, produzir métodos normativos que permitam distinguir interpretação certa de interpretação errada. Gadamer, por sua vez, defende-se dessas criticas, afirmando que pretende fazer uma ontologia, e não uma metodologia ou teoria geral da interpretação. Continua a sustentar que a compreensão é um ato histórico, sempre relacionado com o presente. Portanto, para Gadamer, é ingênuo falar em interpretação objetivamente válida. Em objeção à posição de Gadamer e em defesa de uma interpretação 16 Leila Amaral objetiva, Betti sugere quatro guias para a interpretação, ou os quatro cânones relativos ao objeto e ao sujeito. Pelo primeiro cânone - da autonomia hermenêutica do objeto - as formas plenas de significado têm de ser entendidas de acordo com sua própria lógica e intenção original, porque o seu conteúdo significativo permanece uma objetivação da força criativa de um “outro”. Com um segundo cânone, a regra do contexto do sentido ou da totalidade e da coerência do significado, Betti aponta para a interdependência do todo e de suas partes individuais. A compreensão do significado se dá pela iluminação recíproca das partes e do todo e pela extensão na inclusão das partes em contextos significativos mais amplos, no curso do procedimento interpretativo. Um terceiro cânone exige o envolvimento ativo do sujeito. O significado de uma manifestação humana depende, para sua apreensão, de uma atitude ativa reconstrutiva por parte do intérprete, com a ajuda de sua intuição, de suas categorias de pensamento e de seu próprio processo criativo de conhecimento. Advém daí a natureza particular da objetividade das Ciências Humanas: ela não é absoluta, porque nenhuma interpretação pode ser considerada acabada, completa ou definitiva, devido às diferenças de perspectivas, ao excesso de significado dos produtos culturais e à multidimensionalidade dos fenômenos humanos. A compreensão não é uma questão de recepção passiva, mas um processo de reconstrução que envolve a própria experiência do intérprete. Todavia, Betti insiste na necessidade de guias controladores da interpretação, porque o intérprete não pode perder de vista a realidade de um produto cultural como objetivação da energia mental de um “outro”. Esse “outro” tem algo a dizer que não seria conhecido por nós mesmos e que é independente da inferência de valores do intérprete. Para Betti, nenhum dos pares deve ser esquecido nesse encontro com a alteridade. Caso contrário, o monólogo resultante impediria a possibilidade de uma real “fusão de horizontes”. Considerando tanto o ideal de objetividade na hermenêutica de Dilthey e de Schleiermacher, quanto a superioridade do sujeito auto-consciente de sua própria historicidade, na hermenêutica ontológica de Gadamer, Betti parece sugerir uma via interpretativa que parte da aceitação da diferença. Para ele, devem-se manter os conteúdos significativos das diferentes objetivações do espírito que, como tal, confrontam a realidade mental de seu intérprete. Devido a essa condição, Betti diferencia uma “interpretação 17 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa normativa” de uma “interpretação contemplativa”. Essa última, própria da interpretação histórica e a das Ciências Humanas, busca a investigação de um significado cultural nas circunstâncias concretas de sua origem, resguardando a realidade particular do produto cultural e seu significado finalizado. Somente assim, quando sujeito e objeto se apresentam como pares ativos, é que a interpretação pode colocá-los frente a uma disputa de significados que leva o intérprete a uma auto-reflexão e auto-crítica. "Finalmente, o quarto cânone, o da correspondência hermenêutica do significado. Nesse caso, trata-se, justamente, de fazer com que a realidade viva do intérprete e o estímulo que recebe do objeto provoquem, entre si, uma ressonância mútua. Daí a necessidade de se considerar os fenômenos de investigação como produtos culturais, criados por pessoas no interior de uma comunidade viva, como solução para problemas morfológicos de formação, e, portanto, como atos de incorporação de valores portadores de significados. Por isso, para entendê-los na sua unidade intema e encontrar tendências, sucessão de estilos e descobrir especificidades de formação de vários produtos de formas mentais de vida, a interpretação não pode ser simplesmente psicológica, mas técnica. Para Betti, deve-se perceber ao mesmo tempo: a regularidade geral - as relações tendencialmente constantes entre fatos históricos para revelar problemas da existência social - e as leis individuais - a coerência intema que é objetivamente subjacente ao produto, reconstruindo a teia de significados na qual ele está entrelaçado. O objetivo final é “compreender” a característica das formas “plenas de significado” como produto de formas mentais autônomas e explicar como alguma coisa com valores distintos pode aparecer unida por uma essência compartilhada. O que se ganha com essa análise é o reconhecimento do “humano” nas e através das diversas “formas plenas de significado”, que, em conjunto, formam a unidade da civilização humana. O conhecimento histórico não se reduz a proporcionar um melhor conhecimento de nós mesmos. Através da tensão familiaridade-estranhamento, que existe no interior da relação dialética subjetividade-objetividade, a interpretação hermenêutica dirige nosso conhecimento para algo que transcende os seres humanos individuais: a possibilidade do humano. 18 Leila Amaral 1.4 - Críticas de Hirsch a Gadamer A “hermenêutica ontológica” de Gadamer softe críticas de Hirsch, no interior dessa tradição da “hermenêutica metódica”. Sua preocupação é com o perigo do que considera um subjetivismo ou relativismo ilimitado que opera a indeterminação do próprio significado do texto, segundo a lógica do autor, nos seus próprios termos e interesses. Segundo Hirsch, esse é o risco presente na teoria de Gadamer. Ele não distingüe o que para Hirsch é fundamental, “sentido” (imutável e reproduzível de um texto e, enquanto tal, irredutível a si mesmo, como atualização possível pelo autor de convenções lingüísticas socialmente compartilhadas) de “significação” (mudança ilimitada do sentido que o texto adquire, no decorrer do tempo, para geraçõesdistintas de leitores, segundo avaliações e julgamentos que lhe são conferidos, de acordo com as novas relações que se estabelecem com os valores e significados que surgem com a mudança na tradição). Para Hirsch, Gadamer se incumbe do segundo aspecto. Mas se rejeita-se a prerrogativa do autor na imposição de significado ou se identifica-se “tradução” com a história