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estrutura e perversões facebook.com/lacanempdf FICHA CATALOGRÁFICA 0693e Dor, Joel Estrutura e perversões / Joel Dor; trad. Patrícia C. Ramos. - Porto Alegre : Artes Médicas, 1991. 199p. 1. Perversões sexuais 2. Sexo (Psicologia) 3. Psicanálise 1. Ramos, Patrícia C. li. Título e.o.o. 151.1 616.8583 155.3 616.8917 c.o.u. 616.89-008.442.3 159.922.1 159.964.2 Índices Alfabéticos para o Catálogo Sistemático Perversões sexuais Psicologia sexual Psicanálise 616.89-008.442.3 159.922.1 159.964.2 (Bibliotecária Responsável: Marta Gravlno - CRB 10/567) ARTES !VÉDICAS JOEL DOR estrutura e perversões Tradução: PATRÍCIA CHITIONI RAMOS Supervlaão Técnica da Tradução ALDUÍZIO M. DE SOUZA PORTO ALEGRE/ 1991 Obrà originalmente publicada em francês sob o título Structure et Peruersions ,, por Éditions Denoel Paris Copyright (1987) by Éditions Denoel Capa: Mário Rõhnelt Supervisão editorial: Delmar Paulsen Composição, Arte Final e Filmes: GRAFLINE - Assessoria Gráfica e Editorial Ltda. Reservados todos os gireitos de publicação em língua portuguesa à EDITORA ARTES MEDICAS SUL LTDA. Av. Jerônimo de Ornelas, 670 - Fones 30-3444 e 31-8244 Fax (055) 30-2378 - 90040 Porto Alegre, RS, Brasil LOJA-CENTRO Rua General Vitorino, 277 - Fone 25-8143 90020 Porto Alegre, RS, Brasil IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL aM.D. Meus agradecimentos a Françoise Bétourné pela assistência dada durante toda a redação desta obra e por seu precioso concurso em sua correção. Sumário Introdução ... ...... ....... ..... ...... ... ........... ... .. ................. ....... .. ....... 11 Primeira Parte ESTRUTURA. TRAÇOS ESTRUTURAIS. AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA Capítulo 1 - A NOÇ_ÃO DE "AVALIAÇÃO DIAGNÓSTICA" NA CLINICA PSICANALITICA ................ ....... 17 Capítulo 2 - SINTOMA E DIAGNÓSTICO .......................... 25 Capítulo 3 - SINTOMAS E TRAÇOS ESTRUTURAIS - Ilustração de sua diferenciação em um caso clíni- co de histeria .. .. . .. .. .... .. .. . . . .. . . . .. .. .. . . . .. . . . .. .. . . . . . .. .. 32 1. Entrevistas preliminares ............ .............. 32 2. Relato do tratamento . .. .. .. .. .. .. . . .. .. .. .. .. .... . 38 Capítulo 4 - A NOÇÃO DE ESTRUTURA EM PSICOPATOLOGIA ........................................ 50 Capítulo 5 - ESTRUTURAS PSÍQUICAS E FUNÇÃO FÁLICA 56 Segunda Parte LÓGICA ESTRUTURAL DO PROCESSO PERVERSO Capítulo 6 - A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DAS PERVERSÕES . . . . . . . .. . . . .. . .. . . . . . . . . .. .. . .. .. .. . . . . . . .. . . .. . 65 Capítulo 7 - A NOÇÃO DE PULSÃO NO PROCESSO PERVERSO .. . . .. . .. .. .. . .. .. . .. .. . .. .. .. . . . . .. . . . . .. . .. . . . .. .. . 74 Capítulo 8 - RECUSA DA REALIDADE, RECUSA DA CASTRAÇÃO E CLIVAGEM DO EU ....... ... ..... 83 Capítulo 9 - IDENTIFICAÇÃO FÁLICA E IDENTIFICAÇÃO PERVERSA .. .. .. . .. .. .. . . . .. .. . . . . . .. . . .. .. . .. .. .. . .. .. .. . .. .. . 93 Capítulo 10 - PONTO DE AN_CORAGEM DAS PERVERSÕES E ATUALIZAÇAO DO PROCESSO PERVERSO 99 Capítulo 11 - O HORROR DA CASTRAÇÃO E A RELAÇÃO COM AS MULHERES. O DESAFIO E A TRANSGRESSÃO .... ......... .. .............. .... .. .... . 106 Capítulo 12 - A AMBIGÜIDADE PARENTAL INDUTORA DO PROCESSO PERVERSO E O HORROR DA CASTRAÇÃO - Fragmento clínico .. .. .. .. .. .. 113 Capítulo 13 - A RELAÇÃO COM AS MULHEFES. O DESAFIO. A TRANSGRESSAO - Elementos de diagnóstico diferencial entre as perversões, a neurose obsessiva e a histeria ..... ................ .. ... 121 1. A relação com as mulheres .... ....... . .. ....... 121 2. O desafio. A transgressão .. . . .. .. .. . . .. .. .. . . .. . 129 Capítulo 14 - O ,GOZO PERVERSO E O TERCEIRO CUMPLICE - O SEGREDO E O AGIR ........... 134 Terceira Parte NAS FRONTEIRAS DAS PERVERSÕES Capítulo 15 - PROXIMIDADE E�TRUTURAL DAS PSICOSES E DAS PERVERSOES . ............. ... .......... ... .. ..... 145 Capítulo 16 - SEXUAÇÃO - IDENTipADI;; SEXUAL E AVA- TARES DA ATRIBUIÇAO FALICA .... .. .. . ... ... . . 152 1. O processo da sexuação segundo Lacan . 154 2. A identidade sexual e os avatares da atri- buição fálica ........................................... 160 Capítulo 17 - TRANSEXUALISMO E SEXO DOS ANJOS ..... 166 1. Transexualismo masculino .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. 167 2. Transexualismo feminino . .. .... ... ...... .. . .. .. . 177 Conclusão: PERVERSÃO E MULHERES PERVERSAS....... ..... 183 Bibliografia .. .. .. . . .. .. .. . .. .. . .. .. .. . .. .. .. . .. .. .. . .. .. .. . .. . . .. . . . . . .. . . . .. .. .. . .. . .. .. 189 Índice onomástico ......... .............. ... ............... .. .......... .......... . .... 192 Índice terminológico . .... ..... ........ ................... ..... .. ... ... ........ ...... 194 Introdução Normalmente "desencaminhada" pela informação ordinária da mídia, a noção de perversão comprometeu-se, há muito tempo, em um uso ilegítimo. O seu charme é, no máximo, o de lembrar ao espíri to algumas subordinações ideologicamente consagradas sob os auspí cios da depravação dos costumes, sem os quais ela não poderia conti nuar a exercer o poder de atração, até mesmo de fascínio, que lhe é comumente atribuído. Esta insolente sedução não parece todavia acompanhar o compor tamento perverso senão na estrita condição de que o desenvolvimen to deste permanece relegado à questão dos outros. Ora, não há insul to mais ingênuo do que esta defesa imaginária do observador ou do comentarista anônimo que goza o desvio perverso do outro. De fato, queiramos sabê-lo ou não, a perversão diz respeito a cada um, ao me nos em nome da dinâmica do desejo que aí se expressa e ao qual nin guém escapa: "Da questão perversa não poderemos jamais dizer que ela não nos diz respeito, certos de que estamos de que ela, de qual quer maneira, nós diz respeito. "(1)* 1 - P. Aulagnier, "Remarques sur la féminité et ses avatars", ln Le Déslr et la Per version, obra coletiva, Paris, Seuil, 1967, p. 79. 11 12 JOEL DOR Isto quer dizer que cada um aí se uê implicado da mesma forma que o próprio perverso? Certamente não, por pouco que tenhamos o cuidado de definir rigorosamente a especificidade da perversão pa ra além do amálgama ideológico que a cerca. Mas essa determinação - se é salutar - supõe, em contrapartida, que tenhamos a medida exa ta do "núcleo perverso" que coexiste na própria dimensão de todo desejo. Somente este esclarecimento é suscetível de dar ao processo per verso um espaço coerente de inteligibilidade ao mesmo tempo teóri co e clínico: o campo psicossexual. Neste caso, não parecem existir perversões senão perversões sexuais propriamente ditas; exceção que encontra sua justificativa mais legítima pelo único fato de que a gêne se das perversões deve ser inscrita no próprio seio da "sexualidade dita normal" (Freud). Circunscrever a compreensão do processo perverso à luz dessa inscrição, é conferir às perversões uma identidade de estrutura que ultrapassa a simples ocorrência da hipótese psicopatológica. Prova disso, a comiseração etiopatogênica que adere ainda com facilidade à indulgência da avaliação psiquiátrica quando se compraz sempre a consagrar uma entidaqe tão mítica quanto as "perversões constitucio nais". Subtrair as perversões às influências persistentes de tal reducio nismo psicopatológico exige que já esteja claramente elucidado o pro blema da estrutura psíquica e traços estruturais em perspectiva da ava liação diagnóstica, tais como são oferecidos à experiência da clínica psicanalítica. Dar conta da lógica estrutural do processo perverso impõe tam bém reexaminá-lo no próprio início da reflexão freudiana. De um la do, muito geralmente, nos arcanos metapsicológicos que governam o processo pulsional do desenvolvimento psíquico, até esse vencimen to quando se resolve, para todo sujeito, o enigma da diferença dos se xos. De outro, de modo mais preciso, na intricação edipiana dosanta gonismos do desejo, onde pode se determinar um ponto de ancoragem das perversões, sob a influência de elementos indutores inerentes ao jogo fálico que regula necessariamente o curso dessa dialética. No limite de uma investigação tão aprofundada, torna-se possí vel isolar alguns traços estruturais que fixam incontestavelmente, com "' O texto em francês é: "De la question perverse nous ne pourrons jamais dire qu 'elle ne nous regarde pas, surs que nous somes qu'elle, de toute façon, nous regar de." Como o verbo regarder pode significar tanto olhar como dizer respeito a, há aí um jogo de palavras que não pôde ser transposto sem perda da intenção do au tor. (N. da T.) ESTRUTURA E PERVERSÕES 13 o maior rigor, a especificidade da estrutura perversa. Em conseqüên cia, uma discriminação diferencial radical pode assim ser estabelecida face a outras manifestações sintomáticas suscetíveis de se prestar ao equívoco diagnóstico no campo da prática. No plano clínico, se a elucidação metapsicológica do processo perverso torna, por outro lado, compreensível a proximidade estrutu ral de certas organizações psicopatológicas (psicoses e transsexualis mo), nem por isso deixa de definir a linha divisória que confirma a au tonomia das perversões em relação a estas. Indiretamente, o proble ma colocado pela existência hipotética das perversões femininas encon tra-se igualmente esclarecido. Em lugar de pretender a uma certa originalidade teórico-clínica, importava mais, nesta retomada da questão das perversões, reunir uma pluralidade de materiais freqüentemente esparsos na própria obra freudiana, a fortlori disseminados em seus sucessores. A lógica desta apresentação deveria ao menos permitir a indução de uma certa coerência na abordagem dessa organização psíquica, que não deixa jamais de mergulhar o clínico na confusão, tanto pela com plexidade de seus princípios quanto pelo caráter desconcertante de suas atualizações. Santa Lucia dl Tallano. "La perverslon a mauvaise presse. Ce qu'on évoque d'emblée, c'est la conduite aberrante, déviée, la manifestalion indéfendable d'intentlons mauvaises, l'égarement criminel qui mEme à la perdition. Qu'il y ait dans la matiere sonore du mot un "Vers le pere", qul se ra l'essentlel de cet exposé, est le plus souvent voilé par cette aura de scandale qul l'accompagne."