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ALFABETIZANDO SEM O BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU 
 
SUMÁRIO 
Prefácio 4 
Introdução 8 
 
1. História da alfabetização 11 
2. O ensino e a aprendizagem: os dois métodos.. 35 
3. Avaliação, promoção, planejamento 61 
4. O método das cartilhas 79 
5. Panorama do processo de alfabetização 103 
6. A decifração da escrita 119 
7. Procedimentos para o estudo das letras 133 
8. Sugestões de atividades na alfabetização 163 
9. A produção de textos espontâneos 197 
10. As hipóteses por trás dos erros 241 
11. Ditado e cópia 287 
12. Leitura e interpretação de texto 311 
13. Ortografia da língua portuguesa 341 
 
Apêndice — A categorização gráfica das letras 359 
Bibliografia 389 
Índice de tópicos por capítulo 397 
 
PREFÁCIO 
Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é, sem dúvida, um livro 
pioneiro. O próprio título já evidencia o seu pioneirismo: uma 
nova proposta de metodologia da alfabetização, totalmente 
liberta do método silábico, cartilhesco ou não. 
Ao contrário do que se pode imaginar, não é apenas quando 
nos utilizamos da cartilha que o método silábico do bá-bé-bi-bó- 
bu se encontra subjacente à prática de ensinar a ler e escrever. 
Como bem mostra o autor, mesmo em práticas consideradas 
inovadoras e bem distantes da cartilha, a única tábua de 
salvação, para muitos professores, é voltar ao antigo bê-a-bá. 
Outra grande inovação (diríamos até "evolução") trazida por 
este livro é colocar no centro da discussão da aquisição da 
leitura e da escrita a noção de ortografia, ausente de qualquer 
outra abordagem do assunto já conhecida. Não nos referimos à 
ortografia apenas como uma meta a ser atingida no final do 
processo, mas como a noção fundamental que sustenta o nosso 
sistema de escrita. O autor nos mostra que, ao contrário do que 
comumente se pensa, nosso sistema de escrita não é apenas 
alfabético (o que o tornaria uma mera transcrição fonética), mas 
ortográfico (servindo a ortografia, entre outras coisas, para 
anular a variação lingüística no nível da palavra). Assim, a partir 
de considerações a respeito da própria natureza do nosso 
sistema de escrita, e de como isto interfere no processo de 
alfabetização, vemos como a ortografia deve ser considerada 
desde o início do processo e não como objetivo final 
— como o fazem tanto os métodos tradicionais baseados no bá- 
bé-bi-bó-bu, como também os ditos construtivistas, que dividem 
a aquisição da linguagem escrita em níveis (pré-silábico, silábico 
e alfabético), os quais não encontram correspondência exata em 
qualquer sistema de escrita conhecido, menos ainda em um 
sistema de escrita ortográfico como o nosso. 
Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é uma obra voltada para a 
formação do professor alfabetizador. Discute a teoria da 
aquisição da linguagem escrita e fornece subsídios ao professor 
que tiver coragem, vontade, ou simplesmente necessidade, 
imposta pelo seu cotidiano de alfabetizador, de mudar. É o 
resultado de quase vinte anos de dedicação do autor à causa da 
alfabetização e de seus mais de trinta anos como lingüista. ~, 
<4> 
Representa, pois, a visão de um lingüista sobre o processo de 
aquisição da leitura e da escrita e a sua contribuição, como 
professor, para a educação do país, de um modo mais geral. O 
autor afirma que um professor que tenha os conhecimentos 
apresentados neste livro consegue conduzir com calma e 
segurança o processo de alfabetização e tem chances de 
alfabetizar uma criança a partir dos cinco anos ou um adulto em 
dois ou três meses — o que significa uma enorme conquista, 
dados os alarmantes níveis de analfabetismo no Brasil. Isso 
porque os conhecimentos apresentados independem do tempo 
histórico e do espaço geográfico, já que dizem respeito 
diretamente à natureza, função e usos da linguagem oral e 
escrita e não estão subordinados a métodos pedagógicos. As 
estratégias de ensino podem variar de professor para professor, 
mas o conhecimento da linguagem oral e escrita é uma aquisição 
da ciência e, desse modo, depende única e exclusivamente do 
progresso da ciência. E nesse sentido, a ciência Lingüística já 
tem um conjunto considerável de conhecimentos solidamente 
estabelecidos, dos quais uma parte é colocada aqui à disposição 
para uma aplicação à educação. 
Na sua carreira acadêmica, Luiz Carlos Cagliari tem trabalhado 
com três linhas de pesquisa: fonética e fonologia, sistemas de 
escrita e alfabetização. Nas três áreas, além de ter produzido 
muitas pesquisas, que resultaram em várias publicações, seu 
percurso como professor do Instituto de Estudos da Linguagem 
da Unicamp inclui cursos na graduação em Letras e Lingüística e 
na pós-graduação em Lingüística, além de comunicações em 
reuniões científicas importantes, dentro e fora do país. No 
entanto, este livro não pode ser considerado apenas o resultado 
de uma pesquisa desenvolvida do lado de dentro dos portões da 
universidade, desvinculada da realidade de sala de aula dos 
professores alfabetizadores do país. O contato e trabalho 
conjunto do autor com os professores alfabetizadores vêm já de 
longa data. 
O ano de 1980 é uma data-chave para a compreensão do seu 
envolvimento com os estudos de alfabetização. Nessa ocasião, 
uma equipe da CENP o convidou para ministrar um curso de 
fonética acústica para professores alfabetizadores, uma vez que, 
segundo os especialistas, os erros de troca de letras cometidos 
pelos alunos eram devidos ao fato de os professores não 
conhecerem o assunto, não tendo, portanto condições de 
resolverem o problema quando ele se manifestava. ~, 
<5> 
Analisando a questão, ele concluiu que os problemas não se 
restringiam à fonética acústica, mas envolviam falhas sérias no 
processo de alfabetização, devido à falta de conhecimento 
lingüístico. Esse curso, realizado com a colaboração de uma de 
suas colegas de departamento na Unicamp, a Drª Maria 
Bernadete Abaurre, e do Dr. Márcio Silva, foi o início de um longo 
caminho de pesquisa e de cooperação com órgãos públicos, 
faculdades e, sobretudo, com professores alfabetizadores, que 
forneciam ao autor material produzido pelos alunos. Começou a 
organizar assim um enorme arquivo de produções infantis. 
No ano seguinte, a convite da equipe pedagógica da 
Secretaria de Educação de Alagoas, juntamente com Maria 
Bernadete, Luiz Carlos Cagliari ministrou um curso para 
professores alfabetizadores. Na ocasião, foi possível pôr em 
prática as novas orientações propostas no curso da CENP, 
sobretudo, convencendo os professores a deixar seus alunos 
produzirem textos espontâneos. O que parecia a eles uma 
loucura logo se revelou uma grata surpresa. A evidência dos 
fatos mostrou a dimensão da capacidade dos alunos e que seus 
erros, mais do que "falhas", revelavam hipóteses que os levavam 
a fazer opções diante da escrita. 
No ano de 1983, destaca-se sua participação no I Seminário 
Multidisciplinar: Alfabetização, realizado na Pontifícia 
Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Nessa ocasião, 
apresentou um trabalho intitulado A formação do professor 
alfabetizador, em que já aparece um esboço de suas principais 
idéias sobre o processo de alfabetizar. 
Neste mesmo ano, outra colega sua do departamento de 
Lingüística da Unicamp, a Drª Cláudia Lemos, organizou um 
encontro sobre Linguagem, Aprendizagem e Interação. Ela já 
conhecia o trabalho do autor na área de alfabetização e achava 
que correspondia em grande parte ao que faziam os 
construtivistas, sobretudo uma psicóloga que tinha encontrado 
na Europa, chamada Emília Ferreiro. Nesse encontro foram 
apresentadas as idéias do construtivismo, que, a partir daí, 
invadiram os programasde alfabetização. Para esse evento, o 
autor levou os textos espontâneos dos alfabetizandos de Alagoas 
e de Campinas com os quais ele havia trabalhado, expondo-os 
em dois varais que acompanhavam toda a extensão do corredor 
do pavilhão dos professores. Todos ficaram impressionados, e os 
textos forneceram material para muita discussão.~, 
<6> 
Em 1984, o autor já, havia juntado grande quantidade de 
trabalhos sobre os mais variados tópicos da alfabetização 
relacionados com a fala, a escrita e a leitura. Esse material iria 
formar, mais tarde, o livro Alfabetização e lingüística, publicado 
pela Scipione em 1989. Um dos trabalhos que não entrou 
naquele livro foi o "Roteiro de sugestões para professores 
alfabetizadores", que serviu de embrião para esta obra que ora 
prefaciamos, cuja versão preliminar foi escrita nos dois 
primeiros meses de seu estágio de pós-doutoramento em 
Londres, em 1987, e depois foi intensamente discutida e levada à 
sala de aula por professores alfabetizadores de várias regiões do 
país. 
Já em 1985, Luiz Carlos Cagliari participou do Projeto Ipê, 
coordenado pela CENP Nessa ocasião, publicou o artigo 
"Caminhos e descaminhos da fala, da leitura e da escrita na 
escola", que teve enorme repercussão. Com o material desse 
artigo, foi feito o roteiro para um programa da TV Cultura 
relacionado com o Projeto Ipê. Paralelamente a isso, começaram 
a ser publicados no Brasil artigos de Emília Ferreiro e suas idéias 
apareceram também no Projeto Ipê. A pesquisadora Telma 
Weisz, discípula de Ferreiro passou a liderar a divulgação do 
construtivismo no estado de São Paulo, com o apoio da CENP e, 
sobretudo depois, com a FDE. Nessa época, já era notória a 
discordância do autor (ver o artigo "O príncipe que queria ser 
sapo") e de outros lingüistas com relação às interpretações de 
Emília Ferreiro a respeito do processo de letramento. A opção 
pelo construtivismo e, de certo modo, sua imposição às 
atividades da rede pública deixaram em um plano secundário as 
críticas e outras formas de pensar e de fazer o processo de 
alfabetização. Apesar disso, Luiz Carlos Cagliari continuou 
pesquisando com empenho e profundamente, até a formação de 
um conjunto de idéias sólidas, bem fundamentadas, que 
explicam não só como alguém se alfabetiza, mas também como 
tirar alguém do "mau caminho" e fazer com que supere seus 
obstáculos e consiga se alfabetizar. São estas as idéias 
apresentadas no presente livro. 
Atualmente, seus olhos voltam-se para um novo horizonte: a 
alfabetização de adultos. Continua sua luta incansável contra o 
analfabetismo e por rumos melhores para a alfabetização dos 
que efetivamente conseguem chegar até a escola. 
Gladis Massini-Cagliari. ~, 
<7> 
 
 
INTRODUÇÃO 
Em 1981, baseando-me na experiência de alfabetização de 
meu filho Daniel na Escócia (1976), disse para muitos 
professores (em cursos e palestras) que as crianças podiam 
escrever textos já no início da alfabetização, passando da 
capacidade de produzir textos orais para a representação 
escrita, mesmo sem saber bem a grafia das palavras. Fui então 
considerado um maluco, que nunca tinha alfabetizado alguém. 
Bastou a coragem de alguns professores, já no ano seguinte, 
para que todos descobrissem que isso era possível. Com o 
trabalho de colegas como Maria Bernadete Abaurre e João 
Wanderley Geraldi e com a divulgação das idéias de Emília 
Ferreiro, o que era medo de ensinar tornou-se procedimento 
comum com relação à produção de textos espontâneos na 
alfabetização e de livrinhos de classe em todas as séries iniciais. 
Neste livro, há um outro desafio: ensinar a ler a partir da 
reflexão sobre o processo de alfabetização, tornando conscientes 
para o professor e o aluno as regras de decifração da escrita. As 
crianças gostam de aprender coisas sérias, ensinadas com 
seriedade — e é isto o que mais falta hoje na escola. Esse desafio 
é fruto de extenso estudo sobre o processo de alfabetização, 
ponderando as implicações dos estudos da linguagem no modo 
como as crianças usam a fala, a escrita e a leitura. Além disso, 
leva-se em consideração uma investigação profunda da história 
da escrita, da natureza e usos dos sistemas de escrita. Sem esse 
suporte lingüístico e esse conhecimento dos sistemas de escrita, 
grande parte da problemática do processo de letramento fica 
distorcida, não raramente levando os estudiosos por caminhos 
sem saída. A simples aplicação de um método ou de uma teoria 
conduz facilmente o processo pedagógico a reproduzir um 
modelo. Nesse contexto, os alunos precisam se virar com os 
recursos do modelo. 
E se não der certo, se o aluno, apesar das repetições a que é 
submetido, não conseguir se alfabetizar? Essa preocupação 
sempre foi a central de todos os meus estudos. A única saída 
para impasses como esse — e, por que não, para conduzir 
tranqüilamente um processo de letramento — é o conhecimento 
sofisticado e correto das questões lingüísticas relacionadas à 
alfabetização, bem como do funcionamento dos sistemas de 
escrita. Idéias simples, porém, fundamentais, como a variação 
lingüística e o fato de a ortografia ter modificado ~, 
<8> 
profundamente o sistema alfabético, quando ausentes ou mal 
interpretadas na escola, podem criar grandes embaraços para a 
aprendizagem do aluno e um quebra-cabeça extremamente 
complicado para a ação do professor. 
Tenho certeza (pois também já constatei na prática) de que os 
professores irão descobrir nos procedimentos sugeridos neste 
livro uma forma nova e segura de alfabetizar. Não basta deixar 
de lado o livro das cartilhas; é preciso deixar de lado o método 
das cartilhas, o ensino centrado na noção de sílaba como 
unidade privilegiada da escrita e da leitura. Ensinar as crianças a 
tornar conscientes os procedimentos de decifração da escrita é 
uma estratégia que as agrada mais do que ficarem repetindo 
coisas aparentemente sem sentido, ou ser largadas à própria 
sorte, esperando que saiam de dentro de si os conhecimentos 
que a escola exige para ler e escrever. A proposta deste livro é 
ensinar de maneira clara e com precisão como se faz para 
aprender a ler e a escrever — o que corresponde exatamente às 
expectativas das crianças. 
O fato de ser este livro volumoso, abrangendo um assunto 
complicado, não deve ser motivo de receio para os professores, 
que sentirão seu trabalho facilitado e valorizado com a adoção 
de uma nova postura em sala de aula. As crianças vão se sentir 
valorizadas também em suas descobertas, ganhando maior 
segurança ao observarem seu próprio progresso. Para o 
professor, no começo, talvez esta apresentação do processo de 
alfabetização possa parecer muito técnica e fora da realidade 
pedagógica e psicológica das crianças. Lembro que o mesmo me 
diziam quando afirmava que as crianças eram capazes de 
produzir textos espontâneos, passando dos conhecimentos que 
tinham da linguagem oral para a forma escrita. Hoje, todos 
concordam que produzir textos é algo que as crianças fazem com 
facilidade, criatividade e prazer. Com o tempo, mesmo 
problemas altamente complexos passam a ser vistos como 
desafios comuns quando se familiariza com eles e com as 
soluções necessárias. Um bom exemplo disso no mundo 
moderno é a maneira como as crianças lidam com os jogos de 
vídeo games. Depois de certa prática, aprendendo uma 
quantidade enorme de regras, jogam com facilidade, para 
espanto de quem não é capaz. Outro exemplo mais próximo de 
nosso assunto está no próprio fato de as pessoas que 
aprenderam a ler e a escrever (e isso se constata já nas 
primeiras séries) tiveram de passar por todas essas regrase por 
todos os ~, 
<9> 
conhecimentos "técnicos" que constituem o objetivo deste livro. 
Na verdade, não há outra saída. O que existe são os caminhos 
diferentes para se obter um resultado. Como costumo dizer, 
alguém pode ir de São Paulo ao Piauí andando a pé, a cavalo ou 
de avião. Há muitas escolhas, mas nem todas têm o mesmo 
valor. 
Para juntar conhecimentos teóricos com metodologias ou 
estratégias de ação, foi preciso me alongar no assunto, dado o 
volume de informação e a necessidade de clareza na exposição. 
O livro está dividido em treze capítulos e um apêndice. Para 
auxiliar na pesquisa do professor que está em busca dos 
conhecimentos básicos há uma breve história da alfabetização, 
uma sucinta apresentação da história da ortografia da língua 
portuguesa e o apêndice, no qual as letras são estudadas 
individualmente, mostrando as facilidades e dificuldades de seu 
ensino e aprendizagem. O método das cartilhas mereceu um 
estudo à parte, para contrastar com o que se propõe: deixar de 
lado o bá-bé-bi-bó-bu e partir para um trabalho de pesquisa 
envolvendo professor e alunos. Algumas questões pedagógicas, 
como a avaliação, a promoção e o planejamento escolar, tiveram 
de ser abordadas em vista de suas conseqüências para a ação do 
professor e do aluno. O que se propõe é que a escola ensine os 
alunos a estudar, a trabalhar com os conhecimentos, e não com 
o objetivo menor de ganhar nota e passar de ano. A parte 
principal do livro concentra-se nos procedimentos para o estudo 
das letras, com sugestões de atividades e destaque especial para 
a produção de textos espontâneos. Os problemas que o aluno e o 
professor encontrarão são analisados e discutidos em detalhes, 
mostrando, por um lado, o que é preciso saber para decifrar a 
escrita e, conseqüentemente, ler e escrever, e, por outro, quais 
as hipóteses que os alunos apresentam quando erram e como 
não cair em impasses que impedem o progresso desses alunos. 
Outras atividades importantes foram também consideradas, 
como o ditado, a cópia e a interpretação de textos. 
Este livro pretende ser uma contribuição a mais (há tantas 
coisas interessantes e importantes que têm sido apresentadas 
aos professores alfabetizadores nas duas últimas décadas...) 
para que se entenda melhor o processo de alfabetização. O 
objetivo não foi fazer um livro teórico nem um manual do 
professor, mas apresentar, discutir e sugerir idéias que o autor 
pesquisou, que foram amplamente discutidas com pesquisadores 
e, sobretudo, com professores alfabetizadores. ~, 
<10> 
Gladis Massini-Cagliari é professora assistente doutora de 
língua portuguesa do Departamento de Lingüística da Faculdade 
de Ciências e Letras da Unesp-Araraquara. É mestre e doutora 
em lingüística pelo Departamento de Lingüística da Unicamp e 
autora de trabalhos publicados na área de alfabetização, 
fonologia, lingüística histórica e lingüística textual. Interlocutora 
privilegiada do autor por ser sua mulher e tê-lo conhecido como 
professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, 
vem acompanhando seu percurso como lingüista e, a partir de 
1991, passou a colaborar ativamente em seus trabalhos na área 
de alfabetização. 
 
1 
História da alfabetização 
 
Quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as regras 
da alfabetização, ou seja, as regras que 
permitem ao leitor decifrar o que está escrito entender como o 
sistema de escrita funciona e saber como usá-lo 
apropriadamente. A alfabetização é, pois, tão antiga quanto os 
sistemas de escrita. De certo modo, é a atividade escolar mais 
antiga da humanidade. 
Para que os sistemas de escrita continuem a ser usados, é 
preciso ensinar às novas gerações como fazê-lo. Quando esse elo 
se rompe, por abandono ou porque é trocado por outro modelo, a 
escrita antiga passa a ser um sistema sem decifração. Nesses 
casos, só com muito estudo, e também com um pouco de sorte 
da parte dos decifradores dessas escritas abandonadas, as 
regras que envolvem tais sistemas voltam a ser conhecidas, 
permitindo assim que os textos antigos sejam lidos e que a 
escrita possa ser novamente utilizada. 
Na história da escrita, registram-se apenas dois casos de 
povos que empregavam um sistema de escrita e que, por alguma 
razão estranha e desconhecida, deixaram de fazê-lo, ficando por 
um longo tempo sem utilizar qualquer sistema. Isso aconteceu 
com os gregos e com os indianos. 
A escrita cretense minóica (Linear B) foi usada pela cultura 
grega micênica até 1250 a.C., quando Micenas foi destruída. Os 
gregos voltaram a escrever somente 500 anos mais tarde, 
usando o alfabeto semítico. No vale do rio Indo, houve um 
sistema de escrita ainda não decifrado que só foi empregado por 
volta de 2500 a.C. Naquela região, a escrita só ressurgiria muito 
tempo depois, no século III a.C., com a escrita brãmane. 
Curiosamente, esses dois tipos de escrita, ao que tudo parece, 
tiveram um uso muito popular, ou seja, não ficaram restritos a 
atividades religiosas ou científicas. Mesmo guerras muito 
violentas nunca interromperam o conhecimento da escrita, razão 
pela qual esses dois casos são considerados hoje misteriosos. ~, 
<12> 
Estudando atentamente os sistemas de escrita, percebe-se 
que quem os inventou sempre teve a preocupação de fornecer a 
chave da decifração juntamente com o próprio sistema. Os 
sistemas de escrita nunca tiveram nada de muito estranho ou 
misterioso em si, pelo contrário, sempre foram simples e 
práticos. Por essa razão, ensinar as novas gerações a usar o 
sistema de escrita sempre foi uma tarefa fácil e de certa forma 
banal. 
 
 
< CAGLIARI, 1996b,p. 106-24. 
A antiga civilização da ilha de Creta usou dois sistemas de 
escrita que os estudiosos chamaram de Linear A e B. O primeiro 
representara uma língua desconhecida e foi decifrado somente 
em parte. O segundo representava a língua grega arcaica e foi 
decifrado. 
 
 
A LEITURA E A ESCRITA 
NA ANTIGUIDADE 
 
HAMURABI, da Babilônia entre os anos de 1792 e 1750 a.c., 
fundador do Império Babilônico. Seu código é o mais extenso 
conjunto de leis conhecido da Antiguidade. 
 
Os sistemas de escrita estabelecidos na história dos povos 
nunca foram privilégio de ninguém. É falsa a idéia de que na 
Antiguidade somente os sacerdotes, os reis ou pessoas de 
grande poder dominassem a escrita e a usassem como um 
segredo de Estado. Essa é uma idéia errada e estranha, que não 
faz sentido algum, bastando lembrar como argumento que a 
escrita é um fato social, é uma convenção que não consegue 
sobreviver à custa de um punhado de pessoas. Os fatos 
históricos também mostram o contrário. Quando um faraó enche 
todas as paredes e até colunas com escrita e exibe isso 
publicamente, não pensa, certamente, que essa seja a melhor 
maneira de guardar um segredo de Estado. Ao ler o que ele 
mandou escrever, ficamos sabendo que, às vezes, o texto tem 
como interlocutor o próprio povo, súdito do monarca. Na 
Mesopotâmia, Hamurabi mandou publicar em praça pública um 
código de leis para que o povo soubesse sob quais leis vivia e 
como deveria se portar em sociedade. 
O que tem perturbado aqueles que acreditam ser a escrita um 
privilégio das pessoas poderosas é o fato de terem chegado até 
nós grandes obras da Antiguidade. Certamente essas obras 
foram feitas por especialistas, assim como, hoje em dia, um livro 
de engenharia é escrito por um engenheiro, um livro de medicina 
por um médico, um livro de religião por um teólogo e assim por 
diante. Isso não significa que somente engenheiros, médicos e 
teólogos conheçam a escrita no mundo moderno. 
Costumo dizerque quem inventou a escrita foi a leitura: um 
dia, numa caverna, o homem começou a desenhar e encheu as 
paredes com figuras, representando ~, 
<13> 
animais, pessoas, objetos e cenas do cotidiano. Certo dia 
recebeu a visita de alguns amigos que moravam próximo e foi 
interrogado a respeito dos desenhos. Queriam saber o que 
representavam aquelas figuras e por que ele as tinha pintado 
nas paredes. Naquele momento, o artista começou a explicar os 
nomes das figuras e a relatar os fatos que os desenhos 
representavam. Depois, à noite, ficou pensando no que tinha 
acontecido e acabou descobrindo que podia "ler" os desenhos 
que tinha feito. Ou seja, os desenhos, além de representar 
objetos da vida real, podiam servir também para representar 
palavras que, por sua vez, se referiam a esses mesmos objetos e 
fatos na linguagem oral. A humanidade descobria assim que, 
quando uma forma gráfica representa o mundo, é apenas um 
desenho; mas, quando representa uma palavra, passa a ser uma 
forma de escrita. A partir dessa descoberta, criar um sistema de 
formas gráficas, figurativas ou não, para representar palavras ou 
frases ou mesmo histórias, era um passo fácil de ser dado. 
A história contada acima é obviamente fantasiosa e não 
corresponde aos fatos reais, mas revela algo importante, que 
não pode ser captado pelos documentos materiais da história, 
porque pertence ao reino do pensamento. Provavelmente, a 
necessidade de um sistema de escrita veio de situações vividas. 
De acordo com fatos comprovados historicamente, a escrita 
surgiu do sistema de contagem feito com marcas em cajados ou 
ossos, e usado provavelmente para contar o gado, numa época 
em que o homem já possuía rebanhos e domesticava os animais. 
Esses registros passaram a ser usados nas trocas e vendas, 
representando a quantidade de animais ou de produtos 
negociados. Para isso, além dos números, era preciso inventar 
símbolos para os produtos e para os nomes dos proprietários. 
Nessa época de escrita primitiva, ser alfabetizado significava 
saber ler o que aqueles símbolos significavam e ser capaz de 
escrevê-los, repetindo um modelo mais ou menos padronizado, 
mesmo porque o que se escrevia era apenas um tipo de 
documento ou texto. Com a expansão do sistema de escrita, a 
quantidade de informações necessárias para que alguém 
soubesse ler e escrever aumentou consideravelmente, o que 
obrigou as pessoas a abandonar o sistema de símbolos para 
representar coisas e a usar cada vez mais símbolos que 
representassem sons da fala, como, por exemplo, as sílabas. 
Como há cerca de 60 tipos de sílabas diferentes ~, 
<14> 
por língua, em média, o sistema de símbolos necessários para 
representar as palavras através das sílabas ficou 
muito reduzido, fácil de ser memorizado e conveniente para a 
difusão da escrita na sociedade. 
O longo processo de invenção da escrita também incluiu a 
invenção de regras de alfabetização, ou seja, as regras que 
permitem ao leitor decifrar o que está escrito e saber como o 
sistema de escrita funciona para usá-lo apropriadamente. 
A escrita, pelo que se sabe hoje, começou de maneira 
autônoma e independente, na Suméria, por volta de 3300 a.C. É 
muito provável que no Egito, por volta de 
3000 a.C., e na China, por volta de 1500 a.C., esse processo 
autônomo tenha se repetido. Os maias da América Central 
também inventaram um sistema de escrita independentemente 
de um conhecimento prévio de outro sistema de escrita, num 
tempo indeterminado ainda pela ciência, que talvez se situe por 
volta do início da era cristã. Todos os demais sistemas de escrita 
foram inventados por pessoas que tiveram, de uma maneira ou 
de outra, contato com algum sistema de escrita. 
Na Antiguidade, os alunos alfabetizavam-se aprendendo a ler 
algo já escrito e depois copiando. Começavam com palavras e 
depois passavam para textos famosos, que eram estudados 
exaustivamente. Finalmente, passavam a escrever seus próprios 
textos. O trabalho de leitura e cópia era o segredo da 
alfabetização. Note que essa atividade está diretamente ligada 
ao trabalho futuro que esses alunos irão desempenhar, 
escrevendo para a sociedade e a cultura da época. 
Muitas pessoas aprendiam a ler sem ir para a escola, já que 
não pretendiam tornar-se escribas. A curiosidade, certamente, 
levava muita gente a aprender a ler para lidar com negócios, 
comércio e até mesmo para ler obras religiosas ou obter 
informações culturais da época. A alfabetização, nesses casos, 
dava-se com a transmissão de conhecimentos relativos à escrita 
de quem os possuía para quem queria aprender. Aprender a 
decifrar a escrita, ou seja, a ler, relacionando os caracteres às 
palavras da linguagem oral, devia ser o procedimento comum. 
Aqui, não era preciso fazer cópias nem escrever: bastava saber 
ler. Para quem sabe ler, escrever é algo que vem como 
conseqüência. 
Com a escrita semítica aconteceu algo muito curioso e que, 
sem dúvida alguma, foi proposital para facilitar o uso do sistema 
de escrita e sobretudo o seu aprendizado, ou seja, o processo de 
alfabetização. 
<15> 
Ao formar seu sistema de escrita, os semitas escolheram um 
conjunto de palavras cujo primeiro som fosse diferente dos 
demais. Como nenhuma palavra naquelas línguas começasse por 
vogal, a lista ficou apenas com consoantes. Essa escolha foi urna 
decisão muito importante porque reduziu os modelos de 
silabários da época, da escrita cuneiforme, por exemplo, de cerca 
de 60 elementos para apenas 21 consoantes. Para representá-las 
graficamente, foram escolhidos hieróglifos egípcios cujo aspecto 
figurativo lembrava o significado das palavras daquela lista. Por 
exemplo, a primeira palavra da lista era 'alef, que significava 
"boi", e o hieróglifo escolhido foi o que representava a cabeça de 
um boi. Dessa maneira, a figura da cabeça do boi passou a 
representar o som inicial da palavra 'alef, que era oclusiva glotal. 
E assim com as demais palavras e suas respectivas consoantes. 
Uma outra novidade decorreu desse fato: as palavras da lista 
passaram a ser os nomes das letras que representavam a 
consoante inicial dessas palavras. Além disso, esse nome passou 
a ser a chave para se saber que som a letra representava: aief 
representava a oclusiva glotal, por exemplo. A escolha de uma 
lista de palavras como essa constitui o que se chama de princípio 
acrofônico, ou seja, o som inicial do nome das letras é o som que 
a letra representa: o desenho da cabeça de boi representa o som 
da oclusiva glotal, porque o nome dessa letra é 'alef A segunda 
letra era Beth, representada por um hieróglifo que retratava a 
figura de uma casa; era usada para o som de B e significava 
"casa". A terceira letra era o Daieth, que significava "porta" e 
representava o som de D; tinha a forma gráfica da figura de uma 
porta, tirada também de um hieróglifo egípcio, e assim por 
diante. 
O princípio acrofônico foi uma das melhores idéias que 
apareceram nos sistemas de escrita: além de permitir uma 
grande simplificação no número de letras, trazia de forma óbvia 
como se devia proceder para ler e escrever. Uma vez identificada 
a letra pelo nome, já se tinha um som para ela. Juntando os sons 
das letras das palavras em seqüência, tinha-se a pronúncia de 
uma dada palavra — o que, feitos os devidos ajustes, dava o 
resultado final de sua pronúncia; e, pronunciando, o significado 
vinha automaticamente. 
Para se alfabetizar nesse sistema de escrita, bastava a pessoa 
decorar a lista dos nomes das letras, observar a ocorrência de 
consoantes nas palavras e transcrever esses sons consonantais, 
usando o princípio acrofônico.Para escrever David, por exemplo, 
bastava identificar as consoantes DVD, procurar, na lista de 
letras, aquelas que começam com sons de D e V e escrevê-las. 
Já os gregos, como precisassem fazer alguns ajustes nas 
próprias consoantes, uma vez que, em grego, o conjunto de 
consoantes era diferente daquele das línguas semíticas, 
resolveram escrever não apenas as consoantes, mas também as 
vogais, mantendo o mesmo princípio acrofônico. Assim, por 
exemplo, a letra egípcia que representava pictograficamente a 
cabeça de um boi foi usada, como vimos, pelos semitas para 
representar uma consoante oclusiva glotal, e a letra recebeu o 
nome da palavra que significava boi, ou seja, 'alef. Como em 
grego não houvesse consoante oclusiva glotal, a letra 'alef 
passou a representar a vogal A, agora denominada alfa. 
Apesar de manter o princípio acrofônico, os gregos adaptaram 
os nomes das letras semíticas para a sua língua. Para eles, a 
alfabetização acontecia de maneira semelhante à dos semitas, 
com a única diferença de que os gregos tinham de detectar na 
fala não apenas as consoantes, mas também as vogais, para 
escreverem alfabeticamente. Como sempre, a ortografia fixou a 
forma de escrita das palavras, para evitar que falantes de 
dialetos diferentes escrevessem as mesmas palavras de 
maneiras diferentes, seguindo apenas a observação da própria 
fala e o valor fonético das letras. 
Quando os gregos passaram a usar o alfabeto, aprender a ler e 
a escrever tomou-se urna tarefa de grande alcance popular. De 
fato, pode-se mesmo dizer que na Grécia antiga havia as escolas 
do alfabeto. 
Os romanos assimilaram tudo o que puderam da cultura 
grega, inclusive o alfabeto. Práticos como sempre, acharam 
interessante o princípio acrofônico do alfabeto grego, mas 
perceberam que não precisavam ter nomes especiais para as 
letras: era mais simples ter como nome da letra apenas o próprio 
som dela. Dessa forma, mantinha-se o princípio acrofônico e 
ficava ainda mais fácil usar o alfabeto e se alfabetizar. Foi assim 
que alfa, beta, gama, delta, épsilon, etc. transformaram-se em a, 
bê, cê, dê, e, etc. 
Os semitas, os gregos e os romanos nos deixaram alguns 
"alfabetos": tabuinhas ou pequenas pedras ou chapas de metal 
onde se encontravam todas as letras, na ordem tradicional dos 
alfabetos. Na verdade, serviam ~, 
<17> 
de guia para as pessoas aprenderem a ler e a escrever, ou 
mesmo quando fossem escrever. Tais documentos foram, por 
assim dizer, as mais antigas "cartilhas" da humanidade: uma 
cartilha que continha apenas o inventário das letras do alfabeto. 
A alfabetização, na Idade Média, em geral ocorria menos nas 
escolas do que na vida privada das pessoas: quem sabia ler 
ensinava a quem não sabia, mostrando o valor fonético das 
letras do alfabeto em determinada língua, a forma ortográfica 
das palavras e a interpretação da forma gráfica das letras e suas 
variações. Aprender a ler e a escrever não era uma atividade 
escolar, como na Suméria ou mesmo na Grécia antiga. Nessa 
época, como as crianças já não iam mais à escola, as que podiam 
eram educadas em casa pelos pais, por alguém da família ou até 
mesmo por um preceptor contratado para essa tarefa. Isso se 
estende desde a época clássica latina até o século XVI d.c. 
Como o alfabeto tinha no nome das letras o princípio 
acrofônico, que é a chave de sua decifração, bastava o aprendiz 
decorar o nome das letras para ter condições de iniciar a 
decifração da escrita, a qual se completava quando, somando-se 
os valores das letras, descobria-se que palavra estava escrita. 
Isso era altamente facilitado pelo fato de os aprendizes serem 
falantes da língua que estavam decifrando, o que ajuda em 
muito as tentativas para descobrir, entre as várias 
possibilidades, a leitura correta. O contexto lingüístico e as 
ilustrações sempre ajudaram com informações complementares, 
facilitadoras do processo de decifração. Vê-se, pois, que a 
alfabetização pode perfeitamente acontecer fora da escola e do 
processo escolar, podendo ser feita em casa se a isso as pessoas 
se dedicarem. Ainda hoje, muitas pessoas aprendem a ler em 
casa: algumas porque decidiram não esperar a escola chegar, 
outras porque foram expulsas da escola e resolveram aprender 
fora da tradição escolar. Um exemplo famoso desse último caso 
é Thomas Edison. 
Com o uso cada vez maior da escrita na sociedade e com a 
produção crescente de livros escritos à mão (e depois 
impressos), o alfabeto passou a ter um problema a mais: foram 
surgindo formas variantes de representação gráfica das letras 
(sem modificar o inventário do alfabeto). Isso fez com que uma 
letra passasse a ser apenas um valor abstrato do alfabeto, que 
podia ser representado por muitas formas gráficas, as quais, 
agora, o usuário do sistema de escrita tinha de conhecer. 
<18> 
A primeira manifestação desse fato aconteceu quando das 
letras capitais (as maiúsculas — que eram as únicas do sistema 
de escrita latina) surgiram as letras minúsculas com forma 
gráfica diferente das antigas, que passaram a chamar-se 
maiúsculas. Isso aconteceu sem que as letras perdessem seu 
valor fonético e sem que a ortografia das palavras mudasse. 
Agora, o usuário da escrita precisava saber que 'A" e "a" são a 
mesma letra e, portanto, "CASA' equivale a "casa". Isso trouxe 
um problema novo e complicado para a alfabetização e para os 
leitores, em geral. Não bastava saber o alfabeto, seu princípio 
acrofônico e a ortografia: era preciso, ainda, saber fazer a 
categorização correta das formas gráficas, reconhecendo a que 
categoria pertence cada letra encontrada nas diferentes 
manifestações gráficas da escrita. Nesse caso, a ortografia 
mostrou uma vantagem a mais: além de servir para neutralizar a 
variação lingüística na escrita, do ponto de vista fonético, passou 
a ser o guia interpretativo do valor da variação gráfica das 
próprias letras. Este último aspecto pode ser observado ainda 
hoje, quando descobrimos (ou desconfiamos) que letra está 
escrita, ao analisar o todo. Como sabemos, ainda através da 
ortografia, quais letras devem compor aquela palavra, acabamos 
nos convencendo de que determinada forma gráfica está 
representando uma letra e não outra. Na escrita cursiva, esse 
princípio é posto em prática a todo instante. 
 
Notas 
Thomas Alva Edison (1931), considerado um dos maiores 
inventores do milênio, era americano de Milan Obio. Patenteou 
1093 inventos, inclusive a lâmpada elétrica o gravador o 
microfone e o projetor de cinema. Freqüentou a escola por 
apenas três meses, sendo dispensado por ser "confuso de cabeça 
e não conseguir aprender". Nunca mais voltou para a escola 
tornando-se um autodidata com a ajuda da mãe, uma es- 
professora. 
 
 
O APARECIMENTO DAS CARTILHAS 
Com o Renascimento (séculos XV e XVI) e, sobretudo, com o 
uso da imprensa na Europa, a preocupação com os leitores 
aumentou, uma vez que agora se faziam livros para um público 
maior, e a leitura de obras famosas deixou de ser coletiva para 
se tornar cada vez mais individual. Por isso, a preocupação com 
a alfabetização passou a ter uma importância muito grande. A 
primeira conseqüência disso foi o aparecimento das primeiras 
"cartilhas". Nessa época, surgem as primeiras gramáticas das 
línguas neolatinas, e esse foi outro motivo que levou os 
gramáticos a se dedicarem também à alfabetização: era preciso 
estabelecer uma ortografia e ensinar o povo a escrever nas 
línguas vernáculas, deixando de lado cada vez mais o latim. 
<19> 
A seguir apresentamos um breve apanhado das primeiras obras de 
alfabetização 
que surgiram na Europa entre osséculos XV e XVIII. 
Jan Hus (1374-14 15) propôs uma ortografia padrão para a língua tcheca e, 
juntamente com este trabalho, apresentou o ABC de Hus: um conjunto de 
frases de 
cunho religioso, cada qual iniciando com uma letra diferente, na ordem do 
alfabeto. 
Essa obra era voltada para a alfabetização do povo. 
Em 1525, foi publicada na cidade de Wittenberg uma cartilha do ABC 
intitulada 
Bokeschen vor leven ond kind, que continha o alfabeto, os dez mandamentos, 
orações 
e os algarismos. Em 1527, Valentim Ickelsamer incluiu, numa obra 
semelhante, listas 
de sílabas simples. Esse tipo de obra permanece com esquema semelhante até 
o século 
XVII. Somente no século XVIII, apareceram as primeiras gravuras das letras 
iniciais, 
por exemplo, a letra S com o desenho de uma cobra, a letra A com a figura de 
uma 
escada, etc. 
O educador tcheco Jan Amos Komensky, mais conhecido como Comênius 
(1592- 
1670), fez de sua obra Orbis sensualispictus ("O mundo sensível em 
gravuras"), 
publicada em 1658, um livro de alfabetização em que as lições vinham 
acompanhadas 
de gravuras para ajudar e motivar as crianças para os estudos. 
São João Batista de la Salle escreveu, em 1702, um regulamento para as 
escolas que 
fundara, chamado "Conduite des é coles chrétiennes" ("Conduta das escolas 
cristãs"), 
publicado em 1720. Com essa obra, pode-se ter uma idéia bem detalhada de 
como 
eram as aulas naquela época, inclusive as de alfabetização. O ensino era 
dividido em 
"lições", cada uma tendo três partes, uma destinada aos alunos principiantes, 
outra 
aos médios e a terceira aos avançados. A primeira lição era a "tábua do 
alfabeto"; a 
segunda, a "tábua das sílabas"; a terceira, o silabário; a quarta, o segundo 
livro, para 
aprender a soletrar e a silabar; a quinta (ainda no segundo livro) cuidava da 
leitura 
para quem já sabia silabar perfeitamente, etc. No terceiro livro, os alunos 
aprendiam 
a ler com pausas. 
Para ensinar ortografia, o professor mandava os alunos copiarem cartas-
modelo e 
documentos comerciais para aprenderem, ao mesmo tempo, coisas úteis para a 
vida. 
Nesse modelo de ensino, aparece uma distinção clara entre ler e escrever. A 
leitura era 
dirigida para as coisas religiosas; a escrita, para o trabalho na 
<20> 
sociedade. Esse modelo de escola partiu da França e teve 
grande repercussão nas escolas dirigidas por religiosos em 
outros países. 
Após a Revolução Francesa, surgiu o Ensino Mútuo, que se 
espalhou sobretudo entre povos anglogermânicos. O pedagogo 
alemão José Hamel, em sua obra Ensino Mútuo, descreve o 
método de alfabetização em detalhes. Os alunos aprendem em 
aulas de 15 minutos, estudando exercícios fáceis e em coro ao 
redor de lousas colocadas nas paredes da sala. O ensino é 
nitidamente coletivo, sendo dado para classes e não mais com 
atenção individual. 
O ensino com muitos alunos numa classe acabou criando um 
tipo de escola para as crianças, as escolas infantis, jardins de 
infância ou escola maternal, iniciadas por Robert Owen (1771- 
1858) em 1816 para os filhos dos operários de sua fábrica têxtil 
de New Lanark, na Escócia. Essas escolas logo se espalharam e 
passaram a cuidar da alfabetização das crianças. O pedagogo 
alemão Friedrich Froebel (1782- 185 2) fundou o primeiro jardim 
de infância (Kindergarten) em 1837. 
A Revolução Francesa trouxe grandes novidades para a escola: 
uma delas foi a responsabilidade com a educação das crianças, 
introduzindo a alfabetização como matéria escolar. Alfabetização 
popular nessa época significava a educação dos ricos que não 
tinham ligação com a nobreza, ou seja, membros da burguesia. 
Diante dessa nova realidade, as antigas cartilhas sofreram 
uma modificação notável. Com a escolarização, o processo 
educativo da alfabetização tinha de acompanhar o calendário 
escolar. Como as antigas cartilhas fossem simples esquemas, 
passaram a ser mais desenvolvidas. O estudo foi dividido em 
lições, cada uma enfatizando um fato. O ensino silábico passou a 
dominar o alfabético. O método do bá-bé-bi-bó-bu começava a 
aparecer. Com poucas modificações superficiais, esse tipo de 
cartilha iria ser o modelo dos livros de alfabetização. 
A moda das escolas que ensinavam as crianças a ler e a 
escrever espalhou-se pelo mundo. Apesar de a escola se 
encarregar da alfabetização, os alunos que freqüentavam essas 
escolas pertenciam a famílias com certo status na sociedade. O 
povo simples e pobre continuava fora da escola. No Brasil, até as 
primeiras décadas deste século, a escolarização da maioria das 
<21> 
pessoas que iam à escola pública não passava do segundo ou do 
terceiro ano. Alguns documentos do final do Império mostram 
que as Escolas Normais não 
tinham alunos e o governo era obrigado a dar vantagens extras 
àquelas pessoas que trabalhavam com alfabetização. 
Naquela época, os professores das escolas 
públicas eram em geral eleitos pela comunidade e tinham um 
mandato determinado. Muitos professores 
queixavam-se dos baixos salários, razão pela qual as poucas 
escolas públicas lutavam para conseguir quem desse aulas. 
 
CARTILHAS DA LÍNGUA PORTUGUESA 
João de Barros (1496-1571) escreveu a gramática portuguesa 
mais antiga, publicada em 1540. junto com 
a gramática, publicou a Cartinha, que é um outro diminutivo 
de "carta", ao lado de "cartilha". O nome 
"cartinha" ou "cartilha" tem a ver com "carta", no sentido 
de esquema, mapa de orientação. 
A Cartinha de João de Barros trazia o alfabeto (em 
letras góticas, que eram as da imprensa da época); depois, 
vinham as "taboas" ou "tabelas", com todas 
as combinações de letras, que eram usadas para escrever todas 
as sílabas das palavras da língua portuguesa. Em seguida, havia 
uma lista de palavras, cada 
uma começando com urna letra diferente do alfabeto e ilustrada 
com desenhos (como: nau, tesoira, etc.). Por último, vinham os 
mandamentos de Deus e da Igreja 
e algumas orações. João de Barros incluiu também um gráfico 
que permitia fazer todas as combinações de letras das "taboas". 
A Cartinha de João de Barros não era um livro para ser usado 
na escola, uma vez que a escola naquela época não alfabetizava. 
O livro servia igualmente para adultos e crianças. Para se 
alfabetizar, a pessoa decorava 
o alfabeto, tendo o nome das letras como guia 
para sua decifração, decorava as palavras-chave, para pôr em 
prática o princípio acrofônico, próprio do alfabeto, e depois 
punha-se a escrever e a ler, interpretando, 
nas "taboas" (ou tabuadas), as sílabas da fala 
com a correspondente forma de escrita. Notem que a ortografia 
não tinha vez, O método estava mais voltado 
para a decifração da escrita do que escrever corretamente. 
<22> 
A cartilha do ABC, que há poucos anos se podia comprar até 
em alguns supermercados ou em certas lojas de estações de 
trem e rodoviárias, segue o mesmo esquema da cartinha de João 
de Barros. Muitas pessoas que não podem ir à escola, ou que 
saíram dela porque foram consideradas "burras" demais para 
aprender, acabam aprendendo a ler através de livrinhos como 
esse. 
Uma cartilha famosa foi a de Antonio Feliciano de Castilho, 
chamada Método portuguez para o ensino do ler e do escrever, 
publicada em 1850. Essa obra merece um estudo detalhado. Uma 
de suas características mais importantes é o emprego dos 
chamados "alfabetos picturais ou icônicos", já usados na Grécia 
antiga e muito em voga durante o Renascimento — na verdade, 
até hoje aparecem nas cartilhas modernas. 
Castilho apresentava também "textos narrativos" para ensinar 
o uso das letras, fazendo urna lição para cadauma delas e para 
os dígrafos. A segunda edição, de 1853, intitula-se Método 
Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, 
manuscrito, e numeração e do escrever Obra tão própria para as 
escolas como para uso das famílias. 
<23> 
Além do método de Castilho, outra cartilha portuguesa que 
ficou muito famosa inclusive no Brasil foi a de João de Deus 
(1830-1896), chamada Cartilha maternal ou arte de leitura. 
Utilizava um modo de escrever letras com destaque dentro das 
palavras, desenhando-as com hachuras; dessa forma, o aprendiz 
se concentrava no que de novo era apresentado. 
A cartilha de João de Deus apresentava já uma forte tendência 
para o privilégio da escrita sobre a leitura, embora, no título da 
obra, haja um destaque à leitura. Essa cartilha foi, sem dúvida, o 
modelo para muitas outras que vieram depois e que chegaram 
até os nossos dias. 
Entre os livros que pertenceram a D. Pedro II, encontra-se, na 
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, uma cartilha intitulada: 
Manual explicativo do método de leitura denominado escola 
brasileira, organizada por Francisco Alves da Silva Castilho (e 
dedicada à classe dos professores de primeiras letras), publicada 
no Rio de Janeiro em 1859. Já pelo título pode-se notar que essa 
cartilha opõe o método do Castilho brasileiro ao do Castilho 
português. O autor foi professor em Campo Grande e 
alfabetizava as crianças pobres, passando depois a se dedicar à 
alfabetização de adultos. 
Ele chama a atenção para o fato de que se devem ler palavras 
inteiras e não letras ou sílabas. Seu método começa sempre com 
urna leitura coletiva, depois individual e, então, vêm os 
exercícios de escrita, seguindo o método que ele denomina 
"sintético/analítico". 
<24> 
No Brasil, depois da grande influência da Cartilha maternal 
(1870), de João de Deus, apareceram inúmeras outras. Entre 
elas há quatro tipos bem marcantes, com métodos e estratégias 
diferentes de conduzir o processo de alfabetização. 
O mais antigo (até a Cartilha maternal) foi chamado de 
método sintético. Partia-se do alfabeto para a soletração e 
silabação, seguindo uma ordem hierárquica crescente de 
dificuldades, desde a letra até o texto. Com a Cartilha maternal, 
começa o método analitico, que vai assumir importância maior 
na década de 30, quando a psicologia passa a fazer testes de 
maturidade psicológica e a condicionar o processo a resultados 
obtidos nesses estudos. Um exemplo típico desse caso é a 
Cartilha do povo (1928), de Lourenço Filho, e o famoso Teste 
ABC (1934), do mesmo autor. 
Com o passar do tempo, apareceram mais obras que seguiam 
o método misto, ou seja, cartilhas que misturavam estratégias 
do método sintético e do analítico. A cartilha Caminho suave 
(1948), de Branca Alves de Lima, com o período preparatório, é 
um bom exemplo. No final dos anos 90, têm surgido obras que se 
classificam como construtivistas e que se propõem a aplicar os 
ensinamentos da psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro 
e Ana Teberosky ao processo de alfabetização programada 
através de livro didático. 
Um livro como Primeira leitura para crianças, de A. Joviano, é 
um tipo de cartilha. Na introdução, o autor traz muitas 
considerações a respeito da forma de alfabetizar. 
 