de como o texto tem sido interpretado no tempo, persiste insolúvel o problema de estabelecerem-se normas estáveis para distinguir-se, entre as interpretações plausíveis, as interpretações válidas - as prováveis. A condição primeira para realizar- se a tradução do significado original, refundindo-o no idioma do intérprete para compartilhá-lo com os seus contemporâneos, é a construção- compreensão desse significado original. Para Hirsch, proviria dessa indistinção a contradição lógica no interior da teoria da interpretação de Gadamer. Como poder-se-ia fundir passado e presente, solução encontrada pela idéia de “fusão de horizontes”, mantendo-se o reconhecimento de uma separação irreconciliável entre eles? Essa pergunta provém do fato de Hirsch considerar que Gadamer não abandona o dogma de uma radical historicidade. A própria possibilidade da “tradução” - a descoberta da “palavra” certa como suporte da compreensão e da familiaridade para com o estranho - apresentar-se-ia impermeável, comprometida pela radicalidade historicista, assim como a própria possibilidade da comunicação. 19 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa Finalmente, a confusão entre “preconceito” e pré-compreensão”, como aparece na epistemologia crítica de Gadamer ao conhecimento objetivo das Ciências Humanas, geraria uma tautologia cujo resultado é a indeterminação do sentido. Uma coisa, diz Hirsch, são as adtudes habituais do intérprete e seu sistema típico de expectativas que geram implicações que podem ser distinguidas das implicações próprias e típicas do autor porque, próprias das associações do intérprete, são limitadas por seu próprio horizonte, e outra coisa é a necessidade lógica da pré-compreensão relativa à elaboração de hipóteses no ato de qualquer conhecimento ou pensamento que aspira ao reconhecimento. Trata-se de perspectivas prováveis ou válidas, devido à necessidade de serem constantemente testadas frente a todos os dados relevantes que se descobrem no processo de investigação e na adoção de novas suposições, isto é, circuito hermenêutico. 1.5 - Crítica de Habermas a Gadamer Habermas apresenta o que considera a tarefa de uma “hermenêutica profunda” numa crítica das ideologias e dirigida contra as reificações institucionais. Ele propõe o desenvolvimento de uma teoria das ideologias, entendendo-as como distorções sistemáticas da comunicação pelos efeitos dissimulados da violência. Finalmente, invoca, para a teoria crítica, uma concordância ideal reguladora de uma comunicação sem limite e sem coação, orientada pela afirmação antecipada de uma libertação futura. É desse lugar que Habermas dirige sua crítica a Gadamer. Segundo Habermas, a instância crítica situa-se acima da consciência hermenêutica, pois, além de refletir sobre o movimento que se dá no contexto da intersubjetividade do acordo, isto é, no plano da competência comunicativa, o projeto crítico se afirma como oposição ao estado átual da comunicação humana falsificada. Seu empreendimento deve dirigir-se para a dissolução de coações oriundas das instituições por meio de procedimentos explicativos, e não apenas compreensivos. A consciência hermenêutica, diz Habermas, é insuficiente para enfrentar o desafio de uma comunicação que é sistematicamente distorcida pela ação repressiva da autoridade e, portanto, da violência. Elas se enquistam na comunicação como corpos 20 Leila Amaral estranhos, não garantindo nenhuma identidade de significação intersubjetivamente conquistada. Trata-se, na verdade, de uma pseudocomunicação, porque, além de fazer surgir perturbações que são ignoradas pelos membros da comunidade, gera um mal entendido que continua encoberto por meio de dissimulação ideológica, na aparência de um falso consenso. A tarefa de uma hermenêutica crítica é o esclarecimento crítico capaz de produzir uma compreensão radical, num processo dialógico que garantiria a auto-reflexão ou o interesse pela emancipação de todos os participantes. Nesse caso, ela se distinguiria da simples “tradução” ou consciência hermenêutica, porque esta última pressupõe um “acordo prévio” determinado pela “tradição”, que, para Gadamer, é o lugar da verdade possível, do acordo fundamental, do consenso. Para Habermas, a tradição é, ao mesmo tempo, o lugar da inverdade e da violência, porque ele suspeita de que todo consenso seja forçado de uma forma pseudocomunicativa - um exercício não reconhecido da violência. A intersubjetividade do entendimento é deformada sistematicamente pelo “poder”. Gadamer, por ter ontologizado a hermenêutica, diz Habermas, confundiu, ao reabilitar positivamente o preconceito, razão com autoridade, porque aceitou a pretensão de verdade da tradição como que isenta de violência, insistindo sobre um consenso que nos precede. Mas o poder, afirma Habermas, mantém-se de forma permanente devido, justamente, à sua aparência de ausência de violência, gerando uma concordância pseudocomunicativa. E dessa aparência que o poder retira sua legitimidade. Daí a necessidade, para Habermas, de distinguir-se o verdadeiro consenso ou razão - um entendimento ou acordo universal num contexto livre de dominação - de autoridade - um reconhecimento dogmático fruto de dissimulação ideológica. A verdade, portanto, só pode ser avaliada por um consenso obtido sob condições idealizadoras de comunicação ilimitada e li vre de dominação. Isso ignifica, então, assumir, desde já, a antecipação de uma estrutura de convivência isenta de coação sob o signo de uma idéia organizadora de uma comunicação sem limite que, longe de nos preceder, dirigi-nos para o futuro, avalia Habermas. 21 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa 1.6 - Ricoeur dirige-se a Gadamer e a Habermas À custa de qual reformulação a hermenêutica de Gadamer revelaria o potencial crítico? A crítica das ideologias de Habermas estaria desprovida de preconceitos hermenêuticos? A filosofia hermenêutica, no seu esforço contra o distanciamento metodológico, reconhece as condições (históricas) de possibilidade de todo conhecimento humano. A conseqüência epistemológica imediata é a suspensão de garantia de objetividade da Ciência. O acordo que orienta os portadores de uma tradição (científica) remete pâra o fenômeno universal da linguagem: o entendimento no diálogo, para além de um sistema de línguas, para constituir-se como a síntese das mensagens mais significativas, veiculadas historicamente, que orienta grupos de pessoas (cientistas) que se relacionam e fazem o mesmo jogo. A teoria crítica das ideologias escaparia dessa meta crítica? - pergunta Ricoeur. O problema hermenêutico que se