* RENÉ TOSTAIN** • O autor faz aqui um jogo de palavras visto que se encontra foneticamente inseri do em perverslon (per) a palavra pere (pai). "A perversão tem má reputação. O que se evoca, de saída, é a conduta aberrante, desviada, a manifestação indefensável de más intenções, o desvio criminoso que le va à perdição. Que haja na matéria sonora da palavra um "A seu pai", que será o essencial desta exposição, é o mais freqüentemente oculto por esta aura de escânda lo que a acompanha." (N. da T.) •• René Tostain: "Essai apologétlque de la structure perverse" in La Sexuallté dans les Instltultlons, obra coletiva, Paris, Payot, 1978, p. 33. PRIMEIRA PARTE ESTRUTURA.TRAÇOS ESTRUTURAIS. ,,.,, ., AVALIAÇAO DIAGNOSTICA 1 A noção de ''avaliação diagnóstica'' na clínica psicanalítica A problemática do "diagnóstico" no campo psicopatológico mere ce ser introduzida por uma incursão canônica, isto é, um retorno a cer tas concepções clássicas lançadas por Freud já em 1895. Muito cedo, para não dizer desde o surgimento da psicanálise, Freud interrogava a questão do diagnóstico nos seguintes termos: "Quando tentei aplicar a um grande número de histéricos hipnotizados, o método terapêutico de Breuer por detecção e ab reação, choquei-me com duas dificuldades que me levaram, para resolvê-las, a modificar tanto minha técnica quanto minhas con cepções: 1) Nem todos os sujeitos incontestavelmente histéricos e muito provavelmente submetidos aos mesmos mecanismos são hipnotizáveis. 2) Foi-me necessário determinar o que caracterizava essen cialmente a histeria e o que a diferenciava das outras neuroses(!)." E Freud prossegue: 1 - Freud, J. Breuer: Studien über Hysterle (1985). G. W., I, 77/312. S.E., li. Trad. A. Bennan Études sur l'hystérle, Paris, P.U;F., 1967, p. 206. 17 18 JO�L DOR "É muito difícil formar uma opinião exasta de um caso de neurose antes de tê-lo submetido a uma análise aprofundada ( ... ) Entretanto, é antes mesmo de conhecer o caso detalhadamente, que nos vemos obrigados a estabelecer um diagnóstico e deter minar o tratamento(2)." Quer dizer que, desde o início de sua obra, Freud desemboscara a ambigüidade em torno da qual se colocava o problema do diagnós tico no campo da clínica psicanalítica. De um lado, observa ele, pare ce oportuno poder estabelecer precocemente um diagnóstico para de terminar o tratamento - o que hoje em dia denominaríamos mais sim plesmente: a conduta da cura. De outro, não deixa de precisar que a pertinência de tal diagnóstico não pode jamais encontrar confirmação senão após uma análise aprofundada. Toda a especificidade desse diagnóstico vê-se então na situação de um paradoxo manifesto. Nestas condições, como associar o cará ter operatório do diagnóstico à sua determinação relativa de impreci são? Uma olhada no domínio da clínica médica propriamente dita já pode permitir a elucidação de alguns aspectos dos problemas ineren tes ao diagnóstico. Na clínica médica, o diagnóstico é, antes de tudo, um ato que obedece a duas funções. Trata-se, em primeiro lugar, de efetuar uma discriminação baseada na observação de certos slfiais-especfficos (se niiologia). Em segundo, trata-se de pôr em perspectiva o estado pato fõ'gtco assim especificado, em relação a uma classificação devidamente çodificada (nosografia).. Um d�griôstico médico parece portanto sem pre subordinado à ordem de uma referência etiológica (diagnóstico ·etiológico) e à ordem de uma referência diferencial (diagnóstico dife rencial). Por outro lado, um diagnóstico médico permite, na maioria das vezes, avaliar não somente o prognóstico vital ou funcional da enfer midade, mas ainda a escolha do tratamento mais apropriado. Para is to, o médico dispõe de um arsenal de investigação que se desdobra simultaneamente em duas orientações complementares: uma investiga ção anamnésica destinada a recolher os fatos comemorativos da enfer midade; uma investigação "montada" centrada sobre o exame direto do paciente por meio de mediadores instrumentais, técnicos, biológi cos, etc. Essa dupla investigação colige o conjunto das informações necessárias para definir o perfil especificamente isolável da afecção patológica. 2 - S. Freud, lbld., p. 206 (sublinhado por mim). ESTRUTURA E PERVERSÕES 19 No campo da clínica psicanalítica, tal modo de diferenciação é de_ infc:io inv�lidado. A impossibilidade é de fato nesse sentido justifica da pela próprià estrutura-do sujeito. o analista' dispõe apenas de uma únicí;l técni_Çé:l _de investigação: ,a escuta, o que torna ultrapassada toda idéia de investigação montada. Como o material clínico trazido pelo paciente é um materia��ssen�Lalmente verbal, o campo de investiga ção clf nica fica então. circunscrito de saída à dimensão de um dizer e de um dito radicalmente submetidos aos a:vatares do imaginário e da ''mentira'"'. Imaginário, visto qu� é_gr.aç_c;!�_élo disq..1rso que vem articu lar-se subrepticiamente o desenvolvipi.ento fantasmático. Mentira, já que é através da fala que o sujeito testemunha da melhor maneira a cegueira que lhe é própria quanto à verdade de seu desejo. Daí o mal entendido que sustenta o sintoma na consistência de seu travestimento. Subtraído ao registro dos dados empíricos objetivamente controlá veis, tal diagnóstico não parece dever resultar senão de uma avaliação essencialmente subjetiva que apenas pode se ordenar apoiando-se no discurso do paciente e na subjetividade do analista à escuta. Quer dizer, com isso, que nesse campo intersubjetivo, não existe nenhum ponto de referência estável? Somos obrigados, por estarazão, a um espaço de inter-ações puramente empáticas? Se tal fosse o caso, o domínio de investigação psicanalítica não seria outro senão um cam po de influências e de estratégias sugestivas. Ora, bem sabemos que a psicanálise somente conseguiu definir sua especificidade porque Freud soube extrair a intelecção dos processos psíquicos no domínio da su gestão. Tudo leva então a supor que uma certa topografia das afec ções psicopatológicas pode ser legitimamente posta em evidência. O substrato de uma semelhante topografia baseia-se na possibili dade de uma orientação que só pode se estabelecer em relação à cau salidade psíquica e ao cortejo dos processos imprevisíveis que engen dra sob o domínio do inconsciente. Antes de tudo, a relação que exis te entre um diagnóstico e a escolha de um tratamento não parece po der então depender de uma relação causal habitual, no sentido em que esse modo de implicação lógica é justamente comum na clínica médica. Relembremos as pródigas reservas de Freud em seu estudo, So bre o Início do tratamento: "A extrema diversidade das constelações psíquicas, a plastici dade de todos os processos desta ordem, o número significativo dos fatores determinantes, opõem-se a uma mecanização da técni ca e fazem com que um procedimento normalmente vantajoso 20 JO!L DOR possa às vezes tornar-se inoperante, enquanto que um método geralmente defeituoso dá o resultado desejado(3) ." No entanto, Freud não pode deixar de precisar o ponto seguinte: "Contudo, essas circunstâncias não devem nos impedir de estabelecer ( . . . ) uma linha de conduta geralmente bem apropria da(4) ." Tanto face à elaboração do diagnóstico quanto do ponto de vis ta da direção do tratamento que dele depende, o analista supostamen te pode apoiar-se em elementos estáveis, apesar da dimensão intersub jetiva do espaço onde se efetua essa avaliação. Todavia, a determina ção desses elementos estáveis requer a maior vigilância. Se a orienta ção do tratamento depende disso, seu sucesso terapêutico encontra se aí igualmente suspenso. De onde o perigo da psicanó/fse selvagem firmemente desacreditada por Freud. Em um pequeno estudo consa grado a esse propósito(S), Freud evoca, através de uma brilhante i lus tração, não somente a prudência requerida para o estabelecimento do diagnóstico, mas também o perigo de qualquer intervenção que - se apóie em um diagnóstico objetivamente causalista instituído como um diagnóstico médico. Este fragmento clínico lembra o caso de uma senhora de mais ou menos cinqüenta anos que consulta um jovem médico por causa da persistência de estados ansiosos. Parece-lhe que suas crises de an siedade apareceram sobretudo após seu divórcio. O jovem médico que tinha conhecimentos superficiais de psicanálise, indica-lhe imedia tamente a causa através de uma explicação, por assim dizer, abrupta. A ansiedade de sua paciente não seria nada além de uma conseqüên cia direta de sua privação de toda relação sexual com homens. A tera pêutica que lhe propõe, então, vem inscrever-se em um a relação de implicação lógica com a causa da afecção. Para restabelecer-se, formu la-lhe três prescrições possíveis: "Volte para seu marido"; "Consiga um amante"; ou "Masturbe-se!" . Como é normal, a prescrição tera pêutica imprudente produz o efeito esperado: o estado ansioso da se nhora piora! Ela decide então consultar Freud. 3 - S. Freud, Zur Einleitung des Behandlung (1913). G.W., VIII, 454/478. S.E., XII, 121/144. Trad. A Berman: "Le début du trlatement", ln La Technlque Psychanalytl que, Paris. P.U.F., 1975, pp. 80-81. 4 - lbld. , p. 81. 