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ALFABETIZANDO SEM O BÁ-BÉ-BI-BÓ-BU SUMÁRIO Prefácio 4 Introdução 8 1. História da alfabetização 11 2. O ensino e a aprendizagem: os dois métodos.. 35 3. Avaliação, promoção, planejamento 61 4. O método das cartilhas 79 5. Panorama do processo de alfabetização 103 6. A decifração da escrita 119 7. Procedimentos para o estudo das letras 133 8. Sugestões de atividades na alfabetização 163 9. A produção de textos espontâneos 197 10. As hipóteses por trás dos erros 241 11. Ditado e cópia 287 12. Leitura e interpretação de texto 311 13. Ortografia da língua portuguesa 341 Apêndice — A categorização gráfica das letras 359 Bibliografia 389 Índice de tópicos por capítulo 397 PREFÁCIO Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é, sem dúvida, um livro pioneiro. O próprio título já evidencia o seu pioneirismo: uma nova proposta de metodologia da alfabetização, totalmente liberta do método silábico, cartilhesco ou não. Ao contrário do que se pode imaginar, não é apenas quando nos utilizamos da cartilha que o método silábico do bá-bé-bi-bó- bu se encontra subjacente à prática de ensinar a ler e escrever. Como bem mostra o autor, mesmo em práticas consideradas inovadoras e bem distantes da cartilha, a única tábua de salvação, para muitos professores, é voltar ao antigo bê-a-bá. Outra grande inovação (diríamos até "evolução") trazida por este livro é colocar no centro da discussão da aquisição da leitura e da escrita a noção de ortografia, ausente de qualquer outra abordagem do assunto já conhecida. Não nos referimos à ortografia apenas como uma meta a ser atingida no final do processo, mas como a noção fundamental que sustenta o nosso sistema de escrita. O autor nos mostra que, ao contrário do que comumente se pensa, nosso sistema de escrita não é apenas alfabético (o que o tornaria uma mera transcrição fonética), mas ortográfico (servindo a ortografia, entre outras coisas, para anular a variação lingüística no nível da palavra). Assim, a partir de considerações a respeito da própria natureza do nosso sistema de escrita, e de como isto interfere no processo de alfabetização, vemos como a ortografia deve ser considerada desde o início do processo e não como objetivo final — como o fazem tanto os métodos tradicionais baseados no bá- bé-bi-bó-bu, como também os ditos construtivistas, que dividem a aquisição da linguagem escrita em níveis (pré-silábico, silábico e alfabético), os quais não encontram correspondência exata em qualquer sistema de escrita conhecido, menos ainda em um sistema de escrita ortográfico como o nosso. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu é uma obra voltada para a formação do professor alfabetizador. Discute a teoria da aquisição da linguagem escrita e fornece subsídios ao professor que tiver coragem, vontade, ou simplesmente necessidade, imposta pelo seu cotidiano de alfabetizador, de mudar. É o resultado de quase vinte anos de dedicação do autor à causa da alfabetização e de seus mais de trinta anos como lingüista. ~, <4> Representa, pois, a visão de um lingüista sobre o processo de aquisição da leitura e da escrita e a sua contribuição, como professor, para a educação do país, de um modo mais geral. O autor afirma que um professor que tenha os conhecimentos apresentados neste livro consegue conduzir com calma e segurança o processo de alfabetização e tem chances de alfabetizar uma criança a partir dos cinco anos ou um adulto em dois ou três meses — o que significa uma enorme conquista, dados os alarmantes níveis de analfabetismo no Brasil. Isso porque os conhecimentos apresentados independem do tempo histórico e do espaço geográfico, já que dizem respeito diretamente à natureza, função e usos da linguagem oral e escrita e não estão subordinados a métodos pedagógicos. As estratégias de ensino podem variar de professor para professor, mas o conhecimento da linguagem oral e escrita é uma aquisição da ciência e, desse modo, depende única e exclusivamente do progresso da ciência. E nesse sentido, a ciência Lingüística já tem um conjunto considerável de conhecimentos solidamente estabelecidos, dos quais uma parte é colocada aqui à disposição para uma aplicação à educação. Na sua carreira acadêmica, Luiz Carlos Cagliari tem trabalhado com três linhas de pesquisa: fonética e fonologia, sistemas de escrita e alfabetização. Nas três áreas, além de ter produzido muitas pesquisas, que resultaram em várias publicações, seu percurso como professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp inclui cursos na graduação em Letras e Lingüística e na pós-graduação em Lingüística, além de comunicações em reuniões científicas importantes, dentro e fora do país. No entanto, este livro não pode ser considerado apenas o resultado de uma pesquisa desenvolvida do lado de dentro dos portões da universidade, desvinculada da realidade de sala de aula dos professores alfabetizadores do país. O contato e trabalho conjunto do autor com os professores alfabetizadores vêm já de longa data. O ano de 1980 é uma data-chave para a compreensão do seu envolvimento com os estudos de alfabetização. Nessa ocasião, uma equipe da CENP o convidou para ministrar um curso de fonética acústica para professores alfabetizadores, uma vez que, segundo os especialistas, os erros de troca de letras cometidos pelos alunos eram devidos ao fato de os professores não conhecerem o assunto, não tendo, portanto condições de resolverem o problema quando ele se manifestava. ~, <5> Analisando a questão, ele concluiu que os problemas não se restringiam à fonética acústica, mas envolviam falhas sérias no processo de alfabetização, devido à falta de conhecimento lingüístico. Esse curso, realizado com a colaboração de uma de suas colegas de departamento na Unicamp, a Drª Maria Bernadete Abaurre, e do Dr. Márcio Silva, foi o início de um longo caminho de pesquisa e de cooperação com órgãos públicos, faculdades e, sobretudo, com professores alfabetizadores, que forneciam ao autor material produzido pelos alunos. Começou a organizar assim um enorme arquivo de produções infantis. No ano seguinte, a convite da equipe pedagógica da Secretaria de Educação de Alagoas, juntamente com Maria Bernadete, Luiz Carlos Cagliari ministrou um curso para professores alfabetizadores. Na ocasião, foi possível pôr em prática as novas orientações propostas no curso da CENP, sobretudo, convencendo os professores a deixar seus alunos produzirem textos espontâneos. O que parecia a eles uma loucura logo se revelou uma grata surpresa. A evidência dos fatos mostrou a dimensão da capacidade dos alunos e que seus erros, mais do que "falhas", revelavam hipóteses que os levavam a fazer opções diante da escrita. No ano de 1983, destaca-se sua participação no I Seminário Multidisciplinar: Alfabetização, realizado na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Nessa ocasião, apresentou um trabalho intitulado A formação do professor alfabetizador, em que já aparece um esboço de suas principais idéias sobre o processo de alfabetizar. Neste mesmo ano, outra colega sua do departamento de Lingüística da Unicamp, a Drª Cláudia Lemos, organizou um encontro sobre Linguagem, Aprendizagem e Interação. Ela já conhecia o trabalho do autor na área de alfabetização e achava que correspondia em grande parte ao que faziam os construtivistas, sobretudo uma psicóloga que tinha encontrado na Europa, chamada Emília Ferreiro. Nesse encontro foram apresentadas as idéias do construtivismo, que, a partir daí, invadiram os programasde alfabetização. Para esse evento, o autor levou os textos espontâneos dos alfabetizandos de Alagoas e de Campinas com os quais ele havia trabalhado, expondo-os em dois varais que acompanhavam toda a extensão do corredor do pavilhão dos professores. Todos ficaram impressionados, e os textos forneceram material para muita discussão.~, <6> Em 1984, o autor já, havia juntado grande quantidade de trabalhos sobre os mais variados tópicos da alfabetização relacionados com a fala, a escrita e a leitura. Esse material iria formar, mais tarde, o livro Alfabetização e lingüística, publicado pela Scipione em 1989. Um dos trabalhos que não entrou naquele livro foi o "Roteiro de sugestões para professores alfabetizadores", que serviu de embrião para esta obra que ora prefaciamos, cuja versão preliminar foi escrita nos dois primeiros meses de seu estágio de pós-doutoramento em Londres, em 1987, e depois foi intensamente discutida e levada à sala de aula por professores alfabetizadores de várias regiões do país. Já em 1985, Luiz Carlos Cagliari participou do Projeto Ipê, coordenado pela CENP Nessa ocasião, publicou o artigo "Caminhos e descaminhos da fala, da leitura e da escrita na escola", que teve enorme repercussão. Com o material desse artigo, foi feito o roteiro para um programa da TV Cultura relacionado com o Projeto Ipê. Paralelamente a isso, começaram a ser publicados no Brasil artigos de Emília Ferreiro e suas idéias apareceram também no Projeto Ipê. A pesquisadora Telma Weisz, discípula de Ferreiro passou a liderar a divulgação do construtivismo no estado de São Paulo, com o apoio da CENP e, sobretudo depois, com a FDE. Nessa época, já era notória a discordância do autor (ver o artigo "O príncipe que queria ser sapo") e de outros lingüistas com relação às interpretações de Emília Ferreiro a respeito do processo de letramento. A opção pelo construtivismo e, de certo modo, sua imposição às atividades da rede pública deixaram em um plano secundário as críticas e outras formas de pensar e de fazer o processo de alfabetização. Apesar disso, Luiz Carlos Cagliari continuou pesquisando com empenho e profundamente, até a formação de um conjunto de idéias sólidas, bem fundamentadas, que explicam não só como alguém se alfabetiza, mas também como tirar alguém do "mau caminho" e fazer com que supere seus obstáculos e consiga se alfabetizar. São estas as idéias apresentadas no presente livro. Atualmente, seus olhos voltam-se para um novo horizonte: a alfabetização de adultos. Continua sua luta incansável contra o analfabetismo e por rumos melhores para a alfabetização dos que