coloca em relação a Habermas é saber, então, de que lugar ele fala. As distorções, que devem ser dissolvidas pela auto-reflexão crítica e regulada por ideal emancipador, dão-se na esfera da “ação comunicativa”. Por isso, lembra o hermeneuta, é na reinterpretação criadora das heranças culturais que o homem pode projetar sua emancipação e apoiar o despertar da “ação comunicativa”. Nenhum projeto ou consenso pode valer-se do vazio, mas da própria experiência da comunicação, na tentativa de vencer o distanciamento cultural pela interpretação do passado. A consciência hermenêutica, voltada para o consenso que precede todo saber, vê a teoria crítica como caldatária da “tradição iluminista” ou “tradição da emancipação”. A crítica é também uma tradição, herdeira dos atos libertários paradigmáticos denossa civilização - o Êxodo e a Ressurreição - revi vidos e recitados pela teoria crítica como seu conteúdo meta-histórico ou meta- antropológico. Todavia, a hermenêutica de Gadamer, para desenvolver seu potencial crítico, requer, segundo Ricoeur, a refomulação de sua questão base. Sugere que nele seja salientada a dialética entre “experiência de pertencimento” e “distanciamento”, reabilitando o sentido positivo do último. Próximo a Hirsch e a Betti, Ricoeur lembra que existe um “dito” no texto que permanece e escapa às próprias condições psicossociológicas de produção. Tal 22 Leila Amaral observação é fundamental para o reconhecimento da instância crítica, no interior da inteipretação. Advém, desse distanciamento, uma evasão de sentido riquíssimo, porque aberto para uma série ilimitada de versões. Trata- se de um excesso de sentido, como disse Betti, que impede a interpretação absoluta. É por essa razão que a permanência do “dito”, que enquanto tal deve ser reconstruído e compreendido, provoca o confronto entre alteridades, irrealiza o real e irrealiza a própria subjetividade do leitor- intérprete. O “mundo aberto” pela obra comporta uma crítica do real, agindo como um poder subversivo do imaginário, como uma projeção dos possíveis, do “poder ser” da ficção e da redescrição. Para Ricoeur, compreender não é simplesmente projetar-se no texto, mas expor-se a ele. Nesse caso, o sujeito deixa de ser a chave da explicação para receber “um em si” mais vasto, revelado pela interpretação. 23 Leila Amaral Capítulo 2 Antropologia Dialógica Interpretativa: À Procura de um Saber Negociado 2.1 - Geertz: a condição da análise para operacionalizar a “compreensão” na etnografia A Antropologia Interpretativa vem se destacando dos paradigmas da Antropologia Modernista desde a década de 60, lendo Clifford Geertz como seu principal porta-voz. Mudanças de ênfase foram ocorrendo, gradualmente, na prática antropológica. Além de objeções à tentativa de construir uma teoria geral da cultura, os novos antropólogos voltaram-se para uma reflexão sobre a escrita e o trabalho de campo etnográfico. Essa tensão já se encontra presente nos trabalhos de Geertz, porque, ao mesmo tempo que ele se esforça para revelar um “padrão” reconhecível no pensamento cultural, ele fala de um “homem concreto” - o balinês, o javanês, o marroquino - e não de um “homem em geral”. A subjetividade do etnógrafo começa, com Geertz, a ser também sistematicamente tematizada, para extrair daí conseqüências de ordem epistemológica ao invés de moral (Geertz, 1979). Geertz trata de demonstrar, numa perspectiva hermenêutica, que a “compreensão” na etnografia não está baseada na “empatia” ou em outros O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa procedimentos introspectivos de natureza psicológica. A tarefa de penetrar na maneira de pensar de um povo é delicada e exige a apreensão dos esquemas conceituais dos nativos - os “conceitos de experiência próxima” - em mútua compenetração ou conexão elucidadora com os esquemas conceituais do analista - os “conceitos da experiência distante” - num processo de comunicação ou “fusão de horizontes”, como diria Gadamer. Geertz observa, assim, o papel que os dois tipos de conceitos colocam simultaneamente para a análise cultural, a fim de produzir uma interpretação que não se deixa confundir pelo incessante fluxo de experiência imediata, nem se deixa imobilizar pelas abstrações dos conceitos trazidos pela teoria e “cultura” do antropólogo. A interpretação antropológica não exige do etnógrafo colocar-se no lugar do nativo, para pensar como ele ou transformar-se em um deles. O que está em questão, para Geertz, é a possibilidade de o antropólogo perceber o que os nativos percebem sobre o mundo e sobre si mesmos, através de seus próprios meios e formas simbólicas prontamente observáveis. Trata- se, para Geertz, de apreender o modo como os símbolos surgem da realidade ou da forma geral da vida de um povo ao mesmo tempo que a moldam. O intérprete deve transitar dialeticamente do “todo” - a forma geral da vida - para as partes - os veículos nos quais essa forma está incorporada. Trata-se, portanto, de colocar a questão em termos de como a análise deve ser conduzida, o que toma evidente a influência da consciência hermenêutica na Antropologia de Geertz, informada por dois aspectos complementares: o cânone da inter-relação entre o todo e as partes - o círculo hermenêutico de Dilthey - e a fusão de horizontes de Gadamer, mas sua posição aproxima-se ainda mais da de Betti pela tensão familiaridade-estranhamento, objetividade-subjetividade, pela insistência na reinterpretação, no processo de reconstrução da totalidade para a apreensão da coerência do significado, enfim, por sua proposta de interpretação técnica. 2.2 - De onde falam os antropólogos pós-modemos ■ Os antropólogos pós-modernos, ao dirigirem sua crítica à Antropologia Modernista como forma de conhecimento, pretendem atingir 26 Leila Amaral a dimensão política da prática etnográfica submetida, como define Talai Assad, a um “Encontro Colonial” (Dwyer, 1982:270,71). Suas insatisfações se dirigem, fundamentalmente, para a “suposição objetivista” de que o “outro” - o objeto da Antropologia - pode ser isolado do “eu” - o “sujeito da Antropologia” - e das condições que influenciam o contato entre el \ Segundo os novos críticos, os antropólogos foram tentados, por essa vis; o ilusória, a revelar de maneira “objetiva”, a realidade cultural de um povo para outro povo, através de uma única voz, a do antropólogo-sujeito que experimentou aquela realidade e que possuiria, portanto, a autoridade para traduzi-la. O resultado foi uma presença excessiva do antropólogo, mas essa presença seria ambígua. Primeiro, porque, fruto de uma experiência vivida dramaticamente no