5 - S. Freud, Uber "wilde" Psychanalyse (1910) . G.W., VIII, 118/125. S.E., XI, 219/227. Trad. A Berman, A propos de la psychanalyse dite "sauvage", ln La Tech nlque psychanalytlque, op. cit., pp. 35-42. ESTRUTURA E PERVERSÕES 2 1 Por mais caricatural que seja, esse pequeno exemplo é totalmen te instrutivo. Especifica, com efeito, de modo muito nítido, a diferen ça que existe entre o diagnóstico médico e o diagnóstico tal como po de ser elaborado na clínica psicanalítica. Igualmente permite apreen der a singularidade da articulação que se impõe entre o diagnóstico e a escolha do tratamento. Nesse exemplo relatado por Freud, o erro de diagnóstico é notório. O problema é menos de saber se esse jovem médico conhecia suficientemente ou não os princípios da psicanálise, do que examinar segundo que tipo de procedimento organizou-se seu ato diagnóstico. Freud observa imediatamente que o médico cometeu, sem o sa ber, dois erros. Por sua prescrição brutal, antecipou, primeiramente, uma das dimensões essenciais que contribuem para o prognóstico tera pêutico: a transferéncia, fator preponderante na dinâmica de uma in tervenção analítica. Em vez de fazer dela uma aliada, o médico explo rou a transferência no sentido de um instrumento de resistência tera pêutica. Como, insurge-se Freud, "o médico pôde crer que uma mu lher de mais de quarenta anos ignora que é possível ter um amante, ou então ele superestimou sua própria influência a ponto de acreditar que ela não se decidiria nunca, sem a aprovação médica, a dar um tal passo(6)"? O segundo erro cometido por esse médico, concerne diretamente o processo que preside o estabelecimento do diagnóstico como tal. Seu caráter é exemplar no sentido em que ilustra exatamente a condu ta que não se deve ter jamais na clínica psicanalítica: o procedimento hipotético-dedutivo. Essa conduta, que permanece sempre governada pela relação lógica de causa e efeito, não pode encontrar, na psicanáli se, a aplicação que lhe é habitualmente dada nas ciências exatas . No exemplo citado, o jovem terapeuta inexperiente estabelece de saída uma relação direta de causa e efeito entre a angústia e a problemáti ca sexual. Em si, uma tal relação não é inadequada, já que sabemos, com Freud, que algumas manifestações neuróticas como a angústia po dem justamente depender do "fator somático da sexualidade". Mani festamente, é baseado em uma semelhante relação que esse médico conclui de modo precipitado seu diagnóstico e sugere uma terapêuti ca que corresponde a essa relação de causa e efeito. E "em semelhan te caso - indica Freud � o médico naturalmente vai aplicar uma tera pêutica atual mo�éando a atividade física de ordem sexual e tem ra zão de agir a�im se seu diagnóstico for exato(7)". 6 - S. Freud, A propos de la psychanalyse dite "sauvage", op. cit. pp. 38-39. 7 - S. Freud, ibid., p. 39. 22 JO�L DOR Toda a questão é interrogar precisamente, aqui, o valor do diag nóstico. Neste caso, o erro repousa em uma precipitação do julgamen to causalista. Mais geralmente, a interpretação "selvagem" apóia-se, continuamente, em psicanálise, nesta racionalização causalista precipi tada. Sobre este ponto, o comentário freudiano é de uma grande limpidez: "A senhora, ao consultar o jovem prático, queixara-se sobre tudo de estados ansiosos. Ele concluiu provavelmente por isso que ela sofria de uma neurose de angústia e acreditou estar cer to ao lhe recomendar um tratamento somático. E eis, mais uma vez, um conveniente equívoco! Uma pessoa que sofre de ansieda de não sofre forçosamente de uma neurose de angústia. O diag; nóstico não deve ser estabelecido sobre uma denominação. E preciso conhecer as manifestações de uma neurose de angústia e saber distinguf-las de outros estados patológicos onde também surge a angústia. A senhora em questão sofria, em minha opi nião, de uma histeria de angústia e tudo que valoriza essas distin ções nosográficas, o que as justifica, repousa sobre o fato de que atraem nossa atenção sobre uma outra etiologia e uma outra tera p�utlca. Aquele que tivesse considerado a possibilidade de uma histeria de angústia não correria mais o risco de negligenciar os fatores psíquicos, como o fez nosso médico colocando sua pacien te diante de três possibilidades(8) ". Se os problemas da ambigüidade e da prudência diagnósticas são claramenteformulados por Freud, não é menos claro que ele igual mente insiste sobre a relação direta que liga a avaliação diagnóstica à escolha de uma conduta do tratamento. O ato psicanalítico não pode apoiar-se ex abrupto na identifica ção diagnóstica pois não se constitui jamais, em sua aplicação, como sua pura e simples conseqüência lógica. Bem sabemos que se este fos se o caso, disporíamos, a exemplo de todas as disciplinas médicas, de tratados ou obras de terapêutica analítica. No exemplo evocado por Freud, o erro "técnico" principal con siste, antes de tudo, em supor o ato analítico como um ato médico. A propósito desta confusão, as reservas enunciadas por Freud são, novamente, muito preciosas: "Há muito tempo deixamos de crer, como as aparências su perficiais haviam-nos sugerido, que o paciente sofria de uma espécie 8 - S. Freud, A propos de la psychanalyse dite "sauvage", op. clt., p. 39 (grifado por mim). ESTRUTURA E PERVERSÕES 23 de ignorância e que se viéssemos a dissipá-la falando-lhe das rela ções causais entre sua enfermidade e sua existência, dos aconteci mentos de sua infância, etc., seu restabelecimento seria certo. Ora, não é a ignorância em si que constitui o fator patológico, essa ig norância tem seu fundamento nas resistências interiores que a pro vocaram primeiramente e que continuam a mantê-la ( ... ) Se o co nhecimento do inconsciente fosse tão necessário ao paciente quan to o supõe o psicanalista inexperiente, bastaria fazê-lo ouvir con ferências ou ler alguns livros. Mas medidas semelhantes têm sobre os sintomas neuróticos tanta ação quanto teria, por exemplo, em período de fome, uma distribuição de menus aos famintos. ( .. . ) Toda ação psicanalítica pressupõe portanto um contato prolonga do com o paciente(9)". Reservas idênticas são reiteradas aproximadamente da mesma maneira por Freud em seu estudo Sobre o início do tratamento(lO). Agora, estamos em condições de extrair alguns ensinamentos pre liminares sobre essa noção de diagnóstico na clínica analítica. O pri meiro deles diz respeito ao caráter potencial do diagnóstico, seja um ato deliberadamente posto em suspenso e destinado a uma mudança. Reencontramos essa singularidade paradoxal cujos aspectos antagôni cos já foram assinalados: por um lado, a quase-impossibilidade de de terminar uma avaliação diagnóstica com segurança, sem se servir de um certo tempo do desenrolar do tratamento; por outro, a necessida de de circunscrever a mínima esse diagnóstico para decidir sobre a orientação a dar a esse tratamento. A potencialidade diagnóstica, fada da à mudança de uma confirmação, suspende então por um tempo to da atualização de intervenção de valor terapêutico. Esse é um segun do ensinamento do qual devemos tirar partido. Um terceiro - resulta do dos dois anteriores - fornece-nos a importância do tempo necessá rio a observar, no início de toda decisão ou proposição de tratamento. Esse tempo é aquele que é habitualmente concedido ao que Freud de signava inicialmente como tratamento de ensaio, o qual é hoje consa grado pelo uso sob a denominação de entrevistas preliminares. Não escapou a Freud que um tal tempo preliminar apresentava "a vanta gem de facilitar o diagnóstico(l l)". Mas ainda que esse tempo seja um tempo de observação, n'}m por isto deve estar inscrito, desde o iní cio, no dispositivo analítico. E nesta única medida que ele pode contribuir 9 - S. Freud, A propos de la psychanalyse dite "sauvage", op. cit., pp. 40-41. 10 - S. Freud, Le début du traitement, op. cit., p. 100. 11 - S. Freud, Le début du traitement, op. clt., pp. 81-82. 24 JO�L DOR favoravelmente para a avaliação diagnóstica e para a escolha da orien tação do tratamento. Mais uma vez mencionemos que Freud não deixou de ressaltar a necessidade desse dispositivo analítico desde as entrevistas preliminares: "Essa tentativa preliminar já constitui entretanto o início de uma análise e deve se conformar às regras que a regem; a única diferença pode ser que o psicanalista deixa sobretudo o paciente falar sem fazer comentários, apenas o que for absoluta mente necessário à continuação de sua narrativa(l2)" . A avaliação diagnóstica parece então prioritariamente sujeita à ordem do dizer, sobretudo porque não parece dever relacionar-se ao registro do dito e a seus conteúdos. Neste sentido, a mobilização impe rativa do dispositivo analítico confere à escuta a aptidão primordial de um instrumento diagnóstico que deve prevalecer sobre o saber no sogr6fico e as racionalizações causalistas. Esses diferentes ensinamentos que podem ser extraídos do cor pus freudiano, encontram uma ilustração pertinente em um dos traba lhos( 13) de Maud Mannoni que não deixa de insistir sobre essa mobi lização imediata da escuta. Ela lembra que "a primeira entrevista com o psicanalista é mais reveladora nas distorções do discurso que em seu próprio conteúdo"( l4). Por outro lado, a pluralidade de exemplos dados no corpo da obra constitui uma excelente introdução à proble mática da avaliação diagnóstica no campo da clínica psicanalítica. 12 - lbld. , p. 81 1 3 - M. Mannoni, Le premier rendez-vous avec le psychanalyste, Paris, DenoeVGon thier, 1 965. 14 - lbid. , p. 164. 