Nota 
Primeira leitura para crianças, de A. Joviano 
 
João de barro leva no bico uma bola de barro para fazer o ninho 
João leva uma bola de barro leva uma bola para seu ninho uma 
bola vai no seu bico fazer bola de barro com o bico vai uma bola 
no bico de João de barro 
Leva João, o barro para fazer bola! 
 
<25> 
AS CARTILHAS E A ALFABETIZAÇÃO 
As primeiras cartilhas escolares até cerca de 1950 ainda davam 
ênfase à leitura. Achavam importante ensinar o abecedário. A 
leitura era feita através de exercícios de decifração e de 
identificação de palavras, por meio dos quais os alunos 
aprendiam as relações entre letras e sons, seguindo a ortografia 
da época. Havia um cuidado com a fala (e sobretudo com a 
pronúncia), voltado para o padrão social, trazido para a escola a 
partir de textos de autores famosos. Copiava-se muito, e os 
modelos eram sempre os bons autores, ou seja, autores famosos 
da literatura. Como acontecia com as gramáticas, a norma de 
bem escrever era a imitação dos bons escritores. 
 
A cartilha dá ênfase à escrita 
A cartilha baseada na leitura passou, em seguida, por uma 
modificação radical, já na década de 50, quando a escola 
começou a se dedicar à alfabetização dos alunos pobres, 
carentes de recursos materiais e culturais na vida familiar, que 
empregavam dialetos diferentes da fala culta. A ênfase passou a 
ser dada à produção escrita pelo aluno e não mais à leitura. O 
importante, agora, era aprender a escrever palavras. A atividade 
escolar deixou de privilegiar a aprendizagem e passou a cuidar 
quase que exclusivamente do ensino — aquilo que o professor 
deveria fazer em sala de aula. Em lugar do alfabeto, apareceram 
as palavras-chave, as sílabas geradoras e os textos elaborados 
apenas com as palavras já estudadas. As famílias de letras 
passaram a ser estudadas numa ordem crescente de dificuldade. 
Completadas todas as letras, o aluno começava seu livro de 
leitura, agora também programado de maneira a ter dificuldades 
crescentes, libertando aos poucos o aluno da cartilha e levando- 
o a ler autores de textos infantis. Essa cartilha já trazia em si o 
esquema de todas as outras cartilhas que apareceram depois, 
até recentemente, caracterizando a alfabetização pelo estudo da 
escrita e usando como técnica o monta-e-desmonta do método 
do bá-bé-bi-bó-bu. 
Parecia que ia dar certo, mas não foi bem assim. A cartilha 
parecia um caminho suave, mas não era. E a escola percebeu 
logo de início que muitos alunos tinham dificuldade em seguir o 
processo escolar de alfabetização. E as reprovações na primeira 
série tornaram-se freqüentes. 
<26> 
Até o advento do ciclo básico na década de 80, a média de 
reprovação na primeira série era de cerca de cinqüenta por 
cento. Apesar de todos os esforços para superar essa situação, a 
média de reprovação sempre se manteve por volta de cinqüenta 
por cento. Diante dessa realidade, muitos alunos abandonavam a 
escola, não conseguindo superar essa barreira inicial; outros 
desistiam logo depois, e apenas uns poucos, cerca de dez por 
cento, conseguiam concluir a última série do ginásio (na época, o 
correspondente à oitava série do primeiro grau, ou seja, do ciclo 
II do ensino fundamental). 
 
O manual do professor 
Pode-se dizer que a experiência escolar da alfabetização com 
cartilhas foi desastrosa. Os dados estatísticos mostram que a 
escola não consegue alfabetizar mais de cinqüenta por cento de 
seus alunos. A repetência e a evasão escolar foram sempre um 
monstruoso fantasma para as crianças, pais e professores. 
Diante de um quadro desolador e perturbador, a escola 
começou a investigar mais uma vez o que estava errado com a 
alfabetização escolar. A primeira coisa que saltava aos olhos era 
o fato de as cartilhas serem livros esquemáticos demais, o que 
podia dificultar a sua aplicação. Alguns professores podiam não 
saber exatamente como usar aquele tipo de livro, 
comprometendo assim o processo educativo. Era necessário, 
pois, dar uma ajuda especial aos professores, uma orientação 
mais pormenorizada, subsídios mais práticos para uso em sala 
de aula. Foi assim que a cartilha ganhou um companheiro: o 
manual do professor. As cartilhas que sobreviveram passaram a 
ter seu manual do professor, com raríssimas exceções, como a 
Cartilha Sodré. 
Mesmo assim, o índice de repetência continuouassustador. Onde 
será que residia o segredo de tanta reprovação na primeira 
série? A cartilha era "logicamente" perfeita, o professor tinha 
todos os subsídios necessários e prontos para aplicar o método 
das cartilhas; então, a dificuldade deveria residir nas crianças. 
Devia haver "algo" em certos alunos que não permitia que 
aprendessem adequadamente. 
Os manuais do professor apostam na ignorância deste e por 
isso não passam de verdadeiros scrzpts para serem 
representados nas salas de aula. Em vez de ensinar os conteúdos 
básicos do trabalho do professor, partem ~, 
<27> 
de considerações muito vagas a respeito do valor da educação, e 
vão, em seguida, dizendo o que o professor e o aluno devem 
fazer, passo a passo. Num certo manual encontra-se até um 
diálogo que o professor deve promover com seus alunos, sendo 
determinada a fala de cada um. Se o aluno responder diferente, 
o professor precisa ensiná-lo a responder o que está no manual, 
senão a lição não funciona. Nenhum diálogo. porém, ensina o 
que o professor deve fazer se não der certo. A única saída que se 
pode imaginar é repetir tudo de novo, para ver se o aluno 
aprende, o que é, obviamente, uma estultícia. Como o manual do 
professor não resolveu o problema da repetência e a evasão de 
grande parte dos alunos, a escola foi buscar socorro nas 
universidades. 
 
O período preparatório 
A partir dos anos 50, a psicologia começou a fazer um enorme 
sucesso nas universidades do Brasil. Muitos alunos pesquisavam 
para teses, aplicando teorias que, muitas vezes, nem eles 
próprios tinham entendido muito bem. E a escola tornou-se um 
bom laboratório para esses pesquisadores. Sem formação 
pedagógica, sem formação lingüística, os psicólogos começaram 
a aplicar uma variedade de testes e chegaram à conclusão de 
que a grande dificuldade de aprendizagem das crianças na 
alfabetização devia-se ao fato de essas crianças repetentes 
serem pessoas carentes. Carentes de alimentação na infância, 
carentes de estímulos ambientais, necessários para que 
pudessem desenvolver o conhecimento, carentes de emoções 
que as motivassem para aquisição de cultura, enfim, carentes de 
praticamente tudo. Assim, não podiam aprender. Para resolver o 
problema, já que não era conveniente deixar essas crianças fora 
da escola, foi inventado um período que precedesse a 
alfabetização, o chamado período preparatório, no qual as 
crianças seriam treinadas nas habilidades básicas até ficarem 
"prontas" para se alfabetizarem. Sem "prontidão" não se podia 
realizar um processo de alfabetização eficiente. 
Os psicólogos inventaram, então, uma série de coisas 
estranhas para as crianças fazerem antes da alfabetização: fazer 
curvinhas para cá e para lá, completar figuras, fazer bolinhas, 
dizer se uma caixa de sapato é maior do que uma caixa de 
fósforos ou não, localizar o gatinho à direita e à esquerda da 
menina numa figura cm que ela aparece de frente e de costas, 
fazer o ~, 
<28> 
coelhinho ir da esquerda para a direita numa linha curva até 
chegar à toca, etc. Além da cartilha e do manual do professor, 
surgiu agora o livro de "exercícios de prontidão". 
CAGLIARI, 1997c, p. 193224. > Num artigo intitulado "O 
príncipe que virou sapo", discuti alguns aspectos mais 
importantes da teoria do "déficit" das crianças ou, como alguns 
chamam, "a síndrome da dificuldade de aprendizagem". A 
discussão é longa, mas as conclusões são muito evidentes. A 
universidade foi responsável pelo mal que causou à educação 
com o período preparatório e os exercícios de prontidão, 
convencendo os professores de algo que a academia achava 
cientificamente correto, mas que era um grande equívoco. Os 
testes aplicados às crianças foram mal elaborados, envolvendo 
questões de linguagem, sem levar em conta o conhecimento dos 
conceitos lingüísticos envolvidos, sobretudo da noção de 
variação lingüística. O que aqueles psicólogos pensavam da 
linguagem era algo muito diferente do que os lingüistas dizem a 
respeito da linguagem. 
Em meio a tantos equívocos, os resultados só podiam ser 
igualmente equivocados. Por trás de tudo, o que se nota é um 
grande preconceito contra a pobreza e as crianças menos 
favorecidas. Os assim chamados "pré-requisitos lógico-formais" 
da teoria da prontidão são semelhantes aos argumentos de 
preconceito racial, baseados na teoria da carência sociocultural e 
na teoria da superioridade racial. Mais antigamente, as mulheres 
tinham sido discriminadas de maneira semelhante, com mil 
teorias acadêmicas, que pretendiam provar que a mulher era um 
ser inferior porque tinha um volume de massa cerebral menor do 
que o homem. 
As crianças pobres têm mais coisas para aprender, ao entrar 
na escola, do que as crianças ricas, por causa da história de vida 
de cada uma e da natureza das nossas escolas. Isso, no entanto, 
não deve ser confundido com falta de capacidade mental, 
perceptiva, motora, psicológica, ou seja lá o que for. As crianças 
pobres passaram a ser tachadas de deficientes, excepcionais e 
carentes, simplesmente porque falavam ou escreviam errado, 
segundo a opinião desses acadêmicos. A questão central desse 
problema é essencialmente lingüística. Ao analisar com os 
devidos cuidados lingüísticos os fatos de linguagem que a escola 
diz que atrapalham o progresso dos alunos na alfabetização, 
logo se verifica que esses alunos "incapazes" são, na verdade, 
falantes de variedades lingüísticas estigmatizadas pela 
sociedade. 
<29> 
Como a escola não aceita isso e não pode dizer que tem 
preconceito contra a pobreza, começou a achar razões mais sutis 
para disfarçar seus preconceitos. 
Fazendo curvinhas, ninguém aprende a escrever nem a ler. 
Para não escrever espelhado, de nada adianta ficar fazendo 
exercício sobre coordenação motora direita e esquerda. Aliás, 
algumas pessoas se confundiram com relação a isso, justamente 
por causa dos exercícios de prontidão, uma vez que nunca 
sabiam se direita e esquerda era para ser respondido em função 
de quem vê ou do objeto visto: a direita de quem vê é a esquerda 
do objeto visto, e vice-versa. Perguntar a uma criança se uma 
caixa de sapato é maior ou menor do que uma caixa de fósforos 
é uma ofensa. As crianças respondem a perguntas dessa 
natureza porque, apesar de acharem a brincadeira de mau gosto, 
são sempre muito dóceis e condescendentes. Perguntar a uma 
criança: "O que é dentro?" é uma maldade, porque o próprio 
professor não sabe responder e, quando responde, simplesmente 
exemplifica, o que, sem dúvida alguma, não é uma resposta à 
pergunta que fez à criança. Se um professor disser a uma 
criança: "Dentro da cozinha que fica dentro da escola tem uma 
geladeira e dentro do congelador tem um sorvete dentro de uma 
caixa amarela... você pode pegar que é todo seu" e deixar, de 
fato, a criança fazer o que lhe foi dito, não há criança que não 
saiba o que quer dizer "dentro de". Por coisas como essas (e 
tantas outras...) é que o período preparatório não passa de um 
grande equívoco pedagógico e psicológico. Está tudo tão errado, 
que a melhor solução é abandona-lo por completo. 
Apesar do enorme esforço em aperfeiçoar a "prontidão" nos 
mínimos detalhes, o índice de cinqüenta por cento de reprovação 
na primeira série manteve-se mais ou menos inalterado. Aquela 
imensa parafernália não servia para resolver o mais importante, 
que era a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças. 
Em vez do período preparatório e dos tradicionais exercícios 
de prontidão, o professor pode fazer inúmeras outras atividades 
mais inteligentes, que contribuam de fato para o processo de 
alfabetização. Umadelas, de valor inestimável, é propor aos 
alunos que façam muitos desenhos livres. A sofisticação e a 
riqueza dessa atividade são tantas que por si só valem tudo o 
que se pensava alcançar com o tradicional período preparatório. 
<30> 
Nota 
De acordo com a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da 
Educação (1997), cabe aos estados decidir pela forma de 
promoção dos alunos: com ou sem reprovação. Os estados de 
Minas Gerais e São Paulo pretendem abolir a reprovação e 
introduzir a promoção automática no ensino fundamental. 
Algumas idéias, mesmo plenamente justificáveis, demoram a ser 
absorvidas pelos órgãos oficiais, por causa muitas vezes de uma 
discussão mal conduzida. No Brasil é evidente a confusão que se 
costuma fazer entre avaliação (necessária sempre) e promoção 
(que deveria ser automática). Veja a respeito as entrevistas A 
escola não deve reprovar ninguém" (CAGLIARI, 1988b) e 
Avaliação e promoção" (CAGLIARI, 1 996e). 
 
ALFABETIZAÇÃO HOJE 
Apesar de todas as interferências recentes no processo de 
alfabetização, a prática escolar mais comum em nossas escolas 
ainda se apóia na cartilha tradicional (a cada ano com nova 
roupa e maquiagem). Quando o professor diz que não adota a 
cartilha, continua usando o método da cartilha, fazendo ele 
próprio o que antes vinha nos livros didáticos. Contudo, há cada 
vez mais um número crescente de professores que estão 
conduzindo um processo de alfabetização diferente do método 
das cartilhas, procurando equilibrar o processo de ensino com o 
de aprendizagem, apostando na capacidade de todos os alunos 
para aprender a ler e a escrever no primeiro ano escolar e 
desejando que essa habilidade se desenvolva nas séries 
seguintes, até chegar ao amadurecimento esperado pela escola. 
Cada vez mais professores estão se dedicando seriamente ao 
próprio objeto de estudo e ensino, que é a linguagem. Velhas 
idéias, porém básicas, como ensinar o alfabeto, as relações entre 
letras e sons, os diferentes sistemas de escrita que temos no 
mundo em que vivemos, a ortografia, estão voltando a ter 
importância na alfabetização. 
Por outro lado, o "entulho" que se acumulou com o tempo, 
enchendo a alfabetização de ridículos exercícios de prontidão e 
coisas semelhantes, está sendo eliminado aos poucos da prática 
escolar. Mesmo o "entulho gramatical" que se cristalizou na 
primeira série, como o estudo de categorias gramaticais, 
número, gênero, grau, etc, tem sido removido, trazendo para o 
trabalho de alfabetização um esforço concentrado na 
aprendizagem da escrita e da leitura como decifração da escrita 
e do mundo através da linguagem. 
Num esforço de muitas pessoas, a começar pelo estado de 
São Paulo, conseguiu-se introduzir na escola o "ciclo básico", 
juntando a primeira e a segunda série. A idéia inicial era ter mais 
dois ciclos posteriores, um incorporando a terceira, a quarta e a 
quinta série, e outro, a sexta, a sétima e a oitava série. Desse 
modo, o aluno seria submetido a uma avaliação de promoção ao 
final de cada ciclo. Infelizmente, só foi posto em prática o cicio 
básico, o que deu a entender a muita gente que o objetivo era 
apenas mudar as estatísticas de reprovação dos alunos da 
primeira série, uma vez que agora a promoção era automática. 
Muitos outros equívocos apareceram juntamente com o ciclo 
básico, alguns ~, 
<31 > 
motivados pelos próprios órgãos oficiais da educação. Apesar 
disso tudo, com ele foi possível realizar uma grande discussão 
sobre a situação da alfabetização em nossas escolas e introduzir 
novos estudos e novos modos de trabalho, com grandes 
vantagens para a educação como um todo. Além disso, foi 
possível tratar a alfabetização sem o medo da reprovação, levar 
adiante um trabalho de ensino e de aprendizagem que não tinha 
mais a nota como objetivo a ser alcançado, mas a formação, a 
instrução, enfim, a educação. 
 
ALFABETIZAÇÃO E ESCOLA 
A história da alfabetização e das cartilhas fala por si. Aqui, 
como em outros campos, vemos como a escola veio para 
complicar tudo. A alfabetização que poderia (e deveria) ser um 
processo de construção de conhecimentos que se faz com certa 
facilidade, tornou-se um pesadelo na escola. A razão principal é 
a atitude autoritária da instituição escolar. A autoridade escolar 
funciona melhor depois que os alunos estão "domados". Porém, 
nas primeiras séries, as crianças resistem mais porque ainda não 
aprenderam a se submeter a tudo o que ouvem e vêem. A 
individualidade ainda é uma marca forte da personalidade das 
crianças, mas, infelizmente, já não se pode dizer o mesmo dos 
alunos das últimas séries e sobretudo de níveis mais altos de 
escolaridade. 
Enquanto a alfabetização escolar ficou presa à autoridade de 
mestres, métodos e livros, que tinham todo o processo 
preparado de antemão, constatou-se que muitos alunos que não 
trabalhavam segundo as expectativas dos mestres, métodos e 
livros eram considerados incapazes e acabavam de fato não 
conseguindo se alfabetizar. 
Por outro lado, as propostas de alfabetização que começaram 
a valorizar a criança e seu trabalho criaram um clima mais calmo 
e tranqüilo em sala de aula, uma melhor interação entre 
professor e aluno, proporcionando condições mais saudáveis 
para que o processo de alfabetização se realizasse. 
Os órgãos da administração pública encarregados da educação 
interferiram muito no trabalho escolar, quer ditando as regras da 
burocracia, quer, sobretudo, ditando ~, 
<32> 
as normas pedagógicas. Este é o país onde tudo é feito por meio 
de leis e decretos e, desse modo, todo o mundo tem uma escusa 
para o próprio fracasso, achando que tudo está bem e correto 
quando a burocracia está em dia. Como as escolas de formação 
de professores para o magistério, guiadas por estranhas idéias 
oriundas das faculdades de educação, não conseguem dar a 
formação necessária para os professores, os órgãos públicos 
encarregados da educação passaram a dar periodicamente 
"pacotes educacionais", de acordo com os modismos da época; é 
o método sintético, analítico, fônico, global, lúdico, 
psicopedagógico, freinet, semiótico, construtivista, lingüístico, 
etc. Os professores, atormentados com tantas mudanças, vítimas 
da própria incompetência, foram experimentando todos os 
"pacotes". Essa loucura serviu mais para criar nos professores 
uma aversão a tudo o que é novo, mesmo que traga 
contribuições realmente importantes para seu trabalho. Houve 
tantos "pacotes" e tantas decepções em tão curto prazo, que 
hoje muitos professores já não sabem mais distinguir o que vale 
e o que não vale, o que é certo e o que é duvidoso, o que é 
verdade e o que é engodo. Se sua competência já era muito 
limitada, agora além de tudo ficou confusa, diante de tantas 
"experiências educacionais". Alguns, novatos no trabalho ou 
ingênuos por natureza, ainda acham que a última moda é a 
panacéia para todos os males do passado e a esperança do 
futuro. 
CAGLIARI, 1992c, MAGNANI, 1993. e O que de fato está por 
trás de toda essa história é a 
presença de um grande número de professores alfabetizadores 
que nem sequer são capazes de avaliar o que 
vêem diante de seus olhos, quer se trate de um "pacote 
educacional, quer se trate de um aluno que não aprende o que 
eles ensinam. Um professor que não sabe avaliar com precisão 
se um método é bom ou não, 
dando as razões de sua conclusão, é um professor mal- 
preparado, incompetente. A culpa em grande parte vem das 
escolas de formação e dos "pacotes" educacionais mas em parte 
vem também da atitude comodista do próprio professor, que não 
se interessou pessoalmente em estudar o que nãolhe foi 
ensinado. 
Essa competência está ligada ao conhecimento de muitos 
aspectos da sua atuação como educador e como 
professor alfabetizador. Estudar pedagogia, metodologia 
psicologia é importante. Mas ninguém se forma um bom 
alfabetizador só com essas disciplinas. O fundamental é saber 
como a linguagem oral e escrita são e 
<33> 
os usos que têm. Resumindo, a competência técnica do 
professor alfabetizador se apóia em sólidos e profundos 
conhecimentos de lingüística e dos sistemas de escrita (de 
matemática e de ciências inclusive...). Esses conhecimentos, 
aliados aos de pedagogia e psicologia, fazem dele um 
profissional que sabe exatamente o que faz e por que faz de um 
jeito e não de outro. Se formássemos de maneira correta nossos 
professores alfabetizadores, teríamos, neste país, em pouco 
tempo uma outra realidade em termos de analfabetismo. Hoje, 
não só existem milhões de pessoas analfabetas, como também 
pessoas que foram, de fato, mal alfabetizadas. Nenhum método 
educacional garante bons resultados sempre e em qualquer 
lugar; isso só se obtém com a competência do professor. 
O Brasil precisa de uma modificação profunda na educação e, 
em especial, na alfabetização. Para isso necessita de professores 
com melhor formação técnica. As escolas de formação dedicam 
muito tempo às matérias pedagógicas, metodológicas e 
psicológicas e não ensinam o que devem a respeito da 
linguagem; nem sequer têm cursos de lingüística (ou de 
aritmética). Como um professor pode lidar corretamente com o 
fenômeno lingüístico, se ele nunca estudou lingüística? Ninguém 
alfabetiza só com metodologia e psicologia, como também não 
alfabetiza somente com lingüística. A escola precisa saber dosar 
todos esses conhecimentos para poder atuar de maneira correta. 
Nada substitui a competência do professor e, enquanto nossas 
escolas continuarem a formar mal nossos professores, a 
alfabetização e o processo escolar como um todo continuarão 
seriamente comprometidos. 
 
Nota 
Não se pode encerrar mesmo um sucinto relato da história da 
alfabetização sem mencionar a importância da figura de Paulo 
Freire. O chamado Método Paulo Freire dirigido sobretudo para a 
alfabetização de adultos — foi aplicado em larga escala em 
outros países, além do Brasil como outros grandes educadores 
que se dedicaram à alfabetização. Paulo Freire trabalhou mais 
com a intuição o bom senso e menos com rigor científico ao 
tratar de fatos da linguagem. Sua obra mais importante está 
voltada principalmente para questões ligadas à política 
educacional e à pedagogia em geral. 
<34> 
 
2 
O ensino e a aprendizagem: os dois métodos 
 
A questão metodológica não é a essência da educação, apenas 
uma ferramenta. Por isso, é preciso ter idéias claras a respeito 
do que significa assumir um ou outro comportamento 
metodológico no processo escolar. É fundamental saber tirar 
todas as vantagens dos métodos, bem como conhecer as 
limitações de cada um. 
Como o assunto é muito vasto e complexo, e sobre ele já 
existe considerável literatura, apresentaremos apenas um 
esboço geral dos pontos mais importantes para a discussão que 
faremos em seguida. Existe, no mercado, uma quantidade 
enorme de livros e publicações 
a respeito de métodos de ensino (raramente 
de métodos de aprendizagem) que, num esforço para defender 
ou atacar certos procedimentos adotados pelas escolas, acaba 
confundindo seus leitores, os quais, em meio a tantas posições 
diferentes, ou mesmo contraditórias, já não sabem mais no que 
acreditar. Daí o descrédito de alguns professores na educação, 
fruto da indignação metodológica, oriunda dos pacotes 
educacionais e das contradições metodológicas a que são 
submetidos. 
Às vezes, é preciso voltar às origens, aos princípios básicos, às 
coisas mais simples e claras, rever a história, 
retomando uma visão correta do fenômeno. Para isso, é preciso 
rever alguns pontos gerais a respeito de ensino, aprendizagem e 
métodos. 
Por incrível que pareça, existe uma confusão muito grande 
entre ensino e aprendizagem em meio às pessoas 
que lidam com educação. O mais comum é se levar em 
consideração apenas o ensino, supondo que a aprendizagem 
ocorre automaticamente, como fruto inevitável 
do ensino, o que é um erro grosseiro. Muitos 
aceitariam a diferença sem problemas, na teoria, mas a prática 
mostra que a confusão é visível e está presente a cada passo. 
CAGLIARI, 1990; PATTO, 1990; PATTO 1997 
O QUE É ENSINAR, O QUE É APRENDER 
Ensinar é um ato coletivo: pode-se ensinar a um grande 
número de pessoas presentes numa aula ou numa conferência, 
etc. Quem ensina procura transmitir informações 
que julga relevantes, organizadas do modo 
que lhe parece mais razoável, para que seus ouvintes aprendam 
algo que deseja transmitir. 
<36> 
Aprender é um ato individual: cada um aprende segundo seu 
próprio metabolismo intelectual. A aprendizagem não se 
processa paralelamente ao ensino. O que é importante para 
quem ensina, pode não parecer tão importante para quem 
aprende. A ordem da aprendizagem é criada pelo indivíduo, de 
acordo com sua história de vida e, raramente, acompanha passo 
a passo a ordem do ensino. 
No ensino, é muito importante o que se diz; na aprendizagem, 
o que se faz, mesmo quando o fazer significa dizer. Aprender não 
é repetir algo que foi ensinado, mas criar algo semelhante, a 
partir da iniciativa individual de quem aprende. Quando 
simplesmente se repete um modelo, não ocorre exatamente uma 
aprendizagem. Ela vai aparecer somente quando a pessoa, por 
ação própria, conseguir realizar algo de acordo com as 
expectativas alheias. 
A aprendizagem é sempre um processo construtivo na mente e 
nas ações do indivíduo. O ensino não constrói nada: nenhum 
professor pode aprender por seus alunos, mas cada aluno deverá 
aprender por si, seguindo seu próprio caminho e chegando onde 
sua individualidade o levar. Por isso, a aprendizagem será 
sempre um processo heterogêneo, ao contrário do ensino, que 
costuma ser tipicamente muito homogêneo. 
Escolas que se apegam demais ao processo de ensino, em 
detrimento do processo de aprendizagem, gostam de manter 
classes homogêneas, fazendo remanejamentos, sempre que 
oportuno e possível, para facilitar o processo de ensino, 
desconsiderando totalmente a natureza do processo de 
aprendizagem, entre outros fatores pedagógicos. 
Não é porque o professor ensina, que um aluno 
automaticamente aprende. Aprender depende muito da história 
de cada aprendiz, de seus interesses, de seu metabolismo 
intelectual. A maneira como aquilo que é ensinado passa a ser 
algo aprendido é do foro íntimo de cada indivíduo. Obrigá-lo a 
agir diferentemente é uma violência contra sua liberdade e 
racionalidade. Obrigar alguém a aprender alguma coisa é 
"lavagem cerebral". A aprendizagem precisa partir de uma 
opção individual. O fato de se ter um professor, uma classe, uma 
turma de alunos não significa que se tem uma escola. É essencial 
saber o que faz o professor e o que fazem os alunos, o que 
compete a cada um, o que cada um espera do outro. Sem uma 
visão clara e correta da atividade escolar, corre-se o risco 
<37> 
de se colocar em prática um processo de educação totalmente 
equivocado como, aliás, vem acontecendo muito freqüentemente 
neste país. 
Por outro lado, não é porque um professor não ensina algo, 
que um aluno necessariamente não aprende tal ponto. Há muitas 
maneiras de aprender: ir à escola é uma forma prática e 
organizada (pelo menos deveria ser) de aprender "as coisas da 
escola". Nada impede, todavia, que se aprenda com os pais, comum colega, por iniciativa própria, olhando os livros ou mesmo 
refletindo sobre o mundo. Afinal, antes da escola, as pessoas 
aprendiam como? Nossa cultura ocidental atual criou urna 
dependência exagerada das instituições escolares e seus 
métodos. As atividades de sala de aula estão voltadas para o que 
o professor faz ou deixa de fazer e deixam pouco espaço para 
que os alunos aprendam de outra maneira que não por 
intermédio do professor. Um aluno pode ensinar ao outro, os 
alunos podem usar sua criatividade para procurar explicações e 
soluções para os problemas escolares, refletir, pensar, tentar 
fazer, refazer, etc. São coisas que os alunos são capazes de fazer 
por iniciativa própria, se a escola criar condições de estudo que 
facilitem esse tipo de atividade. Infelizmente, nossas escolas 
reduziram-se cada vez mais à sala de aula e ao processo de 
ensino dirigido pelo professor. 
 
O PROFESSOR COMO EDUCADOR 
Alguns professores têm muita dificuldade em olhar para seus 
alunos e enxergar o que se passa com eles. Na maioria das 
vezes, sabem apenas aplicar o que aprenderam nas escolas de 
formação ou em livros, sem levar em conta se aquele é o 
momento adequado para o que pretendem fazer e se aqueles 
alunos se enquadram ou não no caso que querem aplicar. A 
insensibilidade dos professores, da escola e dos órgãos públicos 
com relação ao processo de aprendizagem é patente e 
geralmente catastrófica para o ensino. 
O que mais falta na educação deste país é a figura do 
educador. Há muitos professores e profissionais da educação, 
mas poucos educadores. Falta o professor educador que em 
primeiro lugar se preocupa em conhecer seus alunos e só depois 
diz a eles, de maneira clara, honesta e adequada, aquilo que os 
educa, de fato, para 
<38> 
a vida. A educação não se conhece a si mesma: quantas vezes 
se vê um órgão público tomar decisões obrigando todos os 
professores a agir de determinada maneira, sem respeitar a 
individualidade de cada um, seu modo de ser e de trabalhar. 
Exigir competência e honestidade profissional dos professores é 
algo de que nunca se vai abrir mão, mas isso não significa que se 
deva fazer com os professores o que alguns professores fazem 
com seus alunos: dizem e nem querem saber o que o outro 
pensa, como se toda ordem que vem de cima fosse sempre 
perfeita e inquestionável. 
Está na hora de devolver a educação aos educadores, está na 
hora de exigir daquelas pessoas que lidam com educação uma 
competência maior. A educação, no Brasil, é tão ineficaz que 
nem consegue gerenciar adequadamente a si própria, O que falta 
não é dinheiro: falta competência em todos os níveis para 
melhorar a educação. 
Infelizmente, não é raro encontrar nas nossas escolas 
professores analfabetos por opção, ou seja, professores que, 
depois de formados, pararam seus estudos. Não compram mais 
nenhum livro e raramente escrevem algo que não seja sua 
obrigação diária de sala de aula. Há muitos professores que 
passam anos e anos lendo e escrevendo as mesmas coisas, 
porque acham que aprenderam assim e assim devem ensinar. 
São professores que sabem ler e escrever, mas não usam esse 
conhecimento. a não ser para repetir todos os anos as mesmas 
práticas educativas. 
A evidência maior da incompetência da educação neste país 
encontra-se na falta de um projeto de educação. Muito se fala 
sobre o assunto, mas, em vez de um projeto de educação 
estruturado e de valor, tem-se um amontoado de leis e 
regulamentos, juntamente com pacotes metodológicos que 
alguém ou um grupo de pessoas decide impor a todos os demais. 
O grande trabalho educativo deve voltar às mãos do 
professor. Ele precisa ter liberdade de ação para que se possa 
exigir dele competência e desempenho profissional à altura dos 
ideais da verdadeira educação. Sem o professor, não há escola, 
e, sem escola, não há educação de massa, de que o Brasil tanto 
precisa. A educação vive mergulhada numa burocracia 
sufocante. Ninguém parece confiar mais no professor. Todo 
mundo quer dizer o que um professor deve ou não fazer. Em vez 
disso, dever-se-ia dar mais liberdade e exigir mais 
responsabilidade. 
<39> 
DOIS MÉTODOS 
A educação não pode viver só do ensino, caso em que o 
professor vem para a sala de aula e despeja em seus alunos um 
longo discurso a respeito de um determinado ponto, como 
também não pode viver só da aprendizagem, deixando os alunos 
descobrirem tudo por si mesmos e livres para fazer o que bem 
entenderem. Deve haver um equilíbrio entre os dois tipos de 
atividade: o professor deve ensinar, caso contrário, as escolas 
não precisariam existir, pois cada um aprenderia por iniciativa 
própria. Por outro lado, o professor não pode ser o dono da 
educação, aquele que tem tudo sob seu comando. É preciso que 
haja também uma grande participação do aprendiz, porque afinal 
de contas é ele quem precisa aprender e mostrar que aprendeu 
e, sobretudo, saber que aprendeu. O aluno só pode ter certeza 
de que de fato aprendeu algo, quando, por iniciativa própria, 
conseguir utilizar adequadamente os conhecimentos que são 
objeto do seu processo de aprendizagem. 
Por essas razões, entre outras, pode-se dizer que a educação, 
na sua essência, tem dois métodos apenas, com muitas 
variantes: um baseado no ensino e outro na aprendizagem. A 
verdadeira prática educativa serve-se de ambos, na medida 
adequada. A exclusão pura e simples de um ou de outro torna o 
processo falho, às vezes com conseqüências sérias. 
Nos estudos pedagógicos, a metodologia do ensino ocupa um 
lugar muito importante e em conseqüência disso tem-se 
produzido uma vasta literatura a respeito. Talvez por isso 
mesmo, algumas pessoas tenham certa dificuldade de perceber o 
essencial em meio à complexidade dos detalhes. Por essa razão, 
apresenta-se, a seguir, um esboço geral e muito simplificado do 
que vem a ser um método de ensino. O objetivo aqui vai além da 
sala de aula e pretende mostrar que toda atividade de ensino e 
de aprendizagem, no seu extremo, tem as características básicas 
apresentadas abaixo. 
Em primeiro lugar, podemos dizer que todos os métodos, no 
fundo, baseiam-se em um dos dois métodos básicos, que vou 
chamar de método de ensino (método 1) e método de 
aprendizagem (método 2). 
Há uma tipologia de métodos que, considerando os seus 
processos de argumentação, costuma classifica-los de uma 
maneira ou de outra, como, por exemplo, método dedutivo, 
método indutivo, método mecanicista, 
<40> 
método construtivista, método global, método fônico, etc. 
Toda essa discussão pode, de certo modo, ser derivada das 
características daquilo que chamamos aqui de método 1 e 
método 2. São as variantes das duas vertentes principais. 
Como o enfoque neste livro é a alfabetização, o que se dirá a 
respeito desses dois métodos estará voltado para o processo 
escolar de alfabetização. No entanto, o método 1 e o 2 servem 
para qualquer atividade de ensino e de aprendizagem. 
 
DUAS CONCEPÇÕES DE UNGUAGEM 
É importante levar em conta ainda o fato de que, na prática, 
esses métodos dependem muito da concepção de linguagem que 
as pessoas têm: professor e aluno, quem ensina e quem 
aprende. A linguagem exerce, na alfabetização, uma importância 
fundamental. Na verdade, nesse momento, tudo gira em torno 
dela. Por isso, dependendo da maneira como uma pessoa 
interpreta o que a linguagem é, como funciona, que usos tem, 
pode-se ter um determinado comportamento pedagógico e 
métodos diferentes na prática escolar. Inversamente, pode-se 
ver com clareza na prática em sala de aula, nos métodos que a 
escola usa, qual é a concepção de linguagemsubjacente. 
Por exemplo, toda cartilha (independentemente do método 
que lhe seja atribuído pelo autor ou pelos entendidos) baseia-se 
exclusivamente no método do ensino. Mesmo atividades que 
devem ser feitas pelos alunos, devem seguir um modelo prévio, 
transmitido como ensino. Não conheço, em nenhuma cartilha, 
um espaço real dedicado ao processo de aprendizagem. O aluno 
procura sempre responder, com o que faz, de acordo com as 
expectativas do autor da cartilha ou do professor "que passa a 
lição". Essa atitude revela uma concepção de linguagem na qual 
o falante se vê diante de um impasse, tendo de decidir entre o 
certo e o errado. A linguagem apresenta-se como algo "que 
precisa ser corrigido". Ora, na vida real, quando as pessoas 
usam a linguagem, não têm esse tipo de preocupação: elas, 
simplesmente, pensam e falam o que quiserem, do jeito que 
acharem mais conveniente. Nenhum falante acha que fala 
errado, a não ser na escola, ou por influência da educação 
escolar. 
<41> 
Outro exemplo: o método fônico considera que uma criança, 
aprendendo a reconhecer e a analisar os sons da fala, passa a 
usar o sistema alfabético de escrita de maneira melhor. Essa 
idéia revela uma concepção de linguagem segundo a qual uma 
pessoa "fala melhor" quando monitoriza os sons que pronuncia, 
o que é falso. Quem fala "tchia" em vez de "tia" e aprende a 
escrever "tia", continua falando "tchia" e nem se dá conta da 
diferença, porque, quando falamos, nos preocupamos mais com 
as idéias que queremos transmitir do que com os sons das 
palavras que irão revelar nossos pensamentos. Há, ainda, o 
problema da ortografia, que não atrapalha quem fala "tchia" e 
tem de escrever "tia", mas que irá atrapalhar, e muito, quem fala 
"drento" e tem de escrever "dentro"; trata-se de regras 
lingüísticas diferentes. 
Outra concepção de linguagem muito facilmente detectada 
através da prática escolar é aquela que considera que a função 
mais importante da linguagem, senão a única, é a comunicação. 
A linguagem também serve para comunicar, mas os lingüistas 
estão cada vez mais convencidos de que a comunicação não é a 
função mais importante da linguagem, nem talvez a mais usada. 
Atrás de notícias encontram-se censuras, ocorrem tomadas de 
posição, transmite-se uma cosmovisão, além de outros 
pressupostos e de conotações que tornam o literal da 
comunicação algo secundário, quando não um pretexto para a 
manipulação das idéias do ouvinte. Quanto de enganação, de 
mentira e de outras coisas pouco louváveis existe numa simples 
enunciação ou numas poucas palavras escritas que encontramos 
pelo mundo e pela vida... Basta refletir um pouco, que essas 
verdades logo se revelam. Ora, a escola não pode ser ingênua e 
pensar que a linguagem é essencialmente comunicação. Juntar 
idéias e sons — formando a linguagem — não é a mesma coisa 
que "comunicar". A comunicação é uma função importante da 
linguagem, porém, esta não se reduz apenas a comunicar. 
 
O MÉTODO 1- VOLTADO PARA O ENSINO 
 
A situação inicial 
O método 1 volta-se exclusivamente para o processo de 
ensino. Nesse caso, a situação inicial do aprendiz 
é interpretada como um começo absoluto de tudo, 
<42> 
o marco zero de uma caminhada, uma página em branco onde 
se vai começar a escrever sua vida escolar. No começo do ano, o 
professor programa o que vai ensinar, sem sequer conhecer seus 
alunos, porque o que vai ensinar é um começo absoluto que não 
precisa de pré-requisito, é um ponto de partida considerado ideal 
para todos os alunos, independentemente da maneira de ser e de 
saber de cada um. 
Essa atitude é até mais comum nas outras séries do que na 
alfabetização, porque os alfabetizadores já aprenderam, na 
prática, que não podem ser tão cegos assim. Nas séries mais 
adiantadas da escola, essa é a regra geral. Alguns professores 
acham mesmo que a atitude mais adequada é "nem querer 
saber" o que os espera, que alunos vão ter. Os alunos que se 
virem, dizem. 
Nesse quadro, os envolvidos acham que ninguém pode 
reclamar do professor, porque ele começou do começo e de 
maneira igual para todos, dando chances iguais para todos. 
Obviamente, isso é muito conveniente para quem ensina, mas é 
má pedagogia. 
A técnica 
A técnica do método 1, na alfabetização, consiste na atividade 
do desmonta-e-monta da linguagem, em todos os seus níveis, de 
todas as formas possíveis. O método 1 considera que a melhor 
maneira de ensinar alguém é desmontando e remontando, ou 
montando coisas novas a partir de pedaços. Nesse caso, parte-se 
sempre de um modelo exemplar, por exemplo, uma palavra- 
chave. Depois, desmonta-se a palavra em "pedaços" (ou 
sílabas). Em seguida, desmontam-se as sílabas em letras (ou 
sons). Feito isso, a palavra é remontada. Assim, o professor 
espera que o aluno aprenda como funciona a escrita e que 
relações tem com a linguagem oral. Com alguns pedaços de 
palavras, pode-se descobrir que é possível formar palavras 
novas, diferentes das palavras-chave. Por exemplo, 
desmontando BATATA, tem-se BA, TA, TA. Com esses pedaços, 
pode-se formar as palavras "Tatá", "bata" e "taba". As sílabas 
geradoras (o bá-bé-bi-bó-bu) nada mais são do que a 
organização dos pedaços das palavras, extraídos das palavras- 
chave, para os alunos construírem palavras conhecidas e 
palavras novas. 
Alguns alunos vão seguindo as pegadas do professor e acabam 
fazendo tudo direitinho. Outros pensam que pegaram o "espírito 
da coisa" e passam a inventar formas 
<43> 
estranhas de escrever, segundo o professor. Por exemplo, 
escrevem "cavalolalelilolu" ou "tapabapa", mostrando que 
aprenderam as sílabas geradoras, no primeiro exemplo, e que 
sabem juntar os pedaços de palavras, formando "palavras 
novas", no segundo caso. Aprendem o jogo da escola, mas não 
sabem de seus limites e usos reais, porque o método não ensina 
isso. Alguns alunos unem palavras aparentemente sem sentido, 
porque seguem apenas as regras do jogo, que diz que, juntando 
dois pedaços de palavras, forma-se uma palavra nova. Como não 
conhecem todas as palavras da língua (todos nós aprendemos 
palavras novas todos os dias...), as crianças ligam os 
pedacinhos, achando que o professor, que sabe tudo, saberá 
qual o significado de uma palavra como "tapabapa", como sabia 
antes o que significava "taba", que a criança nunca tinha ouvido. 
Por mais estranho que pareça, alguns professores, diante de 
fatos como esse, vão direto ao aluno e perguntam "O que 
significa tapabapa?" O aluno fica assustado com a pergunta: 
afinal de contas, quem deve saber essas coisas é o professor, 
não ele. Ele apenas faz a lição, isto é, liga os pedacinhos de 
letras para formar palavras. A pergunta do professor faz com 
que o aluno sinta-se mais perplexo ainda, porque além de tudo 
aquilo que não entendeu, o professor ainda quer que ele se sinta 
culpado por um erro que ele não sabe onde está nem por que 
aconteceu. E, se aconteceu, foi mais por culpa do professor do 
que dele. 
Desmontar e montar as palavras da língua não é um uso 
natural nem da linguagem oral nem da linguagem escrita, 
apenas uma estratégia de ensino escolar. Na linguagem oral, 
falamos tudo junto, fazendo pausas apenas em alguns lugares. 
Não falamos fazendo pausa após cada palavra. Na escrita, 
separamos as palavras com um espaço em branco por razões 
ortográficas, não porque falamos desse modo. 
Na verdade o método pretende associar os pedacinhos das 
palavras aos sons, para que os alunos aprendam a ler. Ora, como 
a ortografia esconde todas as variações dialetais, logo se 
percebe que essa técnica causará confusão na cabeça das 
crianças.Ninguém pode esperar das crianças (na verdade de 
nenhum falante) que saibam se o que estão remontando com o 
bá-bé-bi-bó-bu forma uma palavra aceitável ou não na língua. 
Por outro lado, muito raramente um professor abre o jogo com 
os alunos e diz que não basta ligar os pedacinhos, mas que é 
preciso ir além e checar se a palavra que foi 
<44> 
formada existe, de fato, na língua e se sua forma de escrita 
está de acordo com as normas ortográficas. 
 
A base: o já dominado 
Com o método 1, parte-se do zero e vão-se acrescentando 
informações, uma após a outra, as quais o aprendiz precisa 
dominar. Dominado ou aprendido algo, passa-se ao conteúdo 
seguinte, que deve ser aprendido. Aprender é dominar, ou seja, 
devolver a quem ensinou o conteúdo ensinado. A base desse 
método é, pois, o conhecimento já dominado. Para isso, decorar 
é fundamental, sobretudo decorar de modo a repetir um modelo 
dado e que será cobrado como expectativa de resposta. A 
repetição é a prática mais comum para se dominar qualquer 
conhecimento. Portanto, o aprendiz é levado a repetir a lição até 
dominá-la, e, enquanto não provar que já o faz, repetindo-a 
corretamente, irá fazer tantas tentativas quantas forem 
necessárias. 
Não é raro encontrar professor que vive se queixando dos 
alunos, dizendo que sempre ensina as mesmas coisas e os 
alunos não aprendem. Esses professores mostram que usam o 
método 1. Nesses casos, nunca se questiona o ensino, mas tão- 
somente o comportamento do aprendiz. O método 1 não é capaz 
de aceitar que o mais importante não é dominar, mas saber 
aplicar um conhecimento para realizar uma tarefa. Nem sempre 
reproduzir um modelo garante a aprendizagem, embora garanta, 
sim, uma réplica de algo que o aprendiz pode fazer sem saber 
exatamente o que está acontecendo. 
Na alfabetização, alguns alunos são exímios repetidores de 
lições que dominam sem saber o que significam. 
Conseqüentemente, quando precisam aplicar o conhecimento de 
maneira criativa e individual, acabam revelando sua ignorância, 
produzindo escritas absurdas. Por exemplo, alguns alunos 
copiam corretamente o que lhes é solicitado, fazem sem erros os 
ditados das palavras já dominadas, escrevem pequenas frases 
em que só aparecem palavras "já dominadas", mas, quando se 
vêem diante de palavras cuja escrita lhes é desconhecida, ou não 
fazem nada, ou escrevem simplesmente amontoados de letras ou 
de sílabas geradoras. Esses alunos foram ensinados pelo método 
1. 
Alunos que fazem isso raramente chegam a descobrir como o 
sistema de escrita funciona, como se decifra algo escrito para ler 
e, conseqüentemente, não chegam 
<45> 
a se alfabetizar. Como a escola não pode viver só do que é 
considerado dominado, logo chega o dia em que o professor se 
esquece disso e leva os alunos a aplicarem o que ele achava que 
tinha ensinado e que o aluno tinha aprendido (fazia tudo tão 
direitinho), e o resultado é uma enorme decepção para ele e, 
principalmente, para o aluno. 
 
O uso da memória 
O uso da memória, nas atividades escolares, é muito 
importante e não deve ser confundido com a prática de promover 
o ensino baseando-se no já dominado. A memorização é 
fundamental no processo de aprendizagem, mas não pode ser 
um truque, como acontece no método 1. Neste, o já dominado 
apenas revela um modelo repetido. No processo de 
aprendizagem, a memorização faz parte do processo de reflexão, 
trazendo para a prática do aprendiz todos aqueles 
conhecimentos necessários para que ele tome as decisões 
corretas. 
Às vezes, alguns professores, querendo fugir desse esquema, 
acabam desterrando a memorização do processo pedagógico 
escolar. Outras vezes, convencem-se, graças a argumentos 
falaciosos que ouvem em congressos, palestras ou lêem em 
livros, de que a memória não tem vez na aprendizagem, e de que 
aprender é entender e não decorar. São frases feitas de grande 
efeito e de pouco sentido. É preciso não confundir o memorizar 
que vem da reflexão de um simples repetir que vem de um 
exercício vazio de repetição controlada, como acontece com a 
prática pedagógica do método 1. São duas realidades muito 
diferentes. Memorizar é fundamental; repetir padrões do já 
dominado não é uma prática escolar saudável. 
 