trabalho de campo, essa mesma experiência deveria ser metodicamente controlada e disciplinada para alcançar a objetividade pretendida na observação. Posteriormente, essa experiência deveria ser cuidadosamente apresentada no texto como descrições ou interpretações generalizantes sobre a “totalidade” da vida cultural - como prova da presença do antropólogo numa realidade estranha. No entanto, essa presença deveria ser mantida, de certa forma, oculta, isto é, sob controle, por meio de mecanismos gramaticais e reconstruções do texto, recursos esses que garantiriam a cientificidade e neutralidade do texto. Tratar-se-ia, para usar uma expressão de Crapanzano, de um dilema de “intencionalidades” (1980:141,42). No entanto, segundo as avaliações de Webster (1982:91- 114) e de Dwyer (1982), os antropólogos não teriam, até então, enfrentado esse dilema na sua radicalidade. Conseqüentemente, abafavam a dialética do seu encontro com o “outro” e não examinavam, suficientemente, as condições em que essa confrontação se dava. Manter- se-ia, assim, a autoridade soberana do antropólogo, impedindo que viessem à tona as interpretações, enunciados, contestações e resistências do “outro”, assim como sua capácidade de colocar em riscò o mundo social que o antropólogo carrega consigo. 2.3 - A crítica à perspectiva interpretativa de Geertz Os aspectos principais dessa crítica a Geertz serão indicados por 27 0 Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa Webster e Dwyer em debate amparado nas questões epistemológicas fornecidas pela perspectiva hermenêutica sobre a possibilidade, os limites e a concepção da “compreensão”. Esses autores levam em consideração o avanço de Geertz em relação ao processo de interpretação que o faz distanciar-se daqueles antropólogos apegados a uma ciência experimental em busca de leis gerais. Suas críticas têm o objetivo, contudo, de demonstrar que a perspectiva de Geertz não rompe radicalmentecom a tradicional separação entre observador e observado, no estudo das culturas. 2.3.1 - A crítica de Dwyer O alvo principal dá crítica de Dwyer à Antropologia Modpmista dirige-se à premissa contemplativa da atitude científica trazida para o seio da própria prática antropológica. Com essa atitude, sujeito e objeto são vistos como essencialm ente independentes e a observação, conseqüentemente, é vista como um ato objetivo com nenhuma ou limitada influência no significado verdadeiro do objeto, considerado, por sua vez, como um dado a priori, algo pronto para ser observado e descrito. Trata- i se de uma crítica contra a dicotomia (ou escolha desnecessária) entre objetivismo e subjetivismo, pano de fundo da dimensão contemplativa da “observação participante”, nos termos da Antropologia Modernista. Em sua avaliação da perspectiva interpretativa de Geertz, Dwyer reconhece a tentativa desse antropólogo em superar essa dicotomia. Assim, no nível teórico, enquanto Geertz realiza um esforço para revelar um padrão reconhecível no pensamento cultural de um povo, ele tenta também restabelecer o diálogo entre as “experiências próximas”, as do nativo, e as (.“experiências distantes”, as do antropólogo. A perspectiva do(s) nativo(s) não é abandonada e o antropólogo não é apresentado como intérprete objetivo. Portanto, seu esforço teórico não é üm ato passivo, que apenas descobre leis pré-existentes. Geertz demonstra que a análise antropológica é construtiva - uma reconstrução de segunda ordem - porque o antropólogo traz para essa atividade particiilar suas preocupações e interesses e constrói uma interpretação do fenômeno social à luz desses interesses. Todavia, ( Dwyer enxerga a persistente dimensão contemplativa em Geertz no nível 28 Leila Amaral mais básico de seu esforço antropológico: na elaboração da “descrição densa”. Aqui, diz Dwyer, Geertz pretende reconstituir e fixar o fluxo do discurso social e recuperar o que está sendo comunicado pelas ações e gestos sociais, sem divorciá-los, jamais, do que realmente acontece. Esses eventos devem ser descritos meticulosamente como existiram no seu momento de ocorrência, para poderem, assim, ser constantemente consultados pelos antropólogos - a compreensão é sempre retrospectiva, parece lembrar-lhe Dilthey. Dwyer observa que, nesse nível, Geertz desaparece como ator social, porque ele se recusa a ver o antropólogo na sua relação humana com o informante e o efeito dessa relação nos dados obtidos e na informação concedida. Como Geertz concebe a “cultura como texto” - coletivamente elaborada - as construções dos informantes e suas explicações podem lhe parecer como que elaboradas espontaneamente, como expressões protegidas da subjetividade do próprio nativo e independentes das questões colocadas pelo antropólogo. Dwyer tenta chamar a atenção, aqui, para a ação do antropólogo, provocadora de interpretações e encorajadora de certos tipos de respostas, ajudando o informante a estruturá-las e a dar-lhes conteúdo. Na avaliação de Dwyer, o papel ativo do antropólogo restringe-se para Geertz, ao momento da escrita (da análise), mas esse mesmo papel é negado no seu encontro direto com o “outro”. Por isso, a interdependência do “eu” e do “outro” é suplantada apenas pela interdependência entre o antropólogo e o texto que ele constrói. Dwyer conclui que Geertz enfrenta parcialmente a emergência de novas idéias e abordagens na Antropologia, porque ele as limita a uma discussão teórica. Para Dwyer, uma mudança radical de perspectiva requer uma reflexão da ação histórico-social da Antropologia e da maneira pela qual adísciplma pode colocar em risco as preocupações de sua sociedade no momento em que se dá o confronto com o “outro”. Na visão de Dwyer, o avanço de Geertz representa uma recusa à teoria antropológica que dominou a disciplina até meados de 60, mas é ainda incapaz de desafiá-la em si mesma e a própria sociedade ocidental da qual é fruto. 