2 Sintoma e diagnóstico Em toda prática clínica, é comum estabelecer correlações entre a especificidade dos sintomas e a identificação de um diagnóstico. Feliz mente, tais correlações das quais depende o sucesso de uma iniciativa terapêutica, existem muitas vezes. Todavia, um dispositivo causalista só é eficaz porque o campo responde, de uma certa maneira, a um pro cesso de funcionamento regulado ele também segundo determinações que obedecem ao mesmo princípio. Assim, quanto mais o conhecimen to desse determinismo for aprofundado, mais se multiplica o número das correlações entre as causas e os efeitos. Em compensação, a espe cificação dos diagnósticos igualmente acura-se. Se esse princípio é uniformemente aceitável em todos os horizon tes da clínica médica, é cruelmente enganoso na clínica analítica. Es sa defecção fica por conta do determinismo singular que grassa ao ní vel dos processos psíquicos sob o nome de causalidade psíquica. A causalidade psíquica procede por outras vias que não as cadeias habituais de interações de causas e efeitos, tais como as identificamos, por exemplo, ao nível das ciências biológicas. O sucesso da terapêuti ca médica permanece suspenso, em grande parte, à regularidade e à fixidez dessas ocorrências causais que intervêm ao nível do corpo. Em contrapartida, tanto quanto haja determinismo através da causalidade psíquica, não parece possível apreender semelhantes linhas de regula ridade. Em outras palavras, nenhuma organização estável entre a natu reza das causas e a dos efeitos pode ser rigorosamente notada. Torna-se 25 26 JO!L DOR então impossível estabelecer perfis de previsões idênticas àqueles que observamos nas disciplinas biológicas e, mais geralmente, médicas. No campo científico, uma previsão tem sentido apenas porque se baseia em uma lei, isto é, em uma explicação objetiva e universali zável que justifica uma articulação estável entre causas e efeitos. A causalidade psíquica não é objeto de tais leis, ao menos no que con cerne às exigências empíricas e formais que podem definí-las nas ciên cias exatas. Nestas condições, a ausência de legalidade entre as cau sas e os efeitos, e a impossibilidade subseqüente de determinações previsíveis estáveis, impõem-nos o reconhecimento de que a pslcanóli se não é uma ciência no sentido estrito e habitualmente dado a esse termo(l) . Consideremos esta primeira constatação, inerente à determina ção diagnóstica na clínica psicanalítica: não existe Inferência estóvel entre as causas psíquicas e os efeitos sintomóticos. Esse invariante merece que aí nos detenhamos pelo menos porque inscreve-se de en contro ao funcionamento habitual de nossos processos mentais. Quei ramos sabê-lo ou não, pensamosaté mesmo consideramos nós pró prios - em uma ordem de racionalidade cartesiana. Somos assim es pontaneamente levados a estruturar nossas explicações segundo or dens de pensamentos lógicos que não profundamente causalistas no sentido do discurso da ciência. Recusar essa ordem de pensamentos por implicações lógicas, constitui sempre um esforço particular a pro duzir no início do trabalho psicanalítico. Sob pretexto de que é necessário poder se desprender da racio nalidade lógica, o trabalho psicanalítico não é por isso abandonado ao sabor das fantasias de cada um. Nem tudo nele é possível e seu sucesso permanece sujeito a certas exigências do rigor, ao menos aque las que nos impõem seguir o fio do dizer daquele que se escuta, se queremos infalivelmente apreender algo da estrutura do sujeito sobre o quê apoiar a avaliação diagnóstica. Supondo que possamos validar uma hipótese diagnóstica a par tir da ocorrência concreta dos sintomas, admitimos implicitamente a atualização de uma relação de causa e efeito irredutível. Veremos que isso equivale a fazer a economia radical de toda a dinâmica própria ao inconsciente. A prática clínica ensina-nos que a relação que une o sintoma à etiologia da afecção que o produz, é intermediada pelo 1 - As razões que Invalidam a psicanálise no ramo das disciplinas científicas, são apenas conseqüências lógicas derivadas de um princípio epistemológico intrínseco ao próprio objeto da psicanálise. Levanto essa questão em uma obra a ser publica da: L'a-scientificité de la psychanalyse*. * A a-científicidade da psicanálise: a ser publicado brevemente pela Editora Artes Médicas. ESTRUTURA E PERVERSÕES 27 conjunto dos processos inconscientes. A correlação entre um sintoma e a identificação de um diagnóstico supõe, a mínima, a atualização de uma cadeia de processos intrapsíquicos cuja dinâmica não se movimen ta no sentido de determinismo causal comum. Qualquer mecanismo do processo primário dá-nos uma prova in contestável dessa lógica desconcertante dos processos inconscientes. Examinemos, a título de exemplo, o destino particular do processo pul sional que Freud designa retorno sobre a própria pessoa e o qual justi fica da seguinte maneira na Metapsicologla: "O retorno sobre a própria pessoa deixa-se apreender me lhor quando se considera que o masoquismo é precisamente um sadismo voltado para o Eu-próprio e que o exibicionismo inclui o fato de olhar seu próprio corpo. A observação analítica não dei xa nenhuma dúvida neste ponto: o masoquista goza, ele também, o furor dirigido contra sua própria pessoa, o exibicionista partilha o gozo daquele que o olha desnudar-se(2)" . Se uma atividade sintomática como o sadismo supõe essa lógica contraditória do retorno sobre a própria pessoa, a própria natureza desse processo descrito por Freud invalida de fato a idéia de uma rela ção causal direta entre um sintoma e um diagnóstico. Esse primeiro argumento exige ser desenvolvido ainda mais. Supo nhamos que essa lógica contraditória seja uma lógica estável ao nível dos processos inconscientes; neste caso, poderíamos considerar os pa res de opostos: sadismo/masoquismo e exibicionismo/voyeurismo co mo equivalências fixas. Mesmo graças a essa hipótese, não estamos sempre em condições de inferir um diagnóstico seguro a partir dos sin tomas. Admitamos que a atividade sintomática voyeurista implica logica mente o exibicionismo. Dito de outro modo, suponhamos como acei ta a transformação no seu contrário como uma "lei fixa". Podemos, por esta razão, deduzir logicamente um diagnóstico de perversão a par tir de um sintoma como o exibicionismo? Uma vez mais, os dados da experiência clínica cotidiana não confirmam uma tal possibilidade de inferência imediata. O componente exibicionista revela-se, por exem plo, particularmente presente na histeria da maneira algumas vezes es petacular do "dar a ver" dos histéricos. 2 - S. Freud, Triebe und Triebschicksale (1915) . G. W., X, 210/232 S.E., XIV, 109/140. Trad. J. Laplanche e J. 8. Pontalis, "Pulsions et destins des pulsions", in Métapsycho logie, Paris, Gallimard, 1968, p. 26. 2 8 J O � L DOR Chegamos a reservas análogas com um outro caso típico: a ativi dade sintomática da ordem e da arrumação. Em alguns sujeitos, esse sintoma adquire proporções suficientemente inquietantes para tornar se uma verdadeira enfermidade do agir. Tradicionalmente, nas investi gações freudianas, essa particularidade de caráter que facilmente atin ge a dimensão sintomática, fica por conta do componente erótico anal que é uma disposição constitutiva da neurose obessessiva(3). Ba seando-nos nessas indicações, podemos concluir pelo diagnóstico de neurose obsessiva apoiando-nos unicamente na identificação desse sintoma? Não o podemos mais do que anteriormente, na simples medida em que esse sintoma é igualmente identificável sob urna forma muito ativa na histeria. Encontro, com efeito, um particular desenvolvimen to em algumas mulheres histéricas no registro da administração do méstica. O mais das vezes, trata-se aliás de um sintoma de emprésti mo "conjugal". Em sua disposição à identificar-se com o desejo do outro, a histérica apropria-se freqüentemente com facilidade do sinto ma de seu parceiro obsessivo. Esse exemplo novamente confirma a inexistência de urna solução de continuidade direta entre urna cartografia dos sintomas e urna clas sificação diagnóstica. Semelhante descontinuidade entre a observação do sintoma e a avaliação diagnóstica impõe-nos a recentralização do problema à luz dos processos inconscientes que jamais são objeto de uma observação direta. Essa falta de observação direta apela precisamente para a parti cipação ativa do paciente que é sempre, no campo psicanalítico, uma participação de palavras. Reencontramos assim a prescrição freudia na que figura no frontispício do edifício analítico. Se essa prescrição lembra-nos que "o sonho é a via régia que leva ao inconsciente", ti ra, na verdade, toda sua efetividade do único fato de que o sujeito é levado a fazer um discurso sobre seu sonho. Propriamente falando, 3 - S. Freud, cf. a) Character und Analeorlk (1908) G. W., VII, 203/209. S.E., IX, 167/175. Trad. D. Berger, P. Bruno, D. Guérineau, F. Oppenot: Caractere et érotismo anal, in Psycho se, Névrose et Perversion, Paris, PUF, 1973, pp. 143/148. b) Die Disposition zur Zwangneurose (1913), G. W., VIII, 442/452. S.E., XII, 311/326. Trad. D. Berger, P. Bruno, D. Guérineau, F. Oppenot: La disposition à la névro se obssessionnelle, in Psychose, Névrose et Perversion, Paris, PUF, 1973, pp. 189-197. e) Uber Triebumsetzungen, insbesondere der Analerotik (1917) G. W. , X, 402/410. S.E. , XVII, 125/133. Trad. D. Berger: Sur la transformation des pulsions particulier ment dans l'érotisme anal, in La Vie Sexuelle, Paris, PUF, 1969, pp. 106-112. ESTRUTURA E PERVERSÕES 29 a "via régia" é portanto o discurso como tal. As atualizações do incons ciente não podem ser decodificadas no arsenal da racionalidade expli cativa das deduções de caráter pseudocientífico, mas exclusivamente nas associações do discurso. Em sua perspectiva do "retorno a Freud", Lacan não deixou de insistir sobre a dimensão princeps do discurso na psicanálise, como tes temunham, por exemplo, alguns desses pensamentos formulados em: "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud": "Como até mesmo um psicanalista de hoje não se sentiria tocado pela fala, quando sua experiência recebe seu instrumento, seu quadro, seu material e até o ruído de fundo de suas incertezas? Nosso título faz entender que além dessa fala, é toda a estru tura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no in consciente(4)". Encontramos essa mesma insistência de Lacan em promover a in cidência da fala na experiência do inconsciente, durante uma outra ar gumentação desenvolvida em: "Situação da Psicanálise em 1956": "Para saber o que se passa na análise, é precisosaber de onde vem a fala para saber o que é a resistência, é preciso saber o que impede o acesso da fala ( . . . ) "Por que encobrir as questões que o inconsciente provoca? "Se a associação dita livre dá-nos acesso a ele, é por uma li beração que se compara às dos automatismos neurológicos? "Se as pulsões af descobertas são do nível diencefálico, até mesmo do rinencéfalo, como conceber que se estruturam em ter mos de linguagem? "Pois, se desde a origem, é na linguagem que se fazem co nhecer seus efeitos, seus artifícios que apreendemos depois a co nhecer, não denotam menos, em sua trivialid�de como em suas sutilezas, um procedimento linguageiro(5)". Para atingir mais diretamente a problemática do sintoma, relem bremos igualmente esta pequena fórmula do Discurso de Roma. 4 - J. Lacan, "L' lnstance de la lettre dans l'inconscient ou la raison depuis Freud" (1957), in Écrlts, Paris, Seuil, 1966; pp. 494-495. 