A hierarquia: do fácil ao difícil 
O método 1 tem uma concepção de ensino/aprendizagem 
segundo a qual tudo deve ser hierarquizado, isto é, disposto 
numa ordem necessária, para que o ensino e a aprendizagem 
caminhem suavemente. Obviamente, essa hierarquia precisa ir 
dos elementos mais fáceis para os mais difíceis, como se 
esperaria de alguém que tem bom senso. Por essa razão, o 
método 1 gosta de atribuir valores às diferentes tarefas que a 
escola realiza: o professor precisa saber o que deve ensinar 
<46> 
primeiro, caso contrário poderá pôr a carroça na frente dos 
burros. 
Será que as coisas são mesmo assim, quando se trata do 
processo de ensino e de aprendizagem? Na verdade, para o 
processo de ensino, até certo ponto, a organização hierarquizada 
é uma atitude esperada, e caberá ao professor seguir uma certa 
ordem quando for ensinar. No entanto, essa ordem depende 
muito mais do jeito de cada professor trabalhar do que da 
verdade das coisas que ensina. E difícil, e talvez seja mesmo 
impossível, estabelecer uma hierarquia dos elementos que 
constituem um saber, mesmo em sua forma sistematizada, 
utilizada pela educação nos currículos escolares. É claro que 
alguém precisa aprender a ler, para poder ler um livro ou 
escrever uma carta sem a ajuda de outra pessoa; é claro que 
alguém precisa aprender aritmética para poder fazer cálculos 
corretamente. No entanto, tais afirmações são tão gerais, que 
não se aplicam ao que se quis dizer acima. 
A questão verdadeira reside no fato de a maioria dos 
professores e a totalidade das cartilhas considerarem, por 
exemplo, que a letra X é intrinsecamente mais difícil do que a 
letra A. Isso acontece porque partem do pressuposto que 
escrever palavras em que ocorre a letra X é mais difícil do que 
escrever palavras em que ocorre a letra A. Ledo engano. Na 
verdade, esses professores estão levando para a prática 
pedagógica algo que é muito peculiar a eles, e não ao processo 
de alfabetização. 
Para uma criança que não sabe ler nem escrever, qualquer 
palavra é igualmente difícil, não há nenhuma palavra fácil. Para 
quem duvidar disso, aconselho estudar árabe, por exemplo. 
Como a escrita dessa língua é muito diferente da nossa, achamos 
difícil escrever, no começo, qualquer palavra. Somente depois 
que aprendemos algumas tantas coisas é que vamos descobrir 
que certas palavras (por serem mais familiares a nós) são mais 
fáceis de escrever do que outras. Do mesmo modo vamos achar 
mais fácil escrever certas letras do que outras, porque erramos 
menos a ortografia com elas. A letra X só é difícil para quem já 
sabe escrever e tem uma certa prática, mas ainda se confunde 
com a grafia de certas palavras. 
A dificuldade do alfabetizando é de outra natureza. Para ele, 
tudo é difícil. Escrever "casa" é tão difícil quanto para o adulto 
alfabetizado escrever "ojeriza", "estender" ou "extensão". 
<47> 
As dificuldades dos alunos vão mais longe do que em geral 
imaginam os professores. O aluno que fala "drentu", "bardi", 
"andano" ("dentro", "balde", "andando") tem uma dificuldade 
muito séria para acertar a forma ortográfica dessas palavras, e 
essa dificuldade jamais é suspeitada pelos autores de cartilhas e 
pelos professores. 
Alguns professores acham que a letra X é mais difícil porque 
pode referir-se a vários sons, como o som de S ("externo") e o 
de SS("próximo"), o que é um absurdo, uma vez que há o 
mesmo som S em palavras como "externo" e "próximo". O que 
há de diferente é o uso das letras na escrita. De acordo com as 
regras de nossa ortografia, poderíamos escrever "esterno", mas, 
se escrevêssemos "prósimo", o som da letra S, nesse caso, seria 
o de Z, por estar entre duas vogais. É preciso, pois, separar fatos 
da fala dos da escrita ortográfica. Além do som de S, a letra X 
pode ter ainda os sons de KS ("táxi"), de CH ("lixo") e de Z 
("exame"). 
Essas mesmas pessoas que reclamam das dificuldades do X 
esquecem-se de que uma letra como A pode apresentar muito 
mais casos de sons diferentes do que a letra X, dependendo do 
dialeto e de outros fatores lingüísticos. Por exemplo, um aluno 
fala "fizeru", "acharu", e esse som de U precisará ser escrito 
com as letras A e M: "fizeram", "acharam". Falamos "todamiga" 
e temos de saber que há um A que não foi pronunciado, mas que 
deve ser escrito: "toda amiga". Dizemos "rapais" ou "rapaich", 
mas, na hora de escrever, suprimimos o I: "rapaz". Por outro 
lado, em palavras como "caixa", é comum não se pronunciar o I 
que vem junto com o A, mas não se pode deixar de escrevê-lo. E 
a lista é longa. Esses casos, que realmente são armadilhas para 
os alunos, jamais entram nas considerações daqueles que acham 
que precisam ensinar primeiro A e bem depois X, porque A é 
mais fácil do que X, tanto para quem ensina, quanto para quem 
aprende. 
Na verdade, em todos os ramos do saber, é praticamente 
impossível dizer o que é mais fácil ou mais difícil: é fácil aquilo 
que se sabe e é difícil o que não se sabe; o resto não faz sentido. 
Muitas pessoas contam que descobriram como realmente 
funcionavam noções básicas de geometria e de álgebra somente 
quando aprenderam a fazer cálculos avançados. Isso não quer 
dizer que fossem maus alunos antes, mas precisaram ir além, 
estudar coisas que aparentemente são consideradas complexas 
para aprenderem coisas aparentemente 
<48> 
mais simples e mais fáceis. Fáceis e difíceis "aparentemente", 
mas não de fato. 
 
Controle rígido e avaliação 
O método 1 necessita de um controle rígido e absoluto sobre 
tudo o que é feito, cobrando a mais rigorosa e constante 
avaliação. Como o ensino é completamente hierarquizado, 
desenvolvendo-se passo a passo, do mais fácil para o mais difícil, 
e exigindo que o aprendiz progrida dominando o que foi 
ensinado, é preciso verificar a todo instante se realmente o 
aprendiz dominou o que deveria dominar, para que o ensino 
possa dar um passo adiante. A avaliação, aqui, contempla 
apenas o que foi ensinado e constitui-se do que o aluno precisa 
dominar e repetir. Se não houver uma avaliação rigorosa e 
constante, o aluno pode revelar dificuldade mais adiante, 
atrapalhando a programação do professor e a ordem natural das 
coisas, prevista pelo método 1. 
Se o aluno revelar que não dominou algum ponto, o método 1 
manda que se volte atrás e obrigue o aluno a repetir tudo de 
novo, até demonstrar que já dominou, mesmo que tenha, no 
final do ano, de repetir o ano todo, voltando àquele zero inicial, 
àquele ponto de partida em que o aluno é encarado como uma 
folha de papel em branco. 
Na avaliação, o que conta são os erros e não os acertos. Como 
o acerto é considerado previsível dentro da perspectiva do já 
dominado, são os erros que irão mostrar que o aluno precisa 
parar e recuperar o que ainda não dominou. O problema desse 
método de ensino é o erro do aluno, não o que ele aprende. Isso 
é tão ridículo, sobretudo para as crianças na alfabetização, que 
elas não conseguem entender como a escola pode ser tão 
injusta. O aluno escreve urna história de dez linhas e, só porque 
cometeu dez errinhos, ganha nota cinco. E as outras coisas que 
escreveu certo, as outras trezentas e oitenta letras que foram 
escritas corretamente, e o resto que fez e fez bem, não conta? Já 
que errou uma palavra com J ou G, precisa fazer cópias para 
dominar a lição estudada, desconsiderando-se todas as demais 
ocorrências de J e de G que o aluno escreveu corretamente? 
O método 1 é implacável com a avaliação: errou, tem de voltar 
atrás e repetir a lição. É pela importância exagerada e 
equivocada dada a esse tipo de avaliação, que os ditados, na 
alfabetização, passaram a ser uma das 
<49> 
atividades mais importantes e freqüentes. Ditado só serve 
mesmo para avaliar o processo de ensino, fazendo aparecerem 
erros, e em nada contribui para a aprendizagem. O aluno não 
aprende fazendo ditados. Não é pensando que ele vai descobrir, 
naquele momento, como se escreve uma palavra. O ditado, na 
verdade, visa a detectar apenas se o aluno já dominou ou não o 
que se pede nas lições. 
 
A fixação da aprendizagem 
Uma vez constatado que o aluno sabe algo, que já dominou 
um certo conteúdo programático, o método 1 manda que se faça 
imediatamente a fixação da aprendizagem. A fixação da 
aprendizagem é um reforço na atividade de ensino, cujo objetivo 
é fazer com que o já dominado fique sempre consciente na 
mente do aprendiz, como naquele momento da avaliação. 
Nesse caso, em geral, a cópia é a maneira mais comum com 
que o método 1 trabalha a fixação da aprendizagem, dando-se 
preferência àquele tipo de cópia repetitiva e longa. Mais 
raramente, acontece uma revisão geral para que o conteúdo 
novo seja avaliado e fixado dentro do conjunto geral de 
conhecimentos a que pertence. Repetir e repetir é o que manda o 
método 1. 
 
O que fazer com o erro 
No método 1, o erro serve para indicar que o aluno não 
dominou algum conhecimento nas avaliações. Fora isso, o erro é 
um problema que o método não sabe resolver. Por isso, a 
solução que adota é ignorá-lo. Não se discute e muito menos se 
analisa o que está errado na tarefa do aluno. Simplesmente 
ensina-se o certo. Há, na tradição pedagógica de nossas escolas, 
sobretudo nas classes de alfabetização, a estranhíssima idéia de 
que não se pode mostrar o erro ao aluno, discutir o erro, porque 
isso levaria o aluno a aprender o errado, tendo maiores 
dificuldades futuras para fixar o certo. 
Não deixa de ser curioso ouvir uma afirmação muitíssimo 
comum segundo a qual a professora não pode deixar o aluno 
diante de uma escrita errada, porque assim ele fixa o erro e 
depois não consegue mais corrigir. Por que as crianças fixariam 
apenas o que está errado, não fazendo o mesmo com o que está 
certo? Não há aí uma certa discriminação? Alguns professores 
apagam o que os alunos escrevem errado e colocam o certo, 
<50> 
na santa e ingênua crença de que escondendo o erro e 
mostrando apenas o certo, seus alunos aprenderão melhor. 
 
Aprender pelos efeitos 
O método 1 faz com que o aluno aprenda pelos efeitos, não 
pelas causas. Se o aprendiz precisa reproduzir o modelo e 
corresponder às expectativas do professor que ensina, não 
precisa saber por que acertou ou errou: basta acertar e está tudo 
em ordem. O método garante a certeza ao aluno de que seguindo 
as instruções, passo a passo, irá chegar ao resultado esperado. 
Se acontecer qualquer imprevisto, o aluno não contará com 
nenhuma ajuda específica que o faça sair do impasse, porque o 
método não prevê nada fora daquilo que foi efetivamente 
ensinado e copiado pelo aprendiz. O aluno não pensa no que faz, 
simplesmente se deixa guiar por um processo de tentativa-e- 
erro. Obviamente, a escola não tem sido tão rígida assim, na 
prática, mas infelizmente também não tem estado muito longe 
dessa realidade. 
 
Um bom método de adestramento 
Como se pôde observar no quadro descrito anteriormente com 
tintas um pouco carregadas, o método 1 éfortemente 
mecanicista, dando tudo pronto para o aluno, esperando que ele 
siga sempre o modelo proposto. Se tentar inovar, corre o risco 
de errar e não saber mais retomar o caminho suave e tranqüilo 
das coisas já dominadas. O método 1 é, na verdade, um 
excelente meio de adestramento e em geral funciona bem com 
animais que precisam dominar certas habilidades para 
desempenhar certas tarefas, agindo sempre de um único e 
mesmo modo. Porém, as crianças são racionais, e pensam o 
tempo todo, mesmo quando a escola se esquece de que são 
seres humanos e, portanto, escravos da própria racionalidade. 
Tudo o que o ser humano faz precisa de um comando de seu 
pensamento: isso é sublime e, ao mesmo tempo, terrível. O 
método 1 não é bom para os seres humanos porque somos 
dotados da racionalidade e refletimos a todo instante. Quando 
fazemos isso, temos toda a liberdade do mundo de acharmos o 
que quisermos, seja lá a respeito do que for, com que idade for, 
na rua, na sala de aula, na igreja ou em qualquer lugar. 
<51> 
Refletir pode desviar o esperado pelo método 1, conduzindo 
os alunos por outros caminhos não previstos e atrapalhando a 
vida do professor e da escola. Os alunos que usam mais de sua 
própria reflexão se dão pior quando são submetidos a um 
processo de ensino baseado no método 1. Eles se dão melhor 
com o método 2, que será comentado logo a seguir. 
 
O MÉTODO 2— VOLTADO PARA A 
APRENDIZAGEM 
A base: a reflexão na aprendizagem 
O método 2 é o oposto do método 1 em tudo e caracteriza-se 
por estar voltado para o processo de aprendizagem. Leva em 
conta o fato essencial de que o aprendiz como um ser racional, 
vai juntando conhecimentos adquiridos pela vida toda, a partir 
do momento em que nasce. Para isso, usa sua capacidade de 
refletir sobre todas as coisas. O método 2 é, portanto, centrado 
na reflexão, oposto ao método de condicionamento. 
O método 2 concebe a linguagem como expressão do 
pensamento; o falante a usa de maneira intencional para 
interagir com os outros. Assim a comunicação é apenas um 
aspecto desse processo. 
 
A situação inicial 
Num método baseado na aprendizagem e na reflexão, a 
situação inicial de cada aprendiz é diferente, porque cada um 
tem a sua própria história de vida e de conhecimentos. Como diz 
uma velha recomendação da metodologia, deve-se partir sempre 
da realidade da criança. Mas o que significa, na prática, partir da 
realidade da criança? A escola, nesse aspecto, tem trilhado 
caminhos muito estranhos, não raramente achando que a 
realidade dos alunos é a "tábula rasa". Conhecer a realidade e a 
história do aluno é fundamental para uma prática educativa que 
respeite o aprendiz como um ser humano em sua plenitude. 
As classes de alfabetização formam-se necessariamente com 
um conjunto de alunos com histórias de vida diferentes, sendo, 
pelas contingências práticas, classes heterogêneas. Uns sabem 
algumas coisas, outros sabem outras; alguns já aprenderam 
algumas coisas 
<52> 
próprias da escola, outros não. Algumas crianças tiveram pré- 
escola e aprenderam os rudimentos da leitura e da escrita, 
outras nunca estudaram nada. Algumas crianças aprendem 
coisas em casa, têm lápis, papel, livros, outros nunca tiveram 
nada disso. Cada aluno tem urna história, e o método 2 vai levar 
isso em consideração. 
Como ficar sabendo qual é a realidade de cada um? Em vez de 
fazer avaliações coletivas — ditado, prova, etc. —, o professor 
precisará interagir com seus alunos, conversar com eles, deixar 
que cada um expresse o que sabe, à sua maneira, ou que se cale, 
porque ficar quieto também é um comportamento revelador. O 
professor precisará conversar sobre todos os assuntos, inclusive 
a respeito dos conhecimentos que a escola se propõe a ensinar 
aos alunos, para que a aprendizagem e o ensino sejam tarefas 
compartilhadas entre professor e alunos, através dos mais 
variados modos de interação. Entre outras coisas, o alfabetizador 
conversará com os alunos, logo no início, a respeito da história 
de cada um, da comunidade onde vivem, dos ideais de vida, da 
escola, da família e até a respeito do que os alunos acham que a 
escrita e a leitura são nas suas mais variadas formas. Ouvir os 
alunos é necessário para conhecer a realidade de cada indivíduo, 
ponto de partida do processo de aprendizagem de cada um. 
O professor pode ainda pedir para os alunos fazerem desenhos 
ou rabiscos numa folha de papel para ver como usam o lápis e o 
papel. Se alguém quiser, poderá escrever. Se alguém quiser 
copiar algo, também poderá fazê-lo, mostrando suas habilidades. 
Em suma, desde o começo do ano, o professor precisa incentivar 
os alunos a falar e trabalhar com lápis e papel. Isso permitirá a 
ele fazer uma análise dos conhecimentos e habilidades dos 
alunos, de seu comportamento lingüístico oral e escrito, porque 
essa é a melhor maneira de ficar logo conhecendo a realidade de 
cada um. 
O processo de ensino, segundo o método 2, levará em conta o 
fato de que cada aluno é diferente do outro, e que, portanto, o 
ensino não poderá ser somente coletivo, mas deverá em grande 
parte estar voltado para as peculiaridades de cada aluno ou de 
grupos de alunos que necessitem do mesmo tipo de assistência 
por parte do professor. Isso não significa que haverá somente 
aulas particulares. A aula é coletiva, mas numa sala de aula 
podem acontecer concomitantemente coisas 
<53> 
diferentes, sobretudo em relação às atividades realizadas pelos 
alunos. O professor deverá dizer coisas de interesse comum, 
voltando-se para toda a classe, e outras de interesse particular, 
nos momentos adequados, ensinando uma questão ou outra a 
um ou mais alunos, de maneira especial. 
 
Nota 
Tábula rasa: expressão de origem latina que era usada para 
significar que deixar limpa a tábula revestida de cera em que se 
escreviam mensagens breves que não deveriam permanecer 
escritas durante muito tempo. Hoje, a expressão refere-se à falta 
absoluta de conhecimento sobre determinado assunto. 
 
A técnica: explicações adequadas 
Como a base do método 2 é a reflexão, a técnica a ser usada 
se apóia nas explicações adequadas, transmitidas ao aprendiz 
nos momentos oportunos. A aprendizagem depende 
crucialmente de entender o que se quer saber, e quanto melhor e 
mais abrangente for esse entendimento, maior e melhor será o 
processo de aprendizagem. 
Entender é ter um conjunto de informações que expliquem a 
natureza, a função e os usos do conhecimento. Isso não se 
adquire linear nem automaticamente, pelo simples fato de se ter 
ouvido alguém falar dessas coisas, mesmo que as palavras sejam 
familiares e o texto, claro e correto. Cada um reage de uma 
maneira individual à construção do conhecimento, cada um tem 
um caminho próprio, cada um atribui valores próprios, muito 
individuais, aos elementos do conhecimento que constrói no 
processo de aprendizagem. Tudo isso precisa ser levado em 
conta, porque faz parte intrínseca da natureza humana e, 
portanto, de cada indivíduo. 
Dar explicações adequadas requer do professor um trabalho 
preliminar de descobrir a necessidade de esclarecimento de cada 
aluno e da classe como um todo. Para isso, o professor precisa 
ter um preparo profissional de alta qualidade: competência para 
analisar todas as situações de trabalho escolar que enfrenta na 
sala de aula, e para tomar decisões corretas como educador e 
como professor, dizendo aos alunos o que é necessário, da 
maneira adequada. 
Infelizmente, muitos professores são, na realidade, mal 
formados e, conseqüentemente, incompetentes, a ponto de 
preferirem usar o método 1, que vemcom toda a programação 
curricular já pronta nos livros didáticos. No método 1, a 
competência do professor pode ficar camuflada pela aplicação da 
lição, retirada de um manual qualquer. No método 2, a 
competência do professor é posta em xeque a cada momento. 
Dependendo de sua atitude, fica logo muito claro a todos 
(inclusive às crianças) o fato de um professor ser um 
profissional 
<54> 
competente ou não. O professor tem de procurar saber a razão 
de tudo o que seus alunos fazem ou deixam de fazer, caso 
contrário não saberá o que dizer. 
O professor não pode ter medo de dizer a verdade aos seus 
alunos. As crianças também gostam de saber as coisas como elas 
são, também gostam de ser tratadas seriamente. E fazer isso não 
é tratá-las como adulto; porém, o respeito sem preconceitos é 
fundamental. Alguns professores, por razões muito equivocadas, 
acham que precisam explicar tudo metaforicamente para os 
alunos. Essa é uma atitude preconceituosa para com a 
capacidade mental das crianças. 
 
O professor como mediador 
Costuma-se dizer que o professor é um mediador entre o 
saber e o aluno. Ser um mediador, aqui, é ajudar o aprendiz a 
construir seu conhecimento, passando a ele as informações 
adequadas, explicando o que tem de ser explicado. Essas 
explicações não devem referir-se apenas ao conteúdo 
programático organizado pelo professor, de acordo com um 
currículo, o que na prática representa a atividade de ensino. 
Devem, sobretudo, estar voltadas para os trabalhos que os 
alunos realizam por iniciativa própria, como atividade específica 
de aprendizagem. É dessa maneira que o processo de ensino, 
através da mediação do professor, interfere no processo de 
aprendizagem levado adiante pelo aluno. Quando o aluno erra 
alguma coisa, ou não sabe realizar uma tarefa, precisa ouvir do 
professor uma análise do caso e receber uma explicação 
adequada para entender o que fez ou deixou de fazer, a fim de 
agir corretamente nesses casos e fazer progredirem seus 
conhecimentos. 
 
O que fazer com o erro 
No método 1, quando um aluno erra, o professor volta atrás e 
repete tudo de novo. No método 2, quando uma explicação não 
serviu para levar um aluno a corrigir um erro ou a fazer 
determinada tarefa, o professor precisa procurar uma outra 
maneira de explicar. Não há burrice maior do que a daqueles 
professores que dizem que ensinam sempre as mesmas coisas e 
os alunos não aprendem. 
Procurar explicações adequadas requer saber abordar um 
problema de muitas maneiras, de ângulos diferentes, seguir 
caminhos alternativos. Se, apesar de todo 
<55> 
o esforço e competência do professor, ele ainda constatar que 
determinado ponto não está sendo devidamente entendido por 
um aluno (ou por uma classe), o que ele deve fazer é passar para 
o ponto seguinte, sem remorso, sem sentimento de culpa, sem 
preconceito contra a capacidade de aprendizagem dos alunos. 
Muitas vezes, para se entender algo aparentemente simples é 
necessário ter informações complementares, que o professor 
obviamente tem, mas o aluno não. Freqüentemente, é preciso ter 
conhecimentos pressupostos ou até mesmo saber relacionar 
coisas já conhecidas de uma forma determinada para que o novo 
conhecimento possa ser assimilado e aplicado. 
Se o professor marcar passo diante das dificuldades, o 
impasse pode se estabelecer, com sérias conseqüências para o 
processo escolar. Nessas circunstâncias, o melhor que ele tem a 
fazer é partir para outra, porque um dia, com ou sem as 
explicações do professor, os alunos acabarão aprendendo aquela 
questão deixada incompleta ou mal entendida. 
Quando os adultos discutem coisas sérias, é muito comum que 
fatos semelhantes aconteçam: tem-se a nítida impressão de que 
o interlocutor entendeu tudo errado, e, no debate, a questão é 
tratada de todas as maneiras possíveis; o resultado acaba sendo 
o mesmo: cada um sai pensando exatamente o que pensava 
antes, mesmo diante da evidência estrondosa de uma bela 
argumentação. Sem dúvida alguma, as pessoas não se 
convencem apenas graças a uma bela argumentação. Por que, na 
escola, as coisas deveriam ser diferentes? 
 
A concepção de aprendizagem 
A concepção de aprendizagem do método 2 baseia-se nas 
decisões que o aprendiz toma, levando em conta as explicações 
adequadas que recebeu. Isso faz com que ele se aventure no 
mundo do saber e procure a maneira correta de dar o passo 
seguinte, como conseqüência de tudo o que aprendeu até o 
momento. Aqui está o grande segredo da aprendizagem: o 
aprendiz não só aprende o ponto, mas aprende a aprender. A 
verdadeira aprendizagem proporciona ao aluno generalizar o 
processo de tal maneira que a intermediação do professor vai, 
aos poucos, cedendo lugar à sua própria independência e 
competência para buscar as explicações adequadas por si 
mesmo e a construir seu 
<56> 
próprio saber. Quanto mais cedo o aprendiz chegar a essa 
autonomia, melhor será para ele: aprenderá melhor, mais 
rapidamente, mais dados. O método 1 fixa o aprendiz à lição sob 
estudo, ao currículo, ao programa, ao que o professor manda 
fazer. Isso segura o ritmo de muitos alunos os quais, apesar de 
submetidos ao método 1, na prática agem por conta própria, 
seguindo o método 2. 
Para que o aprendiz possa tomar suas decisões, é preciso que 
a escola tenha um espaço especial em sua programação 
destinado a esse tipo de atividade. Na alfabetização, é 
fundamental que os alunos produzam trabalhos espontâneos, 
façam atividades a partir de sua iniciativa, do jeito que acharem 
melhor. Mesmo um trabalho com objetivos definidos, como fazer 
um cartaz ou escrever uma carta reclamando da destruição das 
florestas ou da poluição das cidades, pode ser realizado de 
maneira a permitir que a expressão individual de cada aluno 
encontre liberdade de realização. 
Avaliação: tudo serve 
No método 2, qualquer coisa que o aprendiz faça ou deixe de 
fazer serve como material para avaliação da aprendizagem. 
Avaliação, aqui, não significa dar nota ou conceito, como no 
método 1, mas realizar um estudo interpretativo daquilo que foi 
feito, para verificar o que está correto e o que está errado e por 
que está certo e por que está errado. 
A avaliação no método 2 tem como objetivo analisar as 
decisões tomadas pelo aluno ao fazer o que fez, do jeito que fez, 
para que o professor possa dar as explicações adequadas e para 
que o aluno corrija seus erros, melhore e dê um passo adiante na 
formação de seus conhecimentos. No método 1, a avaliação é 
sempre circunstancial, localizada, e pondera fato por fato 
isoladamente. No método 2, a avaliação leva em conta o 
processo de aprendizagem, a história de cada um dentro desse 
processo; é sempre cumulativa, exigindo uma comparação com o 
que já foi realizado. No método 1, basta constatar o erro, 
quantificar, dar a nota ou conceito e ponto final. No método 2, é 
preciso fazer um dossiê com os trabalhos dos alunos para 
estudar o caminho que o aluno está seguindo ao construir seus 
conhecimentos e saber que tipo de hipóteses ele faz a respeito 
das questões que está estudando. Não basta 
<57> 
constatar os erros e deficiências, é preciso interpreta-los e 
discutir o assunto com o aluno. Nenhuma tarefa é um trabalho 
isolado: faz parte de um conjunto de outros trabalhos que o 
aluno vem fazendo, e a avaliação precisa estudar cada caso 
dentro deste contexto maior. A nota é algo que não faz sentido 
no método 2. Em vez de nota, o método 2 responde com 
explicações. Esse tipo de avaliação do processo de aprendizagem 
em andamento, associado à intermediação do professor, 
incentiva o alunoa dar o passo seguinte, tentando generalizar os 
conhecimentos que já tem ou fazendo novas hipóteses sobre a 
nova questão com que se defronta. 
 
Caos e caminhos tortos 
Um método que privilegie a aprendizagem sobre o ensino 
nunca será um caminho linear, bem-definido, será antes um 
modo de progredir circular. Muitas questões serão tratadas em 
diferentes ocasiões, dependendo da maneira como o aluno reage 
e trabalha. O professor não precisa preocupar-se em levar um 
programa à frente, item por item. No final, se o processo de 
ensino e aprendizagem for bem equilibrado, os alunos acabarão 
aprendendo tudo aquilo que constitui a expectativa da escola 
para determinada fase do processo educativo. Na alfabetização, 
os alunos acabarão aprendendo a ler, a escrever, enfim, a fazer 
tudo certo e bonito. Esse resultado, no entanto, só começará a 
aparecer depois de certo tempo. 
No método 1, como tudo fica sob o controle do ensino, desde 
o início os alunos apresentam cadernos muito bonitos, com tudo 
certinho e no devido lugar, dando a impressão de que estão 
aprendendo às mil maravilhas. Depois de certo tempo, começam 
a aparecer os problemas, e o caos instaura-se na cabeça de 
alguns alunos, para desespero do professor, da escola e dos pais. 
No método 2, tem-se a impressão, no início, de que se está em 
meio a um caos, por causa do tipo de trabalho que os alunos 
fazem. Porém, à medida que o tempo passa, a rotina de trabalho 
leva os alunos a se organizarem melhor, a classe torna-se mais 
homogênea e, no final do ano, o que parecia um caos acaba 
revelando ao professor que valeu a pena. Por caminhos diversos, 
os alunos acabaram chegando aonde o professor queria que eles 
chegassem. E ninguém fica perdido no meio do caminho, como 
acontece com o método 1. 
<58> 
 
Como fixar a aprendizagem 
Como ficou claro pelo exposto acima, o método 2 faz com que 
o aluno aprenda pelas causas, não pelos efeitos. Nesse caso, o 
que vale são as hipóteses levantadas nos trabalhos, revelando as 
decisões que os alunos tomaram, seguindo um processo de 
reflexão. 
A fixação da aprendizagem, no método 2, é o outro lado da 
moeda da reflexão. Quando uma pessoa entende algo, ela 
automaticamente sabe e, portanto, não precisa "fixar". Isso não 
quer dizer que tudo o que entendemos (e sabemos) permanece 
ao nível da consciência o tempo todo, a vida toda. Mas quem 
sabe verdadeiramente sabe de cor, caso contrário, não sabe. Em 
muitos casos, sabemos como operar com certos conhecimentos, 
mas precisamos de auxílio externo para realizar determinadas 
tarefas. Isso também é saber, e o fato de memorizar todas as 
etapas intermediárias e procedimentos operacionais é 
simplesmente um exercício de tornar consciente fatos já 
entendidos e memorizados. 
Existe uma memorização que é intrínseca ao próprio ato de 
entender e aprender, e existe outra memorização que é 
simplesmente um ato de tornar consciente uma série de fatos do 
conhecimento. Os dois tipos de memorização são importantes no 
processo escolar. O que não faz sentido é a memorização como 
repetição de algo, sem conhecimento nem entendimento do que 
está sendo feito a não ser do próprio ato de repetir. 
 
OS DOIS MÉTODOS NA 
ALFABETIZAÇÃO 
No caso do método 1, os cadernos dos alunos mostram que 
eles logo aprendem a escrever usando apenas as formas já 
dominadas, mesmo que, para isso, tenham de abrir mão da 
habilidade que têm para produzir textos. As caricaturas de 
textos desse método tornam-se pretextos para o uso das 
palavras já dominadas. Salva-se a ortografia nos cadernos, mas 
sacrifica-se a produção de textos reais, o uso real da linguagem. 
No caso do método 2, o aluno aprende primeiro a ler, depois a 
escrever e somente então passa a se preocupar com a ortografia. 
No início, escreve a partir das hipóteses que tem sobre a 
ortografia. Nessa fase, costumam 
<59> 
aparecer as formas mais estranhas de escrita quando 
comparadas com a forma ortográfica estabelecida. Porém, essa 
prática permite que o aluno passe da habilidade que tem como 
falante nativo, de produzir textos orais, para a habilidade de 
produtor de textos escritos. No começo, será uma simples 
transferência do oral para o escrito. Aos poucos, no entanto, as 
regras do estilo escrito também começam a marcar presença. 
Tem-se a impressão, no início, de que o aluno nunca 
aprenderá ortografia. Com a produção de textos desde o início da 
alfabetização, salva-se o uso real da linguagem, quer na sua 
forma oral, quer na sua manifestação escrita. A ortografia é algo 
que se recupera facilmente com o tempo, com a ajuda dos 
dicionários e, principalmente, de muita leitura. Porém, quando 
um aluno entende que fazer um texto é simplesmente utilizar as 
palavras que sabe escrever, isso significa que ele está muito 
enganado com relação ao significado real da linguagem. Escrever 
assim é um erro que a própria escola mais tarde não irá perdoar. 
Não demorará muito para esse aluno encontrar um professor que 
diga que ele escreve mal e não sabe organizar um texto de forma 
correta. O aluno, que acreditava que bastava não errar a 
ortografia para obter um texto bem escrito, ficará perplexo e não 
saberá, de imediato, o que há de errado. A culpa será atribuída 
ao professor de português, e este, por sua vez, continuará 
dizendo que o aluno não foi bem alfabetizado. Uma boa nota nas 
avaliações nem sempre garante uma boa educação. 
Um método não é uma panacéia que resolve todos os 
problemas educacionais. Todavia, como se pode notar pelas 
observações anteriores, o processo educativo depende do 
método adotado. Os dois métodos podem alfabetizar, mas o 
método 1 o fará de uma maneira indesejável, embora 
aparentemente adequada. O método 2 exige experiência e 
competência do professor, paciência dos pais e uma escola 
preparada para ser uma oficina de trabalho, não apenas uma 
sala de aula onde o professor ensina e o aluno tem de se virar 
para aprender. 
<60> 
 
3 
Avaliação, promoção, planejamento 
A avaliação e a promoção são duas atividades pedagógicas 
sem as quais a escola não sobrevive, mas nem por isso as pratica 
de maneira exemplar. 
O primeiro ponto a ser levantado é a confusão que se 
estabeleceu nas nossas escolas (e em muitas outras 
no mundo moderno) entre avaliação e promoção. Nas nossas 
escolas a avaliação tem como única meta a promoção, ou seja, 
os alunos recebem notas pelos trabalhos que fazem para passar 
ou não de ano. Isso parece óbvio e natural para muitos 
professores, acostumados com essa prática. No entanto, é muito 
importante que essas duas atividades sejam feitas 
independentemente. A avaliação deve contemplar um 
julgamento sobre o que os alunos fazem para aprender e sobre o 
que o professor faz para ensinar, para que o ensino e a 
aprendizagem aconteçam da melhor maneira possível. A 
promoção julga da conveniência ou não de um aluno passar para 
as atividades escolares do ano seguinte. 
CAGLIARI, 1996e, 
 
NOTAS E CONCEITOS 
A prática de dar notas ou conceitos é o centro da confusão 
entre avaliação e promoção. Na verdade, esse hábito desvirtuou 
até mesmo o modo de avaliar. Algumas pessoas apresentam mil 
argumentos para dizer que conceitos são melhores do que notas, 
uma vez que os conceitos englobam menos categorias, 
facilitando, portanto, um julgamento mais amplo e com menos 
risco de erros. Certamente esse argumento é um contra-senso, 
porque se poderia contra-argumentar, entre outras razões, que 
as notas de O a 10 permitem avaliar com mais justiça do que o 
uso de apenas 5 conceitos. Na verdade, a questão central não é 
essa, mas opróprio fato de atribuir notas ou conceitos. Nem a 
avaliação nem a promoção precisam de notas ou conceitos. 
O surgimento de notas e especialmente dos conceitos deveu- 
se não só ao fato de se avaliar o certo e o errado no trabalho do 
aluno, como também ao fato de se premiar com um elogio o 
aluno aplicado aos estudos e castigar expondo ao vexame o 
aluno preguiçoso. Este último argumento é o mais comum para 
justificar o uso de notas e conceitos, Os professores dizem que, 
sem as notas, os alunos não estudam e não existe uma 
<62> 
competição que os estimule. Alguns acham que as notas são 
essenciais até para manter a disciplina. Ainda existem 
professores que reprovam por indisciplina. 
A necessidade de dar e receber nota tomou-se, com o tempo, 
compulsória nas atividades escolares e estendeu-se por todos os 
níveis, abrangendo todas as atividades. Como a escola educa 
para a sociedade, vemos que nossa sociedade passou a ter a 
mesma obsessão. Mesmo atividades que não precisam de 
julgamento de valor passam a ganhar notas, como um jogo 
social. Tudo pode ser traduzido em valores de O a 10, de acordo 
com qualquer parâmetro. Por ocasião da última Assembléia 
Constituinte, até os deputados e senadores passaram a ganhar 
notas de acordo com o seu desempenho. Uma bela mulher passa 
a ser conhecida como "mulher nota dez", a exemplo da tradução 
do título de um filme. 
Curiosamente, mas não sem razão, as notas são menos 
encontradas justamente nos esportes e jogos. Como o objetivo é 
muito claro, ganha quem consegue atingir tal meta: não adianta 
o time de futebol ter um excelente desempenho, se no último 
minuto o adversário, que jogava mal, faz o gol da vitória. No 
boxe, contam-se pontos, mas um nocaute basta para qualquer 
lutador vencer. Na patinação sobre o gelo e em muitas formas de 
ginástica olímpica, o júri dá notas baseado na realização de 
determinadas tarefas e na perfeição com que elas são realizadas. 
Neste último caso, as notas servem para classificar e indicam o 
nível do desempenho de cada um na competição, uma vez que o 
objetivo dessa atividade é apontar o campeão, ou seja, o melhor 
de todos. 
Nos concursos de seleção, a situação é semelhante: é preciso 
classificar para admitir um certo número de pessoas e excluir as 
demais. Em algumas escolas, as notas servem também para 
indicar o campeão da turma, da série, da escola. 
Como se vê, as notas estão por toda a parte. 
As notas, refletindo um julgamento de valor, funcionam bem 
quando se trata de classificação e, sobretudo, quando se 
pretende fazer uma seleção a partir dessa classificação. Isso é 
muito útil num concurso ou numa competição esportiva. Nesse 
sentido, vê-se claramente a relação entre notas e 
competitividade. 
Nosso problema, porém, é outro: será que os alunos, quando 
estudam, estão participando de uma competição, de uma seleção 
para ver quem fica e quem é excluído ou, simplesmente, quem é 
o campeão? Será esse o objetivo da escola, da educação, dos 
estudos? 
<63> 
Na prática, o uso de notas nas atividades escolares parece 
deixar bem claro que a escola optou por esses objetivos. Será 
que estudar é uma competição em que é preciso ganhar, senão 
se acabam as chances de continuar? Será que não se pode 
estudar por ideais mais nobres? Será que a escola não pode ter 
objetivos voltados mais para a formação e menos para a 
competição? 
Em qualquer ambiente escolar, é comum haver competição, 
pela própria natureza das atividades da escola. Quando se 
reúnem muitas pessoas, fazendo determinadas tarefas, a partir 
da capacidade de cada um, logo fica evidente que algumas fazem 
melhor, com mais arte e perfeição do que outras. E a 
comparação mostra quem é melhor e quem é pior nisso ou 
naquilo. Na vida, cada um se especializa naquilo que se julga 
melhor. O fato de que alguém é melhor em determinada tarefa 
não significa que é preciso desprezar todas as demais pessoas 
que não sabem fazer com a mesma perfeição. Uma análise das 
ocupações de trabalho em sociedade ilustra bem o que se disse 
acima. Cada um cumpre o seu dever da melhor maneira possível 
e a existência de diferenças é uma característica da própria 
sociedade. 
Pode haver promoção escolar sem competição através de 
notas? A promoção depende de como se faz a programação 
escolar e dos objetivos que se pretende alcançar. Nas escolas da 
Antiguidade não fazia sentido reprovar alguém: as pessoas iam 
para discutir idéias e muitas vezes cada um defendia seu ponto 
de vista contra o do mestre. 
A nota só entrou na escola quando a prática pedagógica tirou 
a aprendizagem como alvo e colocou o ensino em seu lugar. Ou 
seja, as notas surgiram quando os alunos começaram a ter de 
reproduzir o que o mestre ensinava, do jeito que era ensinado, 
deixando de lado as opiniões individuais. É por essa razão que as 
notas não avaliam o processo de aprendizagem do aluno ou sua 
esperteza intelectual, mas simplesmente sua capacidade de 
reproduzir ou aplicar um modelo dado pelo professor ou pelo 
livro didático. Basta fazer uma análise de provas, testes e 
exames, para descobrir que essas avaliações nada mais são do 
que um exercício de "faça segundo o modelo". Essas formas de 
avaliação exigem que os alunos repitam para o professor o que 
este lhes disse. Mesmo quando um aluno faz uma redação livre, 
a nota é fruto do que o professor ensinou e que acha que o aluno 
precisa reproduzir em seu trabalho, principalmente no que se 
refere à ortografia, à concordância e a uma 
<64> 
certa lógica no desenvolvimento do argumento. Essa prática de 
aplicar provas determinou o sentido que a avaliação e a 
promoção passaram a ter na escola. 
 
PROMOÇÃO AUTOMÁTICA 
A promoção é feita a partir dos resultados das notas, o que 
significa que, no fundo, depende da avaliação. É muito 
confortável saber que o artigo da Constituição brasileira que diz 
que toda criança dos 7 aos 14 anos tem direito à escolarização 
não faz nenhuma menção a notas nem avaliações. Certamente, 
também não se pensou que uma pessoa pudesse ficar durante 7 
anos na primeira série simplesmente porque tem o direito de 
escolarização garantido pela Constituição. Intui-se que uma lei 
como essa existe para não ser cumprida, servindo apenas para 
mostrar para os demais países que o Brasil também se preocupa 
com a educação. Não só não há escolas para abrigar toda a 
população necessitada, como a própria escola encarrega-se de 
marginalizar grande parte das crianças de 7 a 14 anos, julgadas 
inaptas para o trabalho escolar. No caso, é um desrespeito não 
só à criança como também à Constituição. 
Uma pedagogia sadia e lúcida recomenda que a promoção seja 
automática. Aliás, a promoção não deveria sequer ser objeto de 
preocupação da escola, a não ser em casos muito excepcionais. 
Assim, seria candidato à repetição de ano o aluno que não 
tivesse assistido, por exemplo, a pelo menos metade das aulas, 
talvez por motivo de saúde ou de trabalho, desde que não 
tivesse compensado essa falta com conhecimentos escolares 
adquiridos fora da escola. 
 
AVALIAÇÃO E RENDIMENTO ESCOLAR 
O rendimento escolar não é razão suficiente para reprovar 
ninguém. Pessoas que apresentam patologias deveriam ter uma 
escola especial para receberem uma formação adequada. Nesse 
caso, faz menos sentido ainda falar em reprovação. 
<65> 
Alguns professores ficam chocados quando ouvem dizer que o 
rendimento escolar, expresso por notas ou conceitos, não é 
razão suficiente para reprovar alguém. Algumas considerações 
bastam para esclarecer esse ponto, embora haja muito mais a 
ser dito. 
Em primeiro lugar, a nota serve paraque o interesse em 
passar de ano (ganhar diploma) se torne o objetivo maior da 
educação, deixando a idéia de formação, no sentido pleno da 
palavra, num plano secundário e mesmo dispensável. O aluno 
estuda não porque é importante para a vida, mas para livrar-se 
de mais uma competição intelectual. 
Uma análise honesta do que de fato acontece com o atual 
sistema de avaliação mostra que um aluno pode ter nota, passar 
de ano com louvor e não saber o conteúdo da matéria. Acertar 
nas provas nem sempre significa que o aluno aprendeu, assim 
como errar nem sempre significa que ele não estudou ou não 
aprendeu. Quantas vezes um aluno lembra logo depois da prova 
como se resolve uma questão? Mas, então, já não há mais 
tempo. O tempo da avaliação é irreversível, como irremediável é 
a nota. De nada adianta o aluno dizer para o professor no dia 
seguinte que ele sabe a lição na ponta da língua. A avaliação não 
volta atrás. 
Por outro lado, quantos alunos chegam mesmo a dizer, depois 
de terminada uma prova, que fazem questão de se esquecer de 
tudo, porque agora já conseguiram nota necessária para serem 
aprovados? Quantos estudantes esperam as férias para rasgar os 
apontamentos, queimar livros e tratar de esquecer a escola, 
porque a nota já garantiu a promoção e, talvez, até o diploma? 
Essa atitude é um alarme para a educação e significa, entre 
outras coisas, que esses alunos estudam apenas para ganhar 
nota e passar de ano. Esse será o típico cidadão que jamais se 
interessará pelos estudos depois de diplomado. Estudar não é 
uma atividade que se faça apenas na escola, mas ao longo da 
vida, como aprimoramento pessoal e profissional. A educação 
precisa modificar sua visão de si própria. E preciso educar para a 
vida, não para a nota. 
 
Qualidade de ensino e motivação 
A falta de nota não é responsável pela baixa qualidade do 
ensino. Num país como o Brasil, dizer isso é uma piada, uma vez 
que piorar o ensino é impossível. A qualidade do ensino se 
consegue com um trabalho 
<66> 
competente, quer com relação ao conteúdo técnico das 
matérias, quer na ação do professor como educador. E nada 
disso tem a ver com notas. 
Outro argumento, também inconcebível do ponto de vista 
pedagógico, é dizer que as notas servem de motivação para o 
aluno. Se o professor nunca passar uma prova, os alunos não 
estudam. Pelo menos com medo das provas, eles estudam um 
pouco. 
Os alunos acabam tendo esse comportamento porque a escola 
não deu a eles, desde cedo, uma outra perspectiva de trabalho 
escolar. Os alunos são vítimas desse processo, não culpados. 
Ainda nessa linha de raciocínio, alguns professores pensam que 
seu trabalho (ou o do colega) perde a seriedade, fica sem 
controle, se não houver provas exigentes e notas baixas. Alguns 
diretores até consideram que professor bom é aquele que passa 
muita prova e dá muita nota baixa. Professor que não faz isso, 
passa a ser avaliado como alguém irresponsável, que gosta de 
matar o tempo. Como pode ser diretor de escola urna pessoa 
com essa mentalidade? 
 
Avaliação e castigo escolar 
Se alguém quisesse fazer um livro sobre a vida na escola, 
encontraria, nas provas e notas, um tesouro em comportamentos 
patológicos e um sem-número de casos trágicos daí decorrentes. 
Já ocorreram até casos de suicídio devido a notas e reprovação 
escolar. O drama que pais e filhos passam a ter nas famílias por 
causa das notas é algo de que a escola nunca quis tomar 
conhecimento, embora seja ela a principal causadora dessas 
tragédias. 
Por fim, cria-se na escola aquele famoso clima de vingança 
mútua: professor faz prova para os alunos ganharem notas 
baixas, se sentirem humilhados e castigados. Em troca, os 
alunos revidam com uma enorme bagunça nas aulas e nas 
dependências da escola. Com o aumento das irregularidades de 
comportamento, o professor se volta de novo contra os alunos, 
usando sua arma terrível que é a nota. Surpreende-os com 
provas relâmpagos para complicar ainda mais a relação entre 
ensino e aprendizagem, comprometendo traiçoeiramente a 
promoção de alguns alunos e instalando um ambiente de guerra. 
Alguns professores elaboram provas já sabendo quais os 
resultados que irão obter: duas questões são escolhidas a dedo 
para que ninguém acerte; três questões são mal formuladas para 
enganar de certo modo e confundir 
<67> 
o aluno menos esperto; três questões são tão longas que 
exigem dos alunos um tempo que eles não vão ter para 
responder direito e de maneira completa; por fim, duas questões 
de resposta fácil, mas com pequenas armadilhas na escolha das 
palavras. Esses professores se gabam quando seus alunos erram 
ao responder as coisas mais banais da matéria. Acreditam que, 
dessa forma, estão ensinando seus alunos a estudarem direito, a 
não se deixarem enganar pelas aparências... 
Um professor que acompanha de perto o trabalho de seus 
alunos na sala de aula acaba percebendo o que eles sabem e o 
que não sabem, aluno por aluno. Este acompanhamento é a 
melhor forma de avaliação, e a mais honesta. A convivência 
mostra ao professor quem são de fato seus alunos. Essas 
informações são cruciais para o professor planejar 
adequadamente suas aulas e dirigir os trabalhos do aluno para 
que ele progrida. Uma prática semelhante realmente dispensa 
qualquer tipo de prova e nota. 
Filosofar sobre a justiça ou não das notas e conceitos é uma 
discussão bizantina, uma perda de tempo, e 
equivale a discutir se existe uma avaliação justa. 
Gostaria, não obstante, de dizer que o problema não está em 
haver ou não um teste objetivo ou um critério bem-definido para 
se atribuir uma nota justa. Como vimos, existem muito mais 
coisas por trás dos testes e critérios utilizados na avaliação, cujo 
envolvimento com as notas mostra que não é a maneira como a 
nota é dada que faz justiça ou não, mas o próprio fato de dar 
notas. 
O valor dos cálculos na avaliação 
Algumas vezes ouvi professores alfabetizadores dizerem que 
um aluno que acertasse mais de 70% da ortografia das palavras 
teria condições de passar de ano. Analisando, porém, a produção 
de crianças que tinham sido reprovadas e contando 
minuciosamente os acertos e os erros, constatei que quase 
sempre os alunos tinham um índice de acerto maior do que o 
mínimo exigido. 
Na verdade, a reprovação não vinha do cálculo de acertos e 
erros, mas da qualidade dos erros. O professor dizia que não 
podia aprovar o aluno que tinha escrito "mecadio" em vez de 
"mercadinho", ou "piçoa" em vez de "pessoa". Numa frase como: 
"Ze piriri fio uomino 
<68> 
mecadio" ("Zé Piriri viu um homem no mercadinho"), o 
professor achava que estava tudo errado, dizendo que havia 
apenas uma palavra certa. Obrigado a contar os erros de 
ortografia pelas letras — o que é mais justo — achou 8 erros e 18 
acertos. (Uma contagem mais rigorosa mostraria que há 12 erros 
e 26 acertos, o que dá uma porcentagem de 3 1,57% de erros 
contra 68,43% de acertos nesta frase, uma das mais 
problemáticas do texto.) 
Se os professores tivessem olhos para ver também o que os 
alunos acertam, começariam a ver as notas com outros olhos. O 
erro é sempre muito chocante, mas os acertos não costumam 
despertar entusiasmo nos professores. 
 