29 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa 2.3.2 - A crítica de Webster Webster faz uma comparação entre as etnografias de alguns antropólogos clássicos e contemporâneos para demonstrar a existência de um dilema inerente à Antropologia. Sob formas diversas, os antropólogos experimentam o dilema entre objetivismo e subjetivismo, o mais característico na sua prática profissional. Todavia, segundo a avaliação dos novos antropólogos, seu enfrentamento tem sido recorrentemente evitado ou camuflado nas suas “ilusórias” soluções. Malinowski, por exemplo, viu-se às voltas com sua incômoda subjetividade no trato com os Trobiandenses. Experimentou frustrações, desafetos, desentendimentos, dúvidas e distrações. Mas, ao invés de discutir com “sinceridade metódica”, termo utilizado por si próprio, as condições de campo nas quais sua experiência e observações se deram, ele preferiu manter suas reflexões pessoais separadas de sua etnografia, através do desabafo contido na privacidade de seus diários. Foram justamente as revelações contidas nesses diários que levantaram a questão daquilo que Geertz chamou de ’’ironias” da Antropologia - o reconhecimento de uma tensão moral e de uma ambigüidade ética implícitas no encontro do antropólogo com seu informante (Geertz, 1979). A percepção dessa ironia permitiu a Geertz demonstrar a > ilusão do ideal romântico da empatia como procedimento adequado para a compreensão de uma realidade cultural alheia. No entanto, para Webster, também a perspectiva criativa interpretativa de Geertz representou um rompimento parcial com o modelo antropológico anterior. Em seu artigo “From the Native s Point o f View: on the Nature of Anthropological Understanding" (1979), Geertz enfrentou o problema metodológico de operacionalização da compreensão, tentando revelar o processo adequado da interpretação da “cultura como texto”. Sua preocupação, contudo, é metodológica, diz Webster, em detrimento de uma epistemologia de maior alcance que pudesse ampliar a discussão, por ele mesmo vislumbrada, a da complicada autenticidade que impede a transparência na relação que se estabelece entre etnógrafo e informante. A etnografia de Geertz, na avaliação de Webster, ainda se mantém 30 Leilà Amaral no rastro da hermenêutica de Dilthey, porque o que Geertz busca é uma interpretação válida da cultura de um povo, nos termos de si própria. Pretendendo reconstruí-la como totalidade, o que se mantém é a visão de uma entidade autônoma e, como tal, separada da realidade do antropólogo. Os “dilemas” e “ironias” vividos pelos mais diversos antropólogos, diz Webster, expressam, ao contrário, uma experiência de campo fragmentada, vivida num processo de comunicação tenso, envolvendo trocas e negociações de rotinas entre antropólogos e informantes, numa dramática , interação. Por isso, essa experiência, longe de apresentar transparência, \ harmonia e neutralidade, revela uma polaridade entre o “eu” e o “outro”, mas não se trata de uma tensão puramente ética ou moral, porque a polaridade que aí se manifesta é constitutiva da própria experiência do trabalho de campo, isto é, da existência mesmo de “lacunas”. Seguindo a ptrilha de Gadamer, Webster entende que a experiência de tais “lacunas” deve ser enfrentada não como obstáculo à “compreensão”, metodicamente mistificada pela arbitrária divisão “objetividade-subjetividade”, mas como a fundação mesma da própria compreensão. Por essa perspectiva, a “compreensão” surge dialeticamente da polaridade que impele o “sujeito” e o “objeto” ao diálogo. É a voz de Gadamer alertando que esse encontro entre o “eu” e o “outro” não se faz no esquecimento do “eu” próprio, no distanciamento alienante como condição da objetivação do outro, mas “numa tensão insuperável”. A “compreensão” não seria, portanto, nem objetiva, nem subjetiva,mas “intersubjetiva”. Na visão de Webster, Geertz se aproxima mais da hermenêutica de Dilthey, e a inconsistência dessa perspectiva está no conceito abstrato de {“compreensão”, porque enfatiza uma “metodologia puramente formal”, sem considerar, suficientemente, as condições históricas e existenciais do intérprete. Embora Geertz sugira um diálogo entre os conceitos de “experiência próxima” e os conceitos de “experiência distante”, trata-se, j, I ainda, para Webster, de abstrações, porque desconsidera tanto a subjetividade do nativo quanto a do antropólogo. Ao colocar em primeiro plano o aspecto metodológico, Geertz enfatiza a objetivação, arriscando obscurecer a dialética sujeito-objeto (Webster, 1982:97). Se a “compreensão” nasce do diálogo intersubjetivo, então Webster, 31 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa , s uindo a hermenêutica de Gadamer, indica que a ênfase ou a primeira V tarefa da Antropologia deve, ao invés de recair no processo de interpretação < sobre a(s) cultura(s), dirigir-se para a expressão das trocas e negociações { entre uma multiplicidade de vozes, entre elas a do antropólogo. A compreensão é entendida, aqui, como mútua compreensão, pois o “conhecedor” e o “conhecido” reconstituem-se um ao outro, em afinidade. Enfim, a tentativa de ultrapassar a perspectiva de Geertz está fundada numa pesguisa descampo orientada parajxcgnftoQtQ_stnográfico, e não apenas para uma observação participante que, segundo esses antropólogos, estaria fundada numa dimensão muito mais contemplativa, na trilha de uma hermenêutica metódica como a de Dilthey ou a de Betti. 2.4. A inevitabilidade da perspectiva dialogai Insistir na incorporação do intérprete ao objeto do conhecimento é j condição, inclusive, para enfrentar o inevitável dilema relativo ao I etnocentrismo. Escapar do etnocentrismo é tarefa do antropólogo - diz Webster - mas o seu escapar definitivo colocaria o antropólogo fora de sua própria tarefa de “compreensão”. Ainda na trilha de Gadamer, Webster entende o etnocentrismo como um “verdadeiro preconceito”. É a y reafirmação da necessidade lógica da “pré-compreensão” e da consciência ■y da historicidade do intérprete na apreensão da “verdade” do “outro”. Todo L processo de “tradução”, diria Gadamer, dá-se graças a um estranhamento ea_ummal entendido inicial em toda comunicação humana. Por isso, conclui (Websteya abertura para a verdade ou^subversão do etnocentrismo só é [ possíveíem razão dessa consciência da particularidade e finitude (cultural) !_ de nosso ser, quando da afirmação do outro ponto de vista. Esse paradoxo I apenas expõe a Antropologia à inescapável natureza histórica e dialética da compreensão e a faz descobrir a certeza como diálogo. Expor o “eu” do antropólogo e as condições históricas, políticas e existenciais de sua experiência de campo é a condição que levará à crítica do próprio projeto antropológico e do sistema social do qual ele deve seu desenvolvimento, já que todos os indivíduos - complementa Dwyer - carregam e expressam as preocupações e os interesses de sua própria 32 Leila Amaral sociedade. A insistência em enfrentar esses desafios leva os antropólogos pós- modemos a rever a própria prática da observação participante, impelindo- os para uma perspectiva dialogai, orientada para o confronto etnográfico e para uma escrita etnográfica que tem como modelo o diálogo. Ao invés de 1 entender a “cultura como texto”, busca-se agora escrever “etnografias I como texto”. Isso implica em: (1 ) reproduzir a experiência de campo; (2) P representar a “plurivocalidade” das muitas perspectivas que o confronto J com o(s) outro(s) desencadeia e (3) oferecer um espaço aberto para a 1 participação ativa do leitor. 