efetivamente conseguem chegar até a escola. Gladis Massini-Cagliari. ~, <7> INTRODUÇÃO Em 1981, baseando-me na experiência de alfabetização de meu filho Daniel na Escócia (1976), disse para muitos professores (em cursos e palestras) que as crianças podiam escrever textos já no início da alfabetização, passando da capacidade de produzir textos orais para a representação escrita, mesmo sem saber bem a grafia das palavras. Fui então considerado um maluco, que nunca tinha alfabetizado alguém. Bastou a coragem de alguns professores, já no ano seguinte, para que todos descobrissem que isso era possível. Com o trabalho de colegas como Maria Bernadete Abaurre e João Wanderley Geraldi e com a divulgação das idéias de Emília Ferreiro, o que era medo de ensinar tornou-se procedimento comum com relação à produção de textos espontâneos na alfabetização e de livrinhos de classe em todas as séries iniciais. Neste livro, há um outro desafio: ensinar a ler a partir da reflexão sobre o processo de alfabetização, tornando conscientes para o professor e o aluno as regras de decifração da escrita. As crianças gostam de aprender coisas sérias, ensinadas com seriedade — e é isto o que mais falta hoje na escola. Esse desafio é fruto de extenso estudo sobre o processo de alfabetização, ponderando as implicações dos estudos da linguagem no modo como as crianças usam a fala, a escrita e a leitura. Além disso, leva-se em consideração uma investigação profunda da história da escrita, da natureza e usos dos sistemas de escrita. Sem esse suporte lingüístico e esse conhecimento dos sistemas de escrita, grande parte da problemática do processo de letramento fica distorcida, não raramente levando os estudiosos por caminhos sem saída. A simples aplicação de um método ou de uma teoria conduz facilmente o processo pedagógico a reproduzir um modelo. Nesse contexto, os alunos precisam se virar com os recursos do modelo. E se não der certo, se o aluno, apesar das repetições a que é submetido, não conseguir se alfabetizar? Essa preocupação sempre foi a central de todos os meus estudos. A única saída para impasses como esse — e, por que não, para conduzir tranqüilamente um processo de letramento — é o conhecimento sofisticado e correto das questões lingüísticas relacionadas à alfabetização, bem como do funcionamento dos sistemas de escrita. Idéias simples, porém, fundamentais, como a variação lingüística e o fato de a ortografia ter modificado ~, <8> profundamente o sistema alfabético, quando ausentes ou mal interpretadas na escola, podem criar grandes embaraços para a aprendizagem do aluno e um quebra-cabeça extremamente complicado para a ação do professor. Tenho certeza (pois também já constatei na prática) de que os professores irão descobrir nos procedimentos sugeridos neste livro uma forma nova e segura de alfabetizar. Não basta deixar de lado o livro das cartilhas; é preciso deixar de lado o método das cartilhas, o ensino centrado na noção de sílaba como unidade privilegiada da escrita e da leitura. Ensinar as crianças a tornar conscientes os procedimentos de decifração da escrita é uma estratégia que as agrada mais do que ficarem repetindo coisas aparentemente sem sentido, ou ser largadas à própria sorte, esperando que saiam de dentro de si os conhecimentos que a escola exige para ler e escrever. A proposta deste livro é ensinar de maneira clara e com precisão como se faz para aprender a ler e a escrever — o que corresponde exatamente às expectativas das crianças. O fato de ser este livro volumoso, abrangendo um assunto complicado, não deve ser motivo de receio para os professores, que sentirão seu trabalho facilitado e valorizado com a adoção de uma nova postura em sala de aula. As crianças vão se sentir valorizadas também em suas descobertas, ganhando maior segurança ao observarem seu próprio progresso. Para o professor, no começo, talvez esta apresentação do processo de alfabetização possa parecer muito técnica e fora da realidade pedagógica e psicológica das crianças. Lembro que o mesmo me diziam quando afirmava que as crianças eram capazes de produzir textos espontâneos, passando dos conhecimentos que tinham da linguagem oral para a forma escrita. Hoje, todos concordam que produzir textos é algo que as crianças fazem com facilidade, criatividade e prazer. Com o tempo, mesmo problemas altamente complexos passam a ser vistos como desafios comuns quando se familiariza com eles e com as soluções necessárias. Um bom exemplo disso no mundo moderno é a maneira como as crianças lidam com os jogos de vídeo games. Depois de certa prática, aprendendo uma quantidade enorme de regras, jogam com facilidade, para espanto de quem não é capaz. Outro exemplo mais próximo de nosso assunto está no próprio fato de as pessoas que aprenderam a ler e a escrever (e isso se constata já nas primeiras séries) tiveram de passar por todas essas regrase por todos os ~, <9> conhecimentos "técnicos" que constituem o objetivo deste livro. Na verdade, não há outra saída. O que existe são os caminhos diferentes para se obter um resultado. Como costumo dizer, alguém pode ir de São Paulo ao Piauí andando a pé, a cavalo ou de avião. Há muitas escolhas, mas nem todas têm o mesmo valor. Para juntar conhecimentos teóricos com metodologias ou estratégias de ação, foi preciso me alongar no assunto, dado o volume de informação e a necessidade de clareza na exposição. O livro está dividido em treze capítulos e um apêndice. Para auxiliar na pesquisa do professor que está em busca dos conhecimentos básicos há uma breve história da alfabetização, uma sucinta apresentação da história da ortografia da língua portuguesa e o apêndice, no qual as letras são estudadas individualmente, mostrando as facilidades e dificuldades de seu ensino e aprendizagem. O método das cartilhas mereceu um estudo à parte, para contrastar com o que se propõe: deixar de lado o bá-bé-bi-bó-bu e partir para um trabalho de pesquisa envolvendo professor e alunos. Algumas questões pedagógicas, como a avaliação, a promoção e o planejamento escolar, tiveram de ser abordadas em vista de suas conseqüências para a ação do professor e do aluno. O que se propõe é que a escola ensine os alunos a estudar, a trabalhar com os conhecimentos, e não com o objetivo menor de ganhar nota e passar de ano. A parte principal do livro concentra-se nos procedimentos para o estudo das letras, com sugestões de atividades e destaque especial para a produção de textos espontâneos. Os problemas que o aluno e o professor encontrarão são analisados e discutidos em detalhes, mostrando, por um lado, o que é preciso saber para decifrar a escrita e, conseqüentemente, ler e escrever, e, por outro, quais as hipóteses que os alunos apresentam quando erram e como não cair em impasses que impedem o progresso desses alunos. Outras atividades importantes foram também consideradas, como o ditado, a cópia e a interpretação de textos. Este livro pretende ser uma contribuição a mais (há tantas coisas interessantes e importantes que têm sido apresentadas aos professores alfabetizadores nas duas últimas décadas...) para que se entenda melhor o processo de alfabetização. O objetivo não foi fazer um livro teórico nem um manual do professor, mas apresentar, discutir e sugerir idéias que o autor pesquisou, que foram amplamente discutidas com pesquisadores e, sobretudo, com professores alfabetizadores. ~, <10> Gladis Massini-Cagliari é professora assistente doutora de língua portuguesa do Departamento de Lingüística da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp-Araraquara. É mestre e doutora em lingüística pelo Departamento de Lingüística da Unicamp e autora de trabalhos publicados na área de alfabetização, fonologia, lingüística histórica e lingüística textual. Interlocutora privilegiada do autor por ser sua mulher e tê-lo conhecido como professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, vem acompanhando seu percurso como lingüista e, a partir de 1991, passou a colaborar ativamente em seus trabalhos na área de alfabetização. 1 História da alfabetização Quem inventou a escrita inventou ao mesmo tempo as regras da alfabetização, ou seja, as regras que permitem ao leitor decifrar o que está escrito entender como o sistema de escrita funciona e saber como usá-lo apropriadamente. A alfabetização é, pois, tão antiga quanto os sistemas de escrita. De certo modo, é a atividade escolar mais antiga da humanidade. Para que os sistemas de escrita continuem a ser usados, é preciso ensinar às novas gerações como fazê-lo. Quando esse elo se rompe, por abandono ou porque é trocado por outro modelo, a escrita antiga passa a ser um sistema sem decifração. Nesses casos, só com muito estudo, e também com um pouco de sorte da parte dos decifradores dessas escritas abandonadas, as regras que envolvem tais sistemas voltam a ser conhecidas, permitindo assim que os textos antigos sejam lidos e que a escrita possa ser novamente utilizada. Na história da escrita, registram-se apenas dois casos de povos que empregavam um sistema de escrita e que, por alguma razão estranha e desconhecida, deixaram de fazê-lo, ficando por um longo tempo sem utilizar qualquer sistema. Isso aconteceu com os gregos e com os indianos. A escrita cretense minóica (Linear B) foi usada pela cultura grega micênica até 1250 a.C., quando Micenas foi destruída. Os gregos voltaram a escrever somente 500 anos mais tarde, usando o alfabeto semítico. No vale do rio Indo, houve um sistema de escrita ainda não decifrado que só foi empregado por volta de 2500 a.C. Naquela região, a escrita só ressurgiria muito tempo depois, no século III a.C., com a escrita brãmane. Curiosamente, esses dois tipos de escrita, ao que tudo parece, tiveram um uso muito popular, ou seja, não ficaram restritos a atividades religiosas ou científicas. Mesmo guerras muito violentas nunca interromperam o conhecimento da escrita, razão pela qual esses dois casos são considerados hoje misteriosos. ~, <12> Estudando atentamente os sistemas de escrita, percebe-se que quem os inventou sempre teve a preocupação de fornecer a chave da decifração juntamente com o próprio sistema. Os sistemas de