AVALIAÇÃO SEM NOTA 
Tirar as notas da escola não significa acabar com o 
processo de avaliação. Assim como a promoção não precisa de 
notas, também a avaliação não precisa delas. 
A avaliação é uma atividade importante, que deve estar 
sempre presente na escola e na vida em geral. Na escola, a 
avaliação deve ser uma análise e interpretação do progresso do 
aluno. O professor tambémdeve se auto-avaliar. 
A avaliação é sempre uma atividade voltada para cada 
indivíduo de maneira específica, porque cada um é diferente dos 
demais, cada um tem uma história de vida diferente e apresenta 
uma realidade escolar peculiar. O progresso de um aluno não 
precisa ser igual ao de outro. O importante é que todos cresçam, 
trabalhando e fazendo o que tem de ser feito. 
Passar a mesma prova para todos os alunos de uma classe, 
sobretudo nas primeiras séries, é desconhecer a realidade de 
cada aluno. Somente aquele tipo de ensino massilicante, 
uniformizante, em que o professor manda e os alunos obedecem, 
leva um professor a aplicar a mesma prova para toda a classe. 
Não é porque o professor ensinou algo, que todos os alunos 
aprendem do mesmo jeito. Não é porque o professor ensinou, 
que já tem o direito de cobrar de seus alunos, na forma de 
provas ou chamadas, uma reprodução do modelo apresentado, 
como conteúdo específico ou como conhecimento derivado, 
aplicado à solução de algum problema. 
<69> 
O trabalho substitui a nota 
Uma escola sem nota precisa, em primeiro lugar, mudar seus 
objetivos e adotar um processo de educação para a vida, não 
para passar de ano. Nesse clima pedagógico, o que conta é o 
trabalho sério do professor e do aluno. A escola precisa trocar as 
provas, os testes, enfim as notas, por trabalhos que os alunos 
irão fazer, alguns sob orientação direta do professor, outros por 
iniciativa própria sob a supervisão dele. 
Se a escola incentivar os alunos a produzir trabalhos, e se 
esses trabalhos forem guardados, fica muito fácil para o 
professor provar, para quem quiser ver, como um aluno começou 
sem saber muito e, depois de uns tantos meses de aula, 
aprendeu e fez inúmeras coisas interessantes. Em vez de boletim 
de notas, OS professores deveriam ter arquivos para guardar os 
trabalhos que os alunos realizaram ao longo do ano. No final do 
ano letivo, o próprio aluno poderia ver, nesse arquivo, a história 
da sua educação naquela série e constatar o quanto progrediu. 
Através de uma prática intensa de realização de trabalhos, o 
professor tem condições de estudar o processo de aprendizagem 
de cada um de seus alunos e orientá-los melhor. Esse tipo de 
avaliação, porém, exige que o professor conheça profundamente 
o assunto que ensina para poder analisar e interpretar os 
resultados encontrados nos trabalhos e propor soluções e 
melhorias. Somente quem possui um conhecimento técnico 
sofisticado é capaz de conduzir um processo de avaliação 
contínuo durante o ano todo, levando em conta tudo o que o 
aluno fez ou deixou de fazer. 
 
Auto-avaliação e autocorreção 
Uma avaliação que acompanha o processo de alfabetização de 
cada aluno, além de ajudá-lo, servirá para o professor organizar 
melhor suas aulas futuras e adaptar seu programa de trabalho à 
realidade do dia-a-dia, durante o ano escolar. 
Com isso, o professor ensina ao aluno que avaliação é um ato 
contínuo, paralelo a tudo o que se faz, e o treina a se auto- 
avaliar e a refletir criticamente sobre o 
próprio trabalho. Alguns alunos nem sequer chegam a desconfiar 
de que podem errar por falta de um trabalho de avaliação 
acompanhada pelo professor, quando 
<70> 
realizam suas tarefas. A escola deve formar pessoas 
competentes não só para dizer e fazer, como também para julgar 
o que os outros e o que elas próprias fazem. 
 
O aluno na série seguinte 
Se todos os professores, incluindo não só os da alfabetização, 
mas também os demais, partirem da realidade de seus alunos, 
no começo do ano, para ensinar o que acham que deve ser 
ensinado, tem-se um argumento a mais para a promoção 
automática na escola. Uma programação geral deve distribuir 
conteúdos básicos para serem ensinados ao longo dos oito anos 
do primeiro grau. Se um aluno não aprendeu direito um ponto 
num ano, o professor do ano seguinte, em vez de reclamar do 
colega, tem de assumir seu papel e ensinar a esse aluno o que 
ele precisa saber. 
Portanto, a promoção automática não precisa se preocupar 
com a hipótese de um aluno não conseguir acompanhar a 
matéria no ano seguinte. Mesmo hoje, apesar das provas e das 
notas, quando um aluno é promovido, não se tem garantias de 
que ele aprendeu de fato o que estudou no ano anterior. 
Analisando friamente, constata-se que alguns alunos foram 
reprovados porque cometeram certos erros em suas provas. 
Quais serão esses erros, que conhecimentos tão importantes 
eles envolvem para que um aluno repita de ano? Encontramos, 
por exemplo, que o aluno errou o sujeito da oração, confundiu o 
predicativo do objeto direto com outra função sintática ou, 
mesmo, não soube resolver um binômio de segundo grau. Na 
alfabetização, os erros de ortografia prevalecem 
como causas de reprovação. Como avaliar essa avaliação, senão 
dizendo que é fruto de uma ingenuidade e uma ignorância que só 
poderia vir de uma escola tão desorientada como a nossa? 
< CAGLIARI, 1993c. > 
Será que vale a pena criar tantos problemas por tão pouco? O 
mundo não vai cair se o aluno não aprendeu o que é predicativo 
do objeto direto ou como resolver um problema de álgebra, ou 
qualquer dessas coisas que se tomam objeto de perguntas 
fatídicas nas provas e testes. 
Por causa de um predicativo do objeto direto, um erro de 
ortografia ou o binômio de segundo grau mal resolvido numa 
prova, muitos alunos já foram reprovados. A escola não sabe 
dimensionar esses fatos nem mede as conseqüências do que faz. 
Tal reprovação, além de causar danos emocionais nos alunos, 
ocasiona danos financeiros às famílias e ao governo. 
<71> 
 
O círculo vicioso de quem não aprende 
 
A avaliação por meio de testes e provas muito freqüentemente 
cria um problema sério para os professores: eles acabam 
acreditando que aquela forma de avaliação é de fato um espelho 
do processo de aprendizagem. E se o aluno vai mal na prova, o 
professor pensa que ele não aprendeu e repete tudo de novo, 
esperando que um dia o aluno devolva o que foi ensinado do 
mesmo jeito como foi passado. 
O processo de aprendizagem não funciona assim. Por isso, 
alguns professores dizem que ensinam sempre as mesmas coisas 
e os alunos nunca aprendem: isso mostra que esses mestres não 
são muito espertos. Por que não ensinar algo diferente? Talvez 
assim os alunos aprendam. Muitas vezes, para aprender 
adequadamente um ponto é preciso avançar bastante na 
matéria. Ora, se o aluno fica marcando passo em algumas idéias 
e não tem a chance de ver outras, pode ficar condenado a não 
aprender nada. 
 
UMA NOVA VISÃO DA AVAHAÇÃO 
E DA PROMOÇÃO 
 
Como vimos, a escola não sabe avaliar para corrigir e ensinar, 
mas somente para promover ou não o aluno. A formação de 
arquivos com os trabalhos realizados pelos alunos é o material 
de que o professor precisa para poder avaliar o progresso dos 
alunos. Agir assim requer uma mudança de atitude. Não 
acontece simplesmente porque alguém decretou uma lei ou uma 
norma. Deve fazer parte das convicções pedagógicas mais 
profundas do educador. 
A implantação do ciclo básico teve mais a pretensão de 
começar uma discussão sobre o estado da educação do que 
estabelecer a idéia, que muita gente passou a ter, de que haveria 
apenas o aumento do período de alfabetização de um ano para 
dois. A idéia mais elaborada contemplaria a promoção 
automática para todo o ensino fundamental e médio (primeiro e 
segundo graus). 
Muitos professores gostariam de mudar radicalmente sua 
prática pedagógica, mas encontram obstáculos nas normas e até 
mesmo no comportamento de diretores 
<72> 
supervisores e orientadores pedagógicos,sem mencionar a 
tradicional queixa dos pais. 
Se o patrão exige que o professor dê notas a seus alunos, ele 
pode até agir assim, mas certamente isso será feito com base 
numa avaliação do progresso de cada aluno e de seus trabalhos, 
e não através de provas e testes padronizados. Um professor que 
incentiva seus alunos a trabalhar nas aulas, pesquisando, 
fazendo todo tipo de atividade escolar, não pode dar outra nota 
senão 10 ou A. Ninguém pode reclamar disso, porque afinal de 
contas essa nota é mais do que justa: cada um fez o que devia, 
dentro de suas possibilidades, e isso é altamente educativo e 
uma excelente maneira de o aluno e o professor conduzirem o 
processo escolar. 
Os alunos podem ter notas sem ligar para isso, considerando 
uma tarefa do professor, uma obrigação profissional sem 
conseqüências educacionais. Estudar é outra coisa. É algo sério, 
que precisa ser feito com responsabilidade, como uma forma de 
respeito que cada pessoa precisa ter consigo própria. 
Outra questão que perturba muitos professores é o que fazer 
com quem não aprende. Na alfabetização, esse é um ponto muito 
grave: se o aluno não aprendeu a ler, o que vai fazer depois? 
Em primeiro lugar, se um aluno não aprendeu a ler, é porque o 
professor fracassou: não é possível que um ser humano não 
aprenda a ler durante um ano de escola. Infelizmente, isso 
acontece porque os professores não sabem lidar com esses 
casos: ficam repetindo sempre as mesmas coisas, em vez de 
fazer uma análise das dificuldades do aluno e orientá-lo de 
maneira específica. Quando o professor ensina com competência 
e seriedade, os alunos aprendem. Todos eles aprendem alguma 
coisa. Talvez não saibam reproduzir o modelo de maneira exata 
e completa, mas alguma coisa eles aprendem, e isso basta. 
< CAGLIARI, 1998a. > 
Fazer recuperação é uma tarefa desnecessária se na atividade 
do professor a recuperação estiver presente todos os dias, como 
deve estar. A necessidade de um período de recuperação surge 
somente quando o professor ensina seguindo seu programa, sem 
ligar para o que acontece com seus alunos. Então, de vez em 
quando, faz uma prova e recomenda uma recuperação para 
aqueles que tiraram nota baixa. Para os piores, recomenda 
<73> 
uma mudança para a classe especial. Para os repetentes 
incorrigíveis, a única solução que visualiza é a evasão escolar. 
 
O PLANEJAMENTO ESCOLAR 
A questão das notas e da promoção exige uma visão além da 
série em que o professor atua, especialmente se for na primeira 
série. As escolas costumam fazer seu planejamento, e os 
professores deveriam aproveitar essa ocasião para deixar bem 
claro o caminho que a instituição espera oferecer aos seus 
alunos nos anos de sua escolaridade. Apresentamos adiante uma 
sugestão de como o ensino deve ser abrangente, levando em 
conta as principais áreas da lingüística moderna. 
Um planejamento do ensino de português (deixando de lado 
os estudos literários...) deveria abandonar completamente a 
gramática normativa e desenvolver um trabalho epilingüístico, 
principalmente no ensino fundamental (primeiro grau), no qual 
as questões básicas da linguagem fossem tratadas através de 
um processo de reflexão sobre elas. 
Por causa da variação lingüística, sabemos que uma língua 
não dispõe de normas (gramática normativa) que controlam o 
certo da norma culta e o errado das variações dialetais, e sim 
regras (gramática descritiva) que mostram como todos os 
falantes, cada um do seu jeito, no seu dialeto, usam a 
linguagem. Uma gramática descritiva apóia-se em teorias 
específicas, como têm demonstrado os lingüistas modernos. 
Entretanto, para se chegar a essas teorias e a uma descrição 
adequada dos fenômenos lingüísticos é preciso refletir sobre a 
língua, num primeiro momento, usando apenas a intuição do 
sujeito falante e conhecimentos básicos sobre a linguagem. 
Depois o resultado dessa reflexão tornar-se-á uma interpretação 
exata dentro dos domínios de uma teoria. 
Ao processo de reflexão sobre os fatos da linguagem sem 
"compromissos" preestabelecidos por determinada teoria, 
chama-se epilingüismo. As aulas de português deveriam ensinar 
os alunos a refletir sobre a linguagem, deduzindo explicações e 
regras a partir de conhecimentos que vão sendo adquiridos na 
escola e da intuição que qualquer falante nativo tem de sua 
língua. 
74 
CAGLIARI, 1991a. 
 
 
Um planejamento mais detalhado para o ensino fundamental 
poderia ser, por exemplo, o seguinte: 
 
1º ano 
Alfabetização: ensinar a criança a lei; explicar como funcionam 
os sistemas de escrita, sobretudo a ortografia. História da 
escrita. treinar o aluno na produção de textos espontâneos. 
Desenvolver o gosto pela leitura individual e a participação em 
atividades que envolvam o uso da fala no dialeto padrão. Visão 
geral da aquisição da linguagem oral. Primeiras noções de 
variação lingüística. 
 
2º ano 
Continuação do trabalho de alfabetização. Treino de leitura em 
voz alta com pronúncia no dialeto padrão. Produção de narrativa 
orais e escritas - Atividades de pesquisa envolvendo leitura 
individual. Produção de textos de natureza diferente, como 
cartas 
notícias, etc. Introdução de noções básica de fonética e de 
fonologia. 
 
3° ano 
Estudo mais sistemático de fonética e da variação lingüística. 
Estudo das relações entre linguagem oral e linguagem escrita. 
Autocorreção da ortografia. Produção de 
textos orais e escritos. Leitura de lazer e de pesquisa. 
Exploração de textos literários, sobretudo poesia. 
 
4° ano 
Estudo mais sistemático de fonologia. Estudo das funções 
básicas da linguagem e da pragmática, ou seja, dos usos da 
linguagem oral e escrita. Produção de textos orais e escritos. 
Leitura de lazer e de pesquisa. lJabaibo com contos e pequenos 
romances. 
 
5º ano 
Estudo de morfologia. Noções básicas de sociolingüística, ou 
seja, dos vínculos entre os usos da linguagem e a realidade 
socioeconômica e cultural das pessoas (dialetos, por exemplo). 
Produção de textos oriundos de pesquisas. Leitura de lazer e de 
pesquisa. Cuidado especial na produção de textos orais. Leitura 
de romances. 
 
6º ano 
Estudo de sintaxe, regência e concordância. Introdução à teoria 
da literatura. Leitura literária orientada. Produção de textos mais 
sofisticados. Apresentação das línguas indígenas brasileiras. 
 
7° ano 
Estudo de semântica lexical e argumentativa. Introdução à 
análise literária. Leitura de obras importantes da literatura 
nacional e internacional. Estudo da história da língua 
portuguesa. Produção de textos de pesquisa e de obras de 
modelo literário. 
 
8º ano 
Estudo de lingüística textual (estudo da estrutura textual, tipos 
de texto e de fenômenos como coerência e coesão) e de 
psicolingüística (aquisição da linguagem, interação lingüística, 
linguagem e pensamento). Relatos de pesquisas desenvolvidas 
pelo aluno. Produção de textos literários e científicos. Leitura de 
textos científicos, artísticos e de autores famosos da literatura 
universal. História da ortografia. História da literatura. 
 
Diante de um quadro como esse, percebe-se logo que um 
aluno precisa apenas participar das atividades escolares normais 
para ter o direito de passar de ano. Como verá coisas diferentes 
a cada ano, a única exigência para sua promoção é saber ler e 
escrever, o que deverá aprender no primeiro ano. 
No ensino médio (segundo grau), podem-se introduzir teorias 
lingüísticas adaptadas, num trabalho metalingüístico, estudando 
a formalização das regras descobertas 
<75> 
no primeiro grau, interpretadas agora segundouma teoria e 
formando uma gramática moderna descritiva da língua. 
No terceiro grau (graduação), haveria um aprofundamento no 
estudo da linguagem, através da reflexão epilingüística e da 
formalização metalingüística, com vistas a um estudo crítico de 
teorias. 
Na pós-graduação, além do aprofundamento de conteúdos 
teóricos e da especialização de conhecimentos em determinada 
área da lingüística, os alunos deveriam tornar-se pesquisadores. 
 
AVALIAÇÃO NA ALFABETIZAÇÃO 
Aprender a ler e a escrever no primeiro ano não significa saber 
tudo sobre a produção da leitura e da escrita, tampouco saber de 
cor a forma ortográfica de todas as palavras. Também não 
significa que o aluno possa escrever sem se preocupar com a 
ortografia. O professor deve deixar o aluno começar escrevendo 
como ele acha que as palavras são. Depois, deve ensinar o aluno, 
desde o primeiro ano, a corrigir a ortografia e a passar a limpo 
as suas lições. 
Em termos mais específicos, a expectativa dos professores 
alfabetizadores com relação a seus alunos no final do primeiro 
ano poderia ser a seguinte: 
• Saber ler algo novo que lhe é apresentado. 
• Produzir textos espontâneos, não importando os erros de 
ortografia. 
• Ser capaz de corrigir individualmente um texto, de modo a 
eliminar os erros de ortografia, com o auxílio de um dicionário 
ou fichário de palavras. 
• Participar das atividades escolares. 
• Reproduzir oralmente textos que lê (com total liberdade para 
fazê-lo a seu modo). 
• Preparar e ler um texto no dialeto padrão. 
• Escrever com letras de fôrma e com letras cursivas. 
 
Como se vê, a escola não pode fugir à sua missão. Basta fazer 
um trabalho sério, competente e constante, que não precisará de 
provas, testes, notas nem terá dúvida de que assim todos os 
alunos serão legítimos merecedores de aprovação final. Por 
outro lado, isso 
<76> 
não significa que todos os alunos terminarão o ano iguaizinhos. 
A escola precisa saber lidar com as diferenças. É justamente nas 
diferenças individuais que a sociedade se enriquece e a vida se 
torna mais interessante. 
 
A LIÇÃO DE CASA 
Uma última observação a respeito de atividades escolares 
relacionadas à avaliação diz respeito às lições de casa. Alguns 
pais pensam que uma escola que não pede lição todos os dias é 
fraca e ruim. Isso é um absurdo, principalmente nas primeiras 
séries. Lugar de estudar é na escola, onde os alunos encontram 
os professores e os materiais à disposição. 
Em casa, podem eventualmente fazer uma tarefa ou outra, 
mas normalmente farão outras coisas, sobretudo brincar e se 
divertir. Criança precisa se divertir e, se não fizer isso em casa, 
fará na escola. A criança precisa aprender desde cedo que há 
hora de brincar e hora de estudar, lugar para brincar e lugar 
para estudar. Se a escola não deixar os alunos brincarem em 
casa, obrigando-os a fazer longas e difíceis tarefas, as crianças 
acabarão passando a infância e a adolescência mal vividas e com 
raiva justa e imperdoável desses professores irresponsáveis, que 
infelizmente proliferam em nossas escolas. Um bom 
planejamento escolar deve necessariamente abrir um espaço 
durante o período de aulas para os alunos fazerem as tarefas 
que o professor acha que eles devem fazer. 
Essa carga de lição de casa já seria uma aberração em escolas 
particulares, em que estudam as crianças mais favorecidas social 
e economicamente. Nas escolas públicas, onde os alunos pobres 
estudam, elas tornam-se um absurdo. Esses alunos não têm 
condições de estudar em casa: não há lugar, não há livros, e 
seus pais, em geral, pouco sabem para ensinar (alguns são até 
analfabetos) e quase nunca têm tempo para essa tarefa, depois 
de um dia de trabalho. 
Mesmo em séries avançadas, é inconcebível que um pai ou 
uma mãe tenha de colaborar com a escola, ensinando aos seus 
filhos matemática, geografia, história ou coisas como predicativo 
do objeto ou sujeito oculto. Isso é tarefa exclusiva da escola. 
<77> 
Muitos pedagogos equivocadamente insistem em querer que a 
família seja uma extensão da escola, e em pretender que os pais 
ajudem seus filhos a fazer suas tarefas escolares e a estudar as 
lições, sobretudo para provas e exames. 
Por outro lado, já desde as primeiras séries a escola deve 
incentivar os alunos a criar o hábito de estudar em casa por 
iniciativa própria, gastando nessa atividade uma pequena 
parcela de tempo. A medida que vão crescendo, o tempo 
dedicado aos estudos em casa deve ir aumentando e o tempo da 
brincadeira e do lazer, diminuindo. É mais importante a 
constância na atividade de estudo individual em casa, do que 
gastar muito tempo de vez em quando. E, mais importante, é 
preciso mostrar ao aluno que ele deve estudar sem envolver 
seus familiares. Mas, para que isso aconteça, o professor não 
pode passar tarefas todos os dias, nem que absorvam grande 
parcela do tempo que o aluno dispõe fora do período escolar. Se 
a criança tem de fazer enormes e complicadas lições, como 
achará tempo para estudar, para ler? O hábito de estudar em 
casa não deve prever somente assuntos escolares do momento. 
Pelo contrário, deveria satisfazer uma certa curiosidade 
científica e artística do gosto pessoal. Quando se ensina a 
pesquisar e a trabalhar em sala de aula, o aluno poderá fazer o 
mesmo em casa, não para dar satisfação ao professor, mas para 
estudar o que ele, aluno, escolheu para si. Muitos cientistas e 
artistas famosos desenvolveram grandes trabalhos por iniciativa 
própria, estudando e trabalhando fora da escola, pelo gosto da 
pesquisa e da arte e para realização pessoal, sem prova, sem 
nota, sem professor, sem diploma. A escola que conseguir 
formar alunos assim é a verdadeira escola. 
<78> 
 
4 
O método das cartilhas 
A CARTILHA NA ESCOLA E NA VIDA 
Já comentamos que a cartilha era antigamente apenas um 
abecedário; depois tornou-se uma tabela de letras, que 
representava as escritas dos padrões silábicos da fala; 
reestruturando-se em seguida em palavras-chave e sílabas 
geradoras, deixando assim de ser apenas um livro para ensinar a 
ler e tornando-se um livro para fazer exercícios de escrita. Então 
começou a apresentar textos com palavras já estudadas pelos 
alunos, numa ordem crescente de dificuldades, e foram 
incorporados exercícios gramaticais e estruturais para o aluno 
desmontar e montar palavras. Tempos depois, recebeu a 
companhia do manual do professor e uma seção especial, 
dedicada ao período preparatório, cuidando da prontidão dos 
alunos para a alfabetização. As tabelas de letras sumiram e até o 
alfabeto não fazia mais parte da cartilha. 
Adota-se esse tipo de livro didático até hoje amplamente. 
Mesmo quando, por alguma razão, baseada em conhecimentos 
adquiridos em treinamentos, ou através de simples 
acompanhamento dos modismos da educação, alguns 
professores deixam de usar as cartilhas, constata-se que o 
método das cartilhas tem resistido muito mais às críticas e 
encontra-se em praticamente todas as salas de aula de nossas 
escolas. 
Muitos professores fizeram sua própria cartilha, com material de 
preparação de aulas elaborado em anos de trabalho. Alguns 
chegaram até a publicar esse material, fazendo ver aos demais 
colegas como conseguiram uma boa receita para a alfabetização. 
Os próprios órgãos encarregados da educação, atendendo a 
pedidos de professores, compram, todos os anos, uma 
quantidade enorme de cartilhas para uso nas escolas públicas. 
Há ainda aqueles professores (e Secretarias de Educação), 
que, não querendo adotar uma cartilha, compram, em 
substituição, livrinhos de histórias, os quais,além de reduzir o 
trabalho de alfabetização a interpretações subjetivas dos textos 
e transformar a sala de aula em palco de fantasia sem fim, ainda 
são usados por alguns professores para extrair o que antes eles 
faziam com as cartilhas, agora de maneira muito mais confusa e 
difícil. 
A opção por um trabalho alternativo, sem cartilhas, exige, 
antes de tudo, que se conheça como elas são, o que propõem, 
como propõem, o que pretendem e, 
<80> 
principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão, 
apresentaremos a seguir alguns comentários para explicar 
melhor o que representam as cartilhas no processo de 
alfabetização. O que muitas vezes salva o trabalho escolar 
nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de 
alguns professores, que conseguem obter resultados 
surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim. 
Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em 
comum o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de 
sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única 
coisa que varia é a maneira como esse "produto" vem 
apresentado. 
Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem 
como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos 
nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um 
pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais, 
nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização 
através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé- 
bi-bó-bu. É por isso que muitos professores não vêem outra 
saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi- 
bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais interessante das 
cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto, 
essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas idéias 
são organizadas em lições e passadas para os alunos. 
Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada 
lição trata apenas de uma unidade silábica. Os conteúdos das 
lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao 
mais difícil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim, 
apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não 
presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado 
teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o aluno 
na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá 
saber escrever e ler por conta própria. 
Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma 
palavra-chave, ilustrada com um desenho, e destacam a sílaba 
geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em 
seguida, apresenta-se a família silábica daquela sílaba 
destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com 
elementos já dominados, mais elementos novos introduzidos na 
lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que 
palavras 
<81> 
principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão, 
apresentaremos a seguir alguns comentários para explicar 
melhor o que representam as cartilhas no processo de 
alfabetização. O que muitas vezes salva o trabalho escolar 
nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de 
alguns professores, que conseguem obter resultados 
surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim. 
Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em 
comum o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de 
sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única 
coisa que varia é a maneira como esse "produto" vem 
apresentado. 
Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem 
como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos 
nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um 
pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais, 
nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização 
através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé- 
bi-bó-bu. E por isso que muitos professores não vêem outra 
saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi- 
bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais interessante das 
cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto, 
essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas idéias 
são organizadas em lições e passadas para os alunos. 
Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada 
lição trata apenas de uma unidade silábica. Os conteúdos das 
lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao 
mais difícil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim, 
apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não 
presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado 
teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o aluno 
na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá 
saber escrever e ler por conta própria. 
Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma 
palavra-chave, ilustrada com um desenho, e destacam a sílaba 
geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em 
seguida, apresenta-se a família silábica daquela sílaba 
destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com 
elementos já dominados, mais elementos novos introduzidos na 
lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que 
palavras 
<81> 
são desmontadas e remontadas com elementos feitos de sílabas 
geradoras ou de pedaços de palavras. Ou, então, aparecem os 
exercícios de "faça segundo o modelo". Há, ainda, um pequeno 
"texto" para leitura, cópia e ditado, e que pode servir também 
para exercícios de interpretação de texto. Nas lições mais 
adiantadas, além das tradicionais cópias, aparecem os exercícios 
de escrita: "minhas primeiras frases" e "minhas primeiras 
histórias". Recheando esse esqueleto, uma quantidade enorme 
de atividades, que vão desde a colagem de letras e palavras 
recortadas de jornais e revistas, até propostas de 
representações teatrais pelos alunos. Em geral, essas atividades 
dão a falsa impressão de que uma cartilha é diferente da outra. 
Como se disse antes, elas são diferentes apenas na maneira 
como aplicam o bá-bé-bi-bó-bu. 
As cartilhas partem de uma concepção de linguagem segundo 
a qual uma palavra é feita de sílabas, uma sílaba, de letras, uma 
frase é um conjunto de palavras e um texto é um conjunto de 
frases. Isso está evidente nas atividades de "desmonte" das 
palavras e reagrupamento das unidades geradoras. Ora, a 
linguagem tem esses aspectos, mas ficar apenas nisso produz 
uma imagem distorcida. A linguagem é basicamente a união de 
sons e de significados, tudo muito bem ligado, através das 
diferentes estruturas gramaticais que exercem funções próprias 
e que têm usos específicos nos diferentes contextos em que 
ocorrem. 
A maneira como as cartilhas lidam com a fala e a escrita 
confunde as crianças, uma vez que passa a idéia de que a 
linguagem é uma "soma de tijolinhos", representados pelas 
sílabas e unidades geradoras. Ora, as crianças aprenderam a 
falar de outra maneira e, portanto, para elas, a linguagem 
apresenta-se como um todo organizado de maneira muito 
diversa daquela que a escola lhes mostra. No fundo, as cartilhas 
deixam de lado toda a trama da linguagem, ficando apenas com 
o que há de mais superficial. Isso faz com que os alunos passem 
a fazer apenas um uso superficial da fala e da escrita nas suas 
atividades escolares futuras. 
A alfabetização gira em torno de três aspectos importantes da 
linguagem: a fala, a escrita e a leitura. Analisando esses três 
pontos, tem-se uma compreensão melhor de como são as 
cartilhas ou qualquer outro método de alfabetização. 
<82> 
A CARTILHA E A FALA 
A variação lingüística 
A variação lingüística mostra como umalíngua é composta de 
inúmeros dialetos, que apresentam semelhanças e diferenças. As 
semelhanças constituem a base comum que permite agrupar os 
dialetos em torno de uma mesma língua. Com relação às 
diferenças, algumas não causam estranheza, pois são aceitas 
socialmente, como o fato de algumas pessoas falarem "tia" e 
outras "tchia". Há, porém, diferenças que representam a fala de 
pessoas pobres, que não usam a norma culta da língua, e que 
são, pois, interpretadas de maneira preconceituosa pela 
sociedade como um modo errado de falar. Exemplos: "drento", 
"drobar", em vez de "dentro", "dobrar", etc. 
A cartilha simplesmente ignora tal realidade lingüística da 
sociedade. O aluno vai seguir as lições da cartilha usando, desde 
o começo, uma fala espelhada no modelo apresentado pelo 
professor. Como a cartilha é um livro que se propõe a tratar dos 
assuntos de maneira gradual, quase sempre lidando com 
questões muito fáceis, pressupõe-se que os alunos acompanhem 
sem dificuldade o uso da fala padrão, mesmo que em casa sejam 
falantes de dialetos que apresentam enormes diferenças com 
relação ao dialeto da escola. 
A dificuldade do aluno surge quando ele se vê obrigado a 
responder a perguntas formuladas pelo professor. Como não 
domina a norma culta, fala seguindo seu próprio dialeto, 
recebendo dos professores inúmeras correções, acompanhadas 
ou não da zombaria dos colegas. 
 
O idioleto do professor 
Através da prática dos professores em sala de aula, percebe- 
se que o que se entende por dialeto padrão é na verdade um 
idioleto do professor. Ou seja, usa-se como modelo de fala uma 
maneira especial de pronunciar certas letras, de modo a facilitar 
a compreensão pelo aluno das relações entre letras e sons em 
função das formas ortográficas das palavras. Obviamente, esse 
modo de falar inventado pelo professor é usado de modo 
especial em certas atividades do processo de alfabetização, 
como nos ditados ou nas explicações básicas da introdução de 
uma lição nova. 
<83> 
Por ser um dialeto artificial, sem vida na sociedade, nenhum 
professor conseguirá manter esse modo de falar o tempo todo, 
porque ele também é um falante nativo de uma variedade 
lingüística (dialeto). Quando o professor se esquece de que está 
passando matéria, fala como se estivesse usando seu modo de 
falar coloquial de fora da sala de aula. Alguns professores 
convencem-se de tal maneira que aquela fala que inventaram 
para ensinar os sons das letras é, de fato, a ideal, que acabam 
tornando-se pessoas pedantes fora da escola, levando para o 
dia-a-dia uma pronúncia estranha de professor de alfabetização. 
Para ilustrar o que ficou dito acima, seguem alguns exemplos. 
Um professor, para explicar aos seus alunos a diferença entre a 
escrita de L e U, pronuncia todas as letras L com o som de L, 
incluindo aquelas que já passaram a ter o som de U (mesmo na 
norma culta, pronunciando "balde" em vez de "baudi"; "alto" em 
vez de "autu", etc. Outro exemplo: o professor faia "ta-té-tchi- 
tó-tu", "da-dé-dji-dó-du" (sem perceber que palataliza os "tis" e 
"dis"), mas ensina que se deve dizer "balde" e não "baudji"; 
"póte" e não "pótchi", etc. Do mesmo modo, exige que o aluno 
leia "tudo" e não "tudu", etc. 
Esses professores acham que, procedendo assim, farão com 
que os alunos errem menos quando forem escrever. Esquecem- 
se, porém, de que eles mesmos dizem "balde" porque conhecem 
a forma escrita da palavra. O aluno, por sua vez, não sabe como 
se escrevem as palavras e, conseqüentemente, não pode saber 
quando se usa L ou U: é "falta" ou "fauta"? é "flauta" ou é 
"flalta"? Somente quem sabe escrever saberá responder 
corretamente a perguntas como essa. 
O método das cartilhas não leva em conta, no entanto, que a 
maior dificuldade dos alunos, sobretudo daqueles que não são 
falantes da norma culta em uso na sociedade, é aprender que 
nem tudo o que eles falam fora da escola está de acordo com a 
norma culta. Para esses alunos, falar palavras como "casa", 
"batata", tem o mesmo valor de palavras como "drentu", 
"drobar", "uzómitrabaia", "pranta", etc. E verdade que esses 
alunos terão mais facilidade para escrever corretamente as 
palavras depois que aprenderem a norma culta, mas pressupor 
tal conhecimento como estratégia para aprender ortografia é 
algo descabido. Ortografia se aprende de outra maneira. 
Nota 
Idioleto: variedade lingüística típica de um indivíduo: não 
pertence a um dialeto (variedade lingüística comum a muitas 
pessoas). XAVIER & MATEUS, 1990. 
<84> 
 
A silabação 
 
Outro problema sério que o método das cartilhas (o bá-bé-bi- 
bó-bu) traz é o uso da silabação a todo instante. Tudo gira em 
torno da silabação. Isso faz com que o aluno passe a pensar que, 
para ler, é preciso silabar (silabar para decifrar a escrita e 
silabar para ter uma pronúncia bonita, bem-articulada). Alguns 
levam até para a própria fala essa pronúncia silabada. Ao fazer 
isso, o ritmo e a entoação (para não falar de outros elementos 
prosódicos da fala) ficam totalmente modificados, 
descaracterizando a fala natural, com conseqüências como 
pedantismo e preciosismo, de quem fala assim, e, sobretudo, 
com dificuldades de expressão do falante e de compreensão 
geral dos textos. 
A cartilha ensina os alunos a silabarem e depois quer que eles 
leiam com fluência: isso é contraditório! As crianças aprendem a 
falar e dizem tudo de maneira adequada nas mais diferentes 
circunstâncias da vida, justamente porque, como falantes 
nativos, aprenderam a agir assim e nisso são perfeitas. Poderiam 
aprender a ler usando esse mesmo comportamento fonético. 
Porém, a escola destrói essa habilidade já conquistada, porque 
acha que falando naturalmente os alunos não irão aprender a 
grafar corretamente as palavras nem a ler no dialeto padrão. Há 
um equívoco educacional nessa atitude escolar. 
 
Observando a fala para escrever 
Quando vão aprender a ler e a escrever, as crianças têm, como 
única referência de conhecimento já adquirido, a própria fala. 
Elas observam demais a própria fala, nesse momento. A cartilha, 
porém, ignora esse fato e, aos poucos, induz os alunos a 
interpretarem os fenômenos fonéticos da fala, tendo como 
modelo a forma escrita das palavras e não a realidade fonética. 
Depois de certo tempo, os alunos já não conseguem sequer 
analisar a própria fala ou a de outras pessoas, a não ser através 
da escrita ortográfica. E uma pena. 
<CAGLIARI, 1989b. > 
A escola deveria aproveitar essa habilidade de percepção da 
fala que as crianças têm para explorar a linguagem oral cada vez 
mais e fazer com que essas análises se tornem conhecimentos 
solidamente estabelecidos. Isso é importante e servirá como um 
recurso significativo para se entender muitos outros aspectos da 
natureza da linguagem. Até para aprender ortografia é uma 
excelente estratégia, porque o aluno não ficará mais tentando 
achar a forma ortográfica, falando possíveis pronúncias de 
professores alfabetizadores, mas saberá que a fala funciona 
diferentemente da ortografia. É muito importante passar da 
habilidade de falar naturalmente uma língua para a de ler textos 
com fluência: para tanto, a cartilha precisa mudar radicalmente 
sua postura diante da linguagem oral. 
 
Confusão entre fala e escrita 
As cartilhas apresentam praticamente a cada passo erros 
grosseiros de fonética, porque confundem fatos da fala com 
fatos da escrita. Um exemplo clássico encontra-se na 
interpretação dos valores fonéticos da letra X, em que se 
distinguem o que alguns professores chamam os sons S e SS 
quando, na verdade, eles representam um único som, comose 
pode comprovar, observando a pronúncia de palavras como 
"próximo" e "extra" (para os que falam "éstra" e não "échtra"). 
Outro fato notório é que a cartilha considera a mesma coisa o BA 
de "banho" e o de "batata". 
Como a cartilha está completamente equivocada a respeito do 
funcionamento da fala e como a maioria dos professores não 
recebe uma formação lingüística adequada, em particular com 
relação à fonética, muitas explicações relacionadas a certos 
erros da fala ou da escrita que alguns alunos cometem na 
alfabetização chegam às raias do ridículo, como aquelas relativas 
às famosas trocas de letras. 
Dificilmente se encontra um professor que faça uma análise 
correta desses erros. Eles acham que os alunos têm problemas 
auditivos (há sempre uma deficiência qualquer quando aparece 
um erro na alfabetização), que os alunos falam errado porque 
vivem constantemente distraídos, que não sabem observar 
corretamente as letras, que não são capazes de memorizar 
diferenças elementares, como as pronúncias de "vaca" e "faca", 
etc. 
A incompetência desses professores fica evidente quando se 
pede para que analisem (ou escrevam) palavras inventadas (sem 
ortografia definida), como, por exemplo, "vixrrabzó" (com a 
letra X representando o som de CH). Em primeiro lugar, eles não 
são capazes de ouvir direito e têm dificuldade em memorizar, 
exigindo que o enunciado seja repetido inúmeras vezes. Não 
sabem se existe ou não um I depois do X, estranham se lhes é 
perguntado se o RR é surdo ou sonoro, 
<86> 
trocam V por F, B por P, Z por 5, exatamente como fazem seus 
alunos, de quem eles tanto reclamam. O pior de tudo é que esses 
professores nem sequer são capazes de entender os erros que 
eles próprios cometem. 
Haverá sempre aquelas pessoas que acabam concluindo que, 
apesar de todos esses problemas, os professores alfabetizam e 
os alunos aprendem (pelo menos alguns). E isso, é necessário 
admitir, é verdade. Acontece, porém, que a escola não pode 
adotar essa postura: ela não faz sentido. Se podemos ter um 
ensino decente, por que nos contentarmos com um ensino 
indecente? 
 
< CAGLIARI, 1984b. > 
Veja "Ditados e ditadores" 
(CAGLIARL 1990, p. 94-117, no qual se relata uma pesquisa 
realizada a partir de um ditado especial feito para professores 
alfabetizadores e os resultados obtidos. 
 
 
A CARTILHA E A ESCRITA 
A cartilha moderna apresenta um método de alfabetização 
baseado na aprendizagem da escrita (e não da leitura, como 
antigamente). Tudo na cartilha gira em torno da escrita. Até a 
fala dos professores que seguem a cartilha imita a escrita e não 
a linguagem oral dos falantes nativos da língua. Essa visão 
centrada na escrita será levada pelos alunos até o dia em que 
puderem estudar seriamente lingüística e aprenderem que a 
escrita é apenas uma forma de representação gráfica de alguns 
elementos fonéticos da linguagem e esta, na sua essência, é 
oral. 
 
A escrita prevalece sobre a fala 
Depois que a cartilha passou a fazer parte da escola, os 
estudos sobre a oralidade ficaram praticamente excluídos: tudo 
é feito por escrito. A escrita, então, passou a ser considerada 
algo nobre, perfeito, portador do pensamento lógico e literário, 
ao passo que a fala começou a ser considerada algo vulgar, uma 
linguagem cheia de erros e falhas, deselegante, incapaz de 
traduzir o pensamento mais sofisticado da cultura. 
Infelizmente esses são grandes preconceitos de nossa cultura. 
As pessoas esquecem-se de que sem a linguagem oral sequer 
poderia haver linguagem escrita. A escrita requer decifração 
para ser entendida, e decifrar é devolver o texto escrito à forma 
oral de realização da linguagem. É uma ilusão pensar que se 
pode passar diretamente da decifração da escrita para o 
pensamento puro, sem passar pela organização da linguagem 
humana, 
<87> 
a qual, na sua essência mais profunda, nada mais é do que a 
união de significados com sons da fala. 
Embora a cartilha tenha em tão alta estima a escrita e faça com 
que tudo, no processo de alfabetização, gire em torno dela, 
constata-se que ela não sabe quase nada a respeito dos sistemas 
de escrita e, pior ainda, divulga muitas idéias estranhas e 
erradas a respeito desse assunto. 
A palavra 
 
Sem dúvida alguma, a palavra é a unidade principal de todos 
os sistemas de escrita. A cartilha foi além: não só assumiu isso, 
como passou a trabalhar como se a palavra escrita fosse a 
unidade mais importante da linguagem, o que é falso. Na 
verdade, a palavra, como unidade lingüística, é algo muito 
confuso e de difícil definição e manipulação. A grande prova 
disso pode ser encontrada na própria alfabetização, observando- 
se a dificuldade que os alunos têm no começo para segmentar a 
própria fala em palavras, seguindo os padrões da escrita. 
Todavia, a palavra é o centro das atenções da cartilha. Pode- 
se até ter uma frase ou um pequeno texto, junto com as lições, 
porém o que vale não é o texto em si, mas o fato de ele conter 
apenas palavras já estudadas. Uma frase é pura e simplesmente 
uma seqüência de palavras. Do significado de cada palavra, tira- 
se o significado total do texto. Essa é uma visão muito 
reducionista da linguagem humana, a qual, no entanto, fica tão 
marcada na formação dos alunos, que eles podem continuar com 
essa idéia pelo resto da vida. Desse modo, a linguagem como 
expressão do pensamento e como ação sobre o mundo fica 
destruída. Essa é uma das razões pelas quais muitos alunos têm 
dificuldades em lidar com a linguagem na escola e fora dela, 
escrevem sempre coisas estranhíssimas nos seus textos e têm 
enorme dificuldade para entender as sutilezas (e às vezes até as 
coisas mais óbvias) da linguagem. 
O que a cartilha faz diante da palavra escrita que ela considera 
a essência da linguagem? Começa um jogo de desmonte e 
remontagem, pressupondo-se agora que as palavras são feitas 
de pedacinhos que se juntam. Esses pedacinhos, é claro, serão 
organizados em famílias, compostas de uma consoante mais uma 
das cinco vogais da escrita. Assim, a família do B é constituída de 
ba-bé-bi-bo-bu. Como resquício do princípio acrofônico, 
<88> 
tradicionalmente ligado ao alfabeto, cada família recebe uma 
palavra-chave, que servirá de recurso mnemônico. Por exemplo: 
BARRIGA será a palavra-chave para a família do bá-bé-bi-bó-bu. 
Como um dos objetivos do monta-e-desmonta é associar letras 
às sílabas da linguagem oral, estudam-se primeiro as famílias 
mais simples, constituídas de uma consoante mais uma vogal 
(usando apenas as letras disponíveis na escrita, não os fonemas 
que cada letra apresenta na fala), e depois as famílias em que 
aparecem grupos de consoantes, como a família do chá-ché-chi- 
chó-chu, do prá-pré-pri-pró-pru, etc. Finalmente, são estudados 
os casos em que ocorre uma consoante no final de sílaba, como 
nas palavras an-jo, cam-po, etc. 
As cartilhas apresentam os piores textos, elaborados por 
"razões pedagógicas", para gerar as unidades das lições com os 
elementos já dominados. Basta comparar os textos das cartilhas 
com os textos espontâneos das crianças para perceber 
imediatamente como os primeiros são ridículos e idiotas. Os 
textos das cartilhas não lidam adequadamente com os elementos 
coesivos e, às vezes, nem com a coerência discursiva, o que faz 
deles péssimos exemplos para os alunos. 
 
<MASSINI-CAGLIARI, 1997a. > 
Elementos coesivos dizem respeito àquelas palavras que fazem 
referência a outras mencionadas antes num texto, com os 
pronomes substituindo nomes, advérbios, etc. A coerência 
discursiva refere-se ao fato de se manter uma lógica nasafirmações que o texto traz, um compromisso com a verdade do 
texto, e ao fato de se passar de um assunto a outro mantendo 
uma relação harmônica entre as partes. 
 
Muitos alfabetos 
 
Mas há outros aspectos da escrita a serem considerados. 
Nenhuma cartilha explica a seus usuários que usamos 
"diferentes alfabetos", como ABCÇDEFG... e abcçdefg... 
Certamente, o professor dirá que temos letras maiúsculas e 
minúsculas (além das letras de fôrma ou imprensa e das letras 
cursivas ou manuscritas). No entanto, o essencial, que é o fato 
de existirem alfabetos diferentes, nesses casos, passa 
despercebido. Uma letra maiúscula pode ser escrita em tamanho 
menor do que uma letra minúscula, porque não é o tamanho que 
conta, mas a forma gráfica. Alguns alunos têm grandes 
dificuldades para perceber que letra é um valor abstrato ao qual 
podemos associar uma variedade de alfabetos diferentes. E a 
cartilha não explica isso. Os alunos acabam constatando por si, 
depois de certo tempo, mas isso pode ser um processo longo e 
difícil. 
 