2.4.1 - O diálogo de Crapanzano e Tuhami “Tuhami - Portrait ofa Moroccan " (1980), de Vincent Crapanzano, é um esforço criativo desse novo estilo. Trata-se de uma longa conversa de Crapanzano - sempre acompanhado de seu assistente de campo Lhacen - com Tuhami - um marroquino excepcional, um outsider, casado com a vingativa A'isha Qandisha, um espírito-demônio que mantém a vida amorosa de Tuhami sob rígido controle. Esse diálogo, no texto, é intercalado pelas interpretações de Crapanzano sobre as idéias e comportamentos de Tuhami e de descrições objetivas da vida cultural de Marrocos. O resultado é uma vívida demonstração da sensibilidade de Crapanzano para com o “outro” e da dinâmica exposição do “eu” do antropólogo na sua pesquisa sobre o “outro”. Crapanzano tenta compreender seu encontro com o informante Tuhami, através de uma perspectiva psicanalítica que ele descobre “ser impossível eliminar, tão embebida que essa orientação está no pensamento contemporâneo” (Crapanzano, 1980:10). Essa orientação levou Crapanzano ■ a preferir uma situação de entrevista cujos encontros se davam protegidos jJ da vida diária. A privacidade e a neutralidade do antropólogo permitiram a ■ Tuhami uma grande liberdade de expressão que provavelmente não 'I aconteceria nos encontros estruturados da vida diária, conclui Crapanzano. Tuhami permitia-se criar a si mesmo segundo seus desejos e parecia não distinguir o real do sonho, da fantasia, da alucinação ou da visão. Assim, no 33 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa início da relação entre eles, os dois falavam linguagens ininteligíveis. O antropólogo estava interessado nas informações, mas Tuhami estava interessado no aspecto evocativo da linguagem e aproveitava os encontros para executar um ato metafórico. Mas Crapanzano entende que, em todo processo de auto-construção, a experiência de si se faz indiretamente, através da presença de um outro. Por causa de sua perspectiva psicanalítica, Crapanzano concebe que, nesse encontro, cada um representa para o outro o objeto de transferência. O encontro etnográfico também se desenvolveria dessa forma, como um exemplo de transferências e contratransferências, e Crapanzano tenta recuperar a natureza dinâmica que provém dessa relação. Trata-se de I uma complexa negociação entre o antropólogo e o informante à qual ambos se submetem, numa constante tentativa de fazer sentido um para o outro. Da relação inicial, Crapanzano reconheceu-se como “curandeiro” pela possibilidade de uma participação vicária e concluiu que ele e Tuhami acabaram por negociar suas trocas de maneira terapêutica. Ajustando-se um ao outro, Tuhami veio cada vez mais a usar a linguagem do real - se bem que Crapanzano reconhece que tanto o real como o imaginário possam servir como função metafórica - e Crapanzano, no seu novo papel, vai sendo profundamente seduzido pela maneira evocativa de Tuhami. Além do mais, numa situação de instabilidade, por não terem convenções “dadas” para descrever e articular o encontro, o antropólogo e o informante devem rapidamente negociar, para alcançar um ajustamento. Mais tarde, quando as relações se aprofundam e tornam-se mais complexas, novos ajustamentos e novas convenções são exigidas. Trata-se de um processo contínuo de descoberta do “outro” e‘ de “si” mesmo, guardando a dramaticidade e a tensão que lhe são próprias. Ressalta-se, nessa avaliação do encontro etnográfico feita por Crapanzano, o papel da terceira pessoa, no caso seu assistente de campo. ( T h acenTKjediando, de diversas maneiras, a relação entre Crapanzano e Tuhami, foi Lhacen quem garantiu a possibilidade de “comunicação interpretativa”, isto é, o diálogo. Crapanzano tenta demonstrar que o diálogo não se dá simplesmente entre duas partes (o eu e o outro), mas exige uma terceira pessoa que desempenha o papel de “controlador da palavra” (da verdade em assunto de cultura) e da continuidade das formas 34 Leila Amaral convencionalmente variadas. O que se tem no diálogo, portanto, é uma relação triádica.62.4.2 - Dwyen a ênfase no encontro etnológico Pwyer compartilha com Crapanzano a necessidade de retratar, na escrita etnográfica, a “conversação direta” com o outro, retendo a essência do encontro como uma negociação complexa em que o “eu” e o “outro” permaneçam visíveis. A pesquisa de campo resulta de um diálogo cujas características, comuns a todo encontro, Dwyer trata de explicitar: (1) é A recursivo, porque o significado do encontro sempre.depende do significado do(s) encontro(s) anterior(es) - portanto, o conteúdo dos eventos não é um “dado” a ser manipulado arbitrariamente pelo antropólogo; (2) é contingente, porque o encontro pode ser interrompido a qualquer momento - por isso, o antropólogo tem que enfrentar um processo constante de acomodação e de modificações na sua confrontação com o “outro”, o que orienta e redireciona seu projeto inicial; (3) é engajado, porque o encontro está sempre relacionado a “forças sociais” que englobam e permeiam as intenções puramente pessoais do antropólogo - logo, se o antropólogo aceitar esse elo, ele será capaz de refletir sobre sua ação e sobre o mundo social ■' do qual ele é expressão, podendo ir além de sua simples aceitação. E m '' conseqüência, PwyermcGcaalguns procedimentõs&ue, por sua radicalidade, parecem-nos indicar a possibilidade de transcrever literalmente o diálogo com os informantes. Assim, sugere Dwyer, deve-se manter em aberto a~f- possibilidade de se ouvirem as contestações que o “outro” dirige ao “eu”, não suprindo as questões que o antropólogo coloca, para que não se tenha a ilusão de que as declarações do informante sejam espontâneas. O princípio básico é preservar o tempo do diálogo, no seu próprio contexto e situação^ Assim: (1) deve-se manter a seqüência natural da experiência do trabalho de campo, retendo sua integridade e substancialidade, evitando cortes ou a liberdade de rearranjos; (2) é preciso refletir sobre a natureza da * Uma resenha de Leonardo H. G. Figoli aponta que a contribuição de "Tuliami: Portralt o f a Moroccan”, para a teoria do encontro etnográfico, é devida à discussão de Crapanzano sobre o papel central das significações imaginárias, além dos registros do real e do simbólico, em toda compreensSo e explicação (Anuário Antropológico 83 p. 292-300). 