5 - J. Lacan, "Situation de la Psychanalyse en 1956", ln Écrlts, Paris, Seuii 1966, pp. 461 e 466. 30 JO�L DOR "O sintoma resolve-se por inteiro em uma análise da lingua gem, porque ele próprio é estruturado como uma linguagem, que é a linguagem da qual a fala deve ser liberada(6)" . Se o sintoma encontra-se na mesma situação da fala e da lingua gem, parece evidente que o diagnóstico não possa mais subtrair-se a isso. Em conseqüência, o que devemos chamar de traços diagnósticos estruturais devem ser extraídos deste registro da fala. Todavia, somen te constituir-se-ão em elementos confiáveis na avaliação diagnóstica com a condição de se despreenderem da identificação dos sintomas. A identidade do sintoma reduz-se, o mais das vezes, a uma entidade clínica de trompel'oeil* um artefato que fica por conta dos efeitos do inconsciente dos quais Lacan, após Freud, lembra-nos com razão os ardis e as facécias. A investigação diagnóstica exige o apoio em um aquém do sinto ma, isto é, este espaço intersubjetivo em que Freud esforçava-se pa ra estabelecer a comunicação de inconsciente para inconsciente, atra vés de sua célebre metáfora telefônica. "O inconsciente de analista deve se comportar, em relação ao inconsciente emergente do paciente, como o receptor telefôni co em relação à resposta mecânica. Assim como o receptor re transforma em ondas sonoras as vibrações telefônicas que ema nam ondas sonoras, do mesmo modo o inconsciente do médico consegue, com o auxílio dos derivados do inconsciente do pacien te que chegam até ele, reconstituir esse inconsciente de onde emanam as associações fornecidas(? )" . Os traços diagnósticos estruturais surgem no desdobramento do dizer, como passagens significativas do desejo que se esboçam naque le que fala. Esses sinais aparecem acima como os índices que balizam o funcionamento da própria estrutura psíquica. Representam, de al gum modo, os indicadores de sinalização impostos pela dinâmica do desejo. Como veremos mais adiante, a especificidade da estrutura de um sujeito é predeterminada pela economia de seu desejo. Ora, seme- 6 - J. Lacan, Fonetlon et champ e la paroleet du langage en psychanalyse" (1953), ln Écrlts, Paris, Seuil, p. 269. • Termo técnico da pintura, já consagrado na língua portuguesa. Significa um efei to de pintura em que o espectador é levado a hesitar diante da imagem pintada. (N. da T.) 7 - S. Freud, Ratschlãge für den Arztbei der-psychoanalytischen Behandlung, (1912). G.W., VIII, 364/374. S.E. , XII, 109/120. Trad. A Berman: "Conseils aux médecins sur 1e traitement psychanalytique", ln La Technlque psychanalytlque, op. clt., p. 66. ESTRUTURA E PERVERSÕES 31 lhante economia é governada por orientações, por trajetórias estereoti padas, portanto, por certos princípios de circulação - para permane cer nas metáforas condutoras. Se concordarmos em chamar de traços estruturais tais trajetórias estabilizadas, os traços diagnósticos estrutu rais constituem marcas codificadas por esses traços da estrutura teste munhas da economia do desejo. A fim de melhor precisar o caráter operatório do diagnóstico, é então oportuno evidenciar claramente não apenas a noção de estrutu ra, mas também a distinção que existe entre sintomas e traços estruturais. 3 Sintomas e traços estruturais Ilustração de sua diferenciação em um caso clín ico de histeria 1 - ENTREVISTAS PRELIMINARES A utilização pertinente do diagnóstico no campo da clínica psica nalítica, supõe que uma discriminação rigorosa seja continuamente estabelecida entre a identidade do sintoma e a Identidade dos traços estruturais. Fora dessa vigilância constante, o clínico expõe-se a im pressionantes confusões diagnósticas que comprometem gravemente o prognóstico terapêutico. A exposição do caso clínico que se seguirá é tanto mais exem plar porque foi precisamente objeto de uma tal confusão(l ) . Desde as primeiras entrevistas, uma demarcação radical será pos ta em evidência entre a especificação de alguns traços estruturais e a identidade marcante do sintoma. 1 - Os elementos anamnésicos aqui apresentados foram isolados de um contexto psicopatológico complexo. A história dessa mulher - acidentalmente falecida desde então - não será restituída além de algumas evocações necessárias à exposição de uma ilustração "técnica" . 32 ESTRUTURA E PERVERSÕES 33 Primeira entrevista A Srta . X. , mulher de cerca de trinta anos, foi a mim recomenda da por um especialista de medicina interna, ao sair de uma hospitaliza ção. No decorrer da primeira entrevista, essa hospitalização é, aliás, a informação princeps que me passa abruptamente sem, todavia, indicar me as razões. Mas do mesmo modo que nada me tenha sido imediata mente dito, tudo me será, em contrapartida, diretamente dado a ver durante a entrevista, por meio de uma estratégia que acusa a própria expressão de um traço de estrutura - neste caso, um traço característi co da estrutura histérica. Durante a entrevista, essa jovem mulher queixa-se de um "mal-es tar" difuso, mas muito generalizado, sem que lhe pareça possível asso ciar suas manifestações a situações particulares . Nada parece ter sido oculto: tanto sua vida cotidiana e particular quanto o quadro de sua atividade profissional. Em algumas palavras, essa mulher deixa claro que não tem mais gosto por qualquer coisa que seja, quer se trate de planos, quer se trate de suas relações com os outros, próximos ou não. Tanto as pessoas como as coisas aborrecem-na profundamente e são rapidamente desinvestidas. Sobre esse fundo de abatimento neurastêni co, desespera-se por passar a quase-totalidade de seu tempo nada fa zendo, exceto entregar-se sem grande prazer a algumas ruminações di ur nas. Entretanto, entre esses devaneios confusos, um tema fantasmáti co reaparece freqüentemente de um modo compulsivo e obsessivo. Nesta cena imaginária que convoca com regularidade, um amigo vem visitá-la uma noite de improviso. Essa visita imprevista deixa-a sempre perturbada mas agradavelmente surpresa. Surpreendida em um certo abandono, instala seu amigo confortavelmente e retira-se por alguns instantes para o banheiro com a intenção de mostrar-se a ele sob uma aparência mais agradável . A cena fantasmática prossegue então, inva riavelmente, da seguinte maneira. Trancada no banheiro, compraz-se a imaginar, com um júbilo inexplicável, o que seu amigo pode pensar que está fazendo ali . Ora, muito curiosamente, o desenrolar do fantas ma, precisa ela, suspende-se sempre aí, em seu prejuízo apesar dos es forços repetidos para assegurar sua continuidade. Ao final dessa evocação fantasmática, intervenho para perguntar lhe: "Em que você pensava atrás da porta de seu consultório, na sala de espera?" Minha intervenção suscita imediatamente uma reação per feitamente característica do funcionamento histérico: um recalcamen to diretamente associado a um deslocamento. Então ela queixa-se de sentir muito calor, tira o saco e descobre antebraços muti lados com tra ços cicatriciaisalguns dos quais, bem recentes, estão ainda pincelados 34 JO�L DOR com álcool iodado. Com esses ferimentos a mim mostrados, interrom po a sessão. Por mais sucintos que sejam, os poucos materiais revelados no decorrer dessa primeira entrevista, já deixam entrever algumas indica ções preciosas face à discriminação para estabelecer entre traços estru turais e sintomas. Primeiramente, essa paciente que se apresenta sobre um fundo neurastênico, evidencia um elemento essencial que advém como mar ca diagnóstica estrutural em eco a um traço da estrutura histérica. Após me ter imediatamente informado que saíra do hospital, essa mu lher nada mais me diz e continua seu discurso com outro assunto. É como se tudo estivesse implicitamente significado nessa informação lacônica, enquanto que nada é aí expressamente designado. Dito de outro modo, dá-me algo a entender do modo de ter eu mesmo que adivinhá-lo e perguntá-lo. Esse tipo de funcionamento intersubjetivo supõe uma estratégia do desejo característica da estrutura histérica: ou seja, desejar alguma coisa da maneira de ter de fazê-lo desejar pe lo outro. De um certo modo, seu desejo tende portanto a ser o obje to de minha própria demanda. Se o histérico está sempre presente sem a( estar realmente - o que designamos comumente como o falso-semblante dos histéricos - é em razão desse traço notável da estrutura histérica que observamos quando o desejo do sujeito está sempre presente mas sob reserva de se fazer representar onde não está, delegando-se através do desejo do outro. A diferença entre um traço de estrutura e a identidade de um sin toma depende da observação de índices semelhantes. Além da plasti cidade e da diversidade dos sintomas, o traço de estrutura impõe-se como um elemento estável que anuncia uma estratégia do desejo. Do mesmo modo, podemos salientar esse traço característico da estrutura histérica através do processo de recalcamento/deslocamen to tal como se elabora na contextura da cena fantasmática, e tal co mo se atualiza após minha