A escrita cursiva 
O método das cartilhas tem uma preferência declarada pela 
escrita cursiva, embora isso não fique evidente ao analisarmos 
os próprios livros, nos quais se utiliza 
<89> 
também a letra de imprensa. Para se ter uma idéia da 
importância da escrita cursiva na alfabetização, é preciso 
analisar o que acontece nas salas de aula e nos cadernos dos 
alunos — e não apenas nas cartilhas. Essa atitude de valorizar a 
escrita cursiva revela um preconceito da escola e um equívoco 
sério. Ninguém nega que a escrita cursiva seja importante, que é 
mais fácil escrever rapidamente na forma cursiva do que usando 
letras de fôrma. Também é verdade, porém, que a letra cursiva 
representa essas vantagens apenas para as pessoas que já estão 
muito familiarizadas com a escrita e com a leitura, ou seja, 
pessoas já alfabetizadas. Para quem está aprendendo, a letra de 
fôrma — especialmente a maiúscula — proporciona um material 
gráfico melhor para a leitura e até para as primeiras escritas. 
Tanto isso é verdade que as crianças quando estão passando dos 
rabiscos para as primeiras formas gráficas utilizam 
espontaneamente a letra de fôrma, mesmo estando habituadas a 
ver as duas formas de escrita no seu cotidiano. 
A escrita cursiva é uma maneira de adaptar o grafismo das 
letras aos maneirismos pessoais: por isso, freqüentemente se 
constata que é difícil ler a letra do outro. A escrita cursiva 
apresenta um traçado de letras ligadas, facilitando uma escrita 
rápida, que, por outro lado, dificulta o trabalho de leitura. Como 
exige uma ação mais complexa do usuário pela sua natureza 
gráfica, a escrita cursiva torna-se mais difícil para quem não tem 
prática. Os alfabetizadores gostam dela também por essa razão, 
uma vez que, sendo mais difícil de elaborar, permite avaliar 
melhor se um aluno está aprendendo ou não a traçar as letras. 
A escrita cursiva tem um uso quase exclusivamente pessoal. 
Com o grande desenvolvimento tecnológico das máquinas de 
escrever (chegando até os computadores), a escrita deixou de 
ser feita à mão, ficando essa atividade restrita a pequenas notas 
pessoais. Isso fez a escrita cursiva perder um pouco da sua 
importância no mundo moderno. Apesar disso, o método das 
cartilhas e a escola continuam insistindo na escrita cursiva. 
Alguns professores acham que, se os alunos começarem a 
escrever com letras de fôrma, não vão aprender a escrever com 
letras cursivas, e no processo de alfabetização o alvo a ser 
atingido é a bela escrita cursiva, redondinha, igual para todos. 
Padronizar a escrita cursiva desse modo é ir contra a sua própria 
natureza, cuja característica fundamental é ser uma expressão 
gráfica individualizada. 
<90> 
 
Equívocos a partir da escrita cursiva 
 
Um certo número de erros encontrados nas tarefas escolares 
dos alunos deve-se a confusões causadas pelo uso da escrita 
cursiva. Como ela deforma certas letras quando agrupadas, fica 
difícil saber exatamente onde começam e onde terminam 
algumas letras e até mesmo quais os elementos gráficos que as 
constituem. É por isso que um aluno pode pensar que, na escrita 
cursiva a letra "b" é formada por traços que se assemelham às 
formas da letra "I", seguida dos de uma letra 
— A. "v"; ou que a letra "h" é uma combinação de "I" e "s"; 
que a letra "A" é formada de um "C" e "e". Ou, ainda, 
P — O que a letra "a" e a letra "d" são a mesma coisa, 
distinguindo-se apenas pelo som que têm nas palavras (assim 
como o "t" e o "tch", em palavras como TV e TIA, 
— etc.). O aluno pode até constatar que há uma diferença na 
altura da "perninha", que também varia, de caso para caso. 
Afinal, esse tipo de variação acontece a todo instante e nunca foi 
considerado relevante, por que seria então no caso de "a" e "d"? 
Dificuldades como essas em geral passam despercebidas pela 
maioria dos professores, os quais se contentam em apagar o erro 
do aluno e mostrar a forma certa. 
Há outros problemas da escrita com os quais a cartilha não 
lida adequadamente. Por exemplo, há uma série de exercícios e 
orientações que vem desde o período preparatório, esclarecendo 
à criança que se escreve da esquerda para a direita. Quando diz 
isso ao 
aluno, o professor está pensando na ordem das letras nas 
palavras. Porém, o aluno pode pensar de outra maneira seguindo 
a instrução recebida e entendida dentro do quadro de suas 
dificuldades particulares, alguns alunos acabam escrevendo de 
forma espelhada letras 
esquerda como S, C, etc., em início de palavras. Uma letra puxa 
outra e de repente o aluno está escrevendo a palavra e 
até a frase inteira de forma espelhada. E o professor 
(mal-informado) pode achar que essa criança tem problema de 
lateralidade cerebral, um caso sério para a 
medicina resolver. 
Escrita sem sistema 
 
Como a cartilha não apresenta nem discute, em momento 
algum, a natureza, a função e os usos dos sistemas de escrita, 
alguns alunos acabam enveredando por caminhos complicados, 
em geral becos sem saída para si e para o professor. É o caso 
daquele aluno que faz 
<91> 
uns rabiscos e diz que escreveu seu próprio nome. O professor 
pensa que ele está "doido", sobretudo porque, ao ser indagado, 
o aluno mostra que sabe ler o que escreveu. Esse mesmo 
professor, que concluiu que seu aluno era "doido", horas depois 
vai ao banco, assina um cheque fazendo exatamente o que fez 
seu discípulo e não acha nada estranho; pelo contrário, orgulha- 
se de ter uma assinatura exótica, cheia de rabiscos. 
O aluno provavelmente levou para a sala de aula algo que 
constatara na vida: as pessoas assinam o próprio nome — isto é, 
escrevem — fazendo rabiscos. 
 
Cópias e ditados 
Através de cópias e ditados, o trabalho prossegue, até que o 
aluno passe por todas as lições, podendo, então, ganhar seu 
famoso diploma de alfabetização. O aluno, nesse meio tempo, vai 
desmontando e remontando palavras para ver o que acontece: 
não tem liberdade nem lhe é facultado ter qualquer iniciativa 
para escrever o que gostaria. Pelo contrário, toda aventura 
individual pode levar ao erro, e o erro pode ser irremediável. Por 
isso, ninguém pode escrever nada, a não ser o que já tenha 
estudado com o professor. 
Os alunos copiam palavras muitas vezes para fixar sua forma 
ortográfica; depois, copiam as primeiras frases e, finalmente, os 
primeiros textos. Somente depois de terminada a cartilha, 
podem começar a escrever frases por iniciativa própria e, mais 
adiante, os primeiros textos. Antes de chegar a este ponto, tudo 
é feito de maneira coletiva: todos realizam a mesma tarefa,da 
mesma maneira, no mesmo momento. 
A cartilha pensa que ensina a ler, por meio de cópias e ditados 
e desmontando e montando as palavras em famílias de letras. A 
cartilha jamais discute a leitura em si, a decifração. Somente em 
dois momentos (e de maneira equivocada) trata das relações 
entre letras e sons: 
quando apresenta os dois sons do E e do O, e os cinco sons do X. 
 
O que falta no estudo da escrita 
Infelizmente, a cartilha não apenas trata a escrita de maneira 
inacreditavelmente equivocada, como deixa de tratar de muitos 
aspectos da escrita que são interessantes e importantes e que, 
por essa razão, deveriam começar a ser estudados desde a 
alfabetização. 
<92> 
A história da escrita deveria fazer parte das preocupações da 
escola e dos livros didáticos desde a alfabetização. As crianças 
adoram ouvir histórias e a da escrita é verdadeira e fascinante. 
Em particular, deverse-ia contar a história das letras do alfabeto, 
os diferentes tipos de letras (ou estilos) que o alfabeto latino 
produziu ao longo da história do Ocidente. Seria interessante 
apresentar ainda, mesmo que sumariamente, um relato sobre a 
ortografia da língua portuguesa, para mostrar aos alunos de um 
modo muito interessante como a ortografia funciona numa 
sociedade. 
O mundo em que vivemos está cheio de escrita ideográfica, 
feita com pictogramas ou com caracteres convencionais. Esse é 
um aspecto interessantíssimo para ser explorado pela escola e, 
conseqüentemente, pelas cartilhas, na alfabetização. Os alunos 
podem inventar sistemas de escrita seguindo modelos 
conhecidos. Podem experimentar escrever o que quiserem com 
eles e testar se as demais pessoas conseguem ler ou não, 
conferindo, assim, os limites e a importância da 
convencionalidade na escrita. Uma atividade como essa permite 
ao aluno ler e escrever logo 
no primeiro dia de aula, o que pedagogicamente é motivo de 
grande alegria e de entusiasmo para os alunos e grande 
motivação para continuarem explorando novas formas de escrita 
até chegar à escrita 
com as letras do alfabeto. 
A escola precisa explicar como funciona o sistema de escrita, o 
que são letras, como se decifra uma escrita com letras, o que é 
escrever à moda de uma transcrição fonética — com a qual os 
lingüistas registram 
os sons da fala de acordo com a pronúncia de cada um — e 
comparar esses modos de escrever com a escrita ortográfica. A 
escola precisa explicar o que é ortografia, como funciona, como 
os alunos fazem para 
escrever respeitando a ortografia, para corrigir os textos que 
produzem, para tirar dúvidas. A escola precisa não incutir nas 
pessoas o medo de escrever errado alguma palavra de 
conhecimento comum. Para isso, ela precisa ensinar os alunos, 
primeiro, a aprender a escrever e, depois, a escrever de acordo 
com as regras ortográficas, sem medo de ter dúvidas, de 
perguntar, de buscar informações nos dicionários ou com as 
pessoas que sabem, porque ninguém passa pela vida sem ter 
dúvidas de ortografia. Às vezes, temos uma imensa dúvida 
ortográfica com uma palavra que parecia conhecida, familiar, 
que sempre escrevemos. Se a sociedade 
<93> 
fosse melhor preparada pela escola, não se escandalizaria 
diante dessas dúvidas. Mas do jeito que a cartilha trata o 
assunto, parece burrice não ter certeza sobre a ortografia das 
palavras. É óbvio que a escola vai cobrar dos alunos que 
memorizem a ortografia das palavras de uso comum, de acordo 
com o nível de escolaridade, mas poderia ser muito mais 
benevolente com os erros. E quando não se sabe como se 
escreve uma palavra, não adianta pensar, refletir, especular: é 
preciso perguntar a quem sabe ou olhar no dicionário. 
A pior conseqüência da maneira como a cartilha trata a escrita 
na alfabetização decorre inegavelmente da sua concepção de 
texto. Mas esse ponto terá um tratamento especial, mais 
adiante. 
 
A CARTILHA E A LEITURA 
 
Como a cartilha ensina a ler 
Existe uma leitura que é a decifração da escrita, que a cartilha 
pensa ensinar aos alunos quando mostra as famílias de letras e 
propõe exercícios de desmonte e remontagem de palavras. E é 
só o que os livros apresentam. Como a cartilha tem uma maneira 
equivocada de tratar a escrita, a leitura também fica 
prejudicada, pois depende crucialmente da escrita. Alguns 
alunos chegam mesmo a explicitar o processo de decifração que 
aprenderam, dizendo, por exemplo, "le-a-la, te-a-ta" ao tentar 
ler "la-ta". Quando chega o momento da leitura, alguns 
professores obrigam seus alunos a acompanhar com os olhos 
letra por letra, uma depois da outra, decifran do-as 
individualmente e falando o que estão lendo. Os mais espertos 
acabam realizando uma leitura silabada que, com o tempo, pode 
até adquirir velocidade suficiente para dar a impressão de 
fluência. Todavia, não raramente ocorre que, mesmo esses 
alunos fluentes e rápidos na leitura, quando acabam de ler um 
texto, não são capazes de lembrar o que leram, a não ser uma ou 
outra palavra (geralmente aquelas que apresentaram dificuldade 
de leitura, em que o aluno gaguejou, parou para pensar...). 
Do modo como a cartilha trata a escrita e a fala, é quase 
impossível que um aluno, na alfabetização, leia 
<94> 
com o devido ritmo e a desejada entoação. As cartilhas 
preferem leituras coletivas às silenciosas, sem cobranças. Os 
alunos são solicitados freqüentemente a ler de surpresa um 
texto novo (é claro, composto só de palavras já estudadas, ou de 
palavras com sílabas das famílias de letras já dominadas). 
Preparar uma leitura com antecedência vai contra os costumes 
das cartilhas. A leitura de improviso é mais uma atividade para 
testar se o aluno aprendeu ou não a lição, se já dominou um 
determinado conteúdo ou não. Para um aprendiz ler em voz alta, 
como deveria ser a leitura, ele precisa decifrar a escrita com 
facilidade, o que, nos primeiros meses de alfabetização, não está 
ao alcance da maioria dos alunos. 
A cartilha usa, ainda, a leitura como forma de ensinar e fixar a 
pronúncia da norma culta, freqüentemente exigindo dos alunos 
uma leitura com uma pronúncia artificial. 
 
A interpretação de textos segundo a cartilha 
O método das cartilhas introduziu uma nova atividade quando 
percebeu que alguns alunos, bons leito res, não eram capazes de 
dizer com as próprias palavras o que tinham lido. Essa atividade 
é a interpretação de textos. 
Qualquer texto passou a ser um pretexto para colocar em 
prática aquela atividade. Mais uma vez, a cartilha meteu as mãos 
pelos pés. Fazer interpretação de texto passou a ser preencher 
os vazios de perguntas feitas com trechos do texto. Por exemplo, 
se o texto diz: "Maria foi visitar a vovó", pergunta-se: "Quem foi 
visitar a vovó?" "Maria foi fazer o que na casa da vovó?" "Maria 
foi visitar a..." Ora, achar que um falante nativo de português 
não é capaz de ouvir (ou ler) uma frase banal como essa e não a 
entender é um insulto à racionalidade da pessoa. 
Alguns professores, que preferiram trocar os textos das 
cartilhas por "livros paradidáticos", passaram a dar importância 
exagerada à interpretação de textos, reduzindo suas aulas a 
essa atividade. Nesses casos o professor costuma propor um 
longo exercício de perguntas e respostas, em um momento 
inoportuno para esse tipo de atividade, já que o aluno mal sabe 
ler. O que os alunos gostariam mesmo de fazer era aprender a 
ler e a escrever, para ler por si e escrever suas historinhas como 
bem quisessem. 
<95> 
OUTROS PROBLEMAS DAS CARTILHAS 
O método das cartilhas tem outros problemas que não são 
menos graves do que aqueles relativos à fala, escrita e leitura.Alguns deles merecerão aqui um destaque. 
 
Aprender em ordem 
O princípio da progressão controlada, baseado na idéia dos 
elementos já dominados, ordenando as dificuldades 
progressivamente com cronogramas minuciosos, estabelecendo 
o que vem antes e o que vem depois no ensino e na 
aprendizagem, amarra de tal forma o processo de alfabetização 
que os alunos passam a fazer apenas o que o professor manda. 
Por outro lado, esse princípio serve de base para a avaliação que 
permite ao professor passar para a lição seguinte ou não. Como 
tudo vem rigidamente em seu lugar, quando o aluno erra, deve 
voltar atrás e repetir a lição. O princípio da progressão 
controlada pressupõe que apenas o elemento novo introduzido 
na lição constitui dificuldade para o aluno, uma vez que o resto 
"já foi dominado". Acontece, porém, que à medida que os alunos 
avançam, acabam se esquecendo de coisas já vistas, e isso gera 
uma enorme confusão na aplicação do método. A única saída 
para esses casos é separar os alunos atrasados em classes 
especiais, onde começarão tudo de novo. Para alguns alunos, 
esse processo irá se repetir até que ele abandone a escola, 
julgando-se incapaz nos estudos. 
 
O entulho gramatical 
As cartilhas costumam trazer exercícios de gramática que são 
verdadeiros entulhos jogados nas lições para preencher o tempo 
dos alunos com atividades de linguagem. Esses exercícios 
tratam, sobretudo, de gênero, de número e de graus das 
palavras. Há, ainda, exercícios de identificação de categorias 
gramaticais. Querer ensinar essas coisas na alfabetização é um 
desastre. Como não há explicações sérias, apenas exercícios 
como "faça segundo o modelo", nota-se que muitos alunos 
erram, nesses exercícios, coisas que, de fato, conhecem 
perfeitamente, como falantes nativos da língua. Assim, um aluno 
ao ser perguntado sobre o feminino de "o pai" escreve "o paioa"; 
de "tio", escreve "tioa". 
<96> 
Nenhum falante confunde "pai" com "mãe" ou "tio" com "tia", a 
não ser fazendo exercícios gramaticais como esse. Resumindo, 
esses exercícios não só não ensinam nada, como ainda induzem 
os alunos a errar. Para muitos alunos, parece mais natural que o 
aumentativo de "macaco" seja "grande macaco" ou "gorila" ou 
talvez até "cigecougue" (King-kong), mas não "macacão". Para 
elas, definitivamente, "macacão" é um tipo de roupa. 
 
Metáfora e fantasia 
Faz parte da praxe das cartilhas conduzir um processo de 
ensino em que se diz quase tudo de maneira metafórica, 
indireta, evitando um tratamento sério, objetivo, preciso e direto 
das verdades que se devem ensinar. Por se tratar de crianças, 
alguns professores falam com seus alunos como se todos 
vivessem num mundo de fantasia. Supõem que as crianças não 
conseguem acompanhar uma explicação correta e objetiva, 
precisando sempre aprender através de subterfúgios 
pedagógicos. Então, sílaba virou "pedacinho", as palavras-chave 
precisam ser apresentadas através de uma história fantasiosa e 
representar uma idéia importante no texto básico da lição. Para 
tudo, deve haver uma história e, se possível, uma musiquinha 
para cantar, cuja letra repita inúmeras vezes os elementos da 
lição. Tudo precisa vir acompanhado de gravuras, figuras, com 
muito colorido e enfeites. 
Ninguém contesta o fato de que as crianças gostam de 
histórias e se divertem em meio a esse clima de sala preparada 
para festa de aniversário; porém, quando vão para a escola, 
sabem que não estão indo a uma festa, mas a um lugar sério, 
onde se aprendem coisas sérias, úteis para a vida e, portanto, 
importantes. Elas têm essa consciência da seriedade. A escola, 
não obstante, às vezes torna-as levianas e comodistas. 
O excesso de histórias, na maioria das vezes sem nenhuma 
graça, apresentadas apenas como pretexto pedagógico, acaba 
levando a um ensino absurdamente metafórico. Evita-se a todo 
custo falar de como as coisas são na realidade. Na prática 
tradicional das cartilhas não se podem usar termos técnicos. As 
letras não têm nomes: em vez de U, os alunos dizem "a letra do 
chifre"; a letra o é "a letra da boca", porque foi com o desenho 
dos chifres do boi que aprenderam a escrever a letra U, e com o 
desenho de uma boca aberta que aprenderam a letra Q 
<97> 
Remanejamento para evitar problemas 
A cartilha equivocadamente confunde ensino com 
aprendizagem, avaliação com promoção, favorecendo uma 
atitude de segregação dentro da escola e da própria sala de aula, 
com os remanejamentos de alunos para classes especiais. Tudo 
precisa ser avaliado e receber uma nota, e o que saiu errado 
precisa ser refeito, até acertar. O método das cartilhas procura 
uma homogeneização que destrói a iniciativa individual, partindo 
do princípio de que educar é fazer com que todo o mundo saia da 
escola exatamente com a mesma cara. O diferente é combatido e 
não pode existir na escola. As diferenças individuais não são 
permitidas porque não podem ser avaliadas através de testes 
coletivos, iguais para todos. 
As cartilhas representam a prática de métodos mecanicistas, 
bons para adestramento, para condicionamento, mas muito ruins 
para quem quiser usar a reflexão para construir o conhecimento. 
Na cartilha, tudo vem pronto para o aluno, basta digerir: não há 
lugar para uma reflexão autônoma, para uma livre iniciativa, 
para a criatividade, para continuar com as características 
próprias. A uniformização é um imperativo. 
 
O erro não tem vez 
Como as cartilhas não sabem lidar com as diferenças no 
processo de aprendizagem e como prevêem somente o certo, 
nenhum erro será objeto de estudo. Por essa razão, não 
encontramos nas cartilhas, nem nos manuais de professores, 
formas de proceder quando um aluno não aprende algo que o 
professor explicou direitinho, segundo manda o figurino. Os 
professores sabem, por experiência própria, que é difícil ensinar 
a ler e a escrever, mas quem analisa uma cartilha fica com a 
impressão de que tudo é tão simples e perfeito, que ninguém 
nunca erra nem tem dúvidas. 
As cartilhas são implacáveis com relação a quem não entra no 
esquema e, por isso, não têm nenhuma sugestão para o 
professor aproveitar quando a evidência dos fatos da vida 
mostra claramente que o método não funcionou. A única saída é 
repetir tudo de novo, da mesma maneira, remanejar a criança 
para uma classe de alunos com dificuldades de aprendizagem, os 
chamados "alunos carentes". E se não se corrigirem, a saída da 
escola é a solução para o problema. 
< CAGLIAR!, 1985b e 1986b. 
<98> 
 
O fascínio pelo já pronto 
A maioria dos professores que usam o método das cartilhas foi 
informada de que essa ou aquela cartilha é, de fato, um grande 
livro didático, com métodos excelentes de alfabetização, 
comprovados desta e daquela maneira. Ouviram dizer que tal 
colega usa tal cartilha e seus alunos são alfabetizados da melhor 
maneira possível. Por falta de espírito crítico, por falta de 
competência necessária para discutir a questão a fundo e 
seriamente, muitos professores continuam achando que a 
melhor maneira de alfabetizar é pelo método das cartilhas, se 
possível, seguindo o próprio livro didático. 
Outros (poucos?) preferem as cartilhas pela comodidade de 
aplicar em sala de aula um método já pronto, escolhendo, de 
preferência, aquelas que vêm com toda a parafernália didática 
preparada para o ano letivo. 
Há ainda o interesse econômico, que tem feito das cartilhas 
um negócio muito lucrativo, sobretudo junto aos órgãos públicos 
encarregados da educação. Para um bom trabalho de 
alfabetização, sobretudo nas es colas públicas, é mais 
importante ter lápis e papel do quecartilhas. Apesar de tudo, o 
governo insiste em distribuir cartilhas, esquecendo-se do lápis e 
do papel. Em algumas escolas, os alunos recebem um belo livro e 
fazem as lições com tocos de lápis e sucata de papel de 
escritório. 
 
SUBSTITUTOS DAS CARTILHAS 
As considerações acima mostram como é problemático o uso 
do método das cartilhas na alfabetização. Mas, se a cartilha é tão 
ruim assim, o que fazer para alfabetizar sem a cartilha e, 
sobretudo, sem o método das cartilhas? Qual é a saída, ou 
melhor, quais são as alternativas? 
Depois desse longo caminho, analisando a história e os 
métodos de alfabetização, podem-se tirar algumas conclusões 
interessantes que nos levarão a entender por que proceder de 
um jeito e não de outro, na escola, a fim de conduzir um 
processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita de 
maneira mais correta e proveitosa. 
Em primeiro lugar, é preciso entender que o segredo da 
alfabetização está na aprendizagem da leitura. Aprender a ler, 
aqui, significa aprender a decifrar a escrita. <99> 
Para saber decifrar a escrita, é preciso saber corno os sistemas 
de escrita funcionam e quais os seus usos. Como a escrita é uma 
forma gráfica de representação da linguagem oral, é necessário 
estudar os mecanismos da produção da linguagem oral, quais os 
seus usos e, ainda, como a linguagem oral se relaciona com a 
forma escrita que a representa, num contexto culturalmente 
específico da sociedade moderna. 
Infelizmente, constata-se que não basta jogar o livro fora ou 
dizer que não se quer mais seguir o método do bá-bé-bi-bó-bu, 
para levar adiante um bom trabalho de alfabetização. Há coisas 
erradas demais no sistema educacional do Brasil, que tornam 
qualquer iniciativa de boa vontade fadada ao fracasso, por falta 
de infra-estrutura, pela presença constante e sufocadora de uma 
máquina burocrática anacrônica e, principalmente, pela 
incompetência de alguns professores. Estes recebem das escolas 
de formação todos os equívocos, preconceitos e barbaridades 
que depois levam para a sala de aula. Alguns autores de livros 
didáticos, por sua vez, são tão despreparados quanto os 
malformados professores. Acrescente-se a isso a exigência 
ridícula de pais e avós que fazem questão de que seus filhos 
sejam educados exatamente da maneira como eles o foram. 
Apesar desse quadro pouco animador, aos poucos, os 
professores interessados podem ir deixando de lado a velha 
prática de alfabetização e iniciar um trabalho novo, com 
dedicação ao estudo para suprir as lacunas e deficiências e muito 
bom senso. A própria prática - mestra da vida - ajuda muito. 
O professor não pode ter medo de levar seus alunos a sério, 
de ir direto ao assunto, conduzindo um processo equilibrado de 
ensino e aprendizagem. Afinal de contas, o professor sabe ler e 
escrever. Com um pouco de reflexão mais cientificamente 
controlada, ele é capaz de realizar um excelente trabalho, sem 
precisar gastar muito tempo, refazendo desde o início sua 
formação. O professor também aprende ensinando. Se seus 
alunos forem instigados a construir um processo de 
alfabetização baseado na reflexão, na pesquisa, no trabalho 
compartilhado, o próprio professor verá, para sua surpresa, que 
ele também está aprendendo. Mais do que isso, ele começará a 
deixar de lado a idéia de que seu trabalho é maçante, acabando 
por descobrir o mundo fascinante da construção do 
conhecimento pelos alunos, como uma mãe deslumbrada 
<100> 
diante do crescimento de seu filho, num processo de 
aprendizagem verdadeiro, como deveria existir sempre nas 
escolas. 
 
A CARTILHA E OS PROFESSORES 
 
CAGLIARI, 1997c. 
Apesar de todos esses problemas, o método das cartilhas é 
considerado em geral muito conveniente pelos professores. Se o 
aluno não aprender, a responsabilidade não é dele, nem do 
método, mas da incapacidade do aluno. Como o método 
considera que todos os alunos partem do zero e vão estudando 
ponto por ponto, do mais fácil para o mais difícil, isso dá uma 
falsa aparência de ordem e organização. Todos os alunos devem 
fazer a mesma coisa, do mesmo modo, no mesmo tempo. Para o 
professor, fica fácil avaliar quem está acompanhando e quem 
está ficando para trás. Como o trabalho é igual para todos e 
avança aos poucos em complexidade, os professores conseguem 
fazer com que seus alunos apresentem cadernos muito bonitos, 
em que tudo está perfeito, em ordem, sendo muitas vezes uma 
cópia exata do próprio caderno do professor, que ele usa como 
modelo. Se o aluno errar alguma coisa, o professor apaga e 
coloca o certo. Os pais e diretores olham os cadernos desses 
alunos e acham que tudo vai às mil maravilhas. Ledo engano, 
que não irá durar muito. 
Por trás de toda aquela aparente ordem, esconde-se muita 
coisa mal compreendida, que irá produzir péssimos frutos nas 
séries posteriores. No esforço para salvar a ortografia e a 
aparência correta da escrita, o método da cartilha destrói a 
habilidade do aluno de lidar com a linguagem na sua forma plena 
e natural, como fazia antes, quando apenas falava. O método da 
cartilha produz cadernos belos, sem erros, porque os alunos só 
reproduzem o já dominado, e o professor só permite que ali fique 
registrado o que está certo. Depois, quando os alunos tiverem de 
escrever espontaneamente, cometerão toda sorte de erros, 
mostrando uma "desaprendizagem" perigosa. 
Aos professores que dizem que também se aprende pela 
cartilha, que muita gente fez isso e aprendeu bem, deve-se 
rebater, lembrando todos aqueles que não aprenderam e que 
tiveram de abandonar a escola por causa de um método que 
privilegia um planejamento 
<101> 
escolar rigoroso e detalhado, inocentando os professores e os 
livros de sua incompetência. Os professores que adotam as 
cartilhas nem sequer param para analisar cuidadosamente o que 
fazem, ou para investigar por que alguns alunos aprendem e 
outros não, ou ainda para ponderar a que preço seus alunos 
aprendem. 
Finalmente, convém ressaltar que, em séries posteriores, já 
não aparecem mais cartilhas. Alguns professores, no entanto, 
são tão obcecados por elas, que continuam aplicando esse 
método nas séries posteriores. Livros de matemática tendem 
fortemente a seguir o método de ensino das cartilhas. O que 
salva, em parte, as aulas de português é a produção de textos, a 
leitura e a literatura. Como a matemática não tem dessas coisas, 
o ensino torna-se insuportável para grande parte dos alunos, 
que se vêm obrigados a ter um estudo cujo único objetivo é o de 
reproduzir um modelo. Afinal, para que servem os exercícios de 
matemática, da maneira como aparecem em certos livros? A 
atividade parece que se esgota em si mesma, e o aluno faz a 
tarefa para ver se acerta e não tem a sensação de estar 
aprendendo algo que poderá ser útil e aplicável na vida real. Um 
fato semelhante acontece com certos professores de português 
que passam um ano inteiro fazendo exercícios de análise 
sintática. 
O uso do método das cartilhas (com livro ou sem livro) é 
largamente difundido entre os professores alfabetizadores 
porque é um programa de trabalho já pronto, do começo ao fim, 
que se escolhe no início do ano e que será aplicado ao longo dos 
dias escolares. 
Algumas pessoas partilham da opinião de que não se pode 
estudar sem um livro didático, só que, em vez de escolher livros 
mais interessantes, preferem as cartilhas, porque são mais 
"práticas". Na verdade, há uma longa tradição escolar que tem 
produzido cartilha atrás de cartilha, sem propor nada de 
diferente. Se um professor achar no mercado editorial atual uma 
obra que ensine a alfabetizarsem o bá-bé-bi-bó-bu, será um fato 
surpreendente. Os livros didáticos são feitos, em geral, por 
professores, e como eles não têm outra visão do processo de 
alfabetização, repetem sempre o velho esquema. O círculo 
vicioso se fecha quando, por falta de material adequado e de 
uma sólida formação lingüística crítica, os professores justificam 
a própria incompetência apegando-se à única tábua da salvação 
que conhecem, o próprio método das cartilhas. 
<102> 
 
5 
Panorama do processo de alfabetização 
VALORIZAR O QUE É PRIORITÁRIO 
O trabalho escolar de primeira série tem vários objetivos, mas 
o principal deles é alfabetizar as 
crianças. A alfabetização é uma das coisas mais importantes que 
as pessoas fazem na escola e na vida. Os esforços devem estar 
voltados para isso, embora a escola não deva se esquecer dos 
outros objetivos que tem como instituição. 
Para realizar um trabalho de ensino e de aprendizagem da 
leitura e da escrita sem o método do bá-bé-bi-bó-bu, é preciso 
ter em mente alguns pontos fundamentais. 
Em primeiro lugar, é necessário saber exatamente o que se 
quer fazer e o que se entende por alfabetização. Muitos 
problemas surgiram na história da alfabetização realizada na 
escola porque os objetivos a serem alcançados não eram muito 
claros. Por exemplo, todo o período preparatório veio como uma 
concepção de alfabetização baseada numa teoria discriminatória 
contra a capacidade intelectual das crianças, criando nelas uma 
auto-avaliação de incapacidade para aprender os conhecimentos 
que se adquirem nas escolas. A alfabetização passou a se 
resumir, então, em grande parte, a exercícios que preparavam o 
aluno para o estudo, enquanto o mais importante era deixado de 
lado, ou seja, o conteúdo específico que torna uma pessoa 
alfabetizada. Não é raro ouvir histórias de crianças que não 
queriam mais ir à escola porque não aprendiam a ler nem a 
escrever, mas apenas a rabiscar e a fazer joguinhos. 
Alfabetizar é ensinar a ler e a escrever. Como já dissemos, o 
segredo da alfabetização é a leitura (decifração). Escrever é uma 
decorrência do conhecimento que se tem para ler. Portanto, o 
ponto principal do trabalho é ensinar o aluno a decifrar a escrita 
e, em seguida, a aplicar esse conhecimento para produzir sua 
própria escrita. 
Conhecendo a rotina nas escolas, a primeira coisa a ser feita é 
uma faxina: jogar fora uma série de atividades que nada têm a 
ver com os objetivos, tornando o trabalho mais simples e mais 
tranqüilo tanto para o professor como para o aluno. 
Brincar, cantar, contar histórias, recortar, colar, desenhar, etc. 
sem dúvida são atividades escolares. Mas isso não é ensinar a ler 
nem a escrever. Aprende-se a ler e a 
escrever, lendo e escrevendo, e não pulando corda e fazendo 
festa. 
<104> 
Tem hora para aprender a ler e escrever e tem hora para 
brincar. Juntar essas duas coisas o tempo todo é uma loucura 
pedagógica: tira a seriedade da formação escolar e introduz uma 
leviandade nos trabalhos. Brincar é imprescindível, mas deve ter 
seu valor claramente estabelecido para todos. 
 
OS ALUNOS SÃO FALANTES NATIVOS 
Rigorosamente falando, na alfabetização não é preciso ensinar 
ninguém a falar: nossos alunos já aprenderam isso quando 
tinham de um a três anos. São todos falantes nativos do 
português, cada qual usufruindo o dialeto da região em que 
nasceu e viveu e que é partilhado pelas pessoas com quem 
convive. Ensinar a norma culta também vai ser uma preocupação 
da escola, e deve começar desde a alfabetização. Porém, essa 
deverá ser uma atividade secundária, tecnicamente falando, com 
relação à aprendizagem da leitura e da escrita. Qualquer aluno 
pode alfabetizar-se perfeitamente sem precisar mudar o modo 
de falar de seu dialeto. 
Vendo essa questão por outro ângulo, percebe-se claramente 
que o professor não precisa preocupar-se com o fato de seus 
alunos falarem errado no início. Não é necessário que os alunos 
aprendam a pronunciar bem as palavras, sílabas ou outros 
elementos fonéticos para aprenderem a escrever as palavras. 
Uma coisa não é condição para a outra. 
Tampouco quando um aluno é falante de um dialeto não 
aceito como norma culta pela escola, não precisa abandonar seu 
dialeto para aprender a norma padrão. Quando alguém estuda 
uma língua estrangeira, por exemplo, inglês ou francês, não 
deixa de ser falante de português. Aprende-se uma língua, sem 
esquecer a outra. Do mesmo modo, quando alguém está 
aprendendo um dialeto diferente, não precisa se desvencilhar 
daquele que conhece. Na sociedade, a variedade lingüística deve 
adaptar-se ao contexto, às exigências do momento, do lugar e 
das pessoas com quem se fala. Numa sociedade tão heterogênea 
como a nossa, as pessoas acabam falando mais de um dialeto: 
um em casa e 
outro na vida formal em sociedade. Variações de pronúncia (do 
R; das fricativas CH e TCH; variações como 
"déis" ou "dés", etc.), de concordância (por exemplo, 
<105> 
"chegou os homens" em vez de "chegaram os homens"), de 
regência (por exemplo, "eu preciso dinheiro" em vez de "eu 
preciso de dinheiro") fazem parte da vida dos falantes em geral, 
marcando um uso informal e outro formal da língua. 
MASSINI-CAGLIARI, 1997b 
A IDADE PARA SE ALFABETIZAR 
Por razões ideológicas, interesses políticos e econômicos, 
somados a uma postura tradicionalista de pessoas que 
trabalham nos órgãos públicos da educação. corroborada por 
alguns psicólogos e outros que se acham entendidos no assunto, 
ficou estabelecido que a alfabetização, no Brasil, começaria aos 
sete anos e que o primeiro grau (atual ensino fundamental) se 
encerraria aos quatorze anos. 
Durante muitos anos venho fazendo uma campanha pessoal 
para convencer as pessoas de que seria muito melhor que a 
alfabetização começasse aos cinco anos (como, aliás, acontece 
na grande maioria dos países do mundo) e que o primeiro grau 
se estendesse até os doze anos. Com quatorze anos, muitos 
jovens já são arrimo de família, têm de trabalhar duro para 
sobreviver e sustentar irmãos, pais, avós, etc. Além disso, 
começando a alfabetização aos cinco anos, todas as crianças 
passariam a gozar de um beneficio que hoje está restrito àqueles 
que freqüentam a pré-escola. Dos cinco aos sete anos, a pré- 
escola é importante como escola e não como creche. Muda-se a 
Constituição do país, mas não se muda a mentalidade dos 
governantes, e os problemas sérios continuam sem solução. 
Aos cinco anos uma criança está mais do que pronta para ser 
alfabetizada, basta o professor desenvolver um trabalho correto 
de ensino e de aprendizagem na sala de aula. Nessa idade, ela já 
conheceu e aprendeu muita coisa da vida, do mundo e até da 
história, já testou sua participação na sociedade, seu 
relacionamento com pessoas diferentes. Aprender a ler e a 
escrever, dentro desse contexto, é algo simples e banal, 
considerando-se a capacidade e a experiência de vida de 
qualquer criança com cinco anos. Duvidar da capacidade de 
aprender das crianças de cinco anos é um grande equívoco, 
mesmo quando anunciado em teses e livros publicados por 
intelectuais com muitos títulos acadêmicos. 
<106> 
 
QUERER SER ALFABETIZADO 
Se com cinco anos uma criança pode ser alfabetizada, isso 
não significa que ela queira ser alfabetizada. Dependendo do 
modo de vida, algumas pessoas não acham que a alfabetização 
seja algo de muita importância. As vezes, ganhar dinheiro é o 
que realmente conta. Algumas pessoas chegam à idade adulta 
sem se interessar pela alfabetização. Para elas, ler e escrever 
não é algo tão fundamental como nós comumente achamos que 
seja. 
Essasconsiderações mostram que, mais importante do que a 
idade é a vontade do aluno de se alfabetizar. Estar na escola é 
um fato que cria expectativas. Mas alguns alunos podem ter uma 
visão muito restrita do que os espera. Por isso, é necessário que 
o professor, no início do ano, converse com seus alunos para 
saber de suas expectativas com relação ao trabalho escolar de 
alfabetização que terão pela frente. 
É preciso conversar a respeito do que significa aprender a ler e 
a escrever, o que se faz com esses conhecimentos, em que 
sentido a vida das pessoas se modifica depois que aprendem a 
ler e a escrever, quais as previsões de uso desses conhecimentos 
pelo resto da vida, fora da escola. Não é raro haver alunos, 
provenientes de classes pobres, que achem que vão aprender a 
ler e a escrever como uma espécie de obrigação da escola. Como 
em casa ninguém lê nem escreve e não há livros (nem caneta ou 
papel), essas crianças acham que aprender a ler e a escrever é 
simplesmente fazer a lição da escola. 
A escrita e a leitura têm muitos usos, que precisam ser 
discutidos ao longo do processo de alfabetização, e uma boa 
conversa deve acontecer antes mesmo do início das atividades 
de ensino e aprendizagem. Os autores das cartilhas nunca 
pensam que esse tipo de troca de informações entre o professor 
e o aluno e dos alunos entre si seja algo importante. Mas é 
imprescindível. 
A questão exposta acima está relacionada com o próprio 
conteúdo que vai ser ensinado. A escola sempre parte do 
princípio de que o professor é quem decide o que é bom e o que 
deve ser excluído do processo educacional. Mas é bom também 
perguntar aos alunos quais são seus anseios. O que eles 
pretendem ler? O que eles pretendem escrever? O que 
pretendem fazer no começo da alfabetização? O que pretendem 
fazer depois, quando já souberem ler e escrever fluentemente? O 
que pretendem fazer depois, quando saírem da escola já 
formados? 
<107> 
Muitos professores ficam surpresos com as exigências 
dos alunos. É muito comum, por outro lado, a escola 
subestimar a vontade das crianças. Às vezes, elas estão ansiosas 
para copiar coisas que lhes interessam, 
mas um professor que ouviu dizer que cópia é algo que deve ser 
abolido da escola causa grande frustração 
nos alunos. É melhor, na maioria das vezes, deixar os alunos 
fazerem coisas por iniciativa própria, mesmo 
que seja uma missão quase impossível, do que obriga-los 
a fazer somente aquilo que o professor decide que deve ser feito. 
Quando as crianças fazem trabalhos por decisão própria, o 
processo de aprendizagem voa, mesmo quando os resultados 
aparentemente não são 
tão organizados e muito bem apresentados quanto os feitos sob 
o controle direto do professor. 
Para muitos alunos, o professor deverá explicar o que significa 
aprender a ler e a escrever, segundo as expectativas da escola e 
da sociedade. Deve fazer ver a 
todos os alunos a importância do trabalho escolar que 
irão começar. 
 
UM MÉTODO SEM MÉTODOS 
O melhor método de trabalho para um professor deve vir de 
sua experiência, baseada em conhecimentos sólidos e profundos 
da matéria que leciona. O fato de não ter um método 
preestabelecido não significa que o ensino seguirá navegando à 
deriva, O professor 
terá sempre as rédeas nas mãos, porque, afinal de contas, 
ele é um educador e não um simples observador. O fato de não 
se ter um método rígido para alfabetizar 
não significa, tampouco, que o trabalho escolar será 
feito sem método algum. 
Quando o professor é um bom conhecedor da matéria que 
leciona, ele tem um jeito particular de ensinar, assim como os 
alunos têm seus jeitos de aprender. Essa 
heterogeneidade, em vez de atrapalhar, é fundamental em todo 
processo educativo. 
Alguns órgãos públicos que respondem pela educação partem 
do princípio de que todos os professores 
de determinado nível e matéria precisam fazer as mesmas 
coisas, do mesmo modo, porque senão — dizem eles — como se 
poderá transferir alunos de uma escola para outra? O que essas 
pessoas não percebem é que, 
<108> 
em nome de uma burocracia idiota, preferem comprometer o 
mais importante, que é o trabalho verdadeiro que deve ser feito 
pelos professores nas salas de aula. Se um aluno sai de uma 
escola onde aprendeu alguma coisa e vai para outra escola onde 
se está estudando outra coisa, deverá adaptar-se à nova 
realidade e, com o tempo, isso acontecerá inevitavelmente, 
assim como quem muda de país vai ter que adaptar sua vida à do 
novo ambiente. 
O bonito da verdadeira educação é ser um caleidoscópio: a 
diferença a todo instante é seu charme e beleza; cada momento 
revela algo novo e surpreendente. A educação deve formar 
pessoas diferentes, não clones, réplicas intelectuais. 
O professor que domina a matéria não precisa preocupar-se 
com métodos: ele saberá entender e resolver tudo o que 
encontrar pela frente na sala de aula. Além do mais, dentro do 
processo de ensino, ele organizará suas atividades de um modo 
geral: o que vai passar para os alunos, quando e como. 
Associado ao modo de trabalhar de cada professor, isso acaba se 
traduzindo, na prática escolar, num método de trabalho. Depois 
de terminado o ano, o caminho percorrido mostra que nada 
aconteceu por acaso, mas que houve uma intenção de realização, 
houve decisões importantes, houve opções de escolha, enfim, 
houve, na prática, um método de trabalho. Entretanto, o que 
aconteceu num ano não precisa ser repetido no ano seguinte, 
mesmo porque os alunos serão diferentes e surgirão fatos novos. 
Quando se adota um modelo de trabalho escolar como método 
para ser aplicado ano após ano, incorre-se no erro de supor que 
o que conduz o ensino e a aprendizagem é a estrutura 
programática de um método, e não a interação entre o processo 
de ensino e de aprendizagem, mediado pelo professor, levando 
em conta a realidade de seus alunos, a cada dia de aula. 
 
EM QUANTO TEMPO SE ALFABETIZA? 
Outra questão que precisa ser comentada é o tempo 
necessário para alguém se alfabetizar. Se a escola eliminar o 
entulho do período preparatório, se for clara e objetiva, 
priorizando a decifração da escrita como segredo da 
alfabetização e dedicando uma hora por dia 
<109> 
às atividades específicas, todos os alunos aprenderão a ler (com 
mais ou menos dificuldade) em dois ou três meses de trabalho. 
Esse é o tempo suficiente para que os alunos aprendam a 
decifrar o que está escrito. Quem sabe fazer isso está, 
tecnicamente falando, alfabetizado, O resto é o desenvolvimento 
dessa habilidade e a complementação com conhecimentos que 
serão aprendidos depois. 
Ao longo dos últimos anos, o processo de alfabetização foi 
confundido com tantas coisas estranhas e ficou amarrado a 
tantas atividades inúteis, que o tempo necessário para um aluno 
aprender a ler (e a escrever) se espichou demais. O que podia 
ser feito num semestre passou a ser feito em um ano. Com o 
ciclo básico, alguns professores passaram a entender que agora 
o aluno tem dois anos para se alfabetizar, o que é falso. Em 
alguns casos, contando com a pré-escola e o segundo ano, o 
aluno leva três anos para se alfabetizar, o que é um absurdo. 
O professor precisa ter idéias bem claras a respeito do que 
espera de seus alunos em todos os períodos escolares. A falta de 
uma perspectiva como essa desorienta o professor e confunde os 
alunos. Em todo o processo educacional, há coisas importantes 
que receberão uma atenção especial, e coisas secundárias, que 
são em geral irrelevantes. Por exemplo, é de importância 
fundamental que o aluno tenha em mãos a chave da decifração 
da escrita— o segredo da alfabetização. Sem isso, tudo o mais 
fica prejudicado. Uma vez adquirida a chave da decifração da 
escrita, o aluno tem condições de desenvolver, até por si só, o 
resto do processo de alfabetização, explorando a extensão e a 
profundidade da matéria. O professor que sabe disso trabalha 
mais satisfeito, porque consegue acompanhar o progresso de 
seus alunos, valorizando o que cada um faz, inclusive o seu 
próprio trabalho. 
Por outro lado, alguns professores vivem em meio a muitas 
frustrações porque exigem demais do processo de alfabetização 
e têm pressa de resolver todos os problemas de fala, leitura e 
escrita dos alunos em apenas um ano. É preciso aliviar um pouco 
essas tensões na escola, acalmar a ansiedade e ter perspectivas 
mais realistas, O tempo é o melhor remédio, e a paciência, uma 
virtude do educador. O importante é o professor e os alunos 
trabalharem séria e constantemente, com perseverança e calma, 
porque a aprendizagem não tem dia marcado para acontecer. 
< CAGLIARI 1992a. 
<110> 
QUEM COMANDA É O PROFESSOR 
O professor deve assumir o comando de seu trabalho e não 
abrir mão disso. Não é o Ministério da Educação, nem a 
Secretaria Estadual ou Municipal de Educação, nem o diretor da 
escola, nem a coordenadora, nem a monitora de alfabetização, 
nem a associação de pais e mestres, nem a comunidade, nem os 
pais, nem os avós ou os tios, nem as teorias acadêmicas, nem as 
cartilhas ou os livros que devem impor ao professor o que fazer. 
Antes de mais nada, é preciso salvar o direito sagrado de 
cátedra. Na educação se propõe, e não se impõe. Quando a 
autoridade — seja de quem for — se impõe à razão do professor, 
significa que a educação perdeu seu Sentido e tornou-se uma 
máquina de produzir resultados intelectuais. A educação vive da 
criatividade de todos. 
A tarefa escolar de sala de aula precisa ser devolvida aos 
professores. Eles precisam ter liberdade para poder se 
responsabilizar pelo que fazem. Se todo o mundo dá palpite, a 
educação vai de mal a pior, e ninguém se responsabiliza pela 
situação. Discutir é uma coisa, impor um comportamento 
profissional ao professor é outra, muito diferente e intolerável. 
De um professor deve-se cobrar competência e 
responsabilidade e não métodos ou adesão aos modismos 
acadêmicos. Algumas pessoas acham que atualizar-se significa 
falar de acordo com a última palestra que ouviu ou livro que leu. 
A busca de conhecimentos novos é tão importante para a 
sobrevivência do sistema quanto a alimentação para os seres 
vivos. Mas tais conhecimentos precisam ser digeridos, 
ponderados, avaliados, para depois entrarem na corrente 
sanguínea do sistema educacional. 
 
REMANEJAMENTOS SÃO AVILTANTES 
O professor que realiza um trabalho sério em sala de aula não 
pode permitir que ocorra remanejamento de alunos. As classes 
formam turmas de amigos, que é preciso respeitar. A 
discriminação é sempre aviltante. 
Não é raro casos de professores incompetentes que adoram 
remanejamentos, porque, assim, podem ficar sempre com os 
melhores alunos. Isso alivia o trabalho e esconde sua 
incompetência. O trabalho duro acaba sobrando para uns poucos 
professores que têm de aceitar 
<111> 
qualquer coisa, uma vez que nem sequer são considerados 
professores de uma escola, mas apenas tapa- buracos do 
sistema. 
 