escrita nunca tiveram nada de muito estranho ou misterioso em si, pelo contrário, sempre foram simples e práticos. Por essa razão, ensinar as novas gerações a usar o sistema de escrita sempre foi uma tarefa fácil e de certa forma banal. < CAGLIARI, 1996b,p. 106-24. A antiga civilização da ilha de Creta usou dois sistemas de escrita que os estudiosos chamaram de Linear A e B. O primeiro representara uma língua desconhecida e foi decifrado somente em parte. O segundo representava a língua grega arcaica e foi decifrado. A LEITURA E A ESCRITA NA ANTIGUIDADE HAMURABI, da Babilônia entre os anos de 1792 e 1750 a.c., fundador do Império Babilônico. Seu código é o mais extenso conjunto de leis conhecido da Antiguidade. Os sistemas de escrita estabelecidos na história dos povos nunca foram privilégio de ninguém. É falsa a idéia de que na Antiguidade somente os sacerdotes, os reis ou pessoas de grande poder dominassem a escrita e a usassem como um segredo de Estado. Essa é uma idéia errada e estranha, que não faz sentido algum, bastando lembrar como argumento que a escrita é um fato social, é uma convenção que não consegue sobreviver à custa de um punhado de pessoas. Os fatos históricos também mostram o contrário. Quando um faraó enche todas as paredes e até colunas com escrita e exibe isso publicamente, não pensa, certamente, que essa seja a melhor maneira de guardar um segredo de Estado. Ao ler o que ele mandou escrever, ficamos sabendo que, às vezes, o texto tem como interlocutor o próprio povo, súdito do monarca. Na Mesopotâmia, Hamurabi mandou publicar em praça pública um código de leis para que o povo soubesse sob quais leis vivia e como deveria se portar em sociedade. O que tem perturbado aqueles que acreditam ser a escrita um privilégio das pessoas poderosas é o fato de terem chegado até nós grandes obras da Antiguidade. Certamente essas obras foram feitas por especialistas, assim como, hoje em dia, um livro de engenharia é escrito por um engenheiro, um livro de medicina por um médico, um livro de religião por um teólogo e assim por diante. Isso não significa que somente engenheiros, médicos e teólogos conheçam a escrita no mundo moderno. Costumo dizerque quem inventou a escrita foi a leitura: um dia, numa caverna, o homem começou a desenhar e encheu as paredes com figuras, representando ~, <13> animais, pessoas, objetos e cenas do cotidiano. Certo dia recebeu a visita de alguns amigos que moravam próximo e foi interrogado a respeito dos desenhos. Queriam saber o que representavam aquelas figuras e por que ele as tinha pintado nas paredes. Naquele momento, o artista começou a explicar os nomes das figuras e a relatar os fatos que os desenhos representavam. Depois, à noite, ficou pensando no que tinha acontecido e acabou descobrindo que podia "ler" os desenhos que tinha feito. Ou seja, os desenhos, além de representar objetos da vida real, podiam servir também para representar palavras que, por sua vez, se referiam a esses mesmos objetos e fatos na linguagem oral. A humanidade descobria assim que, quando uma forma gráfica representa o mundo, é apenas um desenho; mas, quando representa uma palavra, passa a ser uma forma de escrita. A partir dessa descoberta, criar um sistema de formas gráficas, figurativas ou não, para representar palavras ou frases ou mesmo histórias, era um passo fácil de ser dado. A história contada acima é obviamente fantasiosa e não corresponde aos fatos reais, mas revela algo importante, que não pode ser captado pelos documentos materiais da história, porque pertence ao reino do pensamento. Provavelmente, a necessidade de um sistema de escrita veio de situações vividas. De acordo com fatos comprovados historicamente, a escrita surgiu do sistema de contagem feito com marcas em cajados ou ossos, e usado provavelmente para contar o gado, numa época em que o homem já possuía rebanhos e domesticava os animais. Esses registros passaram a ser usados nas trocas e vendas, representando a quantidade de animais ou de produtos negociados. Para isso, além dos números, era preciso inventar símbolos para os produtos e para os nomes dos proprietários. Nessa época de escrita primitiva, ser alfabetizado significava saber ler o que aqueles símbolos significavam e ser capaz de escrevê-los, repetindo um modelo mais ou menos padronizado, mesmo porque o que se escrevia era apenas um tipo de documento ou texto. Com a expansão do sistema de escrita, a quantidade de informações necessárias para que alguém soubesse ler e escrever aumentou consideravelmente, o que obrigou as pessoas a abandonar o sistema de símbolos para representar coisas e a usar cada vez mais símbolos que representassem sons da fala, como, por exemplo, as sílabas. Como há cerca de 60 tipos de sílabas diferentes ~, <14> por língua, em média, o sistema de símbolos necessários para representar as palavras através das sílabas ficou muito reduzido, fácil de ser memorizado e conveniente para a difusão da escrita na sociedade. O longo processo de invenção da escrita também incluiu a invenção de regras de alfabetização, ou seja, as regras que permitem ao leitor decifrar o que está escrito e saber como o sistema de escrita funciona para usá-lo apropriadamente. A escrita, pelo que se sabe hoje, começou de maneira autônoma e independente, na Suméria, por volta de 3300 a.C. É muito provável que no Egito, por volta de 3000 a.C., e na China, por volta de 1500 a.C., esse processo autônomo tenha se repetido. Os maias da América Central também inventaram um sistema de escrita independentemente de um conhecimento prévio de outro sistema de escrita, num tempo indeterminado ainda pela ciência, que talvez se situe por volta do início da era cristã. Todos os demais sistemas de escrita foram inventados por pessoas que tiveram, de uma maneira ou de outra, contato com algum sistema de escrita. Na Antiguidade, os alunos alfabetizavam-se aprendendo a ler algo já escrito e depois copiando. Começavam com palavras e depois passavam para textos famosos, que eram estudados exaustivamente. Finalmente, passavam a escrever seus próprios textos. O trabalho de leitura e cópia era o segredo da alfabetização. Note que essa atividade está diretamente ligada ao trabalho futuro que esses alunos irão desempenhar, escrevendo para a sociedade e a cultura da época. Muitas pessoas aprendiam a ler sem ir para a escola, já que não pretendiam tornar-se escribas. A curiosidade, certamente, levava muita gente a aprender a ler para lidar com negócios, comércio e até mesmo para ler obras religiosas ou obter informações culturais da época. A alfabetização, nesses casos, dava-se com a transmissão de conhecimentos relativos à escrita de quem os possuía para quem queria aprender. Aprender a decifrar a escrita, ou seja, a ler, relacionando os caracteres às palavras da linguagem oral, devia ser o procedimento comum. Aqui, não era preciso fazer cópias nem escrever: bastava saber ler. Para quem sabe ler, escrever é algo que vem como conseqüência. Com a escrita semítica aconteceu algo muito curioso e que, sem dúvida alguma, foi proposital para facilitar o uso do sistema de escrita e sobretudo o seu aprendizado, ou seja, o processo de alfabetização. <15> Ao formar seu sistema de escrita, os semitas escolheram um conjunto de palavras cujo primeiro som fosse diferente dos demais. Como nenhuma palavra naquelas línguas começasse por vogal, a lista ficou apenas com consoantes. Essa escolha foi urna decisão muito importante porque reduziu os modelos de silabários da época, da escrita cuneiforme, por exemplo, de cerca de 60 elementos para apenas 21 consoantes. Para representá-las graficamente, foram escolhidos hieróglifos egípcios cujo aspecto figurativo lembrava o significado das palavras daquela lista. Por exemplo, a primeira palavra da lista era 'alef, que significava "boi", e o hieróglifo escolhido foi o que representava a cabeça de um boi. Dessa maneira, a figura da cabeça do boi passou a representar o som inicial da palavra 'alef, que era oclusiva glotal. E assim com as demais palavras e suas respectivas consoantes. Uma outra novidade decorreu desse fato: as palavras da lista passaram a ser os nomes das letras que representavam a consoante inicial dessas palavras. Além disso, esse nome passou a ser a chave para se saber que som a letra representava: aief representava a oclusiva glotal, por exemplo. A escolha de uma lista de palavras como essa constitui o que se chama de princípio acrofônico, ou seja, o som inicial do nome das letras é o som que a letra representa: o desenho da cabeça de boi representa o som da oclusiva glotal, porque o nome dessa letra é 'alef A segunda letra era Beth, representada por um hieróglifo que retratava a figura de uma casa; era usada para o som de B e significava "casa". A terceira letra era o Daieth, que significava "porta" e representava o som de D; tinha a forma gráfica da figura de uma porta, tirada também de um hieróglifo egípcio, e assim por diante. O princípio acrofônico foi uma das melhores idéias que apareceram nos sistemas de escrita: além de permitir uma grande simplificação no número de letras, trazia de forma óbvia como se devia proceder para ler e escrever. Uma vez identificada a letra pelo nome, já se tinha um som para ela. Juntando os sons das letras das palavras em seqüência, tinha-se a pronúncia de uma dada palavra — o que, feitos os devidos ajustes, dava o resultado final de sua pronúncia; e, pronunciando, o significado vinha automaticamente. Para se alfabetizar nesse sistema de escrita, bastava a pessoa decorar a lista dos nomes das letras, observar a ocorrência de consoantes nas palavras e transcrever esses sons consonantais, usando o princípio acrofônico.Para escrever David, por exemplo, bastava identificar as consoantes DVD, procurar, na lista de letras, aquelas que começam com sons de D e V e escrevê-las. Já os gregos, como precisassem fazer alguns ajustes nas próprias consoantes, uma vez que, em grego, o conjunto de consoantes era diferente daquele das línguas semíticas, resolveram escrever não apenas as consoantes, mas também as vogais, mantendo o mesmo princípio acrofônico. Assim, por exemplo, a letra egípcia