intervenção. Se o fantasma não é jamais senão uma mlse-en-scéne do desejo, devemos poder identificar um perfil análogo de estratégia do desejo. O fantasma presente coloca em cena um homem. Todavia essa elaboração imaginária não o convoca de qualquer maneira. Esse ho mem surge supostamente sempre de improviso. Vem apenas para mo bilizar o desejo dessa mulher de um modo imprevisível. De resto, o desenrolar do fantasma mostra que uma semelhante mobilização do desejo fica suspensa à interrogação: "O que ele espera de mim?" Co mo a mlse-en-scéne permanece totalmente particular, expressa assim apenas o modo de eleição da economia do desejo próprio ao sujeito, ESTRUTURA E PERVERSÕES 35 a qual opeJa, ainda af, sobre o aspecto de uma delegação no desejo do outro. E exatamente porque "o outro" do fantasma supostamente deseja alguma coisa em seu lugar, que essa mulher põe-se ela mesma em situação de desejar. A continuação da cena constitui uma resposta significativa a essa mobilização do desejo. Ela se eclipsa no banheiro sob o pretexto de se tornar mais apresentável. Reencontramos aí um estereótipo funda mental da histeria: a função da m6scara. Com a máscara, trata-se sem pre, para o histérico, de se colocar à distância de si mesmo, portanto de seu desejo, a fim de continuar a nada querer saber dele. O encade amento lógico do fantasma desenrola-se: entrincheirada no banheiro, compraz-se em calcular o que o outro imagina que faz lá. Apreende mos aqui uma estratégia do desejo idêntica: interrogar o desejo do ou tro com o único objetivo de saber onde est6 o seu; seja esse mesmo caso típico de alienação do desejo do sujeito através do desejo do outro. O final abrupto da cena fantasmática conhece igualmente sua ex plicação legítima na expressão desse traço de estrutura. O fantasma in terrompe-se sempre sobre esse ponto de alienação atualizando assim a suspensão do desejo característica de posição histérica. A essa suspensão correspondem, em compensação, alguns estereó tipos sintomáticos cuja expressão privilegiada insinua-se em fórmulas standard como: "Não desejo nada", "Nada me interessa", "Tudo me é indiferente" . . . . Não se poderia avaliar melhor o hiato que existe en tre o traço de estrutura e o sintoma. O sintoma é um produto de elabo ração psíquica, um produto de estrutura cuja identidade não oferece nenhuma garantia diagnóstica particular. Pode mesmo aparecer algu mas vezes como um índice perturbador na verificação dos traços estruturais. Retornemos à análise dessa entrevista no ponto de minha interven ção. Essa intervenção que pontua a evocação da cena fantasmática, contribui para recentralizar a questão do desejo nessa paciente no úni co lugar onde se apresenta: nela mesma e não no desejo do outro. Se a situação de espera atrás da porta de meu consultório metafo riza manifestamente a estrutura de seu fantasma favorito, minha inter venção não teve outro objetivo senão inverter seu modo. Ao contrário da cena fantasmática onde se interroga sobre o desejo do outro, é ago ra o outro que lhe pergunta em que ela pensava enquanto esperava. Tal intervenção somente recentraliza o lugar de aparecimento do dese jo desarmando pontualmente sua dinâmica histérica porque sobrevém como uma intrusão equivalente à questão: "De onde você deseja?" Não é preciso mais para que a resposta que recebo confirme da me lhor maneira essa dinâmica histérica. Primeiramente, o recalcamento: "Está quente aqui", diz ela, tirando seu casaco. Em seguida, o desloca- 3 6 JO�L DOR mento sobre o "corpo-sintoma" que revela antebraços machucados e feridos. À minha intervenção metafórica: "De onde você deseja", essa paciente só pode responder em uma lógica neurótica cega, dando me a ver alguma coisa de seu corpo, exibido como o fragmento sinto ma onde seu desejo está efetivamente cativo . Deseja em seu corpo ao nível dos antebraços mutilados que me mostra, confirmando esta via de assunção favorita do desejo histérico que elege uma parte do corpo sofredor. Em compensação, para remeter a questão do desejo lá onde ele está e não lá onde se aliena, renuncio a ver e convido-a a se recobrir encerrando a entrevista . Segunda entrevista A entrevista seguinte começa de um modo insólito: "Não vou apertar sua mão, estou em tratamento e não gostaria de contaminá-lo!" Além dessa cautela poder ser entendida como uma denegação radical, seu interesse essencial visa sobretudo o encetamento de uma estratégia de intriga própria a metaforizar, mais uma vez, a atualiza ção do corpo-sintoma. Enquanto minha atenção pode se encontrar mobilizada ao nível de um fragmento do corpo privi legiado (a mão), é precisamente em um outro lugar do corpo, totalmente diferente, que o véu é, de certa maneira, levantado. Por meio de uma roupa bem curta conjugada a um jogo de pernas, essa mulher mostra-me, ao sentar-se, a parte supe rior de suas pernas que apresenta traços cicatriciais de mutilação idên ticos àqueles de seus antebraços - antebraços nesse dia completamen te cobertos. Essa cena reitera a expressão do mesmo traço de estrutura ante riormente verificado: despertar a atenção do outro para pô-lo na situa ção de desejar perguntar-lhe o que ela mesma deseja fazer-lhe saber. Intervenho, então, mais uma vez, de um modo totalmente diferen te, perguntando-lhe se conhece a seguinte história judia: "Dois j udeus encontram-se em um trem, numa estação da Galícia. "Onde vais?", diz um. "À Cracóvia", diz o outro. "Que mentiroso tu és!", exclama então o outro, "Dizes que vais à Cra- ESTRUTURA E PERVERSÕES 37 cóvia para que eu acredite que vais a Lemberg, mas sei muito bem que vais mesmo é à Cracóvia. Então, por que mentir?" (2) A intervenção inesperada dessa narrativa na entrevista produz uma reação perfeitamente característica. Imediatamente, a jovem mu lher interrompe a exibição de suas pernas, que pretendia inocente, e associa em seguidasobre um fragmento de discurso durante o qual ve rifico que, em presença de um outro, ela experimenta freqüentemente o sentimento de ser banal, insípida e de não ter jamais algo de interes sante a dizer. Esse improviso dá-me ocasião de observar-lhe que é exa tamente essa a razão que a leva fazer seu corpo falar por ela. Obtenho assim uma narrativa substancial sobre esse corpo mutila do, muito além do que me mostrara. Fico sabendo que além dos bra ços e das pernas, o ventre e o seio são objetos de mutilações idênticas. Sou igualmente informado sobre sua estada no hospital onde acaba de ser tratada de uma infecção generalizada consecutiva a suas automu tilações repetidas. É, aliás, a sexta hospitalização do gênero. Com efei to, desde a idade de dezessete anos, não deixou de se mutilar sem com preender as razões desse impulso mórbido que surge sempre de um modo irreprimível e segundo uma cena estereotipada . O sintoma de automutilação surgiu inauguralmente após um inci dente que permaneceu perfeitamente incompreensível e sem nenhum elo lógico perceptível com ele. Quando tinha dezessete anos e assistia a uma aula, na escola, sentiu-se bruscamente muito angustiada. I nca paz de dizer uma palavra, não pôde impedir-se de urinar e desfaleceu imediatamente após. O mal-estar durou alguns minutos e tudo voltou, parece, ao normal. Voltando para casa, algumas horas mais tarde, pre cipitou-se para o banheiro e, após se ter desnudado completamente, cortou o seio direito com uma lâmina de barbear. Totalmente fora de si, não sentiu nenhuma dor. Em compensação, quando o sangue come çou a correr, experimentou uma sensação de bem-estar inabitual que se prolongou até o final dessa mini-hemorragia. Totalmente esgotada, tomou um banho e deitou-se em seguida para dormir durante longas horas. Desde então, o sintoma repete-se segundo um cenário sempre idên tico, alguns dias várias vezes, mas em pontos diferentes do corpo. Além das hospitalizações em conseqüência das síndromes infeccio sas graves, essa paciente salienta-me igualmente algumas estadas em 2 - S. Freud, "Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten" (1905) G. W., VII, 31/125. S.E., VIII, Trad. M. Bonaparte/M. Nathan, Le mot d'esprit et ses rapports avec /'inconscient, Paria, Gallimard, 1930, pp. 188-189. 38 JO�L DOR "casa de repouso". Confiar-me-á, mais tarde, que as "casas de repou so" eram, na verdade, clínicas psiquiátricas onde estivera hospitaliza da diversas vezes com um diagnóstico de esquizofrenia. Se duas entrevistas foram necessárias para que esse sintoma se encarnasse em uma história, articulando seu surgimento e sua repeti ção, será preciso mais de um ano de tratamento para que ele caduque, liberando assim sua significação sobredeterminada por uma surpreen dente dinâmica histérica. Alguns meses mais bastarão para elucidar a "escolha" de sua organização privilegiada sobre o modo de automu tilação. 