CONDIÇÕES MATERIAIS 
Um bom trabalho de alfabetização não pode ser desenvolvido 
sem as condições materiais adequadas. Criança odeia ficar 
sentada, mas a maioria das salas de aula reservadas aos 
alfabetizandos é exatamente igual às das demais séries. Criança 
gosta de escrever em pé, às vezes até deitada. As salas de 
alfabetização precisam ser mais espaçosas para permitir maior 
trânsito de alunos. 
É impossível desenvolver um trabalho adequado com uma 
classe que tem um número exagerado de alunos. Mais de vinte 
alunos por professor cria dificuldades muito sérias para um bom 
trabalho. Infelizmente, por causa de uma noção errada de 
humanidade e dó, alguns educadores acabaram engolindo dos 
governantes classes superlotadas. Preferiram optar pela má 
educação a decepcionar as promessas eleitoreiras dos 
governantes, que prometem um lugar na escola para todas as 
crianças, sem saber o que isso representa em termos de 
educação nas situações atuais. Cuidar das escolas é algo que 
eles não querem. Escolas em condições precárias de 
funcionamento, superlotadas e com pessoal mal pago fazem o 
perfil da educação neste país. Depois de algumas semanas de 
aula, professores e alunos passam a viver num clima de guerra, 
numa irritação geral, causada por esses fatores. Para consertar a 
alfabetização não basta abolir a cartilha e o bá-bé-bí-bó-bu; é 
preciso muito mais. 
Tudo o que foi exposto aqui deixa claro que cada professor 
terá de traçar seu caminho de trabalho e não deverá esperar 
soluções prontas. Assim como a aprendizagem, o ensino também 
é um processo que deve ser construído pelo professor à medida 
que acontece e, a cada vez que ocorre, terá um jeito próprio de 
ser. 
Isso, porém, não impede que se ilustre um trabalho de 
alfabetização sem a cartilha e sem o bá-bé-bi-bó-bu sem, 
contudo, fazer, desse exemplo, o modelo ideal que deva ser 
seguido por todos e sempre. Exemplos são exemplos: são 
elucidativos, mas não impositivos. E claro que uma boa idéia 
sempre acha um seguidor, e adota-la não significa 
necessariamente escravizar-se a ela. 
<112> 
É dentro desse espírito que propomos seguir idéias, sugestões e 
apresentamos exemplos. E sempre bom discutir certos assuntos 
na teoria e constatar que de fato funcionam na prática. 
LEITURA E ESCRITA 
Ao contrário do que muita gente pensa, inclusive professores 
de alfabetização, para alguém ser alfabetizado, não precisa 
aprender a escrever, mas sim aprender a ler. Ou seja, no 
processo de alfabetização, o professor poderia prescindir do 
ensino da escrita, mas não da leitura. Em outras palavras, a 
alfabetização realiza-se quando o aprendiz descobre como o 
sistema de escrita funciona, isto é, quando aprende a ler, a 
decifrar a escrita. De posse desses conhecimentos, escrever 
nada mais é do que colocar no papel esses conhecimentos 
fornecidos pela leitura. Quem escreve deve guiar-se 
necessariamente pelos conhecimentos da decifração da escrita. 
Deve escrever pensando em como seu leitor fará para descobrir 
(decifrar) o que escreveu. Se cometer erros, poderá deixar seu 
leitor confuso ou mesmo impossibilitado de entender o que foi 
escrito. Se fizer tudo de acordo com as convenções e as regras 
do sistema de escrita, seu leitor poderá decifrar com facilidade. 
Portanto, o segredo da alfabetização, como se disse várias 
vezes, é a leitura, ou seja, a decifração da escrita. 
Em sentido mais amplo, a alfabetização tem outros objetivos, 
além de ensinar a decifrar a escrita, sobretudo na escola. Saber 
escrever corretamente é um deles. A escrita não deve ser vista 
apenas como uma tarefa escolar ou um ato individual, mas 
precisará estar engajada nos usos sociais que envolve, 
principalmente como forma especial de expressão de uma 
cultura. Sem dúvida alguma, um bom professor terá sempre essa 
preocupação em mente, em todos os momentos da vida escolar. 
Porém, como essa questão está mais ligada aos usos especiais 
que se faz da escrita do que à aquisição propriamente dita da 
habilidade de escrever, o alfabetizador dará mais atenção a esse 
último item do que ao anterior. Em séries mais adiantadas, 
quando os alunos já souberem escrever com facilidade e tiverem 
um estilo próprio, a perfeição do texto será objeto de trabalho 
específico. 
<113>A reprodução de modelos 
O método das cartilhas — o bá-bé-bi-bó-bu — ensina o aluno a 
escrever reproduzindo um modelo. Em seguida, o aluno aprende 
a ler o que escreveu. Esse método vai no sentido oposto ao 
sugerido neste livro. Para a cartilha, o importante é aprender a 
escrever juntando pedacinhos (as sílabas geradoras), sempre 
supondo que esses pedacinhos, por serem conhecidos, 
permitirão a leitura. Essa abordagem envolve muitos equívocos e 
erros, como ficou claro no capítulo anterior. 
A progressão, no método do bá-bé-bi-bó-bu, é rigorosa, e o 
aluno só faz algo segundo um modelo preestabelecido, até 
dominar o exercício, passando então à lição seguinte. Se o aluno 
cometer algum engano, o erro é logo apagado e substituído pela 
forma correta. Isso faz com que os alunos apresentem lindos 
cadernos. 
Um fato comum na história de alguns alunos é que eles foram 
excelentes estudantes nas duas primeiras séries, mas 
apresentaram seriíssimas dificuldades na terceira. Na 
alfabetização, o aluno escrevia tudo muito bonito, sem erros de 
ortografia, como mostram seus cadernos. Na terceira série, 
apareceram dificuldades insuperáveis porque a tarefa não 
consiste mais em reproduzir o modelo dado pelo professor, mas 
exige que o aluno tome a iniciativa de fazer um texto, uma 
redação ou o que for preciso nas diversas atividades escolares. 
Até sua letra piorou. Não é mais capaz de escrever sem cometer 
inúmeros e estranhíssimos erros de ortografia. O aluno tinha 
aprendido a escrever tão bem... Por que, agora, não sabe mais? 
A explicação para esses casos é simples e, ao mesmo tempo, 
trágica. O aluno não aprendeu, de fato, como o sistema de 
escrita funciona, como se lida com o texto oral e o escrito, como 
funciona a ortografia e como se resolvem dúvidas. Simplesmente 
fazia o que o professor mandava, seguindo o modelo das coisas 
já dominadas. Na terceira série, não existe mais modelo 
(semelhante àquele a que estava acostumado) e não faz mais 
sentido escrever somente palavras já dominadas. Nesse 
momento, começa a refletir sobre seu trabalho, sobre como 
funciona a escrita, como funciona a cabeça de quem vai ler o que 
ele escreve, achando, talvez, que vai encontrar em todos os 
leitores que achar pela frente uma espécie de professor que 
apaga o errado e coloca o certo quando necessário. Em vez 
disso, encontra a constatação do seu fracasso, do erro 
incorrigível, levando-o ao desespero. E, junto com ele, 
desesperam-se professores, pais, amigos, etc. 
<114> 
Esse aluno deveria ter tido a oportunidade de errar antes. 
Deveria ter tido antes a oportunidade de refletir sobre o sistema 
de escrita. Não deveria ter ficado repetindo um modelo e 
construindo a escrita apenas com elementos já dominados. A 
terceira série foi a primeira viagem fora da cartilha. Somente 
então foi solicitado a refletir sobre como funciona o sistema de 
escrita e a elaborar suas próprias hipóteses a respeito dela. Só 
na terceira série, esse aluno começou a produzir escrita como se 
fosse um iniciante no processo de alfabetização, e o resultado do 
que faz se assemelha muito aos resultados obtidos pelas 
crianças quando começam a escrever errado no início da 
alfabetização. Conseqüentemente, as pessoas passam a 
considerá-lo um aluno mal-alfabetizado. 
Se essa criança tivesse sido alfabetizada de outra maneira, se 
tivesse tido a chance de mostrar ao professor o que pensava a 
respeito da fala, da escrita e da leitura, apresentando um 
trabalho de escrita feito por iniciativa própria e não apenas 
seguindo um modelo de coisas já dominadas, teria resolvido 
seus problemas logo no início. 
O professor deve ter em mente que nem sempre um aluno que 
escreve corretamente está sabendo o que está fazendo e como 
funciona a escrita. Por outro lado, não é porque um aluno erra, 
ao tentar escrever uma palavra, que ele não esteja aprendendo a 
escrever. 
É preciso distinguir bem o ato de escrever do resultado que 
uma escrita produz. O método das cartilhas preocupa-se apenas 
com o gesto, com o ato de escrever em si, uma vez que o 
resultado é controlado rigidamente pelo professor e passa a ser 
então totalmente previsível. Por outro lado, um aluno que tem 
seu espaço de aprendizagem aberto pelo professor para 
construir seu conhecimento, sabe que o ato de escrever é uma 
tentativa que pode levar a um resultado correto ou não. Sabedor 
disso, deverá fazer um juízo de valor sobre sua ação e verificar 
se, de fato, obteve êxito. Nesse caso, o professor sabe 
perfeitamente bem que, primeiro, precisa deixar o aluno 
aprender a escrever, para depois cobrar dele o resultado 
esperado, em termos de correção ortográfica e perfeição gráfica. 
 
A descoberta do mundo da escrita 
A descoberta do mundo da escrita é mais fácil para alguns 
alunos do que para outros. As crianças que vivem em casas onde 
há livros, revistas, jornais, onde as 
<115> 
pessoas lêem e escrevem, começam logo cedo a se interessar 
por essas atividades e a saber coisas a respeito da escrita e seu 
funcionamento. Por outro lado, crianças que vivem em casas 
onde não se lê e não se escreve crescem tendo um outro tipo de 
comportamento e de conhecimentos a respeito da escrita e da 
leitura. 
Fora de casa, no mundo, a escrita está em toda a parte, e 
tanto ricos como pobres sabem que ela existe e podem até dizer 
que num jornal, na embalagem de um produto, nas placas 
comerciais há coisas escritas. Isso não quer dizer que todos 
sejam capazes de distinguir qualquer material de escrita do que 
não é escrita. Mas, de modo geral, as pessoas sabem que 
desenhos figurativos não constituem escrita. Sabem que a 
escrita pode ser feita de inúmeras maneiras, o que torna muito 
difícil ter uma idéia clara sobre ela. Por exemplo, não é fácil 
distinguir rabiscos de escrita cursiva. 
Ao contrário do que algumas pessoas pensam uma leitura 
incidental não representa um reconhecimento de uma escrita 
como desenho. Por exemplo, uma criança pode reconhecer que 
se trata de Coca-Cola porque está vendo uma garrafa desse 
produto ou uma propaganda ou, mais especificamente, um rótulo 
onde aparece escrito, de maneira típica, o nome da marca. O 
reconhecimento do rótulo (leitura incidental, nesse caso) é de 
fato uma leitura. Como a criança não conhece as relações entre 
letras e sons, não pode identificar como o sistema de escrita 
funciona de maneira específica. Porém, nosso sistema de escrita 
não se presta a ser lido e escrito apenas através das relações 
entre letras e sons, uma por uma. Embora não seja a maneira 
mais comum e própria de se ler e escrever, urna pessoa poderia 
em princípio tratar todas as palavras escritas como se fossem 
ideogramas, e escrevê-las e lê-las como se estivesse diante de 
um sistema ideográfico de escrita. Parece que a primeira 
tentativa que as crianças fazem para penetrar no mundo da 
escrita tem como estratégia considerar toda escrita como sendo 
ideográfica. Muitas crianças abordam a escrita dessa maneira 
quando ainda são muito novas e estão explorando o mundo. Mas 
algumas chegam a levar essas idéias para a sala de aula e, se o 
professor não perceber, durante um certo tempo elas tratarão a 
escrita escolar como se fosse um puro sistema ideográfico. 
Essa idéia é reforçada muitas vezes quando uma criança (ou 
um analfabeto) pergunta a um adulto (ou a quem sabe ler) o que 
está escrito. A resposta não é 
uma explicação de como a escrita funciona, mas a 
<116> 
identificação de uma ou mais palavras. Isso a leva a imaginar 
que um conjunto de sinais gráficos (misteriosamente 
elaborados) refere-se a uma palavra. No início, raramente achaque existe um sinal para cada som da fala. Essa é uma idéia 
muito elaborada, que exige uma explicação particular e 
detalhada. Ninguém chega a ela sem a ajuda de alguém que já 
conhece como nosso sistema de escrita funciona. E por isso que 
ainda hoje há sistemas de escrita que não foram decifrados, 
apesar de todas as tentativas: falta alguém para dizer como se 
relacionam os caracteres com a linguagem oral. 
Na sociedade, existem pessoas que lêem ou interpretam a 
escrita, respondendo à pergunta mencionada acima, dizendo que 
em tal lugar está escrita tal palavra; mas também, não é raro as 
pessoas virarem decifradores tentando ler. Ao fazer isso, 
algumas características do sistema começam a emergir e podem 
servir de informações a quem não sabe ler. Por exemplo, é 
comum alguém soletrar ou fazer sua tentativa de decifração 
pronunciando possíveis sílabas. Seria muito estranho alguém 
que pronunciasse apenas segmentos fonéticos, como se 
estivesse interpretando uma transcrição fonética. Ora, aquele 
esforço de decifração transmite a quem não sabe ler a idéia de 
que se lê por sílabas, ou seja, que a escrita vem associada a 
sílabas, antes de estar associada a palavras, e muito dificilmente 
deixa claro que existem unidades menores do que a sílaba. 
Outro fato comum ocorre quando alguém vai escrever e tem 
dúvidas sobre a ortografia de uma palavra. Nesse caso, pode 
perguntar diretamente por uma letra: "teste" se escreve com X 
ou com S? Diante disso, uma pessoa analfabeta intui que a 
escrita tem um conjunto de nomes especiais para analisar as 
palavras, antes de descobrir o que ela representa. Mas o que 
fazer com esses nomes? O que significa "xis" ou "esse"? Num 
primeiro momento, essas palavras não têm um significado para o 
ouvinte analfabeto ou significam apenas nome de letra, e a 
palavra "letra" significa apenas "escrita" e não unidade de um 
sistema. 
Outro procedimento é responder às dúvidas ortográficas de 
alguém usando o princípio acrofônico, típico do método das 
cartilhas; isto é, comportando-se na vida real como um professor 
alfabetizador. Quando alguém está tendo dificuldades para 
escrever um nome, a resposta vem da seguinte forma: L de lata, 
E de escola, S de sapo, C de cebola, A de árvore, U de urubu e X 
de xarope, e acento agudo no E: LÉSCAUX. 
<117> 
Diante disso, uma pessoa analfabeta poderá fazer uma idéia de 
que a escrita é algo surrealista e um jogo no qual cada um diz o 
que bem quiser. Aquele procedimento de decifração, sem uma 
explicação muito detalhada e convincente, não é transparente 
para o analfabeto. Só mostra as relações entre letras e sons para 
quem conhece as regras do jogo. No máximo, um analfabeto 
pode perceber que um certo padrão frasal se repete, como em "u 
de urubu", "a — de árvore", o que já exige um enorme esforço de 
análise. No mais, em geral, as relações entre letras e sons não 
são nem um pouco transparentes. 
Algumas crianças interessam-se pela escrita logo cedo e 
começam a reconhecer certas palavras que vêem 
freqüentemente. Depois, querem saber como se escreve o 
próprio nome e acabam decorando que determinada letra é a 
letra do seu nome. Aqui também funciona o princípio acrofônico: 
A de Antônio, R de Regina, T de Tomás, etc. Esse tipo de 
explicação é muito precioso para a criança porque ensina duas 
coisas importantes: o nome das letras e seu valor fonético 
através do princípio acrofônico. 
Quando o professor começar a falar de escrita para as 
crianças, precisa lembrar-se de que a maioria delas já tem 
informações a respeito. Se ele fizer com que elas explicitem 
essas informações, conversando a respeito do que já sabem, terá 
um bom motivo e um caminho interessante para ensinar a ler e a 
escrever. 
Algumas classes, com crianças que já passaram por escolas 
maternais ou pré-escolas, têm alunos que sabem muito mais a 
respeito da escrita. Por isso, o professor deve fazer esse 
levantamento antes de organizar o trabalho de ensino. 
Reconhecer e respeitar esses conhecimentos das crianças 
motiva-as a aprender mais rápido, uma vez que elas constatam 
que já sabem muita coisa. Por outro lado, esse estudo prévio é 
crucial no caso daqueles alunos que sabem muito pouco ou 
quase nada a respeito do sistema de escrita. Com esses alunos, o 
professor deverá tomar cuidados especiais, devendo ensinar 
noções que parecem óbvias a todo o mundo, mas que não foram 
sequer percebidas por algumas crianças. Se esses alunos não 
receberem uma boa explicação, por exemplo a respeito da 
distinção entre desenho e escrita ou, ainda, que escrevemos com 
letras representando os sons das palavras, dificilmente 
acompanharão explicações mais específicas a respeito do 
funcionamento da escrita, da leitura e da fala. 
<118> 
 
 
6 
A decifração da escrita 
REGRAS PARA A DECIFRAÇÃO 
DA ESCRITA 
Neste capítulo, começaremos a analisar que conhecimentos 
uma pessoa precisa ter para decifrar 
e ler algo escrito no nosso sistema de escrita. Em outras 
palavras, vamos ver quais são as regras que guiam uma pessoa 
nessa tarefa. Para quem já sabe ler, a decifração é algo 
mecânico, assim como o controle fonético dá-se naturalmente 
para quem já aprendeu a falar. Mas se quisermos explicitar esses 
conhecimentos, vamos encontrar uma série de normas, mesmo 
porque, se elas não existissem, não haveria a convenção social 
que torna a escrita algo compartilhado pelos usuários. O 
conhecimento dessas regras constitui o segredo da decifração da 
escrita, que, por sua vez, é o segredo do processo de 
alfabetização. 
Há uma tradição equivocada segundo a qual não se deve 
ensinar os alunos a decifrar a escrita, mas a ler "com 
naturalidade"... Como alguém consegue ler um texto se não sabe 
decifrá-lo? Constata-se em geral que os professores não sabem 
dizer quais são os conhecimentos que uma pessoa precisa ter 
para saber ler e, por isso, recusam-se a adotar o estudo da 
decifração como matéria em suas aulas. A questão, com efeito, é 
muito complexa, e os livros não costumam tratar desse assunto 
correta e seriamente. 
Apresentaremos a seguir os principais pontos que 
urna pessoa precisa conhecer para saber ler. 
 
1. Conhecer a língua na qual foram escritas as palavras 
Diante de uma escrita chinesa, se eu não souber chinês, 
posso ficar tentando descobrir o que está escrito, mas jamais 
conseguirei ler. A história das decifrações tem mostrado isso. 
Conhecer a língua é o primeiro requisito para se ler. 
Por outro lado, conhecendo uma língua, posso usar 
esse conhecimento para tentar "ler" algo escrito em outra 
língua. 
O fato de uma criança saber que está escrito uma determinada 
palavra, e não outra, ajuda muito a refletir sobre seus 
conhecimentos da escrita e da leitura e a ousar um processo de 
decifração. Se dissermos a uma criança que a palavra está 
escrita numa língua que ela 
<120> 
não conhece, isso certamente não irá animá-la a usar seus 
conhecimentos para ler o texto. 
 
2. Conhecer o sistema de escrita 
É preciso saber distinguir um desenho (figurativo ou abstrato) 
de uma manifestação de escrita. O desenho representa algo do 
mundo (ou relativo a ele), e a escrita representa a linguagem 
oral (uma palavra). A linguagem oral, por sua vez, representa o 
mundo. Uma mesma forma gráfica, portanto, pode ser apenas 
um desenho ou uma escrita. 
 
3. Conhecer o alfabeto 
O alfabeto que usamos é uma das possíveis formas do alfabeto 
latino e segue um conjunto de normas atuais. É composto de 
letras, formando um conjunto, tendo cada letra um nome, que 
lhe foi dado para indicar um dos sons possíveis que a letra 
apresentana língua, através do uso de um princípio acrofônico. 
Contar um pouco da história do alfabeto é, talvez, a 
melhor maneira de apresentá-lo para as crianças. 
 
4. Conhecer as letras 
As letras são unidades do alfabeto que representam os sons 
vocálicos ou consonantais que constituem as palavras. Variam na 
forma gráfica e no valor funcional. As variações gráficas seguem 
padrões estéticos, mas são também controladas pelo valor 
funcional que as letras têm. 
É importante aprender a distinguir as letras entre si e com 
relação a outros sinais e marcas da escrita. Saber dizer que 
letras aparecem em seqüência numa palavra é mais fácil com 
alguns tipos de letras (por exemplo, letras de fôrma) do que com 
outros (escrita cursiva). Saber os nomes das letras é importante 
para poder conversar a respeito de quais rabiscos são letras e 
quais, não. 
 
5. Conhecer a categorização gráfica das letras 
As letras podem ter muitas formas gráficas, gerando 
diferentes alfabetos, como podemos ver na história dos sistemas 
de escrita. Apesar da diferença gráfica entre 
essas formas, uma mesma letra permanece a mesma porque 
exerce a mesma função no sistema de escrita, ou seja, é usada 
exatamente da maneira exigida pela ortografia das palavras. 
<121> 
As letras são categorias abstratas que desempenham uma 
determinada função no sistema, que é preencher um 
determinado lugar na escrita das palavras. Assim, no caso da 
palavra CASA, de acordo com a ortografia da língua portuguesa, 
é escrita com as seguintes letras: 
1ª letra: letra cê; 2ª letra: letra a; 3ª letra: letra esse; 4ª letra: 
letra a, novamente. A forma gráfica pode variar até os limites 
das convenções que permitem ao leitor, vendo um rabisco, 
reconhecer a letra cê, a, esse e a. Ou seja, é preciso saber a 
categorização das letras, quer no seu aspecto gráfico 
(equivalência das letras nos diferentes alfabetos), quer no seu 
aspecto funcional (quais letras devem ser usadas para escrever 
determinada palavra e em que ordem). 
 
6. Conhecer a categorização funcional das letras 
Apesar de variarem graficamente, as letras — como unidades 
abstratas do alfabeto — têm valores funcionais fixados pela 
história das letras, pelo processo de adaptação a uma 
determinada língua e, principalmente, pela ortografia das 
palavras. Portanto, não se pode escrever qualquer letra em 
qualquer posição numa palavra. Se as letras não tivessem esses 
valores, poderíamos, por exemplo, escrever CASA com as letras 
APXP (onde A C, P = A, X = S), ou mesmo MRIT, desde que 
houvesse uma convenção que permitisse isso. 
Além disso, seguindo as possibilidades geradas pela 
ortografia, a palavra pronunciada "casa", em princípio, poderia 
ser escrita das seguintes formas (apesar de apenas a primeira 
forma ter sido escolhida pela ortografia): 
CAZA 
QAZA 
KAZA 
CASA 
QASA 
KASA 
CAG 
CAXA 
QAXA 
KAXA 
 
Nota 
O desenho das letras está muito diferente dos modelos 
tradicionais, mas podemos lê-la porque distinguimos "letras" 
nesse rabisco, e, para tanto, nos servimos dos conhecimentos 
ortográficos da palavra CASA, ajudados pelo contexto em que 
aparece essa escrita. 
 
A alfabetização depende crucialmente do conhecimento da 
categorização gráfica e funcional. Aí se localiza um divisor de 
águas: quem consegue entender isso, pula a barreira do 
analfabetismo e aprende a ler; quem não consegue, fica 
tentando em vão outras maneiras de aprender. Grande parte do 
trabalho de alfabetização deverá voltar-se, portanto, para o 
estudo desses dois aspectos. 
<122> 
 
7. Conhecer a ortografia 
A ortografia é mais importante do que a simples idéia de um 
alfabeto no nosso sistema de escrita, porque ela controla a 
categorização gráfica e funcional, muito mais do que o princípio 
alfabético. 
 
A dificuldade de ler começa com o problema da identificação 
das letras. No início da alfabetização, uma criança tem tantas 
dificuldades em reconhecer as letras em uma escrita cursiva 
quanto um adulto experiente em ler "a letra do outro" como no 
nome do remetente de uma carta. 
 
CAGLIARI, 1986b e 1994b. 
Saber que a ortografia congelou o modo de escrever as palavras 
ajuda muito os alunos a não tentar fazer do alfabeto um sistema 
de transcrição fonética e a perceber que a fala segue as 
variações dialetais, neutralizadas na escrita pela ortografia. 
Conhecer a natureza, a função e os usos da ortografia é 
importante ainda para entender as relações entre letras e sons e 
entre fala e escrita. A ortografia comanda a função das letras no 
sistema de escrita, estabelecendo a ordem dos caracteres nas 
palavras e o valor fonético de cada um deles, de acordo com a 
linguagem oral (dialetos de todos os usuários). Além disso, 
estabelece como a linguagem oral deve ser segmentada para 
formar as unidades da escrita, que chamamos de palavras. 
Por outro lado, a ortografia fez com que a escrita tivesse como 
função permitir a leitura, ou seja, permitir que os usuários de 
diferentes dialetos pudessem 
<123> 
reconhecer uma determinada palavra e, assim, entender o que 
está escrito. Uma vez identificada a palavra, através do estudo 
dos sons e dos significados, o usuário está livre para dizer o que 
está escrito, usando seu dialeto ou outro qualquer, porque as 
marcas dialetais ficaram neutralizadas pela ortografia na escrita. 
Dentro desse quadro constatamos que é mais fácil partir da 
escrita ortográfica para a decifração da linguagem, atribuindo 
valores fonéticos às letras, do que analisar a fala e chegar à 
forma ortográfica que a palavra tem. Em outras palavras, as 
relações entre letras e sons são mais simples e fáceis do que as 
entre sons e letras. Ou ainda, é mais fácil decifrar e ler do que 
escrever. Juntando os segmentos da fala de todos os dialetos e 
as letras, segundo o estabelecido pela ortografia das palavras, 
temos o quadro completo das relações entre letras e sons. 
Tem sido dada pouca importância ao estudo da ortografia, 
quer nos sistemas de escrita quer nas atividades escolares. A 
única coisa que alguns professores sabem fazer é corrigir erros 
de grafia. O importante, contudo, está em compreender bem 
como é a ortografia e como ela atua na linguagem escrita e na 
leitura. Desse conhecimento, como vimos, dependem muitas 
noções básicas, necessárias e indispensáveis para que uma 
pessoa possa ler. 
 
8. Conhecer o princípio acrofônico 
O princípio acrofônico existe desde a formação do primeiro 
alfabeto. O nome das letras traz, em seu início, o som mais 
característico que a letra representa no sistema de escrita. 
Assim, no nome "bê", da letra B, encontramos o som "b", que é o 
som mais comum que essa letra assume. E isso acontece com 
praticamente todas as letras. 
O princípio acrofônico na verdade é um conjunto de regras que 
usamos para decifrar os valores sonoros das letras. Num 
primeiro momento, atribuímos a cada letra o som que é dado 
pelo seu nome. Depois, somamos os sons para descobrir que 
palavra está escrita. Nesse momento, são feitos os arranjos 
necessários a respeito dos valores sonoros das letras em função 
da história das palavras, da ortografia e do dialeto que o leitor 
conhece. 
Alguns professores acreditavam que as cartilhas tinham algo 
de especial e inexplicável, que fazia os alunos aprenderem. Esse 
algo especial encontrava-se na 
<124> 
prática escolar que aplicava o princípio acrofônico de uma forma 
ou de outra para ensinar as crianças a ler. Na verdade, o 
princípio acrofônico é uma das ferramentas mais importantes 
que o leitor tem para realizar sua tarefa de decifração e leitura.9. Conhecer os nomes das letras 
Os nomes das letras são: a, bê, cê, cê-cedilha, dê, é, efe, gê, 
agá, i, jota, cá, ele, eme, ene, ô, pê, quê, erre, esse, tê, u, vê, 
dáblio, xis, ípsilon, zê. Notar que o nome da letra H não se 
escreve com H, o nome da letra K é com C (porque não se 
escrevem palavras comuns com K na nossa língua), no nome da 
letra W não aparece o som correspondente, nem no nome da 
letra Y. Isso mostra que no nosso sistema o princípio acrofônico 
não está mais presente em todas as letras. Mas isso acontece 
principalmente com letras de pouco uso, como K, W e Y; a letra H 
é exceção. 
Em Portugal, em vez de "dáblio" diz-se "duplo vê". Em inglês o 
nome significa "duplo u". Alguns dialetos (por exemplo, do 
Nordeste) têm outros nomes para algumas letras, para facilitar o 
uso do princípio acrofônico. Eles dizem, por exemplo, fê, lê, mê, 
nê, rê. Muitos professores de alfabetização adotam os dois 
nomes para as letras, e isso facilita o trabalho. 
 
10. Conhecer as relações entre letras e sons (princípios de 
leitura) 
Para saber que som uma letra tem, é preciso relacioná-la com 
seu nome (som básico) e em seguida estudar o contexto em que 
ocorre (letras que vêm antes e depois), para saber se existe 
alguma regra especial que modifica o som básico em função do 
contexto - por exemplo, S entre duas vogais tem o som de "zê"; 
C diante de A, O, U tem o som de "ka" e não de "cê", etc. Por 
outro lado, é preciso levar em conta o dialeto do leitor. Por 
exemplo, para alguns falantes, a letra T tem os sons de "tche" e 
"tê", mas para outros tem apenas o som de "tê". Alguns falantes 
dizem "catano" em vez de "catando" e, para esses, a letra D não 
tem som, nesses contextos verbais. 
As considerações acima mostram que existem regras que 
controlam os valores fonéticos que as letras podem ter numa 
língua. Conhecer essas relações é indispensável para decifrar e 
ler. Essas regras podem transformar-se em exercícios em sala de 
aula. Os alunos adoram 
<125> 
descobrir as regras a partir de um conjunto de dados que lhes é 
apresentado. Os professores devem aproveitar esse interesse — 
para os alunos, um desafio ou jogo — e deixar que eles 
construam, a partir da análise dos dados, o conhecimento de 
como o sistema de escrita funciona e como se faz para ler. 
 
11. Conhecer as relações entre sons e letras (princípios de 
escrita) 
Como vimos anteriormente, se alguém quisesse escrever 
"kaza", teria diante de si muitas alternativas, mas deveria 
acabar escolhendo apenas a forma estabelecida pela ortografia. 
Para quem toma por base a ortografia para chegar à fala de 
acordo com a norma culta ou com a pronúncia de seu dialeto, o 
caminho partindo das letras para chegar aos sons é 
relativamente fácil. Por exemplo, o aluno pode ver escrito 
DENTRO e ler "drentu", aplicando seus conhecimentos básicos 
das relações entre letras e sons, e depois adaptar o resultado 
final à pronúncia do seu dialeto. Ao ler a palavra XA, dará à letra 
X o som de CH, porque de acordo com as normas da nossa língua 
em início de palavra todo X apresenta apenas o som de CH. Por 
outro lado, partindo da fala (que é sempre dialetal) para a 
escrita, ou seja, indo dos sons para as letras, o caminho é outro. 
Não basta, por exemplo, saber que X no início de palavras 
representa o som de CH, uma vez que esse som pode ser 
representado também por CH. Ao ouvir e tentar escrever "chá" 
ou "cheque", o aluno deverá decidir se essas pronúncias serão 
representadas por X ou por 
CH: XÁ, XEQUE/CHA, CHEQUE. Quando se diz "andano" e 
"drentu", dificilmente se descobre a forma ortográfica dessas 
palavras: ANDANDO e DENTRO. Mas, no caminho inverso, quando 
se conhece a norma padrão é mais fácil deduzir que a forma 
ANDANDO é equivalente a "andano" e DENTRO, a "drentu". 
 
12. Conhecer a ordem das letras na escrita 
Para ler, é preciso ainda saber em que direção a escrita vai. 
Quando dizemos que escrevemos da esquerda para a direita, 
significa que a seqüência das letras nas palavras obedece a essa 
ordem. Algumas crianças, muito preocupadas com o traçado das 
letras, interpretam mal essa afirmação sobre a direção da escrita 
e acabam escrevendo (sobretudo as letras arredondadas) de 
forma espelhada, uma vez que o movimento 
<126> 
da mão, nesse modo de escrever, vai da esquerda para a direita 
e, na forma correta, da direita para a esquerda: 
Podemos escrever seguindo outras direções. O importante é 
permitir uma leitura clara, o que se obtém através da 
identificação da linha de base sobre a qual as letras das palavras 
se apóiam. 
 
13. Conhecer a linearidade da fala e da escrita 
A questão anterior está ligada à característica linear da fala e 
da escrita. Quando falamos, pronunciamos os elementos 
segmentais (vogais e consoantes) e os elementos prosódicos 
(entoação, ritmo, volume, velocidade, duração e ainda a 
nasalidade, o acento, a qualidade de voz, etc.) todos ao mesmo 
tempo e variando a cada momento. Mas, na escrita, fazemos 
algumas separações. 
Representamos as vogais e as consoantes sem outras 
especificações. Depois, colocamos alguns sinais de pontuação no 
final das frases, embora se deva modular a frase de maneira 
apropriada desde o início. Escrevemos uma vogal e depois a 
modificamos colocando um til ou um acento. As pausas da fala 
nem sempre têm correspondência fixa com as pausas ou sinais 
de pausa vírgulas, pontos) da escrita. A segmentação de 
palavras na escrita, indicada pelo espaço em branco, 
corresponde menos ainda a pausas ou segmentações na fala. 
Isso tudo mostra que a fala e a escrita têm muitas diferenças e 
que não há uma correspondência direta entre o que se escreve e 
o que a escrita representa da fala. A escrita simplesmente dá 
indicações que permitem a leitura. Cabe ao leitor, como 
conhecedor da língua, tirar do texto as informações necessárias 
para 
<127> 
reconstruir a linguagem oral na leitura, como se o que ele fosse 
ler fosse o que ele estivesse dizendo por iniciativa pessoal. 
 
14. Reconhecer uma palavra 
Definir uma palavra na linguagem oral é uma tarefa difícil, 
mas é fácil na escrita. De acordo com as normas ortográficas, 
todo conjunto de letras separado por um espaço em branco 
constitui uma palavra. O critério semântico ajuda muito, mas não 
resolve todas as dúvidas. 
No esforço para ler, a decifração começa a fazer sentido no 
momento em que o leitor descobre uma palavra. Para chegar lá, 
o fato de a escrita separar as palavras por espaços em branco 
ajuda enormemente. 
O professor deve mostrar ao aluno que uma primeira tarefa é 
começar a identificar as segmentações das palavras. Para tal, 
deve ater-se apenas à escrita. 
 
15. Nem tudo o que se escreve são letras 
Além de letras, a escrita usa sinais de pontuação, acentos e 
outras marcas, que é preciso conhecer. A letra A com um til 
representa um som diferente, ou seja, um A nasalizado. Porém, 
nem todo A nasalizado será escrito com A mais til. A escrita usa 
de acentos para marcar variações da qualidade das vogais, 
mostrando se são abertas ou fechadas. Os sinais de pontuação 
são diacríticos que servem para orientar a entoação e a prosódia, 
embora façam isso de maneira muito precária. As vírgulas 
servem, às vezes, para indicar pausas ou elementos 
parentéticos. O ponto final representa uma pausa longa possível, 
mas nem sempre necessária. Outras marcas como ponto de 
interrogação, exclamação, reticências, etc. representam também 
elementos prosódicos, sobretudo relacionados com a entoação. 
O desconhecimento dessas marcas às vezes confunde o leitor 
iniciante, que julga tratar-sede uma letra que ele desconhece, o 
que bloqueia o processo de decifração. 
 
16. Nem tudo que aparece na fala tem representação gráfica na 
escrita 
Como o leitor raciocina não só como alguém que está 
tentando desvendar os segredos da escrita, mas também como 
um falante que pode refletir sobre sua 
<128> 
fala, é preciso controlar as expectativas com relação ao que se 
vai ou não encontrar na escrita, comparada com a fala. No fundo, 
essa é uma questão complexa. 
Nem todas as características sonoras da linguagem oral têm 
representação gráfica no sistema de escrita. No sistema 
alfabético, as letras representam apenas os segmentos 
fonéticos, isto é, aquelas unidades chamadas vogais e 
consoantes, que são definidas como unidades constitutivas das 
sílabas das palavras. Na prática, as vogais são mais facilmente 
reconhecíveis através do prolongamento das sílabas: caaaa- 
vaaaa-loooo, aaaan tiiii-gooo; e as consoantes pela observação 
dos movimentos articulatórios da boca: ca-ca-ca-ca va-va-va-va 
lo lo-lo-lo, an-an-an-an ti-ti-ti-ti go-go-go-go. 
Como vimos, elementos prosódicos também têm pouca ou 
nenhuma representação na escrita. Esses elementos ficaram de 
fora porque o sistema de escrita segmentou a fala em palavras 
sem levar em conta unidades maiores. Essas unidades formadas 
da soma de palavras, como o grupo tonal por exemplo, precisam 
ser recuperadas através dos conhecimentos que o leitor tem da 
língua. Dado que nossos leitores são falantes do português, 
saberão concatenar as palavras devidamente, como se o texto 
fosse falado por iniciativa pessoal. 
Apesar dessa limitação do sistema de escrita, na alfabetização 
basta o professor falar, por exemplo, que o aluno precisa ler com 
ritmo e entoação e explicar o que isso significa. 
 
Nota 
Neste livro optamos pelo uso das letras do alfabeto com seu 
valor sonoro baseado no princípio aerofônico e não na forma de 
transcrição fonética usual dos lingüistas (alfabeto próprio e 
escrita entre colchetes) Assim o som da fricativa alveolar surda 
será representado aqui por "çê" e não por (s). Essa opção foi 
feita para mostrar ao professor que ele também pode fazer boas 
transcrições fonéticas, usando apenas os conhecimentos do 
alfabeto e uma boa observação de como as pessoas falam. Por 
outro lado, mostra ao professor como a escrita parece estranha 
quando se sai da ortografia, revelando um pouco da sensação 
que o aluno tem ao se alfabetizar. 
 
17. O alfabeto não é usado para fazer transcrições fonéticas 
CAGLIARI, 1992c. > 
 
Se deixarmos de lado a ortografia, podemos usar nossos 
conhecimentos do sistema de escrita alfabético para fazer 
transcrições fonéticas. Como os valores das letras foram 
estabelecidos em função da ortografia da língua e da fala dos 
dialetos, e não a partir das possibilidades articulatórias do 
homem, tendo em vista todas as línguas e dialetos do mundo, o 
uso do alfabeto para se fazer transcrição fonética é precário — 
há melhores sistemas para isso. Não obstante, esse uso especial 
do alfabeto apresenta uma certa eficiência que pode ser 
aproveitada pela escola. Dessa forma, pode-se transcrever 
foneticamente a variação lingüística que encontramos nos 
dialetos. Pode-se transcrever, por exemplo, as maneiras 
diferentes que as crianças têm de pronunciar as palavras e 
registrá-las sob a forma escrita. Esse tipo de prática ajuda 
<129> 
 
da enormemente a contrastar a escrita que respeita a ortografia 
com a transcrição fonética da fala, com a qual os alunos 
começam a escrever. 
Alguns alunos acabam pensando que o alfabeto serve apenas 
para escrever os sons à moda das transcrições fonéticas, e isso 
causa algumas dificuldades não só na escrita, como também no 
processo de aprendiza gem da leitura. Mostrar as duas 
possibilidades de uso do alfabeto é indispensável para os alunos 
poderem trabalhar tranqüilamente. 
A COMPETÊNCIA TÉCNICA DO PROFESSOR 
Saber decifrar a escrita é o segredo da alfabetização. E muito 
importante que o professor tenha isso sempre em mente. Ele 
deverá fazer muitas coisas como professor e principalmente 
como educador. Mas ensinar a ler é sua tarefa principal. Para 
tanto, é preciso ter, em primeiro lugar, os conhecimentos 
necessários para que alguém possa ler o que vê diante de si. Os 
< CAGLIARJ, 1992c e 1 99 6h. cursos de formação de professor 
têm se preocupado muito com outros aspectos da escola, dando 
muitas vezes um valor indevido aos aspectos pedagógicos, 
metodológicos e psicológicos. Como educador, o professor 
precisa ter uma formação geral, e esses conhe cimentos são 
básicos. Como professor alfabetizador, precisa ter 
conhecimentos técnicos sólidos e completos. Para ensinar língua 
portuguesa, é preciso saber o mais possível sobre a linguagem 
em geral e sobre a língua portuguesa em particular. Para ensinar 
alguém a ler e a escrever, é preciso conhecer profundamente o 
funcionamento da escrita e da decifração e corno a escrita e a 
fala se relacionam. 
<130> 
Um professor bem-preparado, com competência técnica, sabe 
exatamente o que fazer em qualquer situação de seu trabalho. 
Sabe o que o espera pela frente, quais os problemas que 
costuma enfrentar e como resolvê-los. Se acontecer algum 
imprevisto, saberá como se comportar. Esse tipo de discurso 
encontra-se em qualquer livro de pedagogia: é o óbvio. A 
aplicação dessas palavras à vida das pessoas, porém, é uma 
questão não tão óbvia, e menos fácil e comum ainda entre os 
professores. 
Se se perguntar a um professor alfabetizador tradicional como 
ele faz para ler uma simples palavra como POTE, ele responde 
que a gente verifica quais são os sons das letras e diz "pote". E 
se quiser escrever a mesma palavra, basta observar que sons a 
palavra tem, ver as letras correspondentes a esses sons e 
escrever: POTE. E como alguém sabe quais são os sons das 
letras? A sua resposta será que se aprende isso com o bá-bé-bi- 
bó bu. O conhecimento de como a escrita, a leitura e a fala 
funcionam está restrito a essas noções. Com apenas esses 
conhecimentos, no entanto, ninguém é capaz de ensinar uma 
pessoa a ler e a escrever como se deve. Nessas circunstâncias, 
um aluno precisará descobrir, por conta própria — porque é 
falante da língua portuguesa, capaz de refletir sobre o funciona 
mento de sua fala e da fala alheia e de decifrar a escrita —, 
muitas informações, sem as quais não poderá tornar-se um 
leitor. 
A AUTONOMIA DO PROFESSOR 
A explanação acima é oportuna para que o professor reflita 
sobre seu trabalho, vendo as questões não do ponto de vista 
metodológico, mas da sua competência. Ele não precisa de 
"pacotes" educacionais. Os métodos e técnicas não passam de 
ferramentas que ajudam em alguns casos e atrapalham em 
outros. Um professor competente saberá avaliar quais livros 
didáticos são úteis e interessantes e se trazem erros e omissões 
de questões importantes ao ensino. O professor precisa libertar- 
se das pessoas que apresentam soluções miraculosas num livro 
ou método. Mas, para isso, para que esta autonomia possa se 
sustentar, deverá ser realmente compe tente e um especialista 
em sua área. 
<131> 
Um professor que pergunta numa palestra o que ele deve 
fazer para ensinar a um aluno como ler sem soletrar, como 
ensinar os grupos consonantais, como ele pode explicar ao aluno 
o emprego das consoantes nasais em final de sílaba, etc, mostra 
quão despreparado está para o desempenho de seu trabalho. 
Como um professor como esse pode alfabetizar alguém? Se nem 
ele sabe resolver essas questões, de que forma seus alunos 
poderão saber? 
Por outro lado, um professor quepassou vários anos em sala 
de aula tem uma experiência de vida muito rica, que pode e deve 
ser aproveitada, para tirar daí o que a escola de formação não 
lhe deu. Existe uma idéia muito preconceituosa em nossa 
sociedade com relação aos autodidatas. No entanto, essa talvez 
seja a maneira mais usual e eficiente de corrigir os defeitos de 
um sistema educacional falho. 
Aos poucos, o professor pode ir lendo livros de lingüística 
geral ou de áreas particulares (fonologia, sociolingüística, 
semântica, etc.) e verificando onde esses conhecimentos entram 
na sua prática de sala de aula e quais as conseqüências que eles 
trazem. Deve estudar os sistemas de escrita e decidir como levar 
esses conhecimentos para suas aulas. Deve, sobretudo, refletir 
como usuário da língua portuguesa a respeito dos mecanismos 
da fala, escrita e leitura e quais os seus usos. Deve procurar 
explicitar, através de pequenas regras, o que faz quando ouve, 
fala e escreve. Se o professor sabe ler, pode refletir sobre todos 
os conhecimentos necessários para realizar essa tarefa e 
traduzir essa reflexão em regras, que serão passadas 
oportunamente para os alunos. Deve refletir sobre as próprias 
dificuldades e tentar descobrir formas de superá-las, porque 
assim saberá voltar-se às dificuldades particulares dos alunos e 
procurar urna solução para elas. 
Muitas das coisas que se ensina neste livro poderiam 
perfeitamente sair de um trabalho pessoal de qualquer professor 
alfabetizador, já que na vida profissional lidamos com todas 
essas questões. Simplesmente não estamos acostumados a 
refletir sobre elas e menos ainda a explicitá-las na forma de um 
estudo. Mas é justamente essa explicitação que traz à 
consciência do professor sua competência. 
<132> 
Procedimentos para o estudo das letras 
Como já dissemos várias vezes, aprender a ler é o segredo da 
alfabetização. Para alguém conseguir ler algo, precisa saber 
como esse sistema de escrita funciona, isto é, precisa saber 
decifrar a escrita. De acor do com o sistema de escrita, o 
processo de decifração ocorre de uma determinada maneira. 
Para decifrar uma escrita feita com letras de um alfabeto, a 
questão mais importante é saber quais sons estão associados a 
quais letras. Por essa razão, apresenta-se, logo adiante, a título 
de sugestão, o modo como um professor pode trabalhar esse 
aspecto na alfabetização. Antes disso, porém, é bom lembrar 
alguns fatos que servem de guia para que o processo de 
alfabetização seja mais eficiente. 
1. Fornecer as explicações básicas ao aluno 
Do ponto de vista funcional, a escrita escolar que usamos 
baseia-se num alfabeto de 26 letras (incluindo o "ç"), em alguns 
diacríticos, como os acentos e o til, e em marcas, como os sinais 
de pontuação. Cada letra representa um valor abstrato, que pode 
ter inúmeras formas gráficas. Esse valor é dado pela expectativa 
de ocorrência em palavras, de acordo com as normas 
ortográficas. Por exemplo, "E" representa o mesmo valor de "e", 
e, embora graficamente esses dois caracteres sejam muito 
diferentes, é possível escrever a mesma palavra, variando esses 
caracteres: "SELO" e "selo". A escrita representa sons da fala. O 
próprio nome das letras traz em si um dos sons (em geral o 
principal) que a letra representa. Ler não é o mesmo que 
escrever. Quando se lê, o que vale é a decifração que conduz ao 
reconhecimento da palavra, indo da análise de letra por letra e 
de combinações de letras, até compor o resultado final. Feita a 
decifração, o contexto em que aparece escrita a palavra em geral 
é suficiente para mostrar para o aluno que ele está no caminho 
certo. Quando se trata da palavra isolada, é preciso verificar as 
alternativas possíveis, que o aluno pode checar, levando em 
conta os conhecimentos que tem da linguagem oral, como 
falante nativo. Depois, ele vai aprender que pode encontrar 
escrita uma palavra que não conhece. Precisará, então, consultar 
um dicionário. 
Entretanto, o procedimento é diferente quando se escreve. Em 
primeiro lugar, observam-se os sons que a palavra apresenta na 
linguagem oral. Em seguida, faz-se uma hipótese a respeito de 
quais letras podem ser usadas para transcrever os sons 
detectados. Finalmente, leva-se em conta a ortografia. Se o 
aluno já souber como é a forma ortográfica da palavra, escreve 
com facilidade. Se não 
<134> 
souber ou tiver dúvidas, deverá resolvê-las antes, perguntando 
ou procurando no dicionário. 
É sempre bom lembrar que não é preciso ter uma ilustração 
para se escrever ou ler: um texto basta, ou seja, algo falado 
(quando se vai escrever) ou algo que se pode falar (quando se 
vai ler). É interessante recordar também que a escrita não 
representa a fala de um dialeto em particular. Qualquer falante, 
de qualquer dialeto, pode ler decifrando as letras e compondo as 
palavras segundo a fala de seu dialeto. Ao escrever, pensa nos 
sons das palavras em seu dialeto, procura a forma padroniza da 
pela ortografia e escreve. 
É preciso estar atento para o fato de que se pode fazer "leitura 
incidental" e até escrever palavras com letras, como se fossem 
glifos, ou seja, caracteres ideográficos. Como, porém, o sistema 
também é fonográfico e usa letras, o segredo da escrita das 
palavras é a combinação de letras. Isso simplifica enormemente 
a tarefa de escrever uma palavra, seja ela familiar ou não. O 
mesmo vale para a leitura: pode-se ler uma palavra como se 
fosse um ideograma, mas essa não é uma leitura produtiva. 
Quem sabe combinar os valores fonéticos das letras para deci 
frar as palavras escritas tem muito mais vantagens e facilidades 
para ler. E é assim que os alunos devem aprender. 
Essas noções básicas devem ser discutidas com os alunos 
desde o início dos trabalhos e sempre que o professor tiver 
oportunidade. Se perceber que algum aluno está fazendo 
confusão com alguma dessas idéias, precisará esclarecê-lo. O 
professor precisa explicar cada uma dessas noções, e não ficar 
camuflando com histórias ou exercícios que indiretamente 
propiciem o aluno a chegar às conclusões desejadas. É preciso ir 
direto ao assunto, sem rodeios. 
2. Explicar o que é uma letra 
O aluno deve saber ainda que as letras são dispostas em 
linhas (em geral horizontais e mais raramente de cima para 
baixo), e que uma letra sucede a outra, da esquerda para a 
direita, linha por linha. As letras têm tamanhos e formas 
definidas nos alfabetos. Letras maiúscula e minúscula indicam 
alfabetos diferentes (conjuntos diferentes de caracteres), e não 
letras em tamanho grande ou pequeno. Toda letra tem uma 
forma básica, que serve para distinguir um caractere de outro, 
mas pode variar e ter "enfeites" sem interferir nas suas 
características distintivas, como as serifas das letras de fôrma 
maiúsculas. Corno as letras são dispostas no espaço, 
<135> 
em linhas, apoiadas na linha-base horizontal, e a seqüência é da 
esquerda para a direita, elas têm uma direção fixada por esse 
espaço, de tal modo que não se pode virá-la de cabeça para 
baixo, da direita para a esquerda. A letra deverá estar disposta 
na escrita das palavras, tal qual aparece no alfabeto. Aliás, a 
disposição das letras no próprio alfabeto já mostra esse fato. As 
letras são escritas separadamente, no alfabeto de letras de 
fôrma, mas são interligadas na escrita cursiva. 
Com relação aos usos da escrita, o aluno deve saber onde se 
pode encontrar exemplos de escrita, através do reconhecimento 
do que é letra e do que não é. Letras podem vir acompanhadas 
de figuras ou rabiscos: é preciso saber distinguir um de outro. É 
necessário saber por onde começar a ler ou a escrever, eonde 
terminar, o que são palavras isoladas e o que é um texto. As 
vezes, juntamente com o aspecto gráfico e funcional de urna 
letra, o autor tira proveito artístico ou qual quer outro efeito, 
para "enriquecer" a escrita com mais idéias. É preciso distinguir 
um uso lingüístico da escrita de outros usos possíveis. 
Como vivemos num mundo onde coexistem muitos sistemas 
de escrita, o aluno precisa saber isolar a escrita alfabética, 
composta de letras e seguindo uma ortografia, de outras formas 
de escrita, tais como numérica, simb&lica, as que utilizam sinais 
e marcas. É preciso, ainda, distinguir uma escrita linear de certas 
formas "abrevia das" ou "compostas", em que as letras são 
simples pretexto para urna escrita do tipo ideográfica e não- 
linear. 
Enfim, antes de se ensinar as relações entre letras e sons, o 
aluno deve saber o que é uma letra e corno reconhecê-la quando 
a encontrar pela frente. Reconhecer o material da escrita e suas 
características básicas é im prescindível para começar um 
trabalho de decifração, descobrindo quais sons as letras 
apresentam em deter minada palavra. Aprender a ler significa 
aprender todas essas coisas. Alguns alunos se perdem em 
detalhes (segundo o professor), mas sem superar essas 
"pequenas" dificuldades, tudo o mais fica comprometido. E se o 
aluno não for capaz de decifrar uma palavra, ele não saberá ler e 
não poderá ser considerado alfabetizado, mesmo que consiga 
dizer coisas que vê escritas, ou reproduzir graficamente o 
traçado de palavras. 
3. Explicar como segmentar a fala em palavras 
Uma palavra separa-se de outra na escrita por um espaço em 
branco. Para saber como segmentar uma 
<136> 
palavra, observando a linguagem oral, há duas estratégias 
importantes: a primeira, é separar por significado — cada 
significado corresponde a uma palavra possível; a segunda, é 
tentar colocar outra palavra no local que se quer segmentar — se 
isso for viável, a segmentação é possível. Tudo isso é muito mais 
complicado na prática do que esse comentário revela. Mas essas 
idéias representam um primeiro passo para os alunos poderem 
segmentar a fala oral em palavras, que deverão escrever, sem 
muitas dificuldades. A palavra final será sempre dada pela 
ortografia. E, nesse caso, quem sabe sabe; quem não sabe tem 
de perguntar. Por exemplo, embora represente uma idéia só, é 
possível separar em palavras escritas a expressão "assistir à 
televisão", porque podemos reconhecer um significado em 
"assistir" e outro em "televisão", o que nos permite variar parte 
da expressão: "assistir ao jogo", "assistir ao filme", "ver 
televisão" "consertar televisão", etc. Pode-se colocar uma 
palavra intercalada entre uma e outra: "assistir sempre à 
televisão". Porém, no caso de "macarrão", se houver 
segmentação, pode-se ter "maca", mas o que sobrou fica sem 
sentido: "-rrão"; tampouco pode-se intercalar algo entre uma 
palavra e outra: "maca-gostoso-rrão"... Compare as formas 
"casa pequena" e "casinha" e faça os testes. 
Os alunos não devem se preocupar em cortar palavras no final 
de linha, porque esse é um procedimento encontrado em livros, 
mas não na escrita comum do dia-a-dia. 
 