que representava pictograficamente a cabeça de um boi foi usada, como vimos, pelos semitas para representar uma consoante oclusiva glotal, e a letra recebeu o nome da palavra que significava boi, ou seja, 'alef. Como em grego não houvesse consoante oclusiva glotal, a letra 'alef passou a representar a vogal A, agora denominada alfa. Apesar de manter o princípio acrofônico, os gregos adaptaram os nomes das letras semíticas para a sua língua. Para eles, a alfabetização acontecia de maneira semelhante à dos semitas, com a única diferença de que os gregos tinham de detectar na fala não apenas as consoantes, mas também as vogais, para escreverem alfabeticamente. Como sempre, a ortografia fixou a forma de escrita das palavras, para evitar que falantes de dialetos diferentes escrevessem as mesmas palavras de maneiras diferentes, seguindo apenas a observação da própria fala e o valor fonético das letras. Quando os gregos passaram a usar o alfabeto, aprender a ler e a escrever tomou-se urna tarefa de grande alcance popular. De fato, pode-se mesmo dizer que na Grécia antiga havia as escolas do alfabeto. Os romanos assimilaram tudo o que puderam da cultura grega, inclusive o alfabeto. Práticos como sempre, acharam interessante o princípio acrofônico do alfabeto grego, mas perceberam que não precisavam ter nomes especiais para as letras: era mais simples ter como nome da letra apenas o próprio som dela. Dessa forma, mantinha-se o princípio acrofônico e ficava ainda mais fácil usar o alfabeto e se alfabetizar. Foi assim que alfa, beta, gama, delta, épsilon, etc. transformaram-se em a, bê, cê, dê, e, etc. Os semitas, os gregos e os romanos nos deixaram alguns "alfabetos": tabuinhas ou pequenas pedras ou chapas de metal onde se encontravam todas as letras, na ordem tradicional dos alfabetos. Na verdade, serviam ~, <17> de guia para as pessoas aprenderem a ler e a escrever, ou mesmo quando fossem escrever. Tais documentos foram, por assim dizer, as mais antigas "cartilhas" da humanidade: uma cartilha que continha apenas o inventário das letras do alfabeto. A alfabetização, na Idade Média, em geral ocorria menos nas escolas do que na vida privada das pessoas: quem sabia ler ensinava a quem não sabia, mostrando o valor fonético das letras do alfabeto em determinada língua, a forma ortográfica das palavras e a interpretação da forma gráfica das letras e suas variações. Aprender a ler e a escrever não era uma atividade escolar, como na Suméria ou mesmo na Grécia antiga. Nessa época, como as crianças já não iam mais à escola, as que podiam eram educadas em casa pelos pais, por alguém da família ou até mesmo por um preceptor contratado para essa tarefa. Isso se estende desde a época clássica latina até o século XVI d.c. Como o alfabeto tinha no nome das letras o princípio acrofônico, que é a chave de sua decifração, bastava o aprendiz decorar o nome das letras para ter condições de iniciar a decifração da escrita, a qual se completava quando, somando-se os valores das letras, descobria-se que palavra estava escrita. Isso era altamente facilitado pelo fato de os aprendizes serem falantes da língua que estavam decifrando, o que ajuda em muito as tentativas para descobrir, entre as várias possibilidades, a leitura correta. O contexto lingüístico e as ilustrações sempre ajudaram com informações complementares, facilitadoras do processo de decifração. Vê-se, pois, que a alfabetização pode perfeitamente acontecer fora da escola e do processo escolar, podendo ser feita em casa se a isso as pessoas se dedicarem. Ainda hoje, muitas pessoas aprendem a ler em casa: algumas porque decidiram não esperar a escola chegar, outras porque foram expulsas da escola e resolveram aprender fora da tradição escolar. Um exemplo famoso desse último caso é Thomas Edison. Com o uso cada vez maior da escrita na sociedade e com a produção crescente de livros escritos à mão (e depois impressos), o alfabeto passou a ter um problema a mais: foram surgindo formas variantes de representação gráfica das letras (sem modificar o inventário do alfabeto). Isso fez com que uma letra passasse a ser apenas um valor abstrato do alfabeto, que podia ser representado por muitas formas gráficas, as quais, agora, o usuário do sistema de escrita tinha de conhecer. <18> A primeira manifestação desse fato aconteceu quando das letras capitais (as maiúsculas — que eram as únicas do sistema de escrita latina) surgiram as letras minúsculas com forma gráfica diferente das antigas, que passaram a chamar-se maiúsculas. Isso aconteceu sem que as letras perdessem seu valor fonético e sem que a ortografia das palavras mudasse. Agora, o usuário da escrita precisava saber que 'A" e "a" são a mesma letra e, portanto, "CASA' equivale a "casa". Isso trouxe um problema novo e complicado para a alfabetização e para os leitores, em geral. Não bastava saber o alfabeto, seu princípio acrofônico e a ortografia: era preciso, ainda, saber fazer a categorização correta das formas gráficas, reconhecendo a que categoria pertence cada letra encontrada nas diferentes manifestações gráficas da escrita. Nesse caso, a ortografia mostrou uma vantagem a mais: além de servir para neutralizar a variação lingüística na escrita, do ponto de vista fonético, passou a ser o guia interpretativo do valor da variação gráfica das próprias letras. Este último aspecto pode ser observado ainda hoje, quando descobrimos (ou desconfiamos) que letra está escrita, ao analisar o todo. Como sabemos, ainda através da ortografia, quais letras devem compor aquela palavra, acabamos nos convencendo de que determinada forma gráfica está representando uma letra e não outra. Na escrita cursiva, esse princípio é posto em prática a todo instante. Notas Thomas Alva Edison (1931), considerado um dos maiores inventores do milênio, era americano de Milan Obio. Patenteou 1093 inventos, inclusive a lâmpada elétrica o gravador o microfone e o projetor de cinema. Freqüentou a escola por apenas três meses, sendo dispensado por ser "confuso de cabeça e não conseguir aprender". Nunca mais voltou para a escola tornando-se um autodidata com a ajuda da mãe, uma es- professora. O APARECIMENTO DAS CARTILHAS Com o Renascimento (séculos XV e XVI) e, sobretudo, com o uso da imprensa na Europa, a preocupação com os leitores aumentou, uma vez que agora se faziam livros para um público maior, e a leitura de obras famosas deixou de ser coletiva para se tornar cada vez mais individual. Por isso, a preocupação com a alfabetização passou a ter uma importância muito grande. A primeira conseqüência disso foi o aparecimento das primeiras "cartilhas". Nessa época, surgem as primeiras gramáticas das línguas neolatinas, e esse foi outro motivo que levou os gramáticos a se dedicarem também à alfabetização: era preciso estabelecer uma ortografia e ensinar o povo a escrever nas línguas vernáculas, deixando de lado cada vez mais o latim. <19> A seguir apresentamos um breve apanhado das primeiras obras de alfabetização que surgiram na Europa entre osséculos XV e XVIII. Jan Hus (1374-14 15) propôs uma ortografia padrão para a língua tcheca e, juntamente com este trabalho, apresentou o ABC de Hus: um conjunto de frases de cunho religioso, cada qual iniciando com uma letra diferente, na ordem do alfabeto. Essa obra era voltada para a alfabetização do povo. Em 1525, foi publicada na cidade de Wittenberg uma cartilha do ABC intitulada Bokeschen vor leven ond kind, que continha o alfabeto, os dez mandamentos, orações e os algarismos. Em 1527, Valentim Ickelsamer incluiu, numa obra semelhante, listas de sílabas simples. Esse tipo de obra permanece com esquema semelhante até o século XVII. Somente no século XVIII, apareceram as primeiras gravuras das letras iniciais, por exemplo, a letra S com o desenho de uma cobra, a letra A com a figura de uma escada, etc. O educador tcheco Jan Amos Komensky, mais conhecido como Comênius (1592- 1670), fez de sua obra Orbis sensualispictus ("O mundo sensível em gravuras"), publicada em 1658, um livro de alfabetização em que as lições vinham acompanhadas de gravuras para ajudar e motivar as crianças para os estudos. São João Batista de la Salle escreveu, em 1702, um regulamento para as escolas que fundara, chamado "Conduite des é coles chrétiennes" ("Conduta das escolas cristãs"), publicado em 1720. Com essa obra, pode-se ter uma idéia bem detalhada de como eram as aulas naquela época, inclusive as de alfabetização. O ensino era dividido em "lições", cada uma tendo três partes, uma destinada aos alunos principiantes, outra aos médios e a terceira aos avançados. A primeira lição era a "tábua do alfabeto"; a segunda, a "tábua das sílabas"; a terceira, o silabário; a quarta, o segundo livro, para aprender a soletrar e a silabar; a quinta (ainda no segundo livro) cuidava da leitura para quem já sabia silabar perfeitamente, etc. No terceiro livro, os alunos aprendiam a ler com pausas. Para ensinar ortografia, o professor mandava os alunos copiarem cartas- modelo e documentos comerciais para aprenderem, ao mesmo tempo, coisas úteis para a vida. Nesse modelo de ensino, aparece uma distinção clara entre ler e escrever. A leitura era dirigida para as coisas religiosas; a escrita, para o trabalho na <20> sociedade. Esse modelo de escola partiu da França e teve grande repercussão nas escolas dirigidas por religiosos em outros países. Após a Revolução Francesa, surgiu o Ensino Mútuo, que se espalhou sobretudo entre povos anglogermânicos. O pedagogo alemão José Hamel, em sua obra Ensino Mútuo, descreve o método de alfabetização em detalhes. Os alunos aprendem em aulas de 15 minutos, estudando exercícios fáceis e em coro ao redor de lousas colocadas nas paredes da sala. O ensino é nitidamente coletivo, sendo dado para classes e não mais com atenção individual. O ensino com muitos alunos numa classe acabou criando um tipo de escola para as crianças, as escolas infantis, jardins de infância ou escola maternal, iniciadas por Robert Owen (1771- 1858) em 1816 para os filhos dos operários de sua fábrica têxtil de New Lanark, na Escócia. Essas escolas logo se espalharam e passaram a cuidar da alfabetização das crianças. O