2 - RELA TO DA CURA A evocação do minucioso trabalho analítico efetuado por essa paciente durante seu tratamento não apresentaria muito interesse, se não estivesse destinada a evidenciar a sinergia dos processos que in tervieram eletivamente na construção do sintoma, de um modo surpre endente. Ora, é precisamente esta dinâmica intrapsíquica - fosse ela simplesmente restituída em um relato - que permite ilustrar da me lhor maneira, no presente caso, a disparidade entre a consistência do sintoma e a prevalência dos traços estruturais. Essa ilustração é tanto mais exemplar porque não é, aliás, tão freqüente observar nos tratamentos como o paciente consegue com tanta nitidez e rigor, res gatar todos os lineamentos anamnésicos que presidiram efetivamente a elaboração de seu sintoma. No contexto dessa ilustração clínica, relatarei evidentemente ape nas os materiais que se revelaram, só depois, a posteriori, decisivos no processo de elaboração do sintoma de automutilação. Esses dife rentes materiais são ou construções fantasmáticas, ou recordações, algumas das quais, recalcadas, reapareceram na dinâmica do tratamento. O primeiro desses elementos decisivos é uma lembrança comple tamente esquecida que voltou rapidamente, desde o início do trata mento. Trata-se de uma cena bem insólita da qual essa mulher foi es pectadora acidentalmente quando tinha cerca de quinze anos. A cena passa-se por ocasião de um estágio de esqui que fazia com adolescentes de sua idade. Uma noite, sai de seu quarto e vai até a recepção do hotel para telefonar. Não há ninguém lá mas, em contra partida, surpreende risos e gritos que escapam da copa. Não pode deixar de olhar pelo buraco da fechadura e torna-se assim testemu nha de um jogo singular organizado entre uma monitora e vários mo- ESTRUTURA E PERVERSÕES 39 nitores de esqui . A monitora, de macacão de esqui , tem os olhos venda dos. Cada um por sua vez, os monitores rodeiam-na e jogam creme chantilly em seu corpo com uma bomba que passam de mão em mão; receosa de ser surpreendida em uma observação indiscreta, volta rapi damente para o quarto. Curiosamente, a jovem adolescente reterá dessa cena apenas um único detalhe perturbador: o macacão vermelho da monitora, bem jus to, onde escorre o creme chantilly. Ao menos aparentemente, a conota ção eminentemente sexual do jogo escapa-lhe por inteiro. Reencontramos aqui um dos traços característicos da estrutura h is térica já assinalado: o processo conj unto de recalcamento e de desloca mento. Manifestamente onde essa jovem adolescente é mobilizada pe la metáfora sexual do jogo, ela recalca de saída a conotação sexual em benefício de uma fixação sobre um traço que se revelará mais tar de como um traço identificatório. Não se pode encontrar melhor exem plo do processo identificatório descrito por Freud sob o termo identifi cação a um traço unário(3 ), ou identificação ao traço unário, para reto mar a denominação de Lacan. Mencionemos que essa identificação ao traço unário é um processo identificatório privi legiado na histeria. A volta dessa lembrança no tratamento vai precipitar a associação de várias outras evocações determinantes em relação a esse estágio da esqui. Três acontecimentos aparentemente "inocentes" e sem elos lógicos entre si reaparecerão assim. De um lado, lembra-se do prazer inabitual que sentiu, durante es sa estadia, em tomar inúmeras duchas durante as quais deixava a água correr lentamente sobre seu corpo. Por outro, rememora a inexplicável simpatia que sentiu por essa monitora durante todo o tempo de seu estágio de esqui . É claro que se trata aqui de um fenômeno identificatório inconsciente que se mani festa como um traço estrutural notório. A evocação da terceira lembrança que surgirá mais tarde, distin gue-se das duas anteriores por sua conotação diretamente sexual . Uma manhã, ao despertar, surpreende a estagiária com quem divide o quar to acariciando os seios diante de um espelho com um prazer manifes to. Um pouco surpresa pela audácia de sua companheira, finge dormir esperando que ela pare. Será necessário o espaço do tratamento e a dinâmica da transfe rência para que esses diversos elementos, esquecidos como aconteci- 3 - S. Freud, Massenpsychologie und lch-Analyse (1921) . G. W., Xlll, 13/61 . S.E. , XVIII, 65/143. Trad. Jankelevitch/Hesnard: "Psychologie des foules et analyse du moi", in Essa is de Psychanalyse, cf. cap. "identification", Paris, Payot, 1970, pp. 85/175. 40 JOEL DOR mentos sem importância, reencontrem o exato papel que lhes cabe em sua participação ativa no processo sintomático. Posteriormente, uma outra lembrança reaparecerá durante uma sessão. A cena acontece em sua casa, uma noite. Enquanto assiste a um programa na televisão, é tomada por um acesso de riso de tal mo do irreprimível, que se lembra com clareza de não ter podido domi nar uma emissão de urina. Muito singularmente, será somente algu mas sessões mais tarde que poderá dar um conteúdo a essa evocação rememorando a seqüência da televisão.Tratava-se de um prestigita dor que imitava o ritual eucarístico da missa . O "cômico" derramava um frasco de vinho em um cálice, engolia-o, fingia sufocar e, em uma eructação espetacular, tirava um termômetro da boca. A restituição de uma outra lembrança importante efetuar-se-á alguns meses depois, entre duas sessões . Tinha em torno de dezesseis anos. Enquanto punha roupa de banho no vestiário da piscina, lem brou-se de ter ouvido a voz de um homem que a interpelava através da porta, nestes termos : "Se você quer fazer amor, venha à portaria!" Abrindo a porta alguns segundos depois, não viu ninguém. A situação era de tal forma surpreendente que supôs, por um instante, ter aluci nado essa voz. Um pouco mais tarde, ao sair da piscina, sentiu-se muito tranqüilizada ao constatar que uma mulher loira ocupava a por taria. Em seguida, por diversas vezes durante suas idas à piscina, ima ginou a mesma cena. Mas o júbito complacente que abrigava nesse fantasma terminava sempre por um pouco de decepção na medida em que sua realização não acontecia. Após um ano de tratamento, mais ou menos, a evocação de uma nova lembrança vai orientar o trabalho analítico de uma maneira de cisiva . Tudo se passou como se a série de acontecimentos com os quais se relacionava, parecesse ter cristalizado, em uma lógica signifi cante inconsciente, o conj unto dos materiais já sobredeterminados das lembranças anteriores. Essa lembrança remetida a uma cena da qual fora protagonista algum tempo antes do surgimento do sistoma de automutilação. Sem tê-lo propriamente esquecido, a lembrança que tinha dele era de um acontecimento reconstruído. Foi preciso várias sessões para que con seguisse reformulá-lo com uma certa exatidão. Em um primeiro momento, evocou o acontecimento da seguinte maneira: a cena passa-se na casa de uma de suas amigas, de cerca de vinte anos, por ocasião de uma festa. Durante a noite, após ter dançado, vai ao banheiro para retocar a maquiagem e o penteado. A porta está fechada, mas pressente uma atmosfera de disputa na pe ça fechada onde um homem e uma mulher parecem discutir acalorada mente. Ela acredita, porém, identificar a voz de sua amiga. Pega de ESTRUTURA E PERVERSÕES 41 surpresa por esse acontecimento inesperado, fica confusa, sem ouvir nada e pregada no chão, tomada de espasmos abdominais . Ao final de alguns segundos, passado o mal-estar, pôde se afastar. Em um segundo momento, a evocação dessa lembrança enrique ce-se com alguns detalhes extras. Não somente a mulher que ela ouvi ra, devia agora chorar ou gemer, mas também o homem que a acompa nhava intimava-a vivamente para que se calasse: Não tão forte ou não tão forte assim . Tais são as palavras surpreendidas que parecem ter suscitado seu mal-estar e seus espasmos abdominais. Mas tanto pôde pensar fugidiamente que esse casal fazia amor, quanto convenceu-se imediatamente que se tratava apenas de uma disputa. Quanto aos es pasmos abdominais, entendeu, só depois, que tivera provavelmente ali seu primeiro orgasmo do qual parece que não tinha, na época, nenhu ma experiência. Esse momento do tratamento foi decisivo. Minuciosas investiga ções associativas puderam evidenciar como alguns significantes tinham sido seletivamente trabalhados pelo inconsciente em uma combinatória de substituições metafóricas e metonímicas sucessivas, induzindo a cris talização patológica do sintoma de automutilação. No exemplo presente, uma tal atividade obscura do inconsciente ilustra da melhor maneira, como iremos ver, a diferença entre um tra ço de estrutura e um sintoma. Se o sintoma, em seu "estar-aí" é, por natureza, puramente contin gente, há sempre uma certa necessidade na elaboração inconsciente que trabalha em sua produção. Dizer que a natureza do sintoma é rela tivamente cega, é reconhecer que não existe necessidade lógica entre sua identidade e a expressão do desejo que aí se encontra alienada. Em compensação, as estratégias utilizadas pelo sujeito, sem saber, na construção sintomática, não são jamais estratégias cegas. Essas estraté gias obedecem a uma estrutura. Mais precisamente os traços da estrutu ra podem ser identificados a partir desse trabalho estratégico . Sabemos que o sintoma é antes de tudo uma forma de realização de desejo. Como a especificidade da estrutura utiliza então alguns ma teriais significantes, para servir uma realização de desejo inconsciente? Nesse caso clínico, a realização do desejo induzira duas formações do inconsciente notáveis: um fantasma obsessivo, um sintoma de auto mutilação. Além dessas formações do inconsciente, é possível cir.cunscrever, a partir do material significante, os diversos traços de estrutura que pre sidiram a mobilização de certas estratégias características desse caso de histeria. 