Nota 
E aconselhável pendurar uma faixa sobre a lousa em que 
apareçam primeiro as letras de fôrma maiúsculas e depois as 
letras de fôrma minúsculas e minúsculas lado a lado. 
 
4. Explicar como descobrir as regras de decifração 
Deve haver um cartaz bem grande (ou uma faixa) com as 
letras do alfabeto em sala de aula, para que os alunos possam 
consultar sempre que desejarem. Quando o professor for ensinar 
as relações entre letras e sons, começará pelo nome das letras. 
Em geral, a classe como um todo conhece todas as letras do 
alfabeto, porque as crianças costumam ir aprendendo, mesmo 
antes de entrar na escola, pelo menos as letras iniciais do 
próprio nome. Decorar os nomes das letras é importante, mas o 
professor não irá exigir isso, através de exercícios de memória, 
nos quais os alunos recitam o alfabeto. Isso se aprende e se 
decora com o próprio estudo das letras. 
O professor poderá pedir para os alunos ditarem palavras para 
verem como são escritas e para proceder à análise de uma ou de 
outra letra do interesse deles. 
<137> 
Poderá, se quiser, proceder a uma análise geral da palavra, 
dizendo o nome de cada uma das letras que a compõem. 
Seguindo a ordem da esquerda para a direita (ordem correta), 
pode-se ler a palavra corretamente, mas se a leitura for feita da 
direita para a esquerda, tem-se um amontoado de sons sem 
sentido (raramente dá certo ler da direita para a esquerda. 
Entretanto, pode-se ter palavras diferentes, ou até mesmo a 
mesma palavra, como AMOR e ROMA; ASA, etc.). 
Descobrir regras de decifração (relação letra/som) e de 
escrita (relação som/letra) é uma estratégia para se alfabetizar 
com rapidez e segurança, deixando de lado o método das 
cartilhas, o famoso bá-bé-bi-bó-bu. Nessa atividade, o professor 
pode programar aulas e material, fazendo o levantamento dos 
sons que as letras têm. Por outro lado, pode fazer um 
levantamento das letras que são usadas para representar um 
mesmo som. Escrever listas de palavras para mostrar as funções 
das letras será um procedimento cotidiano. Os exemplos das 
listas servirão para uma discussão reflexiva sobre as relações 
entre letras e sons e demais fatos lingüísticos, como a variação 
dialetal e a ortografia. Como resumo e conclusão das reflexões, o 
professor ajudará os alunos a formularem regras que expliquem 
os fatos considerados. 
As cartilhas jamais pensaram nessas coisas, porque nunca se 
preocuparam em ensinar como decifrar a escrita, deixando que o 
aluno descobrisse isso por conta própria, de tanto escrever 
palavras com "pedacinhos". É incrível que alguns professores 
alfabetizadores nunca tenham pensado nesses fatos e, quando 
se pede a eles para organizar um material nesse sentido, 
sentem-se embaraçados e confusos. 
 
JUNTANDO E GENERALIZANDO 
Um estudo detalhado de letra por letra é apresentado no 
Apêndice no final deste livro. Recomenda-se que o professor 
consulte-o sempre que necessário. Levando em consideração 
esse estudo em anexo, pode-se ver a questão das relações entre 
letras e sons por outro ângulo. Como algumas letras têm um 
comportamento muito semelhante entre si (paralelismo), ou se 
comportam de uma maneira semelhante sempre que se 
encontram em determinadas circunstâncias, isso permite 
<138> 
juntar o que for igual e generalizar os casos comuns a mais de 
uma letra. Desse modo, em vez de uma série de regras 
parecidas, para letras diferentes, pode-se ter a mesma regra 
para todos os casos que se enquadram dentro das regras 
propostas. Refletir sobre tais questões é uma maneira um pouco 
mais sofisticada de conduzir a análise dos conhecimentos 
necessários para que alguém consiga ler e escrever. Uma 
incursão por esse território será feita a seguir. 
Em primeiro lugar, é preciso distinguir fatos de leitura 
(decifração) de fatos de escrita (produção de escrita). Um fato 
pode ser fácil para o aluno quando ele tem de decifrar e ler, mas 
pode ser muito complicado quando, observando esse fato na 
fala, ele tem de decidir como escrever. As facilidades e as 
dificuldades de ler não são as mesmas quando se trata de 
escrever. Esse é um ponto que as cartilhas nunca levaram em 
conta porque tratam apenas da escrita, mesmo quando estão 
pensando na leitura. 
Além de distinguir fatos da leitura de fatos da escrita, 
procuraremos avaliar o que é mais "fácil" e o que é mais "difícil", 
partindo da complexidade que as letras têm nas suas relações 
com ossons da fala, e vice-versa. A própria natureza das letras, 
suas funções e empregos serão a medida usada para definir se 
uma letra é mais difícil ou mais fácil do que outra, na decifração 
ou na escrita. Essa é uma ordem de análise científica, não uma 
ordem pedagógica. Para um aluno principiante, escrever ou ler 
qualquer coisa é sempre muito difícil. Somente quem conhece o 
funcionamento de todo o sistema pode hierarquizar o que, para 
si, é mais fácil ou não. O mito de que a letra x é a mais difícil 
deve-se ao fato de as pessoas já alfabetizadas encontrarem 
dificuldades ortográficas quando estão diante dessa letra. Para o 
principiante, ler ou escrever CASA ou EXTRA pode apresentar o 
mesmo grau de dificuldade e, nessas circunstâncias, é difícil 
hierarquizar qualquer tópico com segurança. 
 
OQUE É MAIS FÁCIL DE DECIFRAR 
Antes de mais nada, é bom relembrar o que se disse 
acima a respeito das noções de "fácil" e "difícil" aplicadas ao 
estudo das letras. Trata-se de uma dificuldade 
<139> 
medida de acordo com a complexidade dos fatos de nossos 
sistemas de escrita (decifração e ortografia) e de fala (variação 
lingüística). Essas dificuldades aparecem cada vez mais à 
medida que o aluno progride nos estudos. No início, tudo é 
igualmente muito difícil. Entretanto, sabendo das dificuldades 
futuras, o professor poderá entender melhor o percurso que os 
alunos farão. 
Quando se fala em decifração, subentende-se leitura. Vamos 
separar os comentários a respeito das letras que representam 
vogais (A, E, I, O, U) das demais que representam consoantes. 
As vogais mais fáceis de decifrar são o I e o U. Sempre que se 
encontrar uma delas lê-se "i" ou "u". Igualmente fáceis são 
essas mesmas vogais quando são ou podem ser nasalizadas. 
Exemplos: JUNTO, TINTA. 
Em seguida, tratemos da vogal oral A. Essa vogal muda de 
qualidade vocálica quando se junta a ela a nasalização (note a 
diferença entre LÁ e LÃ). A letra A, quando nasalizada, pode 
gerar a formação de ditongos, juntamente com o M, ou o NH, 
como em ACHARAM, BANHA. Pode ainda ser nasalizada ou não 
quando ocorrer um M ou N ou NH no início da sílaba seguinte, 
como 
em: CAMADA, BANANA, BANHA. 
As vogais mais difíceis são o E e o O. Ambas apresentam 
regras semelhantes (mudando apenas os valores fonéticos em 
jogo). A letra E pode ser lida como "é" ou como "é" em sílabas 
tônicas (o valor fonético "é" ocorre raramente em sílabas 
átonas, e somente em palavras derivadas, como CAFEZINHO, ou 
na pronúncia especial de certos dialetos do Norte e do 
Nordeste). Exemplos: DELE, DELA, BELO, BELEZA. Em sílabas 
átonas, a letra E pode, ainda, ser lida com o som de "i". Veja os 
exemplos: FERE, "féri", EMPRESTADO, "imprêstadu". 
A letra O pode ter o som de "ô" ou de "ó" quando ocorre em 
sílaba tônica (em sílaba átona, o som de "ó" ocorre somente em 
palavras derivadas e na pronúncia de certos dialetos, 
semelhantemente à letra E). Em sílabas átonas, é comum a letra 
O ter o som de "u". Confira os seguintes exemplos: FOCA, FOGO, 
COMIDA, COZINHA. 
Todas as vogais juntas apresentam regras semelhantes 
quanto à nasalização, embora somente a vogal A mude sua 
qualidade vocálica básica ao se nasalizar. Assim, quando uma 
vogal se encontra diante de um M ou de um N, que por sua vez 
ocorre diante de outra comsoante, 
<140> 
a vogal precisa ser nasalizada: CAMPO, CANTO, ENTRE, EMBORA, 
VINDA, LIMPO, ONDA, OMBRO, JUNTO, TUMBA. Quando a vogal 
vem diante de uma consoante nasal (M, N, NH), a qual, por sua 
vez, ocorre diante de outra vogal, a vogal precedente pode 
nasalizar-se ou não. Se ocorrer diante de NH pode ditongar-se ou 
não: CAMA, CANA, BANHA, PENA, LENHA, LEME, VIME, CINEMA, 
VINHO, ZONA, COMA, SONHA, UNA, UMA, UNHA. 
Em final de palavra, as vogais E e I, quando seguidas de M, 
podem ditongar-se com "i", e a consoante nasal pode ser um 
"nh" na fala. Por outro lado, as vogais O, U e A, quando seguidas 
de M, em final de palavra, podem ditongar-se com "u", e a 
consoante nasal pode ser uma velar, como nos seguintes 
exemplos: VEM, VIM, ALGUM, BOM, ACHARAM. 
Finalmente, toda vogal com til representa um som nasalizado. 
Porém, na escrita o til só pode ocorrer sobre A e O, como em: LÃ, 
MÃE, CIDADÃOS, LEÕES, PÕEM, etc. 
Com relação às consoantes que são mais fáceis de 
decifrar, podem-se ter três grupos. Primeiro grupo: H e 
os dígrafos CH, LH, NH, mais Ç e J. Segundo grupo: P 
B, T, D, F e V. Terceiro grupo: L e Z. 
Com relação ao primeiro grupo, a letra H só ocorre em início 
de palavra e aí não tem som algum (é preciso começar a 
decifração pela vogal que vem logo depois). Exemplos: HORA, 
HINO, HÁBITO, HERÓI. Como parte de um dígrafo, modifica o 
som da letra que a precede, mas resulta num valor fonético de 
fácil controle pelo falante ("chê", "lhê" e "nhê"). Exemplos: 
CHINA, PALHA, VENHA. A letra Ç tem sempre o som de "çê", e a 
letra J tem sempre o som de jê". Exemplos: MAÇÃ, POÇO, JOVEM, 
AJUDAR. 
As letras do segundo grupo representam valores fonéticos 
fáceis quando ocorrem em início de sílaba. Em final de sílaba, 
são pronunciadas com um "i" optativo. Apresentam maior 
dificuldade quando são a primeira letra de grupos consonantais 
terminados em R ou L (ou mais raramente S). Exemplos: POTE, 
BOLA, TATU, DADO, FACA, VACA, OBJETO, RITMO, ADVOGADO, 
TRABALHO, BROTAR, LIVRO, FRANGO, etc. 
No terceiro grupo, estão as letras L e Z em início de sílaba. 
Nesse contexto, a letra L tem sempre o som de "lê", e a letra Z 
tem sempre o som de "zê". Em final de sílaba, a letra L tem o 
som de "u", e a letra Z, de "çê". A 
<141> 
letra L apresenta certa dificuldade quando ocorre formando 
grupos consonantais, ou seja, entre uma consoante e uma vogal, 
na mesma sílaba. 
 
O QUE É MAIS DIFÍCIL DE DECIFRAR 
Podemos agrupar as maiores dificuldades de decifração das 
consoantes em seis grupos. Primeiro grupo: letra C e grupos 
consonantais SC, XC; segundo grupo: 
S; terceiro grupo: G e os dígrafos GU e QU; quarto grupo: R (o 
dígrafo RR é de fácil leitura); quinto grupo: os casos de juntura 
intervocabular envolvendo R, S, Z e M; e sexto grupo: X e os 
dígrafos XC e XÇ. 
Com relação ao primeiro grupo, a letra C tem o valor fonético 
de "çê" diante de E, I ou de outra consoante, como no caso dos 
dígrafos SC, SÇ ou XC. Nos demais casos, tem o som de "kê" 
(diante de A, O, U ou de outra consoante). Exemplos: CEBOLA, 
CIDADE, NASCIMENTO, NASÇA, EXCEÇÃO, CABANA, COR, CRISE, 
CLARO, TÉCNICA. 
Quanto ao segundo grupo, a letra S tem o som de "çê" no 
início de palavra, depois de consoante e no dígrafo SS, como em 
SAPO, SELVA, PSICOLOGIA, PASSO Entre duas vogais, tem o som 
de "zê". Exemplo: MESA. A letra S não representa som nos 
dígrafos SC, SÇ e na forma de plural de certas palavras, em 
certos contextos, em alguns dialetos (cf. "as casas amarelas 
foram vendidas"). Em alguns dialetos, a letra S, em final de 
sílaba, tem o som de "çê", mas, em outros, tem o som de "chê". 
Nesse caso, se houver uma consoante sonora no início da sílaba 
seguinte, no meio da palavra, a letra S pode ter os valores 
sonoros correspondentes nos dialetos mencionados acima, ou 
seja: "zê" e "jê". Confira os exemplos: 
BESTA, COSTA, DESDE, MESMO, SATANÁS, TOMÁS. 
Com relação ao terceiro grupo, a letra G é semelhante à letra 
C: diante de E e de I tem um tipo de som ("jê") e, diante de 
outras letras, tem outro tipo de som ("guê"). Os grupos de letras 
GU e QU podem ser dígrafos ou não. Só são dígrafos diante de E 
e de 1 e nunca diante de outra vogal (A, O e U. No entanto, em 
algumas palavras, os grupos GIJ e QU não são dígrafos, uma vez 
que o U é pronunciado.Somente o falante nativo sabe se o u é 
pronunciado ou não numa determinada palavra. Não há regras. 
Exemplos: GENTE, GIRAFA, GARRAFA, GULOSO, GOTA, GLÓRIA, 
GRAÇA, IGNORAR; 
<142> 
dígrafos: GUERRA, GUIMARÃES, QUENTE, ANIQUILAR, AQUI, 
AQUELE; não-dígrafos: AGÜENTAR, SAGÜI, LÍQÜIDO, 
FREQÜENTE. 
O quarto grupo é o formado pela letra R (o RR é de fácil 
decifração — tem como única dificuldade a variedade de sons em 
diferentes dialetos). O R representa o som do tepe (vibrante 
simples) quando está entre duas vogais, e representa o som da 
fricativa velar (ou da vibrante múltipla) quando está em início de 
palavra. Acontece que esse segundo valor fonético é típico do RR 
em posição intervocálica, motivo da confusão que alguns alunos 
fazem com as duas formas de escrita. Nos outros contextos, a 
variação é menos problemática (final de sílaba, por exemplo). É 
preciso levar em conta, ainda, o fato de o R em final de verbos 
não ser pronunciado em certos dialetos ou em certos registros 
de fala (fala informal). Em todos os casos, soma-se ainda a 
grande variedade de sons foneticamente possíveis nos vários 
dialetos, sem contar a ocorrência ora de uma pronúncia vozeada 
(sonora), ora desvozeada (surda). Exemplos: CARO, CARRO, 
MURO, MURRO, RATO, RIO, RUA, BRASIL, POBRE, CRAVO, 
PORTA, CERTO, MAR, PLANTAR, FERIR. 
O quinto grupo refere-se aos casos de juntura intervocabular 
envolvendo R, S, Z e M. Juntura significa ligar uma palavra com 
outra na fala. Quando escrevemos, separamos as palavras com 
um espaço em branco, mas, quando falamos, não é isso o que 
acontece. Não há uma pequena pausa entre uma palavra e outra; 
pelo contrário, o que ocorre mais freqüentemente é a ligação de 
uma palavra com outra como se ambas fossem uma coisa só. Em 
português, além disso, costumam ocorrer algumas modificações 
quando certas palavras se juntam. 
Vamos ver uma série de exemplos, mostrando qual a 
pronúncia quando duas palavras se juntam: 
 
Palavras isoladas Palavras 
concatenadas 
casa amarela (1) casamarela 
está aqui (2) estáqui 
fala alto (3) falaálto 
está alto (4) estáalto 
parte azul (5) parteazul 
carro azul (6) carroazul 
todo ódio (7) todoódio 
está infeliz (8) estáinfeliz 
compre ovo (9) compreôvo 
<143> 
 
No primeiro exemplo, quando se juntam dois "as", um deles 
cai, o mesmo acontecendo com o exemplo número dois. Porém, 
nos exemplos 3 e 4, houve o encontro de dois "as" mas nenhum 
deles caiu. Será que existe alguma regrinha para esses casos? 
Vamos ver que tipo de sílaba ocorre nesses contextos. No 
exemplo 1, têm-se uma sílaba átona final e uma sílaba átona 
inicial. No exemplo 2, ocorre uma sílaba tônica final, seguida de 
uma sílaba átona inicial. No exemplo 3, tem-se uma sílaba átona 
final, seguida de uma sílaba tônica inicial. No exemplo 4, 
ocorrem duas sílabas tônicas. 
Considerando apenas o exemplo 1, não se sabe qual vogal 
deixou de ser pronunciada. O exemplo 2 é de difícil análise. 
Porém, nos exemplos 3 e 4, nota-se que a vogal tônica 
permanece sempre, e que a vogal átona mantém-se apenas 
quando é final da palavra e a seguinte começa com vogal tônica, 
como no exemplo 3. Podemos formular agora uma regra: em 
juntura intervocabular, a segunda vogal cai se for idêntica à 
primeira em sua qualidade, e se for, além disso, átona. Essa 
regra inclui todos os exemplos estudados. 
O que acontece, porém, quando se juntam duas vogais de 
qualidades diferentes? Vejamos os exemplos de 5 a 9. Nota-se 
que, no contexto de juntura, formam-se ditongos crescentes (o 
final do ditongo é mais saliente do que o inicio). E isso ocorre 
independentemente da qualidade das vogais e da tonicidade que 
elas apresentam, como mostram esses exemplos. 
Fez-se uma análise mais completa do fenômeno para 
evidenciar, mais uma vez, como refletir sobre as relações entre 
fala e escrita. Do ponto de vista da decifração e da escrita, a 
dificuldade dos alunos é maior no caso da juntura que provoca a 
queda de alguma vogal. Envolve também algumas dificuldades 
com a segmentação, nos demais casos, uma vez que as sílabas 
se fundem, com a formação dos ditongos. A dificuldade mais 
comum que os alunos enfrentam, encarando o problema por 
outro ângulo, é saber se devem ou não escrever o artigo "a", em 
contextos de juntura com outra vogal precedente (ou, mais 
raramente, subseqüente). Por exemplo, é comum alguns alunos 
omitirem o artigo em expressões como "toda a família". Confere, 
ainda, "toda a amizade", em que caem dois "as" na fala, mas não 
na escrita. 
Em alguns casos, a presença do artigo não é obrigatória, mas 
muda levemente o significado da frase, como em: "comprava a 
cebola por quilo e a banana a dúzia" em confronto com 
"comprava cebola por quilo 
<144> 
e banana a dúzia". No primeiro caso, o falante quer marcar uma 
oposição, no segundo caso, apenas enumera fatos. 
Com relação à decifração, a maior dificuldade dos fenômenos 
de juntura intervocabular acontece quando, em final de palavra, 
há uma consoante e, no início da palavra seguinte, uma vogal. 
Nesses casos, a consoante final junta-se à vogal inicial, 
formando uma sílaba única e dificultando, assim, o trabalho de 
segmentação da fala. 
Pior ainda é o fato de haver mudanças muito significativas na 
qualidade fônica dos elementos envolvidos. Por exemplo, uma 
letra R em final de palavra tem o som de RR (cujo valor fonético 
varia de dialeto para dialeto, como já se viu antes). Porém, 
quando se encontra em juntura intervocabular, o R tem o som da 
vibrante simples (tepe) e não da vibrante múltipla (RR). 
Concluindo, troca-se o som de RR por R, como se pode ver nos 
exemplos a seguir: MAR ALTO, VIR AQUI, POR ALI, CARÁTER 
AGRESSIVO, etc. 
Quando o aluno analisa sua fala contínua, encontra um tipo de 
som, mas, depois que a segmenta, depara-se com outro, 
pronunciando a palavra isoladamente. Isso costuma causar 
dificuldades sérias para alguns alunos, no início. O professor 
precisa explicar ao aluno que a fala funciona de um jeito e a 
escrita, de outro. A escrita funciona como se as palavras 
ocorressem sempre isoladas. 
Fato semelhante é o caso do S ou Z em final de palavra e vogal 
no início da palavra seguinte, em juntura. As letras S ou Z, 
nesses casos, têm sempre o som de "zê", independentemente do 
dialeto. Porém, quando o aluno segmenta e vai analisar a palavra 
isoladamente, descobre que o som mudou de "zê" para "çê" ou 
"chê". Veja os exemplos: CASAS AMARELAS, TRÊS AMIGOS, DEZ 
AMIGAS, RAPAZ INFELIZ, etc. 
Em final de palavra, quando ocorre M e a palavra seguinte 
começa por vogal, a nasal pode formar a sílaba independente 
com a vogal seguinte. Nesse caso, se a nasal for precedida por I 
ou E, ocorre uma consoante nasal palatal ("nhê"); se o M for 
precedido por outra vogal, ocorre uma consoante nasal velar. 
Veja os exemplos: VEM AQUI, VIM AQUI, HOMEM AMARELO, 
VIERAM AQUI, RUM AMARGO, BOM AMIGO, etc. A mesma regra 
aplica-se quando, mesmo não havendo a letra M na escrita, 
ocorre uma vogal nasal no final de palavra, em juntura 
intervocabular. Observe os seguintes 
<145> 
exemplos: MÃE INFELIZ ("mãi-nhi-fe-liç"), IRMÃ INFELIZ ("ir- 
mã-rji-fe-liç"), PÕE AQUI ("põi-nha-ki"), etc. 
Como se disse, essa regra, diferentemente da regra 
estabelecida para o R e o S, o Z é opcional. Isso significa que, em 
vez da consoante nasal indicada para a fala, pode não ocorrer 
nenhuma consoante nasal, permanecendo apenas sílabas 
diferentes, de acordo com a forma de cada palavra. Assim, os 
exemplos acima, poderiam ser ditos da seguinte maneira: "véi-a- 
ki", "vi-é-rãua-ki", "bõu-a-mi-gu", "ir-mã-i-fe-liç","põi-a-ki", 
etc. 
Aqui também a variação entre escrita e fala traz dificuldades 
para o aprendiz, sobretudo quando ele se depara com esses 
fatos pela primeira vez. Uma simples explicação, contudo, é 
quase sempre suficiente para que o aluno perceba como deve 
agir perante a fala e a escrita. A falta de explicação, no entanto, 
pode deixar algumas crianças num impasse ou em sérias 
dificuldades, não entendendo por que as palavras variam tanto e 
quais são as regras que regem as variações. Mesmo que o aluno 
não as aprenda, o simples fato de ouvir uma explicação significa 
para ele que se trata de uma questão difícil, que ele aprenderá 
mais tarde. Sem nenhuma explicação, o aluno procurará uma e 
acabará confuso, julgando-se incapaz de aprender. 
O último grupo de dificuldades de decifração da escrita 
proposto anteriormente é aquele que se refere ao X e aos 
dígrafos XC e XÇ. A letra X tem o som de "chê" no início de 
palavra, o que torna sua leitura fácil, nesse contexto. Em final de 
palavra, tem o som de "kç" ou "kch", dependendo do dialeto: 
TÓRAX, PIREX, LATEX, etc. Quando ocorre em final de sílaba, no 
meio da palavra, a letra X tem o som dc "çê" ou de "chê", 
dependendo do dialeto: EXTRA, EXPLICAR, etc. Aqui, pode haver 
uma ditongação da vogal anterior quando se trata do som de "ê", 
como cm: "eichplicarr" (EXPLICAR). O mesmo acontece com os 
dígrafos XC e XÇ: EXCEÇÃO ("eçeçãu", "eichçeçãu"). Porém, não 
ocorre uma pronúncia como "echçeçãu". 
A maior dificuldade com a decifração da letra X ocorre quando 
ela representa uma consoante em início de sílaba e ocorre em 
contexto intervocálico, como nos seguintes exemplos: VEXAME, 
EXAME, PROXIMO, FIXO, etc. Como temos dito várias vezes, 
quando o leitor se encontra diante de casos assim, saber as 
relações entre letras e sons resolve o problema da decifração só 
em parte. Para chegar à conclusão final, deverá lançar mão de 
outro expediente, que consiste 
<146> 
em decifrar o que for possível e checar se o resultado obtido 
produz uma palavra da língua portuguesa. Se não produz, 
ocorreu algum equívoco nas relações entre letras e sons. Se 
produz, ainda assim é preciso checar o contexto em que a 
palavra se insere para saber se ela está correta. Por exemplo, 
alguém vai tentar ler a palavra FIXA na frase "a etiqueta estava 
fixa no caderno". Como o X entre vogais pode ter o som de 
"chê", uma leitura possível seria "ficha". Porém, confrontando 
com o contexto, o aluno percebe que a palavra que ele descobriu 
não faz sentido ali. Deverá procurar então uma outra alternativa. 
Sabe-se que entre vogais a letra X pode ter ainda o som de "kç". 
Portanto, a leitura é "fikça" e o texto adquire seu sentido 
correto. 
Finalmente, deve-se destacar que as dificuldades de 
decifração apresentadas acima levam em consideração o fato de 
se usar a leitura como uma forma de aprendizagem e o emprego 
da norma culta em sala de aula. Porém, na realidade individual 
de cada aluno, sobretudo quando ele está lendo sozinho, a 
passagem da escrita para a leitura o conduz de maneira natural 
à fala do seu dialeto. Nesse caso, as diferenças entre escrita e 
fala aumentam, dependendo da variedade lingüística em uso, 
podendo trazer dificuldades sérias para alguns alunos. 
 
OQUE É MAIS FÁCIL DE ESCREVER 
Existe uma diferença notável entre a decifração da escrita e a 
produção de escrita com relação ao que é mais fácil ou difícil. 
Alguns casos são de fácil decifração, mas apresentam 
dificuldades sérias na escrita. As dificuldades referem-se ao fato 
de haver mais de uma possibilidade de escrita, em princípio, ou 
de a forma lexical de uma palavra, na fala, ser diferente da 
forma escrita, em geral, por causa da variedade lingüística do 
aluno. 
Para o professor e para o aluno, é interessante e útil fazer um 
levantamento desses casos, já que essa também é uma maneira 
de ensiná-lo a decifrar a escrita e a escrever sem o bá-bé-bi-bó- 
bu. Vamos começar fazendo um levantamento do que é mais fácil 
de escrever. Esse é um estudo das relações entre sons e letras 
(da fala para a escrita) e não entre letras e sons (da escrita para 
a fala). 
<147> 
De modo geral, é fácil escrever quando ocorrem os casos de: 
P/B, T/D, F/V É curioso, pois os professores dizem que é 
justamente nesses casos que ocorrem as famosas trocas de 
letras, ou seja, quando os alunos escrevem P em vez de B, F em 
vez de V e T em vez de D. A explicação mais comum é que as 
crianças cometem essas trocas de letras porque têm dificuldades 
auditivas para distinguir sons sonoros de surdos. Essa afirmação 
não faz sentido, porque analisando tudo o que as crianças fazem, 
logo se percebe que elas usam sons surdos e sonoros, em outras 
situações, sem a menor dificuldade (lembrar que as vogais são 
sonoras, assim como as laterais; as vibrantes podem ser sonoras 
ou surdas, assim como as fricativas...). 
Um aluno pode trocar letras pelo simples fato de sussurrar os 
sons das palavras que escreve e, assim, produzir uma fala sem 
sons sonoros, razão pela qual acaba concluindo que precisa 
escrever as letras "surdas" e não as "sonoras". 
Mais complicado é o caso de pessoas que não fazem essa 
distinção na fala (por exemplo, os imigrantes poloneses). Nesses 
casos, o aluno precisa se guiar pelo significado para escrever 
uma letra ou outra. Então, sempre que achar que precisa 
escrever F, deverá levantar a hipótese de ter de escrever 
também V. A decisão final será tomada em função do significado 
e da ortografia. Assim, se ele pretende escrever "vaca" e pensa 
em F para a primeira letra, deve comparar as duas formas: 
FACA e VACA. Em seguida, começa a aprender que a escrita com 
F refere-se à ferramenta e a escrita com V refere-se ao animal. 
Será mais dificil quando não houver um par mínimo. Por 
exemplo, se o aluno for escrever "livro", irá comparar as duas 
possibilidades: LIFRO e LIVRO. Nesse caso, como a troca de V 
por F não muda o significado, a única solução é o aluno decorar a 
ortografia. 
Passando a outros casos, constata-se que é mais fácil escrever 
o som de "zê" no início de palavra, porque a única letra que 
representa este som nesse contexto é o Z. 
É claro que o aluno principiante está pensando em geral nas 
relações entre letras e sons fora dos contextos. Por isso, esse 
exercício complementa as informações de que ele precisa para 
aprender. Em outras palavras, ele pode achar que o som de "zê" 
também pode ser escrito com X (EXAME) ou com S (CASA). Pode, 
então, chegar à conclusão de que ZEBRA é escrita como 
<148> 
XEBRA ou SEBRA. Porém, ao estudar a distribuição dos sons e 
das letras no contexto da palavra, o aluno vai aprender algumas 
regrinhas: neste caso, que o som de "zê" em início de palavra só 
pode ser escrito com a letra Z. Essa regra então resolve uma 
dificuldade e ajuda o aluno. 
Outros casos: o som de "lê" em início de sílaba é fácil de 
transpor para a escrita: LATA, LADO, LIVRO, etc. Quando faz 
parte de grupos consonantais, pode ser fácil se, na fala do aluno, 
ocorrer a consoante lateral e não a vibrante, como em: PLANTA, 
GLÓRIA, CLARO, etc. 
O mesmo vale para os sons "mê", "nê" e "nhê", em início de 
sílaba: MAPA, CAMA, NATA, CANA, TENHO, BANHO, etc. 
O som de "jê" só pode ser escrito com J quando a vogal seguinte 
for A, O ou U: JACA, JOVEM, JUNIOR, CORRIJO, CORUJA, HAJA, 
VIAJA, etc. 
O som de "guê" só pode ser escrito com a letra G quando a 
vogal seguinte for A, O ou U (não seguida de outra vogal): GOLA, 
GULA, GARRAFA, etc. Se for preciso escrever o som de "guê" 
seguido das vogais "ê" ou 
"i", o aluno deverá escrever a letra U entre o G e a vogal Eou I: 
GUERRA, GUIMARÃES, etc. 
O som de "kê" é um pouquinho mais difícil. Há uma tendência 
para escrevê-lo com C quando o som "kê" vem antes de A, O ou 
U (não seguido de outra vogal): 
CADA, COLAR, etc. Por outro lado, há uma tendência para 
escrevê-lo com QU quando o som de "kê" vem seguido do som 
de "u" e do som de outra vogal, como em: QUATRO, FREQÜENTE, 
INÍQUO, etc. O som de "kê" seguido de E ou de I só pode ser 
escrito com QU: QUENTE, QUINTO, etc. 
Há outros modos de ver o problema. Por exemplo, pode-se 
ensinar aos alunos que, no início de palavra, só se escreve um R, 
nunca dois: RATO, RIO, etc. Nenhuma palavra começa com Ç, 
nem com NH ou LH (exceto LHE e algumas palavras estrangeiras 
como LHAMA, NHOQUE, NHEENGATU, etc.). Do mesmo modo, não 
se escrevem palavras com certas seqüências de letras, como por 
exemplo, numa mesma sílaba, HR, TH, etc. (a não ser em 
palavras estrangeiras ou grafadas com ortografia antiga). 
Outro tipo de regra que se pode ensinar é a seguinte: as 
terminações verbais de verbos derivados escrevem-se com -IZAR 
(e não com -ISAR), como: FERTILIZAR (de fértil), UTILIZAR (de 
útil). Porém: ALISAR (de liso — se fosse "alisizar" seria com - 
IZAR). Outra regra: 
palavras derivadas que não terminam em S no singular 
<149> 
que recebem a terminação com o som de "eza" são escritas com 
-EZA. As que terminam em - s são escritas com -ESA. Exemplos: 
BELEZA (de belo), INTEIREZA (de inteiro), porém: MARQUESA 
(de marquês), INGLESA (de inglês), etc. 
Mais uma regra: os finais paroxítonos dos verbos que 
terminam com o ditongo nasal "ãu" são escritos com -AM, e os 
finais oxítonos, com - ÃO. Exemplos: FIZERAM, ESTAVAM, IAM; 
porém: ESTÃO, FARÃO, SÃO, ACHARÃO, etc. 
É relativamente fácil mostrar aos alunos que, ao encontrarem 
uma vogal nasalizada seguida de uma consoante, no meio de 
palavra, se essa consoante for P ou B (M é muito raro), a 
ortografia obriga o uso da letra M, entre a vogal e a consoante. 
Nos demais casos (consoantes diferentes de P e B), a ortografia 
obriga o uso da letra N, entre a vogal nasalizada e a consoante. 
Exemplos: CAMPO, BOMBA, CANTO, BANCO, ONÇA, INFELIZ, 
ENVIAR, ENLATADO, etc. 
Com relação às vogais, é mais fácil escrever os sons "é", "é", 
"ó", "ô", os quais, quando identificados na fala, passam a 
corresponder às letras E ou O (desconsiderando a acentuação 
gráfica). Os sons de "a" e de "â" serão escritos com a letra A 
(desconsiderando o til). Também é fácil escrever os sons de "i" e 
"ii" quando ocorrem em sílabas tônicas, porém nas sílabas 
átonas é muito difícil. 
Nesse campo, também é possível estabelecer certas regrinhas 
úteis. Por exemplo: pode-se dizer aos alunos que, ao 
encontrarem o som de "à" em final de palavra, ele será escrito 
sempre com til: LÃ, IRMÃ, ÍMÃ, TALISMÃ, etc. Se tiverem de 
escrever o ditongo "ãu" em palavras que não são verbos, usarão 
as letras -ÃO (e não -AM): IRMÃO, ÓRGÃO, ALEMÃO, etc. 
O professor não deve se preocupar se, por acaso, houver 
exceções às suas regras. Fatos novos ajudam a melhorar as 
regras ou a indicar seus limites. Por exemplo, é muito raro 
encontrar palavras em português que se escrevem com I + s + 
consoante. Em geral, quando se tem os sons de "is + consoante" 
(ou "ich + consoante", em alguns dialetos), a palavra escrita 
começa com a vogal E: ESCOLA, ESPADA, ESQUADRA, etc. Como 
exceção temos ISQUEIRO, ISTMO, ISCA... e alguns nomes de 
origem estrangeira: ISRAEL, ISLAMITA, ISLANDÊS. 
Algumas regras requerem conhecimentos gramaticais mais 
sofisticados e, por essa razão, são menos interessantes na 
alfabetização. E o caso de regras que envolvem conceitos como 
"verbo", "adjetivo", "palavras primitivas 
<150> 
e derivadas", "sílabas tônicas e átonas", "paroxítonas e 
oxítonas", etc. Às vezes, uma pequena explicação a respeito 
desses conceitos pode ajudar. Não custa o professor tentar uma 
vez para ver a reação da classe. Poderá se surpreender com o 
interesse de alguns alunos. 
 
OQUE É MAIS DIFÍCIL DE ESCREVER 
A grande dificuldade que os alunos têm para passar da 
observação da fala para a escrita reside no fato de esta não ser 
uma espécie de transcrição fonética (como, às vezes, o sistema 
alfabético nos leva a crer). Igualmente complicado é o fato de 
alguns alunos falarem dialetos, cujas palavras têm uma forma 
muito diferente da forma das palavras da norma culta, usada 
como referência mais próxima da escrita que respeita a 
ortografia. 
Essas dificuldades somente se resolvem com o tempo. 
Entretanto, o conhecimento do funcionamento da escrita, da fala 
e da leitura pode ajudar muito a se obter um bom resultado com 
esses alunos. Dentro desse quadro de preocupações, deve-se 
lembrar que uma discussão a respeito da variação lingüística 
(dialetos) e que papel a ortografia desempenha no nosso 
sistema de escrita é imprescindível e deve ser freqüentemente 
recordada pelo professor. 
A passagem da fala para a escrita apresenta algumas 
dificuldades especiais no caso de algumas letras, justamente 
pelo fato de o aluno ter de optar por uma única forma entre 
várias possibilidades. Vejam-se, a seguir, alguns casos. 
O som de "chê" pode ser escrito com CH ou com X, 
e só a ortografia pode dizer onde vai uma letra e onde 
vai outra. Os professores costumam dizer que essa é 
uma dificuldade inerente à letra X, mas na verdade é 
inerente ao X e ao CH, quando se consideram os fatos 
a partir da fala, e não da escrita. 
Notar que o som de "chê" (ou "jê") que ocorre no final de 
sílaba, em certos dialetos, será representado por S, Z ou X (X 
somente no meio da palavra), como em CASAS, RAPAZ, EXTRA, 
DESDE, etc. 
Outro exemplo tradicional é o caso da escrita da letra L, 
representando o som de "u", como parte final de alguns 
ditongos. As vezes, esse "u" é escrito com L e, às vezes, é escrito 
com U, como se pode ver nos 
<151> 
exemplos: "baudi" BALDE, "méu" — MEL, "çóu" — SOL, porém: 
"çaudadi" — SAUDADE, "mêu" — MEU, "çôu" — SOU, etc. Em 
alguns casos, é possível distinguir a forma ortográfica pelo 
significado, como em ALTO e AUTO, mas esses casos são raros e 
ajudam pouco. 
Mais um caso dificil é o som de "çê", que pode ser escrito com 
S, Ç, C (somente diante de I e E), Z (somente em final de sílaba) 
e X. Aqui também dizer que apenas a letra x é complicada 
significa ver o problema apenas pela ótica de uma letra. Um caso 
mais simples é o do som "zê", que pode ser escrito com Z, S ou 
X. Porém, em início de palavras, só se emprega a letra Z. A letra 
S tem o som de "zê" apenas entre vogais ou diante de uma 
consoante sonora. 
O som de 'jê" se confunde na escrita apenas quando está 
diante de I ou de E — quando pode ser escrito com G ou com J. 
Nos demais casos, será usado apenas o J. 
O som de "kê" apresenta dificuldade apenas diante de A, O ou 
U, quando pode ser representado por C ou por QU. Diante dos 
SONS "j" ou "e", só se escreve QU, nunca C. 
A dificuldade de escrever R ou RR não é grande. Só se usa RR, 
por oposição a R, quando o som estiver entre duas vogais. 
Nesses casos, a distinção se faz pelos valores fonéticos 
diferentes. Nos demais casos, o aluno escreverá sempre um R só. 
A dificuldade maior que o professor encontra comumente se 
relaciona com a variação lingüística e com a forma lexical de 
algumas palavras, em alguns dialetos. 
Notar que algumas diferenças de fala, na verdade, não trazem 
dificuldades para a escrita. Por exemplo, há pessoas que falam 
"tchia", "djia" e há pessoas que falam "tia" e "dia", mas esse 
tipo de variação não atrapalha a escrita (casos de distribuição 
complementar de sons no sistema fonológico). Issosignifica que 
uma pessoa que fala "drentu", "ãdãnu" pode aprender 
facilmente a escrever DENTRO e ANDANDO, mesmo sem eliminar 
sua pronúncia original. 
Como se disse anteriormente, aqui também é possível fazer 
algumas regrinhas que mostram que certas dificuldades são 
mais aparentes do que reais. Por exemplo, o som de "ksi" pode 
ser escrito com X ou com -QUE-SE. Porém, só serão escritos com 
-QUE-SE se forem verbos, cujo infinitivo apresenta o som de 
na última sílaba, como COLOCAR, SOCAR, FICAR, etc. Portanto, 
nos demais casos, a escrita será provavelmente com X. 
<152> 
Com relação às vogais, a grande dificuldade está na escrita 
dos sons "i" e "u" átonos e de alguns casos de 
vogais nasalizadas. 
Os sons de "i" e "u" átonos podem ser escritos com as letras I, 
U ou E, Q Aqui, não há regras para facilitar o aprendizado, a 
única saída é recorrer à ortografia. Deixar de lado a dúvida e 
imediatamente procurar ver com que letras determinada palavra 
é escrita. 
Apesar do que foi dito acima, o professor poderá mostrar a 
seus alunos que em certos casos é muito mais comum o uso das 
letras E e O do que I e U Considerações a respeito de "inícios de 
palavra", "prefixos", "finais de palavra" e "sufixos" podem 
revelar tais tendências. Já se falou antes, por exemplo, que 
palavras que se iniciam com o som de "chk" ou "çk", 
dependendo do dialeto, são escritas com ESC, e não de outra 
forma: ESCADA, ESPADA, ESCORREGADOR, ESCOLHER, 
ESPÍRITO, etc. 
Se o aluno conseguir perceber que certas palavras têm um 
"mesmo sufixo", e se souber como se escreve esse sufixo, 
poderá generalizar a regra e ter menos dificuldades na escrita. 
Por exemplo, vendo as seguintes palavras, constata-se que todas 
acabam com os mesmos sons (porque têm o mesmo sufixo): 
AMAVEL, TERRÍVEL, INCRÍVEL, HORRIVEL, POTÁVEL, etc. 
Exemplos semelhantes ensinam os alunos a escrever o sufixo - 
VEL. Outros exemplos, como HORROROSO, BONDOSO, FORMOSO, 
DANOSO, CURIOSO (e as respectivas formas do feminino), 
podem ajudar o aluno a escrever o sufixo -OSO, -OSA. Outro 
sufixo comum é -MENTE: INFELIZMENTE, ALEGREMENTE, 
TRISTEMENTE, PREGUIÇOSAMENTE, etc. 
É fácil explicar aos alunos que a terminação -ÃO (tônico), ou 
melhor ainda, o ditongo nasal que tem o som de "ãu" tônico se 
escreve com O e não com U. Do mesmo modo o ditongo nasal 
que tem o som de "õi" se escreve com ÕE e não com ÕI. 
Conferir: PÃO, MELÃO, FARÃO, TÃO, SIMÃO, ou PÕE, PÕEM, 
SIMÕES, LIMÕES, FERRÕES, LEÕES, etc. 
Alguns alunos falam o gerúndio, usando a terminação -NO e 
não -NDO. O professor pode aproveitar a oportunidade e explicar 
que a norma culta admite que se fale "-ndu" e se escreva -NDO. 
Portanto, em vez de escrever: ANDANO, FAZENO, FALANO, 
CORRENO, FUGINO, o aluno, ao aprender o sufixo do gerúndio, 
aprenderá a escrever também ANDANDO, FAZENDO, FALANDO, 
CORRENDO, FUGINDO, etc. 
<153 > 
Fazer um levantamento de sufixos e de rimas pode ser uma 
boa estratégia para o professor ensinar a escrever certos 
pedaços de palavras. Isso acelera o domínio da ortografia. O 
professor deve mostrar o que há de igual e o que há de diferente 
e, se possível, até mesmo a extensão dessas considerações. Esse 
procedimento tem a vantagem de ensinar não só a escrever, mas 
também a refletir sobre a linguagem em geral e a escrita em 
particular. 
Outra dificuldade séria que os alunos encontram é quanto à 
escrita da nasalidade vocálica. Escrever M, N e NH em início de 
sílaba é fácil. Porém, escrever M e N em final de sílaba traz 
muitas dificuldades para certos alunos, porque, em seus 
dialetos, eles não pronunciam essas consoantes nasais, apenas 
nasalizam a vogal precedente. Mesmo nos dialetos (em geral do 
Sul do país) em que se falam comumente essas consoantes 
nasais, é freqüente ouvir pessoas que não as falam, sobretudo 
numa fala mais rápida, menos formal. Como a norma culta não 
exige que essas consoantes nasais sejam pronunciadas, fica 
mais difícil para o professor ensinar ao aluno quando se deve 
escrevê-las. A tendência geral dos alunos é escrever as palavras 
sem nenhuma marca de nasalidade, seguindo o exemplo da 
palavra MUITO, que não leva til nem tem consoante nasal entre o 
I e o T Mas o ditongo Ul é um ditongo nasalizado. 
Com relação ao problema da nasalidade, a melhor estratégia é 
fazer uma análise da fala, escolhendo exemplos apropriados, 
propostos pelo professor e pelos alunos, para esclarecer, em 
primeiro lugar, a diferença entre ocorrências orais e nasalizadas 
de vogais e ditongos, anotando em colunas, palavras como: 
CAMA CAMPO PENTE ONÇA 
CANA BOMBA CANTA ENLUARADA 
BANHA LIMPO VINDA ENVIAR 
CATA BOBA VIDA JUTA 
CANTA BOMBA VINDA JUNTA 
OUÇA MATA A IDA CEDO 
ONÇA MANTA AINDA SENDO 
 
O uso de pares mínimos é sempre uma boa maneira de 
mostrar os contrastes e de ajudar o aluno a passar da fala para a 
escrita com mais informações. 
<154> 
Logo no início, alguns alunos apresentam alguns problemas na 
ordem das letras de algumas palavras. As inversões de letras 
representam os casos mais comuns. O professor não precisa 
preocupar-se com esse fato. Trata-se apenas de uma dificuldade 
inicial que os alunos resolvem por si mesmos. E o caso de quem 
escreve ON em vez de NO, ou mesmo TAMA em vez de MATA, ou 
ainda CESUSU em vez de SUCESSO. 
Mais complicado do que a ordem é a dificuldade que os alunos 
têm para segmentar. Aqui também a melhor estratégia é deixar 
que eles escrevam como pensam e esperar que descubram por si 
mesmos como fazer. Algumas expressões levam mais tempo 
para os alunos segmentarem corretamente. Se o professor 
perceber que alguns alunos estão demorando muito para 
segmentar expressões mais fáceis, poderá organizar algumas 
aulas com o objetivo de ensinar a segmentação. Nesse caso, 
basta usar exemplos dos próprios alunos e analisá-los com eles. 
A regra de identificação semântica (uma idéia, uma palavra) não 
ajuda muito nesse momento. Na verdade, essa regra pressupõe 
muitos outros conhecimentos, inclusive de como a escrita 
funciona. O fato de os alunos virem palavras escritas separadas 
por espaços em branco é a melhor indicação de que dispõem. Em 
último caso, dizer sempre que se deve escrever junto ou 
separado isso ou aquilo porque é assim que a ortografia 
estabeleceu. Portanto, quem tiver dúvidas, não adianta ficar 
pensando sozinho: é preciso perguntar a quem sabe ou procurar 
no dicionário. 
 