pedagogo alemão Friedrich Froebel (1782- 185 2) fundou o primeiro jardim de infância (Kindergarten) em 1837. A Revolução Francesa trouxe grandes novidades para a escola: uma delas foi a responsabilidade com a educação das crianças, introduzindo a alfabetização como matéria escolar. Alfabetização popular nessa época significava a educação dos ricos que não tinham ligação com a nobreza, ou seja, membros da burguesia. Diante dessa nova realidade, as antigas cartilhas sofreram uma modificação notável. Com a escolarização, o processo educativo da alfabetização tinha de acompanhar o calendário escolar. Como as antigas cartilhas fossem simples esquemas, passaram a ser mais desenvolvidas. O estudo foi dividido em lições, cada uma enfatizando um fato. O ensino silábico passou a dominar o alfabético. O método do bá-bé-bi-bó-bu começava a aparecer. Com poucas modificações superficiais, esse tipo de cartilha iria ser o modelo dos livros de alfabetização. A moda das escolas que ensinavam as crianças a ler e a escrever espalhou-se pelo mundo. Apesar de a escola se encarregar da alfabetização, os alunos que freqüentavam essas escolas pertenciam a famílias com certo status na sociedade. O povo simples e pobre continuava fora da escola. No Brasil, até as primeiras décadas deste século, a escolarização da maioria das <21> pessoas que iam à escola pública não passava do segundo ou do terceiro ano. Alguns documentos do final do Império mostram que as Escolas Normais não tinham alunos e o governo era obrigado a dar vantagens extras àquelas pessoas que trabalhavam com alfabetização. Naquela época, os professores das escolas públicas eram em geral eleitos pela comunidade e tinham um mandato determinado. Muitos professores queixavam-se dos baixos salários, razão pela qual as poucas escolas públicas lutavam para conseguir quem desse aulas. CARTILHAS DA LÍNGUA PORTUGUESA João de Barros (1496-1571) escreveu a gramática portuguesa mais antiga, publicada em 1540. junto com a gramática, publicou a Cartinha, que é um outro diminutivo de "carta", ao lado de "cartilha". O nome "cartinha" ou "cartilha" tem a ver com "carta", no sentido de esquema, mapa de orientação. A Cartinha de João de Barros trazia o alfabeto (em letras góticas, que eram as da imprensa da época); depois, vinham as "taboas" ou "tabelas", com todas as combinações de letras, que eram usadas para escrever todas as sílabas das palavras da língua portuguesa. Em seguida, havia uma lista de palavras, cada uma começando com urna letra diferente do alfabeto e ilustrada com desenhos (como: nau, tesoira, etc.). Por último, vinham os mandamentos de Deus e da Igreja e algumas orações. João de Barros incluiu também um gráfico que permitia fazer todas as combinações de letras das "taboas". A Cartinha de João de Barros não era um livro para ser usado na escola, uma vez que a escola naquela época não alfabetizava. O livro servia igualmente para adultos e crianças. Para se alfabetizar, a pessoa decorava o alfabeto, tendo o nome das letras como guia para sua decifração, decorava as palavras-chave, para pôr em prática o princípio acrofônico, próprio do alfabeto, e depois punha-se a escrever e a ler, interpretando, nas "taboas" (ou tabuadas), as sílabas da fala com a correspondente forma de escrita. Notem que a ortografia não tinha vez, O método estava mais voltado para a decifração da escrita do que escrever corretamente. <22> A cartilha do ABC, que há poucos anos se podia comprar até em alguns supermercados ou em certas lojas de estações de trem e rodoviárias, segue o mesmo esquema da cartinha de João de Barros. Muitas pessoas que não podem ir à escola, ou que saíram dela porque foram consideradas "burras" demais para aprender, acabam aprendendo a ler através de livrinhos como esse. Uma cartilha famosa foi a de Antonio Feliciano de Castilho, chamada Método portuguez para o ensino do ler e do escrever, publicada em 1850. Essa obra merece um estudo detalhado. Uma de suas características mais importantes é o emprego dos chamados "alfabetos picturais ou icônicos", já usados na Grécia antiga e muito em voga durante o Renascimento — na verdade, até hoje aparecem nas cartilhas modernas. Castilho apresentava também "textos narrativos" para ensinar o uso das letras, fazendo urna lição para cadauma delas e para os dígrafos. A segunda edição, de 1853, intitula-se Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever Obra tão própria para as escolas como para uso das famílias. <23> Além do método de Castilho, outra cartilha portuguesa que ficou muito famosa inclusive no Brasil foi a de João de Deus (1830-1896), chamada Cartilha maternal ou arte de leitura. Utilizava um modo de escrever letras com destaque dentro das palavras, desenhando-as com hachuras; dessa forma, o aprendiz se concentrava no que de novo era apresentado. A cartilha de João de Deus apresentava já uma forte tendência para o privilégio da escrita sobre a leitura, embora, no título da obra, haja um destaque à leitura. Essa cartilha foi, sem dúvida, o modelo para muitas outras que vieram depois e que chegaram até os nossos dias. Entre os livros que pertenceram a D. Pedro II, encontra-se, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, uma cartilha intitulada: Manual explicativo do método de leitura denominado escola brasileira, organizada por Francisco Alves da Silva Castilho (e dedicada à classe dos professores de primeiras letras), publicada no Rio de Janeiro em 1859. Já pelo título pode-se notar que essa cartilha opõe o método do Castilho brasileiro ao do Castilho português. O autor foi professor em Campo Grande e alfabetizava as crianças pobres, passando depois a se dedicar à alfabetização de adultos. Ele chama a atenção para o fato de que se devem ler palavras inteiras e não letras ou sílabas. Seu método começa sempre com urna leitura coletiva, depois individual e, então, vêm os exercícios de escrita, seguindo o método que ele denomina "sintético/analítico". <24> No Brasil, depois da grande influência da Cartilha maternal (1870), de João de Deus, apareceram inúmeras outras. Entre elas há quatro tipos bem marcantes, com métodos e estratégias diferentes de conduzir o processo de alfabetização. O mais antigo (até a Cartilha maternal) foi chamado de método sintético. Partia-se do alfabeto para a soletração e silabação, seguindo uma ordem hierárquica crescente de dificuldades, desde a letra até o texto. Com a Cartilha maternal, começa o método analitico, que vai assumir importância maior na década de 30, quando a psicologia passa a fazer testes de maturidade psicológica e a condicionar o processo a resultados obtidos nesses estudos. Um exemplo típico desse caso é a Cartilha do povo (1928), de Lourenço Filho, e o famoso Teste ABC (1934), do mesmo autor. Com o passar do tempo, apareceram mais obras que seguiam o método misto, ou seja, cartilhas que misturavam estratégias do método sintético e do analítico. A cartilha Caminho suave (1948), de Branca Alves de Lima, com o período preparatório, é um bom exemplo. No final dos anos 90, têm surgido obras que se classificam como construtivistas e que se propõem a aplicar os ensinamentos da psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro e Ana Teberosky ao processo de alfabetização programada através de livro didático. Um livro como Primeira leitura para crianças, de A. Joviano, é um tipo de cartilha. Na introdução, o autor traz muitas considerações a respeito da forma de alfabetizar. Nota Primeira leitura para crianças, de A. Joviano João de barro leva no bico uma bola de barro para fazer o ninho João leva uma bola de barro leva uma bola para seu ninho uma bola vai no seu bico fazer bola de barro com o bico vai uma bola no bico de João de barro Leva João, o barro para fazer bola! <25> AS CARTILHAS E A ALFABETIZAÇÃO As primeiras cartilhas escolares até cerca de 1950 ainda davam ênfase à leitura. Achavam importante ensinar o abecedário. A leitura era feita através de exercícios de decifração e de identificação de palavras, por meio dos quais os alunos aprendiam as relações entre letras e sons, seguindo a ortografia da época. Havia um cuidado com a fala (e sobretudo com a pronúncia), voltado para o padrão social, trazido para a escola a partir de textos de autores famosos. Copiava-se muito, e os modelos eram sempre os bons autores, ou seja, autores famosos da literatura. Como acontecia com as gramáticas, a norma de bem escrever era a imitação dos bons escritores. A cartilha dá ênfase à escrita A cartilha baseada na leitura passou, em seguida, por uma modificação radical, já na década de 50, quando a escola começou a se dedicar à alfabetização dos alunos pobres, carentes de recursos materiais e culturais na vida familiar, que empregavam dialetos diferentes da fala culta. A ênfase passou a ser dada à produção escrita pelo aluno e não mais à leitura. O importante, agora, era aprender a escrever palavras. A atividade escolar deixou de privilegiar a aprendizagem e passou a cuidar quase que exclusivamente do ensino — aquilo que o professor deveria fazer em sala de aula. Em lugar do alfabeto, apareceram as palavras-chave, as sílabas geradoras e os textos elaborados apenas com as palavras já estudadas. As famílias de letras passaram a ser estudadas numa ordem crescente de dificuldade. Completadas todas as letras, o aluno começava seu livro de leitura, agora também programado de maneira a ter dificuldades crescentes, libertando aos poucos o aluno da cartilha e levando- o a ler autores de textos infantis. Essa cartilha já trazia em si o esquema de todas as outras cartilhas que apareceram depois, até recentemente, caracterizando a alfabetização pelo estudo da escrita e usando como técnica o monta-e-desmonta do método do bá-bé-bi-bó-bu. Parecia que ia dar certo, mas não foi bem assim. A cartilha parecia um caminho suave, mas não era. E a escola percebeu logo de início que muitos alunos tinham dificuldade em seguir o processo escolar de alfabetização. E as reprovações na primeira série tornaram-se freqüentes. <26> Até o advento do ciclo básico na década de 80, a média de reprovação na primeira série era de cerca de cinqüenta por cento. Apesar de