35 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interftretativa confrontação - as acomodações, rejeições, táticas, estratégias, aceitações, oposições, tanto do pesquisador quanto dos informantes - que leva a um tipo particular e único de experiência, diretamente relacionada com o conteúdo e o significado da informação e da observação; (3) pede-se que o antropólogo coloque em risco (em jogo) suas afirmações na confrontação com as afirmações do outro, tomando ambas as partes do encontro Wulneráveis umas às outras. Pensa-se, assim, na possibilidade de incorporação mútua de interesses e preocupações que refletem o engajamento de cada uma das partes com a missão de sua própria sociedade. É dessa perspectiva que Dwyer dirige a crítica, que considera mais séria, à perspectiva que privilegia o momento da interpretação. Contesta o uso de uma liberdade para compor e recompor a(s) afirmação(ões) do(s) informante(s) e para transformar substancialmente a experiência de campo. Com essa postura, conclui Dwyer, outorga-se ao intérprete o papel de árbitro final do significado. O estilo de Crapanzano se aproxima daquele que Dwyer parece sugerir como ideal. No entanto, a orientação psicanalítica do primeiro o levou a privilegiar um encontro personalizado e isolado da vida diária. A insistência de Dwyer, ao contrário, é no confronto e no diálogo que se dão exatamente na vida cotidiana. Além do mais, a etnografia de Crapanzano ainda mantém, segundo Dwyer, algumas semelhanças com o estilo “tradicional”. Ao apresentar interpretações e análises da vida marroquina, neutras e distantes à situação de diálogo, Crapanzano acaba por permitir- se selecionar, realizar cortes, fazer novos arranjos, omitir trechos ou secções inteiras de suas longas conversas com Tuhami - procedimento insustentável para Dwyer. Finalmente, o esforço critico de Crapanzano, restrito ao domínio da ação pessoal, parece-lhe limitado na contestação da Antropologia e da sociedade. 36 Leila Amaral Capítulo 3 A Experiência de Campo e a Escrita Etnográfica: Um Novo Estilo do “Fazer Antropológico” Observa-se, pelo que foi exposto no capítulo anterior, a preocupação dos antropólogos “pós-modemos” com a construção do texto etnográfico, no sentido de transportar para ele a experiência de campo sem que se perca a tensão insuperável do encontro etnográfico. A discussão sobre a Observação Participante - técnica de coleta de dados que caracteriza a Antropologia, desde Malinowski - ganha uma nova dimensão se acompanharmos os argumentos docSTichael Martufcno seu instigante artigo ^Tjjrtderstanding j ind Participant Observation in Cultural and Social Anthmpology" (1974). Martin avalia a Observação Participante para a obtenção da compreensão científica e de dados empíricos e conclui que, apesar de em certos casos a Observação Participante ter-se mostrado útil para obter a informação necessária, nenhum argumento a seu favor justificaria metodologicamente a ênfase e a amplitude de seu uso na Antropologia. A Observação Participante não garante o conhecimento dos dados empíricos relativos à compreensão. Martin reconhece, então, que deve existir uma dimensão estética no pensamento e no método antropológico, exigindo da empresa antropológica um sentido distinto dej O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa compreensão, para além da compreensão científica. Pode-se sugerir, a partir daí, que a Observação Participante se justificaria não como adequação metodológica, mas como urr^modo relevante de penetrar numa dimensão do humano que a cultura expressa, mas que escapa à dimensão empírica: o universo de significados, apreendido intersubjetivamente. É esse compromisso com uma comunicação humana viva, • proporcionado pelo encontro etnográfico, que instiga Rapport, por exemplo, a discutir a natureza específica da escrita, inclusive a das “Anotações de Campo”, para resgatar o seu papel, até então desaparecido, ignorado ou negado, na realização desse encontro (Rapport, 1991:10-15). Rapport chama a atenção para a^ gãracterística dual dessa is e n ta. A anotação de campo, diz, não é algo que separa o antropólogo do campo para ligá-lo apenas à identidade da academia. Ela o faz embrenhar-se, simultaneamente, em suas convenções. As anotações de campo, além do objetivo explícito de servirem a fins acadêmicos mais ou menos imediatos ou para alcançar ganhos teóricos futuros, possuem um papel prático bastante significativo: permitem ao etnógrafo alcançar o significado de sua experiência. Trata-se de uma maneira de o antropólogo refletir, tomando consciência e organizando suas relações com a^omunidade, registrando a complexa negociação de rotinas na interação social e o desenvolvimento de seu pértericirriento nela. Trata- se de uma estratégia que ajuda o etnógrafo no aprofundamento de sua imersão na comunidade. Mais tarde, essa escrita servirá também para as reconstruções acadêmicas, jnas, segundo Rapport, deverão ser concebidas como extensão daquela engenhosa negociação da interação, no tempo em que_foirealizada. As anotações ficam imbuídas, assim, da^çalidade convencional e das normas das duas formas de vida - local e acadêmica. O encompassamento dessas duas convenções dá a essa escrita a aparência de “caos” que, contudo, toma-se plenamente aparente apenas na academia. Nesse momento, quando ocorrem a análise e a interpretação, insiste-se ! em erradicar qualquer tipo de dualidade ou ambigüidade, em limitar, reduzir, I dizimar a vivacidade e tensão das anotações para dar lugara afirmações I coerentes e reconstruções de objetos culturais de natureza diversa. De 38 Leila Amaral I acordo com Rapport, o compromisso mútuo inicial, isto é, a possibilidade / do diálogo, é agora rompido em nome de uma interpretação empobrecedora. Rapport discorda, no entanto, que esse processo seja inevitável. Sugere (que o compromisso que aparece nas anotações de campo deva ser mantido como uma possibilidade rica a ser incorporada na tarefa interpretativa do antropólogo, desde que ele perceba sua escrita análoga à poesia e à prosa. ^ Isso significa abdicar de análises “coerentes” para dar lugar a interpretações capazes de aceitar sutilezas e ambigüidades e de produzir descrições abertas \ sem prescrever uma forma de ver ou outra, quando se reconhece a y justaposição de várias convenções. Essa busca de um novo estilo de fazer etnografia mostra, em seu conjunto, uma tendência em tomar o texto como testemunho de que o saber não se faz por um único horizonte, devendo, , pois, manter-se em aberto. Tenta-se recuperar o sentido de etnografia como \ ficção, abrindo a possibilidade do uso de narrativas, análogas à arte e à ) literatura, que insinuam a existência de