42 JO�L DOR Os dois primeiros materiais significantes que parecem ter intervin do seletivamente na construção do sintoma são os seguintes: de um lado, o macacão de esqui vermelho e muito justo; de outro, o creme chantilly lançado por homens sobre o corpo de uma mulher. A cena onde esses dois elementos aparecem foi imediatamente vivida como uma metáfora de prazer sexual. Por esta razão, foi em seguida recalca da em sua conotação sexual . Subsistirá, no máximo, o caráter lúdico e incongruente do acontecimento: homens divertindo-se ao brincar com uma m ulher de macacão de esqui em uma cozinha. Nesse processo, identificamos uma característica de funcionamen to da estrutura histérica: a neutralização do afeto sexual sobre o mo do do recalcamento e do deslocamento. A maior parte do tempo, é em proveito do irrisório que se efetua esse deslocamento. Por outro lado, encontramos em execução um outro componente da problemáti ca histérica: o processo de inversão dos afetos sexuais. Tanto o sujei to histérico tende a reduzir ao desdém a inscrição de uma situação autenticamente sexual, como pode furiosamente erotizar uma situação que não é de início sexual. Essa alternativa, quase inevitável na econo mia dessa estrutura, explica-se antes de tudo pelo modo de inscrição específica do histérico em relação à função fálica. Em conseqüência, podemos determinar nesse processo, além de todo sintoma, a identifi cação notável de um traço estrutural. Aqui , o acontecimento da cozi nha é radicalmente deserotizado, mas a carga do afeto erótico nem por isso deixa de subsistir inconscientemente ligada a certos elemen tos significantes. O macacão de esqui bem j usto constitui-se assim co mo o s ignificante da revelação do corpo nu encenado diante dos ho mens e oferecido ao suporte metafórico do esperma, significado pelo creme chantilly. A cena inscreve-se em sua conotação sexual inconsciente em tor no desses significantes. Como tal, poderá continuar a mobilizar a ex citação sexual recalcada do sujeito. Não é portanto muito surpreendente, a seguir, constatar que o suj eito surpreende-se gozando um prazer até o momento desconheci do. Ela deixa a água correr lentamente sobre seu corpo durante as duchas . Reencontramos, aqui , o segundo aspecto do traço histérico anteriormente evocado: o processo de deslocamento. Contudo, esse deslocamento merece ser precisado, a fim de ser apreendido seu com ponente tipicamente histérico. Por intermédio desse deslocamento, é a partir de agora o sujei to que goza em fazer escorrer alguma coisa sobre seu corpo nu. Isto supõe a operacionalização de uma identificação inconsciente - aqui, identificação inconsciente com a monitora que parecia, ela própria, sentir grande prazer em sua brincadeira com os homens. No caso em ESTRUTURA E PERVERSÕES 43 questão, o deslocamento é veiculado por um traço identificatório sobre o fundo de uma identificação ao traço unório. Por esta razão, e por es ta razão somente, o recalcamento/deslocamento revela incontestavel mente um traço da estrutura. Em outras estruturas, o mecanismo de re calcamento/deslocamento não é necessariamente dialetizado por um processoidentificatório. Conseqüentemente, a monitora torna-se-lhe presentemente simpática sem que possa explicá-lo: a monitora é incons cientemente ela que goza sexualmente. Neste nível, já apreendemos como certos significantes seleciona dos associam-se entre si e constituem uma cadeia que inaugura, sem o conhecimento do sujeito, uma significação original. A associação do "macacão/corpo nu" e do "creme chantilly/esperma" contribui para transformar o derramamento sobre o corpo em um produto de conden sação significante do coito com um homem. O significante "banheiro/toalete" vai igualmente intervir de uma maneira preponderante nessa associação significante. Torna-se o signi ficante do lugar onde essa mulher pode a partir de agora gozar metafo ricamente com um homem tomando duchas. Em uma das outras cenas anteriormente evocadas, podemos pros seguir do mesmo modo a determinação dos significantes . Quando sur preende sua colega de quarto acariciando os seios, uma nova inscrição inconsciente constitui-se. A partir do momento em que uma mulher go za sozinha supondo a outra adormecida, o significante selo vem emba ter a cadeia dos significantes anteriores . O seio inscreve-se não apenas como significante de um gozo possível, mas também de um gozo que uma mulher pode se conceder sem um homem. Por outro lado, ele se associa igualmente à conotação particular desse gozo que consiste em gozar sem ser vista. Pode-se então supor, a partir desse acontecimen to, que se operou uma seleção significante para vir inscrever o limite da intimidade do gozo . O sono intervém aqui como um anteparo que dissimula o prazer de uma em relação a outra . Retroativamente, esse significante antepa ro* pode então repercutir com o conteúdo das cenas anteriores. Encon tramo-lo presente tanto com a porta atrás da qual a monitora goza em companhia dos homens, quanto com a porta do banheiro atrás da qual ela própria se abriga para procurar atingir metaforicamente o mes mo objetivo. Na cena seguinte - a seqüência da televisão - vários outros signi ficantes vêm ainda associar-se inconscientemente de um modo determi nante. A seqüência da televisão desdobra-se em três momentos: l) o • Signifiant écran, tem o mesmo sentido tradutivo que souvenir-écian, recordação en cobridora, um conceito fundamental em Freud. 44 JOEL DOR vinho da missa é bebido; 2) o prestigitador sufoca-se; 3 ) ele vomita um termômetro. Nessa encenação de comiquetroupier** , é primeira mente o s ignificante "vermelho" (a cor do vinho da missa, tinto) que é selecionado. A este associa-se por condensação o significante do pê n is em ereção metaforizado pelo termômetro que surge da boca. A constituição da cadeia dos significantes inconscientes comple ta-se então da seguinte maneira: se o significante da ereção é desde já associado ao significante "vermelho", faz metonimicamente eco ao significante do corpo da mulher que goza de macacão vermelho. Gozar com um homem torna-se então inconscientemente metaforiza do pelo significante "vermelho" que se associa, por sua vez, ao derra mamento sobre o corpo. Quanto ao acesso de riso irreprimível, é a matéria significante do desejo e da chegada do orgasmo que encontra seu auge nesta outra metáfora significante da micção incontrolada. Mais uma vez, identificamos nesse mecanismo o exercício do recalca mento/deslocamento já encontrado. A cena da piscina é também ocasião de um certo número de con densações significantes inconscientes da mesma ordem . O aconteci mento desenrola-se em um vestiório, isto é, em um local fechado on de ela se encontra ao abrigo do homem que lhe propõe gozar. O sig n ificante anteparo é novamente mobilizado em torno do prazer se xual, exceto que é a partir de agora explicitamente ligado ao de fazer amor com um homem. Esses três significantes serão eletivamente asso ciados entre si pelo afeto que pontua o fim da cena. Por que essa pa ciente sente-se tão tranqüila por ver uma mulher na portaria, ao sair da piscina? Ela encontra motivos para se tranqüilizar porque, duran te um instante, identificou-se inconscientemente com a mulher da por taria, loira como ela. Neste sentido, tudo se passa então como se ela já estivesse onde o homem convidara-a para fazer amor. Identificamos, novamente, este processo de identificação ao tra ço unório - aqui a cor dos cabelos - que apóia uma metaforização sexual inconsciente. Examinemos agora a última lembrança que parece ter dirigido o conj unto dos significantes inconscientes para a precipitação do siste ma. Nesta seqüência - a cena de amor de sua amiga no banheiro - o significante não tão forte ou não tão forte assim catalisou o mate rial significante em uma metaforização última do ato sexual com um homem. Um outro elemento igualmente interveio de modo determi nante. Enquanto permanecia testemunha auditiva de algo que não via, essa situação deixara-á sem ouvir nada. Esse "sem ouvir nada" apare- "'* Gênero cômico grosseiro. (N. da T.) ESTRUTURA E PERVERSÕES 45 cerá depois, como o testemunho de sua identificação triconsciente com a outra mulher que supostamente goza. Totalmente identificada com sua amiga nesse momento, deseja não poder ser ouvida do exterior em situação semelhante. Sob a influência desse significante anteparo efetua-se assim um deslocamento entre os dois termos de uma oscila ção significante: o "sem ouvir nada" transforma-se em seu contrário, em "sem ser ouvida", o qual faz eco metonimicamente ao "sem ser vista" das seqüências anteriores. No decorrer dessa cena, outras séries significantes são igualmente convocadas por identidade ou proximida de metonímica. Além do significante banheiro/toalete, encontramos tam bém a referência significante à voz de um homem atrás de uma porta. De resto, é porque esse significante já estava inconscientemente asso ciado ao ato sexual que o primeiro pensamento que lhe ocorre - por mais fugidio que seja - é exatamente este, mesmo ao preço de recu sá-lo em um segundo momento, em proveito de um fantasma de disputa. Um índice marcante deve ser também salientado no desenrolar dessa cena: pela primeira vez surge o significante da dor e do sofrimen to. A seleção de um tal significante revelar-se-á essencial na estrutura ção do sintoma. O ato sexual com um homem, por mais que seja recal cado, não deixa de ser associado ao contexto de uma situação fantas mática não somente violenta, mas também dolorosa. O final dessa se qüência testemunha, incontestavelmente, essa associação inconscien te entre o prazer sexual e o sofrimento físico. De fato, seu primeiro or gasmo não encontrará outra identidade aceitável a seus olhos senão através da metáfora dos espasmos abdominais inscritos sobre o fundo de uma dor no corpo. Assim isola-se progressivamente uma comunidade de significantes que convocam, eles próprios, pelo jogo das ligações metafóricas e/ou metonímicas, a seleção de outros significantes. Todavia, se essa cadeia constitui-se de uma pluralidade de significantes heterogêneos, em com pensação, sua combinação recíproca efetua-se sempre de acordo com processos homogêneos. Por esta razão, esses processos podem ser de terminados como traços marcantes da estrutura histórica. Por mais que seja incoerente, essa cadeia do significantes recalca dos não deixa de metaforizar uma realização de desejo. Ainda é preciso que esses elementos significantes recalcados so fram um último remanejamento para irromper na consciência do sujei to de tal maneira que a realização de desejo aí se exponha sob um perfil totalmente irreconhecível. Em outras palavras, essa organização significante deve poder se travestir em uma forma de expressão sintéti ca que será, no presente caso, uma formação do inconsciente cristaliza da na estruturação de um sintoma de automutilação. 46 JOÊ L DOR Para chegar a isto, o material inconsciente vai sofrer uma últi ma elaboração por intermédio de um acontecimento determinante. Esse acontecimento intervém
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