todos os esforços para superar essa situação, a média de reprovação sempre se manteve por volta de cinqüenta por cento. Diante dessa realidade, muitos alunos abandonavam a escola, não conseguindo superar essa barreira inicial; outros desistiam logo depois, e apenas uns poucos, cerca de dez por cento, conseguiam concluir a última série do ginásio (na época, o correspondente à oitava série do primeiro grau, ou seja, do ciclo II do ensino fundamental). O manual do professor Pode-se dizer que a experiência escolar da alfabetização com cartilhas foi desastrosa. Os dados estatísticos mostram que a escola não consegue alfabetizar mais de cinqüenta por cento de seus alunos. A repetência e a evasão escolar foram sempre um monstruoso fantasma para as crianças, pais e professores. Diante de um quadro desolador e perturbador, a escola começou a investigar mais uma vez o que estava errado com a alfabetização escolar. A primeira coisa que saltava aos olhos era o fato de as cartilhas serem livros esquemáticos demais, o que podia dificultar a sua aplicação. Alguns professores podiam não saber exatamente como usar aquele tipo de livro, comprometendo assim o processo educativo. Era necessário, pois, dar uma ajuda especial aos professores, uma orientação mais pormenorizada, subsídios mais práticos para uso em sala de aula. Foi assim que a cartilha ganhou um companheiro: o manual do professor. As cartilhas que sobreviveram passaram a ter seu manual do professor, com raríssimas exceções, como a Cartilha Sodré. Mesmo assim, o índice de repetência continuouassustador. Onde será que residia o segredo de tanta reprovação na primeira série? A cartilha era "logicamente" perfeita, o professor tinha todos os subsídios necessários e prontos para aplicar o método das cartilhas; então, a dificuldade deveria residir nas crianças. Devia haver "algo" em certos alunos que não permitia que aprendessem adequadamente. Os manuais do professor apostam na ignorância deste e por isso não passam de verdadeiros scrzpts para serem representados nas salas de aula. Em vez de ensinar os conteúdos básicos do trabalho do professor, partem ~, <27> de considerações muito vagas a respeito do valor da educação, e vão, em seguida, dizendo o que o professor e o aluno devem fazer, passo a passo. Num certo manual encontra-se até um diálogo que o professor deve promover com seus alunos, sendo determinada a fala de cada um. Se o aluno responder diferente, o professor precisa ensiná-lo a responder o que está no manual, senão a lição não funciona. Nenhum diálogo. porém, ensina o que o professor deve fazer se não der certo. A única saída que se pode imaginar é repetir tudo de novo, para ver se o aluno aprende, o que é, obviamente, uma estultícia. Como o manual do professor não resolveu o problema da repetência e a evasão de grande parte dos alunos, a escola foi buscar socorro nas universidades. O período preparatório A partir dos anos 50, a psicologia começou a fazer um enorme sucesso nas universidades do Brasil. Muitos alunos pesquisavam para teses, aplicando teorias que, muitas vezes, nem eles próprios tinham entendido muito bem. E a escola tornou-se um bom laboratório para esses pesquisadores. Sem formação pedagógica, sem formação lingüística, os psicólogos começaram a aplicar uma variedade de testes e chegaram à conclusão de que a grande dificuldade de aprendizagem das crianças na alfabetização devia-se ao fato de essas crianças repetentes serem pessoas carentes. Carentes de alimentação na infância, carentes de estímulos ambientais, necessários para que pudessem desenvolver o conhecimento, carentes de emoções que as motivassem para aquisição de cultura, enfim, carentes de praticamente tudo. Assim, não podiam aprender. Para resolver o problema, já que não era conveniente deixar essas crianças fora da escola, foi inventado um período que precedesse a alfabetização, o chamado período preparatório, no qual as crianças seriam treinadas nas habilidades básicas até ficarem "prontas" para se alfabetizarem. Sem "prontidão" não se podia realizar um processo de alfabetização eficiente. Os psicólogos inventaram, então, uma série de coisas estranhas para as crianças fazerem antes da alfabetização: fazer curvinhas para cá e para lá, completar figuras, fazer bolinhas, dizer se uma caixa de sapato é maior do que uma caixa de fósforos ou não, localizar o gatinho à direita e à esquerda da menina numa figura cm que ela aparece de frente e de costas, fazer o ~, <28> coelhinho ir da esquerda para a direita numa linha curva até chegar à toca, etc. Além da cartilha e do manual do professor, surgiu agora o livro de "exercícios de prontidão". CAGLIARI, 1997c, p. 193224. > Num artigo intitulado "O príncipe que virou sapo", discuti alguns aspectos mais importantes da teoria do "déficit" das crianças ou, como alguns chamam, "a síndrome da dificuldade de aprendizagem". A discussão é longa, mas as conclusões são muito evidentes. A universidade foi responsável pelo mal que causou à educação com o período preparatório e os exercícios de prontidão, convencendo os professores de algo que a academia achava cientificamente correto, mas que era um grande equívoco. Os testes aplicados às crianças foram mal elaborados, envolvendo questões de linguagem, sem levar em conta o conhecimento dos conceitos lingüísticos envolvidos, sobretudo da noção de variação lingüística. O que aqueles psicólogos pensavam da linguagem era algo muito diferente do que os lingüistas dizem a respeito da linguagem. Em meio a tantos equívocos, os resultados só podiam ser igualmente equivocados. Por trás de tudo, o que se nota é um grande preconceito contra a pobreza e as crianças menos favorecidas. Os assim chamados "pré-requisitos lógico-formais" da teoria da prontidão são semelhantes aos argumentos de preconceito racial, baseados na teoria da carência sociocultural e na teoria da superioridade racial. Mais antigamente, as mulheres tinham sido discriminadas de maneira semelhante, com mil teorias acadêmicas, que pretendiam provar que a mulher era um ser inferior porque tinha um volume de massa cerebral menor do que o homem. As crianças pobres têm mais coisas para aprender, ao entrar na escola, do que as crianças ricas, por causa da história de vida de cada uma e da natureza das nossas escolas. Isso, no entanto, não deve ser confundido com falta de capacidade mental, perceptiva, motora, psicológica, ou seja lá o que for. As crianças pobres passaram a ser tachadas de deficientes, excepcionais e carentes, simplesmente porque falavam ou escreviam errado, segundo a opinião desses acadêmicos. A questão central desse problema é essencialmente lingüística. Ao analisar com os devidos cuidados lingüísticos os fatos de linguagem que a escola diz que atrapalham o progresso dos alunos na alfabetização, logo se verifica que esses alunos "incapazes" são, na verdade, falantes de variedades lingüísticas estigmatizadas pela sociedade. <29> Como a escola não aceita isso e não pode dizer que tem preconceito contra a pobreza, começou a achar razões mais sutis para disfarçar seus preconceitos. Fazendo curvinhas, ninguém aprende a escrever nem a ler. Para não escrever espelhado, de nada adianta ficar fazendo exercício sobre coordenação motora direita e esquerda. Aliás, algumas pessoas se confundiram com relação a isso, justamente por causa dos exercícios de prontidão, uma vez que nunca sabiam se direita e esquerda era para ser respondido em função de quem vê ou do objeto visto: a direita de quem vê é a esquerda do objeto visto, e vice-versa. Perguntar a uma criança se uma caixa de sapato é maior ou menor do que uma caixa de fósforos é uma ofensa. As crianças respondem a perguntas dessa natureza porque, apesar de acharem a brincadeira de mau gosto, são sempre muito dóceis e condescendentes. Perguntar a uma criança: "O que é dentro?" é uma maldade, porque o próprio professor não sabe responder e, quando responde, simplesmente exemplifica, o que, sem dúvida alguma, não é uma resposta à pergunta que fez à criança. Se um professor disser a uma criança: "Dentro da cozinha que fica dentro da escola tem uma geladeira e dentro do congelador tem um sorvete dentro de uma caixa amarela... você pode pegar que é todo seu" e deixar, de fato, a criança fazer o que lhe foi dito, não há criança que não saiba o que quer dizer "dentro de". Por coisas como essas (e tantas outras...) é que o período preparatório não passa de um grande equívoco pedagógico e psicológico. Está tudo tão errado, que a melhor solução é abandona-lo por completo. Apesar do enorme esforço em aperfeiçoar a "prontidão" nos mínimos detalhes, o índice de cinqüenta por cento de reprovação na primeira série manteve-se mais ou menos inalterado. Aquela imensa parafernália não servia para resolver o mais importante, que era a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças. Em vez do período preparatório e dos tradicionais exercícios de prontidão, o professor pode fazer inúmeras outras atividades mais inteligentes, que contribuam de fato para o processo de alfabetização. Umadelas, de valor inestimável, é propor aos alunos que façam muitos desenhos livres. A sofisticação e a riqueza dessa atividade são tantas que por si só valem tudo o que se pensava alcançar com o tradicional período preparatório. <30> Nota De acordo com a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação (1997), cabe aos estados decidir pela forma de promoção dos alunos: com ou sem reprovação. Os estados de Minas Gerais e São Paulo pretendem abolir a reprovação e introduzir a promoção automática no ensino fundamental. Algumas idéias, mesmo plenamente justificáveis, demoram a ser absorvidas pelos órgãos oficiais, por causa muitas vezes de uma discussão mal conduzida. No Brasil é evidente a confusão que se costuma fazer entre avaliação (necessária sempre) e promoção (que deveria ser automática). Veja a respeito as entrevistas A escola não deve reprovar ninguém" (CAGLIARI, 1988b) e Avaliação e promoção" (CAGLIARI, 1 996e). ALFABETIZAÇÃO HOJE Apesar de todas as interferências recentes no processo de alfabetização, a prática escolar mais comum em nossas escolas ainda se apóia na cartilha