verdades sem levar, no entanto, à L ilusão positivista de um “estado” ou um fazer objetivo ou definitivo. (Webster, 1982: 1112). Busca-se uma escrita etnográfica que subverta a abstração de culturas descritas como totalidades coerentes, portádorasde um corpus estável de símbolos e signos, para dar lugar a umaetriografia experimentar, susceptível cTé c'ÕnsTan{es~c~onstelações. Rompe-se com o holismo das etnografias “realistas” porque, pela abertura do texto, evoca-se um mundo mais largo de ordem incerta. Aumenta, assim, o interesse pelos ensaios e pequenas narrativas como formas apropriadas para captar detalhes e fragmentos da realidade, numa busca de inovações capazes de descrever níveis microscópicos do processo de mudança (Marcus e Fischer, 1986). Enfim, para o diálogo ser levado às mais diversas platéias e para que os leitores das etnografias não sejam mantidos à distância da experiência original, a escrita deve manter uma dimensão hesitante, uma abertura à contingência, a fim de permitir ao leitor um papel ativo e crítico em relação ^ ao texto. O leitor, assim envolvido no jogo, soma-se ao diálogo e coloca-se também em risco. É interessante ressaltar, aqui, a discussão que os novos experimentos lançaram quanto aos limites, ou mesmo quanto à impossibilidade das explicações racionais relativas a certas experiências humanas ou discursos sociais que, quer por suãTiatnreza, 39 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa auer Dor seus obietivos divereentes. delas escaoam. Nesse caso. a Esse é o trato dado ] no seu livro Shamanism, Colonialism and the Wild Man - A Study in Terror and Healing (1987), considerado um dos mais radicais experimentos etnográficos no seu objetivo de provocar reações no leitor, através dn estranhamento dn “eu”, e não do estranhamento do “outro”. Sua intenção é instigar uma visão crítica do fragmentado, cujo efeito é perturbar o leitor através da apresentação de um mundo de ordem incerta ou da sensação de que nenhuma ordem pode ser representada. “Que espécie de compreensão - que espécie de fala, de escrita e de construção de sentido, seja de que modo for - pode lidar com isso e subverter isso? Contrapor ao ‘eros’ e à ‘catarse’ da violência meios igualmente místicos é mais que contra-produti vo. Mas, oferecer as explicações racionais padronizadas sobre a tortura em geral ou sobre essa ou aquela situação específica é igualmente sem sentido. Porque, atrás do interesse consciente que motiva o terror e a tortura - desde as altas esferas da busca do lucro das corporações e a necessidade de controlar a força de trabalho, até equações mais estritamente pessoais de interesse - existem formações culturais - modos de sentir - intrinsecamente construídas, duradouras, inconscientes, em cuja rede social de convenções tácitas e imaginárias repousa um mundo simbólico e não naquela débil ficção pré-kantiana representada pelo racionalismo ou pelo racionalismo utilitário. Talvez não haja explicação, palavras disponíveis, e disso nós temos estado inconfortavelmente conscientes. A compreensão, aqui, se move muito rápido ou muito devagar, absorvendo a si mesma na faticidade dos mais brutos dos fatos, tais como os eletrodos e o corpo mutilado, ou na incerteza enlouquecedora daquele menos fictício dos fatos, a experiência de ser torturado”. (Taussing, citado em Caldeira; 1989:40-41). sentido. leitor em relação à sociedade ocidental. Oferece-se, então, um texto aberto, ei 40 Leila Amaral Frente ao Sagrado” (1989). Nesse artigo, Segato sugere os limites da Ji explicação racional para certas experiências (a do sagrado, por exemplo), I e leva-nos a pensar sobre o constrangimento e o esquecimento das I diferenças quando se realiza a redução de tomar verossímeis afirmações j irracionais. Mas, para além dessa crítica, Segato preocupa-se com o achatamento da compreensão das diversas dimensões da experiência humana quando se dá preeminência ao aspecto intelectivo sobre o sensível. Uma mesma sociedade, diz a antropóloga, não apresenta uma coerência significativa previamente suposta entre crença e sociedade, entre o universo da interação social e o universo do sagrado, ou mesmo da * experiência estética ou do universo afetivo, porque: “(...)existe uma quantidade de aspectos [ou pluralidade de programas de verdade numa mesma sociedade] que não participam dessa coerência, ou seja, que não contribuem para a inteligibilidade” (Segato, 1989:26). Ficam, assim, em questão, a concepção de cultura como texto (ou totalidade significativa) e as teorias que entendem o conjunto dos universos da experiência como sendo indiscutivelmente representação da»relações sociais de um grupo. Segato sugere, enfim, a permanência de brechas de inconsistência no texto etnográfico, porque as brechas podem oferecer acesso a outros mundos e garantir o diálogo intercultural autêntico e em profundidade, na medida em que expressam a pluralidade interior de verdades. Como uma saída possível, propõe: “(...) aceitar a existência do exótico, do irredutível, voltando ao assombro radical e à literalidade nas descrições. Isto não implica I uma volta ao pré-racional ou a uma etapa pré-simbólica da Antropologia, senão um reconhecimento ativo do caráter inesgotável e material dos símbolos. Nesta perspectiva, será possível achar uma nova possibilidade e um novo papel para o . exercício da empatia, tão injustamente sacrificada”. “O diálogo | ou comparação mediadora não pode ser somente inteligível ^ senão também sensível. A ‘poética do ato’ deve permanecer ao j lado do sentidõTRra isto, é necessário evitar que o modo 41 O Momento da Emergência de uma Antropologia Interpretativa analítico entre perversamente na vivência, matando-a. (...) Não é nossa tarefa, como antropólogos, fazer cair os mitos por terra, senão, justamente, ‘mitologizar’, dar o seu lugar insubstituível ao mito, re-encantar o mundo”. (Segato, 1989:44-45). — Sobressaem-se, assim, nesse novo estilo: (1) a tentativa de assumir la etnografia como arte ou ficção etnográfica; (2) a defesa da polifonia; e 1(3) a sã consciência da parcialidade das verdades etnográficas. Em conjunto, esses três aspectos constitutivos do novo fazer antropológico salientariam as dimensões “poéticas” e “políticas” que comporiam sua instância crítica. Subjacente a essa experiência crítica, encontram-se: (1) a consciência da situação colonial; (2) a suspeita em relação ao horizonte cientificista; e (3) a aceitação da noção de cultura como relacional, como processo comunicativo que existe, historicamente, entre sujeitos em relações de
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