A DIFÍCIL ARTE DE LER 
E DE ESCREVER 
Como se pôde ver nos estudos das letras, as relações entre 
letras e sons são muito complexas. Isso explica por que decifrar 
e escrever o nosso sistema de escrita é uma tarefa que exige 
muito conhecimento. Ficou claro também que as relações entre 
letras e sons não são exatamente as mesmas das relações entre 
sons e letras. Resumindo, para ler, são necessários alguns 
conhecimentos e, para escrever, além dos relacionados à leitura, 
são necessários conhecimentos complementares. Isso mostra, 
ainda, que é melhor 
<155> 
começar o processo de alfabetização ensinando o aluno a 
decifrar a escrita e a ler, do que a escrever, como faz 
tradicionalmente o método das cartilhas. Depois que o aluno 
aprendeu um pouco a ler, pode ir tentando escrever, mas, se 
misturar as duas coisas, acabará com sérios problemas de leitura 
e, pior ainda, de escrita. 
Uma decorrência das reflexões acima expostas é a consciência 
que o professor deve ter de que para ler e para escrever são 
necessários inúmeros conhecimentos, alguns complexos. Muitas 
vezes, a cartilha e o professor ensinam muito pouco ao aluno e 
cobram dele um resultado injusto. 
Um aluno aprende umas poucaspalavras-chave, umas poucas 
famílias de sílabas geradoras, e a regra insistente de que ele 
deve observar a própria fala (ou a do professor) para escrever. 
Soma-se a isso a expectativa de que aprendendo a escrever 
aprenderá automaticamente a ler. Além de essa ser uma forma 
muito complicada de ensinar a ler e a escrever, é incompleta e, 
por essa razão, pode não ser suficiente para dar os subsídios 
necessários para os alunos resolverem seus problemas. 
Alguns alunos resolvem suas dificuldades por conta própria, 
não levando muito a sério algumas coisas que ouvem na sala de 
aula, e procurando as informações complementares que nem a 
cartilha nem o professor forneceram. Outros tentam aplicar ao 
pé da letra e à risca as regras que são apresentadas, e mais nada 
(porque o aluno só faz o que o professor manda, senão aprende 
errado...), e acabam sem saída. Então, vêem seus colegas que já 
encontraram uma saída, que fazem coisas certas, enquanto eles 
fazem tudo errado. Esses alunos acabam entrando em pânico e 
causando muitos problemas para si, para o professor, para a 
escola, para o governo e para os pais. 
Nessa situação, encontramos alunos que, seguindo a cartilha e 
a regra de observar a própria fala a fim de escrever, fazem o 
seguinte: ao tentar escrever uma palavra simples como PAI, a 
primeira coisa que fazem é falar e observar. Dizem "pai-paaaaa" 
e escrevem o A porque detectaram o som de "a". Depois, falam: 
"paiaaaa-iiii" e reconhecem o ditongo e escrevem AI. Voltando à 
fala, repetem: "pa-pa-pa-ii" e escrevem PA, que é da família do 
pá-pé-pi-pó-pu, e sempre se deve escrever essas coisas, como se 
aprende com as palavras-chave. O resultado final é: AAIPA. 
<156> 
CAGLIARI, 1997c. > 
Muitas pessoas, vendo as crianças escreverem coisas assim, 
em vez de estudar por que isso acontece, analisam a questão 
apenas superficialmente, dizendo que elas não sabem escrever, 
que escrevem de qualquer jeito, que não têm direção certa para 
colocar as letras e não aprendem porque escreveram "aaipa" e 
dizem que escreveram "pai", numa clara evidência de que têm 
problemas de aprendizagem, certamente de fundo psicológico ou 
neurológico. 
A incompetência desses profissionais é um crime contra as 
crianças. A criança simplesmente fez o que o professor mandou. 
Ela simplesmente ainda não dispunha das informações 
necessárias para escrever de outro modo. Para o professor, 
parecia claro e evidente que "pai" se diz "pai" e se escreve PAI, 
porque ele, professor, já sabe muito mais do que a simples 
regrinha de "escreva observando a fala". O pior disso tudo é a 
preocupação do professor com o aluno que escreve AAIPA. Para 
que um aluno que escreve assim possa superar sua dificuldade, 
tem de deixar de lado algumas das explicações mais comuns e 
enfáticas que o professor dá. Nem todos os alunos conseguem 
superar essa barreira, porque acreditam demais nos professores. 
Mas tudo tem limite. Depois de um certo tempo sem obter 
resultados, alguns alunos começam a duvidar de si, do professor, 
da escola e transformam a própria vida num dilema. Muito 
freqüentemente, antes que isso aconteça, o aluno já deve ter 
passado por outra experiência traumatizante, ao ser colocado 
numa classe especial, com colegas que também não conseguem 
aprender. Essas classes são portas fáceis para os alunos 
abandonarem a escola e os estudos, principalmente numa escola 
pública. 
 
A AÇÃO DO PROFESSOR 
O professor deverá explicitar aos seus alunos como se faz para 
ler e, ao realizar essa tarefa, deverá tratar das relações entre 
letras e sons na leitura e na escrita. 
O professor não deverá explicar tudo o que consta no estudo 
das relações entre letras e sons (Apêndice). Para o aluno 
começar a ler e a escrever, alguns conhecimentos são 
prioritários e outros vão ser adquiridos com o tempo. A respeito 
das relações entre letras e sons, é mais importante ensinar ao 
aluno como aprender, 
<157> 
do que ficar analisando detalhadamente letra por letra, caso por 
caso. Ao estudar uma determinada letra, por exemplo A ou G, o 
professor irá abordar alguns aspectos, deixando outros para 
depois. Ele voltará muitas vezes a falar no assunto, e algumas 
observações serão feitas somente quando houver razão para 
isso, ou porque um aluno perguntou ou porque se tornou 
necessário para corrigir um erro, ou até mesmo por curiosidade. 
Mantendo uma prática regular de análise do processo de 
decifração com os alunos, os conhecimentos vão se sofisticando 
à medida que os alunos aprendem mais a respeito da leitura e da 
escrita. E importante deixar os alunos tomarem a iniciativa de 
refletir sobre os fenômenos que estudam, porque sozinhos 
também chegam a resultados interessantes e até 
surpreendentes. Os conhecimentos passados já adquiridos 
servem de apoio para o desenvolvimento de novos 
conhecimentos. Assim funciona o processo de aprendizagem. O 
ensino nada mais é do que a criação das condições adequadas 
para que a aprendizagem aconteça. 
Em geral, não vale a pena o professor ficar explicando 
questões que são muito complexas. Essas explicações servem 
para uma análise lingüística, mas já não são tão interessantes 
para a alfabetização. As crianças acabam aprendendo a decifrar 
e a escrever muito mais tranqüilamente através de umas poucas 
regrinhas e praticando a leitura e a escrita, do que através de 
explicações muito complicadas. O professor precisa ter bom 
senso para avaliar a situação. Se os alunos quiserem saber algo 
que exige uma explicação técnica muito sofisticada, o professor 
pode dar uma explicação mais elaborada, mesmo que os alunos 
não compreendam bem o alcance e a profundidade do que ele 
diz. É melhor ouvir uma explicação correta, mesmo que difícil, do 
que uma mentira, um erro ou uma explicação que deverá ser 
abandonada logo adiante. 
Um roteiro de idéias gerais para começar uma discussão pode 
levar em conta os tópicos: 
 
Quando se vai ler. 
1. Usamos o nome das letras para saber que som a letra tem: a 
letra A tem o nome de a e o som de "a". A 
letra C tem o nome de cê e o som de "çê". 
2. Uma letra pode ter mais de um som, representando sons 
diferentes. A classe vai aprender isso aos poucos. Por enquanto, 
é só não estranhar se isso acontecer. 
<158> 
3. A letra A também tem o som de "ã". 
4. A letra C tem o som de "çê" somente quando vier antes das 
letras I e E. Nos demais casos (diante de A, O, U, R, L ou de 
qualquer outra consoante), terá o som de "kê". 
 
Quando se vai escrever: 
1. Em primeiro lugar, é preciso descobrir a palavra, isolando-a 
da frase. 
2. Depois, é preciso saber a ordem das sílabas na palavra. 
3. É preciso descobrir as vogais e consoantes que formam as 
sílabas e em que ordem. 
4. Para cada segmento (vogal/consoante), é necessário 
escrever uma letra, partindo dos conhecimentos adquiridos, no 
caso da leitura. 
5. Ficar atento aos problemas causados pela variação 
lingüística: quem é falante do dialeto padrão tem um tipo de 
dificuldade e quem é falante de outros dialetos tem outro tipo de 
dificuldade. 
6. Checar o que se escreveu com a forma gráfica das palavras de 
acordo com o estabelecido pela ortografia, ou seja, aprender a 
ter dúvidas ortográficas inteligentes. 
7. Resolver as dúvidas ortográficas, perguntando a quem sabe 
ou olhando no dicionário. 
 
Com esse conjunto de informações específicas sobre as 
relações entre letras e sons, mais o estudo de uma meia dúzia de 
outras letras e noções básicas sobre a escrita, vistas 
anteriormente, o professor terá um aluno que já sabe bastante e 
que até pode se arriscar a escrever algumas palavrase pequenas 
frases. Este é o segredo da alfabetização. Um trabalho como esse 
não leva mais de dois meses e, após esse tempo, o professor 
constata que seus alunos já sabem ler e escrever, certamente 
com muita dificuldade, mas já sabem o que devem fazer para 
progredir, porque o segredo já foi aprendido. A perfeição virá 
com o tempo e com muito trabalho tanto por parte do professor 
como do aluno. 
Existe uma grande diferença na prática de ensino que 
distingue a competência do professor do conteúdo da matéria 
que ele ensina. Todos esses conhecimentos detalhados e 
explícitos a respeito da fala, escrita e leitura fazem parte da 
competência técnica do professor. Será daí que ele irá tirar os 
conteúdos daquelas 
<159> 
matérias que ensina, O que ele vai tirar, como vai apresentar e 
quando ensinar são coisas que ele deve julgar e resolver, 
levando em conta as circunstâncias. É por isso que se disse que, 
quando o professor é de fato competente, ele sabe o que 
ensinar, como ensinar e quando ensinar. Se ele não tem essa 
competência técnica, a única saída é usar um método 
preestabelecido como o bá-bé-bi-bó-bu, ou um livro guia como a 
cartilha, levando para sua prática, juntamente com os problemas 
que esses métodos têm, sua incompetência de modo velado ou 
aberto. 
 
APRENDENDO A ESTUDAR 
O esforço dispendido na análise das letras do alfabeto é um 
bom exercício de reflexão sobre o funcionamento do nosso 
sistema de escrita com relação ao seu aspecto alfabético, 
ortográfico e sobre as características fonéticas mais importantes 
que essas letras representam. Somente de posse desses 
elementos uma pessoa pode decifrar algo escrito e ler um texto. 
Todos nós, como usuários familiarizados com o sistema de 
escrita, sabemos como proceder para decifrar a escrita, mas 
comumente lemos e escrevemos sem explicitar, a cada instante, 
as regras que permitem que façamos isso. Agimos 
automaticamente, guiando-nos, como convém, pelo fluir do 
texto, acompanhando as idéias que queremos expressar ou que 
vamos descobrindo à medida que a leitura prossegue. Ou seja, 
acontece com as atividades de leitura e de escrita algo 
semelhante ao que acontece quando falamos: precisamos de 
toda a gramática, de todo o vocabulário disponível, de todos os 
mecanismos articulatórios de produção de fala, mas não ficamos 
pensando nessas coisas. Quando falamos, simplesmente usamos 
esses conhecimentos interiorizados para guiar a expressão 
lingüística do pensamento. 
Assim como um lingüista precisa saber explicitar as regras da 
linguagem para poder entendê-la, analisá-la e formar a ciência 
da linguagem, assim também o professor de alfabetização 
precisa saber explicitar todos os conhecimentos necessários 
para que alguém possa ler e escrever e se alfabetizar. O grande 
problema dos nossos professores, acostumados com a cartilha, 
está 
< CAGLÍAR1, 1996h. 
<160> 
 
em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos. 
Desse modo, acabaram deixando de lado a própria reflexão 
sobre a matéria que lecionam. É fundamental e imprescindível 
que o professor alfabetizador saiba analisar qualquer fato que 
aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e 
saiba interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim, 
saberá também conduzir com tranqüilidade e competência o 
processo de ensino (que depende do professor) e o processo de 
aprendizagem (que depende do aluno, mas que necessita do 
professor como mediador e guia). 
O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para 
alguém ler em nosso sistema de escrita é um exercício que não 
se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no 
Apêndice. Uma tarefa como essa tem como objetivo apenas 
ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver 
a sua argumentação diante dos fatos observados, chegando a 
regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor 
desenvolver esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela 
frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo 
terá uma poderosa ferramenta de trabalho: 
sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos 
precisará de conselhos, recomendações, subsídios, métodos e 
livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu 
trabalho e aconteça o que acontecer em termos de leitura e de 
escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá- 
los a descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita, 
enfim, a se alfabetizarem, O tempo, o programa predeterminado, 
o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora 
pedagógica...), tudo isso torna-se irrelevante: o que conta é seu 
trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor 
irá pouco a pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos 
estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a 
escrever. 
Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e 
expandir-se e, quanto mais longe for, melhores condições trará a 
tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os 
alunos a analisar fatos, a refletir, a tirar conclusões, a formular 
regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais 
detalhadas e abrangentes, não estará ensinando aos seus alunos 
apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e 
principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de 
<161> 
em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos. 
Desse modo, acabaram deixando de lado a própria reflexão 
sobre a matéría que lecionam. É fundamental e imprescindível 
que o professor alfabetizador saiba analisar qualquer fato que 
aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e 
saiba interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim, 
saberá também conduzir com tranqüilidade e competência o 
processo de ensino (que depende do professor) e o processo de 
aprendizagem (que depende do aluno, mas que necessita do 
professor como mediador e guia). 
O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para 
alguém ler em nosso sistema de escrita é um exercício que não 
se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no 
Apêndice. Uma tarefa como essa tem como objetivo apenas 
ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver 
a sua argumentação diante dos fatos observados, chegando a 
regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor 
desenvolver esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela 
frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo 
terá uma poderosa ferramenta de trabalho: 
sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos 
precisará de conselhos, recomendações, subsídios, métodos e 
livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu 
trabalho e aconteça o que acontecer em termos de leitura e de 
escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá- 
los a descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita, 
enfim, a se alfabetizarem. O tempo, o programa predeterminado, 
o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora 
pedagógica...), tudo isso torna-se irrelevante: o que conta é seu 
trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor 
irá pouco a pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos 
estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a 
escrever. 
Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e 
expandir-se e, quanto mais longe for, melhores condições trará à 
tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os 
alunos a analisar fatos, a refletir, a tirar conclusões, a formular 
regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais 
detalhadas e abrangentes,não estará ensinando aos seus alunos 
apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e 
principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de 
<161> 
estudar, de investigar. Os resultados deverão ser considerados 
muito importantes (e imprescindíveis). Para o educador, durante 
a formação de seus alunos, mais importante do que os 
resultados é a formação de bons hábitos de estudo. A cartilha 
tira a iniciativa do aluno de pensar, refletir, pesquisar e chegar a 
conclusões. Se o professor, abandonando o método do bá-bé-bi- 
bó-bu, conduzir um processo de ensino e de aprendizagem, 
refletindo junto com seus alunos, depois de certo tempo, seu 
trabalho de mediador torna-se muito reduzido, uma vez que seus 
alunos saberão como estudar o que não sabem. Muitas vezes, os 
professores preocupam- se tanto com notas, com resultados 
positivos em testes e provas, que acabam se esquecendo de que 
é muito mais importante saber como estudar do que dominar o 
conteúdo de uma determinada matéria. 
Infelizmente, alguns professores jamais pensam nisso. 
Passam anos ditando pontos, lendo livros didáticos, resolvendo 
exercícios, aplicando provas, passando testes, atribuindo notas, 
e a educação fica reduzida a esse ritual de reproduzir um 
modelo, fazer segundo o que foi visto, etc. Tudo gira em torno do 
ensino do professor, e o aluno não tem nenhum espaço para 
desenvolver seu processo de aprendizagem. Ele não aprende de 
fato, apenas repete o modelo segundo as expectativas do 
professor. O problema de nossas escolas não está somente na 
alfabetização, no ensino da leitura e da escrita; talvez o 
problema mais grave seja não ensinar a estudar. 
<162> 
 
8 
Sugestões de atividades 
na alfabetização 
O TRABALHO COM A LEITURA 
Como se tem insistido tanto até aqui, o segredo da 
alfabetização é a leitura, é ensinar ao aluno como 
decifrar a escrita. Outras interpretações sobre a leitura 
só fazem sentido depois que o leitor tiver acesso à decifração. 
Por outro lado, outras práticas escolares não se comparam em 
importância à decifração da escrita. Há muitas maneiras de se 
chegar ao conhecimento que 
permita ler um texto, algumas muito confusas e demoradas, 
como a prática que proporciona o aluno a 
descobrir por si — tendo o professor como simples 
espectador —; outras estão mais voltadas para um trabalho 
conjunto de ensino e aprendizagem, envolvendo 
professor e aluno numa mesma tarefa. 
Além de uma atitude sadia diante do processo de 
alfabetização, há muitas coisas práticas que ajudam 
pouco ou mesmo atrapalham o trabalho em sala de 
aula. A seguir, serão feitos alguns comentários a respeito 
disso. 
Primeiras leituras 
Em vez de começar o trabalho com letras e palavras 
escritas ortograficamente, pode-se mostrar aos alunos 
que eles conseguem ler outros sistemas de escrita, por 
exemplo, os pictogramas usados de modo geral na sociedade 
moderna, como as indicações de toalete masculino e feminino, 
os logotipos de marcas famosas, etiquetas, símbolos, etc., 
explicando que a essas formas 
gráficas se pode associar uma palavra, e que isso é ler, 
no sentido mais técnico do termo. Aqui há um mundo 
inteiro a ser explorado. 
O professor pode mostrar para os alunos que se ele 
fizer um tracinho, pode representar o número 1; se for 
acrescentando outros tracinhos, pode representar os 
demais números, estabelecendo uma contagem. Isso é 
urna estratégia aritmética: para saber que número representa 
um conjunto de tracinhos, basta contar. Esse 
é um processo de decifração de um sistema de escrita. 
Depois, com as letras faz-se a mesma coisa, só que, em 
vez de contar, será preciso descobrir que som a letra 
tem e ir somando esses sons até descobrir a palavra, 
como se descobre um número. Um número é a soma 
de unidades aritméticas e uma palavra é a soma de unidades 
sonoras na fala e de letras na escrita. 
<164> 
MASSINJ-cAGLIAR1, 1993c. > 
Pode-se mostrar a diferença entre desenho e escrita. Uma 
figura é um desenho quando é usada para representar um objeto 
do mundo. E uma escrita quando é usada para representar uma 
palavra da linguagem oral. O professor pode fazer o desenho de 
uma casa (ou mostrar uma foto), fazer o desenho de um 
caminho, ou de alguém andando, e fazer o desenho de uma 
pessoa (ou uma foto de si próprio). Cada figura ou foto está 
representando coisas do mundo, não constituindo, portanto, 
linguagem escrita. Porém, juntando a foto do professor com o 
desenho de um caminho ou de alguém andando, mais o desenho 
da casa, nessa seqüência, posso representar uma frase como: 
"Vou para casa". Nesse momento, as figuras deixam de ser 
apenas desenhos e passam a representar palavras. As figuras 
transformam-se em escrita. Ler o que está escrito significa saber 
que palavras as figuras representam. Escrevendo desse modo, 
pode-se ter leituras variadas: "Fui para casa", "Irei para casa", 
"Ele vai para casa", etc. 
Essa demonstração deixa claro para os alunos que eles podem 
usar figuras para representar as palavras que querem escrever. 
Podem testar a leitura, isto é, o processo de decifração e de 
interpretação da escrita, pedindo aos colegas que leiam o que 
escreveram. O professor pode explorar esse tipo de atividade, 
escrevendo palavras, frases, pequenas mensagens e até 
pequenas histórias. 
Recortando material de jornais e revistas, o professor pode 
mostrar aos alunos como esse tipo de escrita (pictográfica, com 
desenhos) é usada na vida real. Pode exemplificar como, além de 
desenhos que representam figuras de objetos, esse tipo de 
escrita inventa desenhos para representar palavras, como os 
logotipos, as grifes, os escudos, as bandeiras, etc. 
 
Inventando um código 
Os alunos podem inventar seus sistemas de escrita servindo- 
se de pictogramas. Podem tentar escrever histórias e fazer 
bilhetes. O professor deve acompanhar o trabalho dos alunos, 
mostrando-lhes como o sistema que estão inventando funciona: 
coisas iguais são escritas da mesma maneira, coisas diferentes 
precisam de formas diferentes ou de marcas diferenciadoras, 
tendo o cuidado de permitir que as outras pessoas possam 
interpretar o código e ler. Para isso, ou se usa uma figura 
evidente num pictograma ou se ensina aos possíveis leitores 
como interpretar e ler os caracteres. 
<165> 
Os alunos podem inventar desenhos convencionados por eles 
para representar palavras. Podem, por exemplo, recortar figuras 
de objetos, animais, pessoas, e colocá-las em colunas, fazendo 
ao lado os símbolos ou desenhos que representarão as palavras 
que essas fotos mostram. Depois, podem tentar escrever usando 
o sistema de escrita que inventaram. Um aluno vai mostrar e 
explicar aos outros o que fez, enfim, vai ensinar os demais a 
lerem seu sistema de escrita. O professor irá discutir as 
vantagens e as desvantagens da tarefa. Irá pedir para que 
escrevam sem a chave da decifração, ou seja, usando apenas os 
símbolos inventados, sem mostrar as figuras a que eles se 
referem. Em seguida, o aluno pedirá para os colegas descobrirem 
o que ele escreveu. Como fica muito difícil guardar na 
memória todos os símbolos e seus significados inventados na 
sala de aula, essa tarefa será resolvida apenas em parte. Exceto 
quem inventou o símbolo, os outros terão muita dificuldade para 
ler o que foi escrito. 
Com isso, o professor mostra aos alunos que seria bom todos 
usarem apenas um sistema de escrita porque, uma vez 
estabelecido, todos se comunicariam apenas através dele. Isso 
seria muito mais útil e fácil de ser usado na sociedade, onde 
vivem milhões de pessoas. Essa imitação do que aconteceu 
historicamente,há muito tempo, ajuda os alunos a 
desenvolverem conhecimentos a respeito do funcionamento da 
natureza da escrita. Além disso, motiva-os a progredir, pois eles 
começam a ver que, de certo modo, não só já entraram no 
mundo da escrita e da leitura, como também já conseguiram ler 
e escrever. 
É sempre possível escrever coisas enigmáticas ou códigos 
secretos. A criptografia é algo que fascina as crianças: por que 
não deixá-las usar isso, neste momento inicial de descoberta da 
escrita? Podem fazer dicionários em que apareçam dois sistemas 
de escrita: um pictográfico de fácil reconhecimento, e outro 
constituído de caracteres arbitrários, como os de um código 
secreto. Esses jogos de escrita e leitura servem para mostrar à 
criança que escrever e ler é algo fácil ou difícil, dependendo da 
forma como o sistema se apresenta. 
As letras já foram um sistema de escrita muito mais fácil do 
que são hoje. E isso pode servir de motivo para se introduzir um 
pouco da história da escrita e das letras do alfabeto, mostrando 
seu caráter pictográfico antigo e a época em que havia pouca 
variação na forma gráfica das letras. 
<166> 
 
A palavra como unidade de escrita 
A história da escrita servirá também para mostrar aos alunos 
que ela gira em torno de palavras, e não apenas de letras. Isso 
irá facilitar, futuramente, a tarefa que os alunos terão pela 
frente de segmentar a fala para escrever palavras, bem como a 
de lidar com letras isoladas em sílabas e em palavras. 
Unidades de fala menores do que a palavra podem ser 
tratadas, nesse momento, através do uso de rébus, como se 
explica com o exemplo a seguir. Pode-se escrever a palavra 
"irmão" desenhando um menino ao lado de outro, o que 
consistiria num pictograma e não num rébus para a palavra 
"irmão". Por outro lado, pode-se também escrever essa mesma 
palavra, fazendo o desenho das pernas de uma pessoa andando 
("ir") ao lado do desenho de uma mão. Os dois desenhos 
representam agora uma única palavra "irmão". Esse modo de 
escrever tem o nome técnico de rébus. Através dessa estratégia 
de escrita, é fácil mostrar aos alunos que se pode escrever 
baseando-se no significado das palavras ou nos sons que elas 
têm. Temos, assim, um sistema ideográfico e um sistema 
fonográfico. 
 
Nota 
IR MÃO 
O rébus é um jogo mental muito antigo e comum, consiste em 
exprimir palavras ou frases através de desenhos ou de sinais 
cuja leitura e interpretação oferecem uma analogia com o que se 
quer fazer entender Exemplos: 20V — "vim te ver"; D+ = 
"demais" 
Letras e sons 
Para chegar aos segmentos fônicos que correspondem às 
letras, a questão é muito mais complexa. Vão ser necessárias 
três etapas: primeiro, será preciso reinventar as letras, o que se 
pode fazer a partir dos próprios pictogramas que deram origem 
às nossas letras; segundo, aplicar o princípio acrofônico para 
atribuir a cada letra um som especial, particular e distintivo no 
sistema; terceiro, aprender a analisar os sons que a palavra que 
se quer escrever tem na fala, achar as letras correspondentes, 
na ordem correspondente e, então, escrever a palavra, segmento 
por segmento, com as letras convencionadas. Esse pode ser um 
longo caminho, mas basta percorrê-lo uma vez, passo a passo. 
Isso não significa que com essa atividade os alunos já 
aprenderam a escrever facilmente palavras com letras. O que se 
pretende nesse momento é simplesmente mostrar ao aluno como 
diferentes sistemas de escrita funcionam e o que os espera pela 
frente. 
Para o professor mostrar aos alunos como observar 
os sons da fala, há duas maneiras principais, ou seja, 
duas estratégias de observação. A primeira consiste em 
<167> 
silabar uma palavra, prolongando o som das vogais (mais 
raramente de algumas consoantes, como as fricativas). Por 
exemplo, a palavra BATATA: "baaaa-taaaataaaa". Note que 
existe uma parte diferente ("ba') e duas iguais ("ta-ta"). Note 
ainda que o som de "a" é o mais longo nas três sílabas. Desse 
modo, pode-se perceber a recorrência prolongada de um mesmo 
som, a vogal "a". Outro exemplo: FESTA: "féééés-taaaa" (ou 
"fééééchtaaaa"). Agora, destacamos um som na primeira sílaba, 
que é o "ééé", e outro diferente na segunda, "aaa". Por outro 
lado, na segunda sílaba da palavra FES-TA, tem-se o mesmo som 
observado na palavra BA-TA-TA. 
Seguindo esse procedimento de análise, acompanhado dos 
devidos comentários, o professor pode mostrar aos alunos como 
observar os sons da fala de uma maneira muito interessante 
para a alfabetização. 
A outra estratégia para analisar os sons da fala consiste em 
silabar as palavras, repetindo as articulações das consoantes nos 
inícios das sílabas. Por exemplo: BATATA: "babababa-tatatata- 
tatatata"; ou FESTA: 
"fésfésfésfés-tatatata"; ou CADERNO: kakakakaderderderder- 
nunununu". O professor pode fazer vários exercícios desse tipo, 
analisando com os alunos o que há de igual e o que há de 
diferente. 
Na primeira abordagem, o professor ajuda os alunos a 
destacar as vogais das sílabas e, na segunda, a consoante inicial 
das sílabas. Há outras maneiras de mostrar como analisar a fala. 
Uma delas, de uso muito comum, é fazer levantamento das 
rimas. Toma-se uma palavra e procuram-se outras que terminem 
nos mesmos sons (em geral, as rimas são dadas não por sílabas 
completas, mas somente pelas vogais das sílabas finais das 
palavras). Por exemplo: encontrar palavras que rimem com 
AVIÃO: 
CORAÇÃO, IRMÃO, DEDÃO, ACHARÃO, etc. Outra maneira é 
identificar palavras que comecem com os mesmos sons (aqui é 
preciso levar em conta a sílaba como um todo). Por exemplo, 
palavras que comecem com o som de "çi": CIDADE, SINO, 
CINEMA, SITIO, CIGARRO, SINAL, etc. Outro exemplo são 
palavras que comecem com o som de "dis": DESCOBERTA, 
DESCASCAR, DESCARREGAR, DESMONTAR, DISTRIBUIR, 
DISTINTO, DISPUTAR, etc. O professor irá fazer todos esses 
exercícios sem escrever nenhuma palavra: todos acompanharão 
a análise somente através da fala e da audição. 
Além disso, o professor pode inventar mil situações 
para explicar fatos importantes da escrita e da leitura. 
Por exemplo, pode começar escrevendo a palavra "camelo", 
<168> 
recortando uma foto ou um desenho de camelo e mostrando a 
associação entre a palavra "camelo" e sua representação. 
Pode decompor a palavra através da análise dos sons e 
atribuir a cada segmento uma forma de representação gráfica. 
Essa representação pode ser feita com desenhos de objetos 
cujos nomes permitam, através do princípio da acrofonia, 
associar o desenho à fala. Nesse segundo modo de escrita, um 
desenho não representa mais uma palavra inteira, mas apenas 
um pedaço, de preferência apenas um som, o som inicial do 
nome do desenho. Procedendo assim para cada som da palavra 
"camelo", acaba-se tendo um tipo de escrita com letras 
figurativas. Por exemplo, como um dos resultados possíveis, a 
palavra "camelo" poderia ser escrita com "letras" na forma de 
desenhos (pictogramas) representando, por ordem, um cabide 
("e"), um avião ("a"), o mar ("m"), um elefante ("e"), uma lata 
("L") e um ovo ("o"). Ensinar o truque para ler essa escrita é 
ensinar o aluno a ler letras. Se há algo de bom e eficiente nas 
cartilhas é a aplicação do princípio acrofônico através do bá-bé- 
bi-bó-bu. Os alunos aprendiam a ler com a cartilha por essa 
razão. 
Se um aluno preferir usar um cacho de uva, representando o 
som "u" no final da palavra "camelo", está perfeito, e o 
professor pode mostrar aos alunos que podemos falar "camelu" 
ou "camelo", razão pela qual ele optou pelo som de "o", e o 
aluno, pelo som de "u". A solução encontradapelo aluno pode 
criar uma boa oportunidade para o professor falar um pouco 
sobre ortografia e variação lingüística. Como se vê, um assunto 
puxa outro. O professor sabe de onde vai partir quando começa 
seu trabalho de ensino, mas quase nunca sabe de antemão onde 
vai parar. E é assim que deve ser. 
Quando os alunos inventaram um sistema de escrita, 
basearam-se no significado das palavras: as fotos e os desenhos 
correspondiam às idéias que as palavras 
<169> 
representavam. Os sons vinham depois de identificados os 
significados e produziam palavras da língua portuguesa porque 
os alunos estavam representando, na escrita, a língua que falam. 
Assim, vendo a foto de uma casa, atribuímos a ela a palavra que 
tem esse significado e que se pronuncia, em português, com os 
sons "kaza". A escrita revelou uma idéia, através da atribuição 
de uma palavra aos sinais gráficos. Ao fazermos isso, 
descobrimos também os sons dessa palavra que representa a 
idéia que falamos. Portanto, as palavras sempre se compõem de 
idéias e sons. Podemos dividir o significado de uma palavra em 
partes, gerando novas idéias (significados), que fazem parte da 
idéia mais geral. Por exemplo, podemos dividir a idéia de "casa" 
nos componentes que constituem uma casa, como telhado, 
paredes, chão, janela, porta, etc. Ao fazer isso, descobrimos que 
essas idéias formam novas palavras. As idéias não conseguem 
sobreviver sem os sons das palavras. E sons sem significado não 
formam palavras, são apenas ruídos. 
Por outro lado, quando segmentamos os sons da palavra 
"casa", temos "ka-za". No todo, existe um significado. Porém, 
considerando cada pedaço (sílaba) em separado, perde-se o 
significado original, podendo ou não resultar outro significado. 
Assim, "ka" significa, isoladamente, "aqui", "cá estou eu"; mas 
"za" não significa nada (talvez um apelido...). 
Mexer com o significado para saber o que faz parte de uma 
idéia ou não é muito complicado e, na prática, é uma tarefa 
impossível de ser feita até o fim... Sempre se descobre algo 
novo. Porém, com os sons das palavras tudo é bem mais simples 
e fácil. 
O alfabeto 
Aos poucos, passa-se da escrita ideográfica para a 
fonográfica, do aspecto figurativo dos caracteres para o 
convencional, dos grifos para as letras e, assim, chega-se ao 
alfabeto das letras de fôrma maiúsculas. Essas letras serão 
usadas por um bom tempo e com elas os alunos aprenderão a 
decifrar nossa escrita tradicional e a escrever seus primeiros 
textos. 
Quando se chega às letras, o melhor é falar logo do alfabeto e 
apresentar todas as letras de uma vez. Para isso, seria bom que 
houvesse na sala uma faixa com o alfabeto das letras de fôrma 
maiúsculas, que pudesse ficar bem visível, talvez acima da lousa 
(ou quadro-negro), para que os alunos tenham esse modelo 
constantemente 
<170> 
diante dos olhos. Esse alfabeto deve conter todas as letras do 
dicionário, seguindo a ordem alfabética, ou seja: 
A B C Ç D E F G H IJ K L M N O P Q R S T U V W X Y Z. 
Apresentado o alfabeto, ensina-se o nome das letras, não só 
para que os alunos o aprendam, mas também para terem um 
referencial dos sons que as letras têm. É claro que a questão na 
verdade é bem mais complicada, mas nesse momento basta o 
professor alertar para a dificuldade futura, esclarecendo que um 
dos sons possíveis que as letras têm pode ser encontrado no 
próprio nome das letras. Portanto, sabendo o nome das letras, 
pode-se decifrar a escrita de uma palavra, sem grandes 
dificuldades. O professor pode, por exemplo, apresentar uma 
palavra na forma escrita, sem dizer do que se trata, e pedir aos 
alunos para decifrá-la. Descobre-se que a tentativa não deu 
certo, quando não se chega a nenhuma palavra (conhecida). 
Então, pode-se deixar de lado algumas letras e tentar recuperar 
a palavra (descobrir seu significado). Desconfiar e tentar são 
tarefas comuns nesse momento. É sempre muito importante 
estar atento para o fato de o resultado da decifração ter de 
revelar uma palavra conhecida, cujo significado é evidente, e não 
apenas sons. Na vida às vezes nos deparamos com palavras 
desconhecidas, mas isso não acontece na alfabetização ou, se 
acontecer, será algo extremamente raro. Portanto, se o 
resultado final é uma palavra desconhecida, o aluno deve 
desconfiar que a decifração apresentou alguma interpretação 
errada dos valores fonéticos de uma ou mais letras. O que vale 
sempre é o resultado final, ou seja, a palavra, que o aluno 
deverá reconhecer facilmente, como falante nativo. 
Para ilustrar o que foi dito, suponhamos que o professor 
escreveu CASA e pediu para os alunos identificarem primeiro os 
nomes das letras: c, a, esse, a. Com os nomes das letras, os 
alunos tentam juntar os sons relevantes e descobrir de que 
palavra se trata. Um aluno pode dizer que está escrito "saça". 
Então o professor o faz ver que não existe a palavra SAÇA (não 
se conhece um significado para essa seqüência de sons) e volta- 
se atrás e se procura um som diferente e possível para as letras. 
A letra C pode ter o som de "kê" e a letra S pode ter o som de 
"zê". O resultado, agora, é "kaza". Está descoberta uma palavra 
conhecida. 
Com essa técnica, o professor pode escolher palavras, fazer 
com os alunos o reconhecimento das letras escritas, identificar 
cada letra com seu respectivo nome, 
<171> 
dizer que palavra está escrita, analisar os sons e fazer a 
correspondência das letras com os sons, para verificar naquela 
palavra que sons as letras têm. Isso não só ensina os alunos a 
identificarem as letras, como também ensina-os a ler palavras 
simples. Não é tudo, mas já é um grande avanço. 
 
Primeiros problemas com a decifração 
Com o progresso obtido, logo começam a aparecer problemas 
que deverão ser tratados cuidadosamente. Alguns deles exigem 
explicações um tanto complicadas. E sempre preferível dar uma 
boa explicação, mesmo que complicada, a ter de camuflar o 
problema, disfarçar, usar de subterfúgios com explicações 
metafóricas. Se os alunos não entenderem direito (ou nada), não 
faz mal. Algumas explicações precisam ser dadas por causa das 
circunstâncias, mas como os problemas voltarão a aparecer em 
outras ocasiões, os alunos terão outras chances de aprender. 
Quando o professor prefere uma explicação aparentemente fácil, 
metafórica, incompleta e meio deturpada, corre o risco de ter de 
se desculpar mais tarde. Alguns alunos se sentirão enganados 
quando descobrirem que a verdade tem outra cara. 
Ao iniciar a decifração da escrita, os alunos irão encontrar 
algumas dificuldades causadas pela falta de informação a 
respeito de alguns aspectos da linguagem oral e escrita. O 
professor não pode ensinar tudo de uma vez. Portanto, é preciso 
reconhecer a falta de informações preliminares e procurar 
resolver isso à medida que for conveniente e importante. 
Somente depois que os alunos tiverem ouvido explicações a 
respeito de muitos fatos básicos da linguagem oral e escrita, 
poderão entender verdadeiramente os mecanismos da 
decifração. Mas começar tentando decifrar a escrita é a melhor 
prática para discutir e aprender. 
Entre esses problemas estão os seguintes: a variação 
lingüística; a aquisição da linguagem oral e da escrita; as noções 
básicas de fonética e fonologia; o modo como a fala, a escrita e a 
leitura funcionam e quais os seus usos; o que é decifrar uma 
escrita e como fazer; o que é a ortografia e como resolver 
dúvidas ortográficas; como é um texto na linguagem oral e como 
é um texto na linguagem escrita; como analisar e interpretar os 
erros; como avaliar a importância de atividades pedagógicas 
relacionadascom os conteúdos programáticos e outros menos 
importantes. 
<172> 
O professor não poderá tratar cada um desses assuntos de 
maneira isolada e completa, numa ordem predeterminada. As 
explicações devem acontecer quando for o momento e de 
maneira dosada às necessidades. Em geral, é preciso abordar 
vários aspectos de muitos tópicos numa única ocasião. Somente 
em séries mais adiantadas, quando os alunos já tiverem certas 
noções básicas, será o momento oportuno de fazer um estudo 
mais detalhado e organizado desses pontos. 
 
Pares mínimos 
Voltando ao trabalho específico de decifração da escrita e de 
técnicas para aprender a ler, há um tipo de exercício, muito 
usado pelos lingüistas, que ajuda a explicar aos alunos como 
detectar os segmentos fonéticos da fala, para relacioná-los 
depois às letras do alfabeto. São os pares mínimos. Obtém-se um 
par mínimo quando se juntam duas palavras de significados 
diferentes, cuja forma fonética varia apenas com relação a um 
som. Por exemplo: "bato/mato" (a única diferença fonética é B, 
que se opõe a M no início das palavras do par), "casa/caça", 
"mar/mas", etc. 
Do ponto de vista da fala, "concerto" e "conserto" são 
palavras ambíguas (como "manga", por exemplo, que significa 
uma fruta e uma parte de roupa), mas do ponto de vista da 
escrita, formariam uma espécie de "par mínimo", porque 
representam palavras de significados diferentes. O professor 
pode explorar essas duas possibilidades: pares mínimos 
considerando a fala ou a escrita, relacionados entre si ou não. 
Com o par mínimo falado, destacam-se os sons que distinguem 
uma palavra de outra; com o par mínimo escrito, destacam- se 
as letras diferentes que representam um mesmo som. Perceber 
diferenças em meio a igualdades é um requisito muito 
importante em todo trabalho lingüístico. 
Feito isso, basta mostrar quais letras serão usadas para 
representar os sons distintivos, explicando que no próprio nome 
da letra, já se tem uma dica de que som ela representa, ou de 
que letra terá de ser usada para escrever, quando já se sabe o 
som, observando a fala. 
Rimas 
Outra atividade muito útil para ensinar o reconhecimento de 
segmentos fonéticos de palavras é o uso de 
rimas: palavras terminadas em sons semelhantes, como, 
<173> 
por exemplo, em "ão": "avião", "coração", "habitação", "irmão", 
etc. O professor pode escrever na lousa as palavras rimadas, 
ditadas pelos alunos, fazendo colunas, de tal modo que se 
perceba na escrita que todas essas palavras terminam com um 
mesmo conjunto de letras e sons (no caso, "ão"). 
Fazer exercícios que levem o aluno a aprender a relacionar as 
letras com os sons das palavras é fundamental. 
 
Categorização gráfica das letras 
Outro aspecto importante dos sistemas de escrita é a 
categorização das letras do alfabeto. Como usamos muitos 
alfabetos, é preciso saber que uma mesma letra pode ser escrita 
com formas gráficas diferentes. 
Depois que os alunos já avançaram bem no trabalho de 
decifração, usando apenas as letras de fôrma maiúsculas, o 
professor pode apresentar escritas de palavras com alfabetos 
diferentes, em colunas, para que os alunos percebam que, para 
cada lugar de escrita na palavra, há uma letra, e que as letras, 
nas colunas verticais, pertencem a alfabetos diferentes (colunas 
horizontais), e têm, portanto, o mesmo valor alfabético. 
 
Primeiras leituras de textos 
Depois que os alunos conseguirem decifrar por si palavras 
isoladas, o professor os levará a ler pequenos textos. Aqui, há 
alguns pontos importantes a serem considerados. Em primeiro 
lugar, é preciso que o professor convença-se de que é mais 
importante que o aluno leia e não que exiba para ele ou para a 
classe que já sabe ler. Assim, o professor estimulará seus alunos 
a lerem em particular, para si, até que adquiram habilidade e 
velocidade de leitura para ler em voz alta para a classe, sem 
grandes dificuldades 
Ler textos de uma ou duas frases, no início, exige um grande 
esforço de decifração (são muitas letras...). Porém, esses textos 
oferecem a vantagem de poderem ser facilmente decorados. 
Portanto, o professor deixará que cada aluno descubra o que 
está escrito. Feito isso, poderá, então, dizer o que foi que leu. 
Aqui, o fato de reproduzir literal e exatamente o que está escrito 
não é importante. O que conta é o fato de o aluno descobrir o 
que está escrito porque, para isso, ele precisará ter decifrado 
pelo menos as palavras mais importantes para a compreensão do 
texto. Uma leitura mais rigorosa, mais fiel ao texto, será cobrada 
mais adiante. 
< MASSINI-CAGLIARI, 1998a. 
<174> 
Com o tempo, vai-se passando de textos curtos para textos 
cada vez mais longos, deixando sempre os alunos lerem 
individualmente. Se algum aluno quiser ler para os colegas, será 
preciso que prepare muito bem sua leitura com antecedência. Se 
o professor perceber que o aluno está lendo mal (gaguejando, 
silabando, sem ritmo, sem a correta entoação, etc.), deverá 
solicitar do aluno que prepare melhor sua leitura, mostrando 
como ela deve ser feita. 
 
Interpretar ou discutir o que leu 
Convém relembrar que é desnecessário, e mesmo ridículo, 
querer fazer interpretação de texto nas primeiras séries. Análise 
literária ou análise de discurso de textos deverão ser feitas em 
séries avançadas. Portanto, o professor não deverá ficar 
preocupado se seus alunos estão entendendo ou não o que estão 
lendo, pois é claro que estão entendendo, uma vez que os textos 
são, em geral, histórias de fácil compreensão. Trabalhar as 
sutilezas dos textos é de menor importância na alfabetização. 
Isso não quer dizer que o professor não possa discutir certos 
assuntos com seus alunos, servindo-se da leitura de textos. 
Nesse tipo de atividade, o que vale é a discussão das idéias 
pessoais, incluindo as expressas pelo autor do texto. O que não 
faz sentido é querer discutir o texto como fato lingüístico ou 
literário. Discussões podem ser feitas mesmo sem o pretexto de 
um texto. Fazer discussões em sala de aula é uma atividade de 
grande importância. Interpretar textos com perguntas e 
respostas é uma idiotice. 
 
O que ler 
Os alunos precisam ser incentivados a ler todo tipo de 
material, quer com relação à forma gráfica, quer com relação aos 
variados tipos de textos. Devem ler coisas impressas e coisas 
manuscritas, devem ler propagandas ou outro material 
semelhante. O professor precisa mostrar aos alunos material 
escrito com os mais variados tipos de letras. Usos artísticos da 
escrita merecem um destaque. Usos especiais em propagandas 
também são interessantes, como palavras decoradas com 
desenhos que ilustram seu significado. Por exemplo, a palavra 
"incêndio" escrita com letras pegando fogo. 
É preciso ler histórias (muitas), notícias, reportagens que 
falem de assuntos científicos, técnicos, curiosos, da vida de 
pessoas famosas, etc. É preciso ler jornal, 
<175> 
revistas, receitas culinárias, instruções de uso de equipamento, 
de montagem ou de conserto, enfim, ler de 
tudo. E ler nunca é demais. 
 
O TRABALHO COM A ESCRITA 
Quando se falou da leitura, incluíram-se muitos fatos 
relativos à escrita, porque um processo necessariamente 
implica outro. Aos poucos a escrita vai tornando-se 
familiar quando se estuda como se deve ler. O 
próprio sistema de escrita revela-se com a descoberta 
da decifração. Em outras palavras, as noções básicas 
de um sistema de escrita, do ponto de vista gráfico e 
funcional, são aprendidas no processo de aprendizagem 
da leitura. Por essa razão, insistimos no fato de 
que o segredo da alfabetização está em saber

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