tradicional (a cada ano com nova roupa e maquiagem). Quando o professor diz que não adota a cartilha, continua usando o método da cartilha, fazendo ele próprio o que antes vinha nos livros didáticos. Contudo, há cada vez mais um número crescente de professores que estão conduzindo um processo de alfabetização diferente do método das cartilhas, procurando equilibrar o processo de ensino com o de aprendizagem, apostando na capacidade de todos os alunos para aprender a ler e a escrever no primeiro ano escolar e desejando que essa habilidade se desenvolva nas séries seguintes, até chegar ao amadurecimento esperado pela escola. Cada vez mais professores estão se dedicando seriamente ao próprio objeto de estudo e ensino, que é a linguagem. Velhas idéias, porém básicas, como ensinar o alfabeto, as relações entre letras e sons, os diferentes sistemas de escrita que temos no mundo em que vivemos, a ortografia, estão voltando a ter importância na alfabetização. Por outro lado, o "entulho" que se acumulou com o tempo, enchendo a alfabetização de ridículos exercícios de prontidão e coisas semelhantes, está sendo eliminado aos poucos da prática escolar. Mesmo o "entulho gramatical" que se cristalizou na primeira série, como o estudo de categorias gramaticais, número, gênero, grau, etc, tem sido removido, trazendo para o trabalho de alfabetização um esforço concentrado na aprendizagem da escrita e da leitura como decifração da escrita e do mundo através da linguagem. Num esforço de muitas pessoas, a começar pelo estado de São Paulo, conseguiu-se introduzir na escola o "ciclo básico", juntando a primeira e a segunda série. A idéia inicial era ter mais dois ciclos posteriores, um incorporando a terceira, a quarta e a quinta série, e outro, a sexta, a sétima e a oitava série. Desse modo, o aluno seria submetido a uma avaliação de promoção ao final de cada ciclo. Infelizmente, só foi posto em prática o cicio básico, o que deu a entender a muita gente que o objetivo era apenas mudar as estatísticas de reprovação dos alunos da primeira série, uma vez que agora a promoção era automática. Muitos outros equívocos apareceram juntamente com o ciclo básico, alguns ~, <31 > motivados pelos próprios órgãos oficiais da educação. Apesar disso tudo, com ele foi possível realizar uma grande discussão sobre a situação da alfabetização em nossas escolas e introduzir novos estudos e novos modos de trabalho, com grandes vantagens para a educação como um todo. Além disso, foi possível tratar a alfabetização sem o medo da reprovação, levar adiante um trabalho de ensino e de aprendizagem que não tinha mais a nota como objetivo a ser alcançado, mas a formação, a instrução, enfim, a educação. ALFABETIZAÇÃO E ESCOLA A história da alfabetização e das cartilhas fala por si. Aqui, como em outros campos, vemos como a escola veio para complicar tudo. A alfabetização que poderia (e deveria) ser um processo de construção de conhecimentos que se faz com certa facilidade, tornou-se um pesadelo na escola. A razão principal é a atitude autoritária da instituição escolar. A autoridade escolar funciona melhor depois que os alunos estão "domados". Porém, nas primeiras séries, as crianças resistem mais porque ainda não aprenderam a se submeter a tudo o que ouvem e vêem. A individualidade ainda é uma marca forte da personalidade das crianças, mas, infelizmente, já não se pode dizer o mesmo dos alunos das últimas séries e sobretudo de níveis mais altos de escolaridade. Enquanto a alfabetização escolar ficou presa à autoridade de mestres, métodos e livros, que tinham todo o processo preparado de antemão, constatou-se que muitos alunos que não trabalhavam segundo as expectativas dos mestres, métodos e livros eram considerados incapazes e acabavam de fato não conseguindo se alfabetizar. Por outro lado, as propostas de alfabetização que começaram a valorizar a criança e seu trabalho criaram um clima mais calmo e tranqüilo em sala de aula, uma melhor interação entre professor e aluno, proporcionando condições mais saudáveis para que o processo de alfabetização se realizasse. Os órgãos da administração pública encarregados da educação interferiram muito no trabalho escolar, quer ditando as regras da burocracia, quer, sobretudo, ditando ~, <32> as normas pedagógicas. Este é o país onde tudo é feito por meio de leis e decretos e, desse modo, todo o mundo tem uma escusa para o próprio fracasso, achando que tudo está bem e correto quando a burocracia está em dia. Como as escolas de formação de professores para o magistério, guiadas por estranhas idéias oriundas das faculdades de educação, não conseguem dar a formação necessária para os professores, os órgãos públicos encarregados da educação passaram a dar periodicamente "pacotes educacionais", de acordo com os modismos da época; é o método sintético, analítico, fônico, global, lúdico, psicopedagógico, freinet, semiótico, construtivista, lingüístico, etc. Os professores, atormentados com tantas mudanças, vítimas da própria incompetência, foram experimentando todos os "pacotes". Essa loucura serviu mais para criar nos professores uma aversão a tudo o que é novo, mesmo que traga contribuições realmente importantes para seu trabalho. Houve tantos "pacotes" e tantas decepções em tão curto prazo, que hoje muitos professores já não sabem mais distinguir o que vale e o que não vale, o que é certo e o que é duvidoso, o que é verdade e o que é engodo. Se sua competência já era muito limitada, agora além de tudo ficou confusa, diante de tantas "experiências educacionais". Alguns, novatos no trabalho ou ingênuos por natureza, ainda acham que a última moda é a panacéia para todos os males do passado e a esperança do futuro. CAGLIARI, 1992c, MAGNANI, 1993. e O que de fato está por trás de toda essa história é a presença de um grande número de professores alfabetizadores que nem sequer são capazes de avaliar o que vêem diante de seus olhos, quer se trate de um "pacote educacional, quer se trate de um aluno que não aprende o que eles ensinam. Um professor que não sabe avaliar com precisão se um método é bom ou não, dando as razões de sua conclusão, é um professor mal- preparado, incompetente. A culpa em grande parte vem das escolas de formação e dos "pacotes" educacionais mas em parte vem também da atitude comodista do próprio professor, que não se interessou pessoalmente em estudar o que nãolhe foi ensinado. Essa competência está ligada ao conhecimento de muitos aspectos da sua atuação como educador e como professor alfabetizador. Estudar pedagogia, metodologia psicologia é importante. Mas ninguém se forma um bom alfabetizador só com essas disciplinas. O fundamental é saber como a linguagem oral e escrita são e <33> os usos que têm. Resumindo, a competência técnica do professor alfabetizador se apóia em sólidos e profundos conhecimentos de lingüística e dos sistemas de escrita (de matemática e de ciências inclusive...). Esses conhecimentos, aliados aos de pedagogia e psicologia, fazem dele um profissional que sabe exatamente o que faz e por que faz de um jeito e não de outro. Se formássemos de maneira correta nossos professores alfabetizadores, teríamos, neste país, em pouco tempo uma outra realidade em termos de analfabetismo. Hoje, não só existem milhões de pessoas analfabetas, como também pessoas que foram, de fato, mal alfabetizadas. Nenhum método educacional garante bons resultados sempre e em qualquer lugar; isso só se obtém com a competência do professor. O Brasil precisa de uma modificação profunda na educação e, em especial, na alfabetização. Para isso necessita de professores com melhor formação técnica. As escolas de formação dedicam muito tempo às matérias pedagógicas, metodológicas e psicológicas e não ensinam o que devem a respeito da linguagem; nem sequer têm cursos de lingüística (ou de aritmética). Como um professor pode lidar corretamente com o fenômeno lingüístico, se ele nunca estudou lingüística? Ninguém alfabetiza só com metodologia e psicologia, como também não alfabetiza somente com lingüística. A escola precisa saber dosar todos esses conhecimentos para poder atuar de maneira correta. Nada substitui a competência do professor e, enquanto nossas escolas continuarem a formar mal nossos professores, a alfabetização e o processo escolar como um todo continuarão seriamente comprometidos. Nota Não se pode encerrar mesmo um sucinto relato da história da alfabetização sem mencionar a importância da figura de Paulo Freire. O chamado Método Paulo Freire dirigido sobretudo para a alfabetização de adultos — foi aplicado em larga escala em outros países, além do Brasil como outros grandes educadores que se dedicaram à alfabetização. Paulo Freire trabalhou mais com a intuição o bom senso e menos com rigor científico ao tratar de fatos da linguagem. Sua obra mais importante está voltada principalmente para questões ligadas à política educacional e à pedagogia em geral. <34> 2 O ensino e a aprendizagem: os dois métodos A questão metodológica não é a essência da educação, apenas uma ferramenta. Por isso, é preciso ter idéias claras a respeito do que significa assumir um ou outro comportamento metodológico no processo escolar. É fundamental saber tirar todas as vantagens dos métodos, bem como conhecer as limitações de cada um. Como o assunto é muito vasto e complexo, e sobre ele já existe considerável literatura, apresentaremos apenas um esboço geral dos pontos mais importantes para a discussão que faremos em seguida. Existe, no mercado, uma quantidade enorme de livros e publicações a respeito de métodos de ensino (raramente de métodos de aprendizagem) que, num esforço para defender ou atacar certos procedimentos adotados pelas escolas, acaba confundindo seus leitores, os quais, em meio a tantas posições diferentes, ou mesmo contraditórias, já não sabem mais no que acreditar. Daí o descrédito de alguns professores na educação, fruto da indignação metodológica, oriunda dos pacotes educacionais e das contradições metodológicas a que são submetidos. Às vezes, é preciso voltar às origens, aos princípios básicos, às coisas mais simples e claras, rever a história, retomando uma visão correta do fenômeno. Para isso, é preciso rever alguns pontos gerais a respeito de ensino, aprendizagem e métodos. Por incrível que pareça, existe uma confusão muito grande entre ensino e aprendizagem em meio às pessoas que lidam com educação. O mais comum é se levar em consideração apenas o ensino, supondo que a aprendizagem ocorre automaticamente, como fruto inevitável do ensino, o que é um erro grosseiro. Muitos aceitariam a diferença sem problemas, na teoria, mas a prática mostra que a confusão é visível e está presente a cada passo. CAGLIARI, 1990; PATTO, 1990; PATTO 1997 O QUE É ENSINAR, O QUE É APRENDER Ensinar é um ato coletivo: pode-se ensinar a um grande número de pessoas presentes numa aula ou numa conferência, etc. Quem ensina procura transmitir informações que julga relevantes, organizadas do modo que lhe parece mais razoável, para que seus ouvintes aprendam algo que deseja transmitir. <36> Aprender é um ato individual: cada um aprende segundo seu próprio metabolismo intelectual. A aprendizagem não se processa paralelamente ao ensino. O que é importante para quem ensina, pode não parecer tão importante para quem aprende. A ordem da aprendizagem é criada pelo indivíduo, de acordo com sua história de vida e, raramente, acompanha passo a passo a ordem do ensino. No ensino, é muito importante o que se diz; na aprendizagem, o que se faz, mesmo quando o fazer significa dizer. Aprender não é repetir algo que foi ensinado, mas criar algo semelhante, a partir da iniciativa individual de quem aprende. Quando simplesmente se repete um modelo, não ocorre exatamente uma aprendizagem. Ela vai aparecer somente quando a pessoa, por ação própria, conseguir realizar algo de acordo com as expectativas alheias. A aprendizagem é sempre um processo construtivo na mente e nas ações do indivíduo. O ensino não constrói nada: nenhum professor pode aprender por seus alunos, mas cada aluno deverá aprender por si, seguindo seu próprio caminho e chegando onde sua individualidade o levar. Por isso, a aprendizagem será sempre um processo heterogêneo, ao contrário do ensino, que costuma ser tipicamente muito homogêneo. Escolas que se apegam demais ao processo de ensino, em detrimento do processo de aprendizagem, gostam de manter classes homogêneas, fazendo remanejamentos, sempre que oportuno e possível, para facilitar o processo de ensino, desconsiderando totalmente a natureza do processo de aprendizagem, entre outros fatores pedagógicos. Não é porque o professor ensina, que um aluno automaticamente aprende. Aprender depende muito da história de cada aprendiz, de seus interesses, de seu metabolismo intelectual. A maneira como aquilo que é ensinado passa a ser algo aprendido é do foro íntimo de cada indivíduo. Obrigá-lo a agir diferentemente é uma violência contra sua liberdade e racionalidade. Obrigar alguém a aprender alguma coisa é "lavagem cerebral". A aprendizagem precisa partir de uma opção individual. O fato de se ter um professor, uma classe, uma turma de alunos não significa que se tem uma escola. É essencial saber o que faz o professor e o que fazem os alunos, o que compete a cada um, o que cada um espera do outro. Sem uma visão clara e correta da atividade escolar, corre-se o risco <37> de se colocar em prática um processo de educação totalmente equivocado como, aliás, vem acontecendo muito freqüentemente neste país. Por outro lado, não é porque um professor não ensina algo, que um aluno necessariamente não aprende tal ponto. Há muitas maneiras de aprender: ir à escola é uma forma prática e organizada (pelo menos deveria ser) de aprender "as coisas da escola". Nada impede, todavia, que se aprenda com os pais, comum colega, por iniciativa própria, olhando os livros ou mesmo refletindo sobre o mundo. Afinal, antes da escola, as pessoas aprendiam como? Nossa cultura ocidental atual criou urna dependência exagerada das instituições escolares e seus métodos. As atividades de sala de aula estão voltadas para o que o professor faz ou deixa de fazer e deixam pouco espaço para que os alunos aprendam de outra maneira que não por intermédio do professor. Um aluno pode ensinar ao outro, os alunos podem usar sua criatividade para procurar explicações e soluções para os problemas escolares, refletir, pensar, tentar fazer, refazer, etc. São coisas que os alunos são capazes de fazer por iniciativa própria, se a escola criar condições de estudo que facilitem esse tipo de atividade. Infelizmente, nossas escolas reduziram-se cada vez mais à sala de aula e ao processo de ensino dirigido pelo professor. O PROFESSOR COMO EDUCADOR Alguns professores têm muita dificuldade em olhar para seus alunos e enxergar o que se passa com eles. Na maioria das vezes, sabem apenas aplicar o que aprenderam nas escolas de formação ou em livros, sem levar em conta se aquele é o momento adequado para o que pretendem fazer e se aqueles alunos se enquadram ou não no caso que querem aplicar. A insensibilidade dos professores, da escola e dos órgãos públicos com relação ao processo de aprendizagem é patente e geralmente catastrófica para o ensino. O que mais falta na educação deste país é a figura do educador. Há muitos professores e profissionais da educação, mas poucos educadores. Falta o professor educador que em primeiro lugar se preocupa em conhecer seus alunos e só depois diz a eles, de maneira clara, honesta e adequada, aquilo que os educa, de fato, para <38> a vida. A educação não se conhece a si mesma: quantas vezes se vê um órgão público tomar decisões obrigando todos os professores a agir de determinada maneira, sem respeitar a individualidade de cada um, seu modo de ser e de trabalhar. Exigir competência e honestidade profissional dos professores é algo de que nunca se vai abrir mão, mas isso não significa que se deva fazer com os professores o que alguns professores fazem com seus alunos: dizem e nem querem saber o que o outro pensa, como se toda ordem que vem de cima fosse sempre perfeita e inquestionável. Está na hora de devolver a educação aos educadores, está na hora de exigir daquelas pessoas que lidam com educação uma competência maior. A educação, no Brasil, é tão ineficaz que nem consegue gerenciar adequadamente a si própria, O que falta não é dinheiro: falta competência em todos os níveis para melhorar a educação. Infelizmente, não é raro encontrar nas nossas escolas professores analfabetos por opção, ou seja, professores que, depois de formados, pararam seus estudos. Não compram mais nenhum livro e raramente escrevem algo que não seja sua obrigação diária de sala de aula. Há muitos professores que passam anos e anos lendo e escrevendo as mesmas coisas, porque acham que aprenderam assim e assim devem ensinar. São professores que sabem ler e escrever, mas não usam esse conhecimento. a não ser para repetir todos os anos as mesmas práticas educativas. A evidência maior da incompetência da educação neste país encontra-se na falta de um projeto de educação. Muito se fala sobre o assunto, mas, em vez de um projeto de educação estruturado e de valor, tem-se um amontoado de leis e regulamentos, juntamente com pacotes metodológicos que alguém ou um grupo de pessoas decide impor a todos os demais. O grande trabalho educativo deve voltar às mãos do professor. Ele precisa ter liberdade de ação para que se possa exigir dele competência e desempenho profissional à altura dos ideais da verdadeira educação. Sem o professor, não há escola, e, sem escola, não há educação de massa, de que o Brasil tanto precisa. A educação vive mergulhada numa burocracia sufocante. Ninguém parece confiar mais no professor. Todo mundo quer dizer o que um professor deve ou não fazer. Em vez disso, dever-se-ia dar mais liberdade e exigir mais responsabilidade. <39> DOIS MÉTODOS A educação não pode viver só do ensino, caso em que o professor vem para a sala de aula e despeja em seus alunos um longo discurso a respeito de um determinado ponto, como também não pode viver só da aprendizagem, deixando os alunos descobrirem tudo por si mesmos e livres para fazer o que bem entenderem. Deve haver um equilíbrio entre os dois tipos de atividade: o professor deve ensinar, caso contrário, as escolas não precisariam existir, pois cada um aprenderia por iniciativa própria. Por outro lado, o professor não pode ser o dono da educação, aquele que tem tudo sob seu comando. É preciso que haja também uma grande participação do aprendiz, porque afinal de contas é ele quem precisa aprender e mostrar que aprendeu e, sobretudo, saber que aprendeu. O aluno só pode ter certeza de que de fato aprendeu algo, quando, por iniciativa própria, conseguir utilizar adequadamente os conhecimentos que são objeto do seu processo de aprendizagem. Por essas razões, entre outras, pode-se dizer que a educação, na sua essência, tem dois métodos apenas, com muitas variantes: um baseado no ensino e outro na aprendizagem. A verdadeira prática educativa serve-se de ambos, na medida adequada. A exclusão pura e simples de um ou de outro torna o processo falho, às vezes com conseqüências sérias. Nos estudos pedagógicos, a metodologia do ensino ocupa um lugar muito importante e em conseqüência disso tem-se produzido uma vasta literatura a respeito. Talvez por isso mesmo, algumas pessoas tenham certa dificuldade de perceber o essencial em meio à complexidade dos detalhes. Por essa razão, apresenta-se, a seguir, um esboço geral e muito simplificado do que vem a ser um método de ensino. O objetivo aqui vai além da sala de aula e pretende mostrar que toda atividade de ensino e de aprendizagem, no seu extremo, tem as características básicas apresentadas abaixo. Em primeiro lugar, podemos dizer que todos os métodos, no fundo, baseiam-se em um dos dois métodos básicos, que vou chamar de método de ensino (método 1) e método de aprendizagem (método 2). Há uma tipologia de métodos que, considerando os seus processos de argumentação, costuma classifica-los de uma maneira ou de outra, como, por exemplo, método dedutivo, método indutivo, método mecanicista, <40> método construtivista, método global, método fônico, etc. Toda essa discussão pode, de certo modo, ser derivada das características daquilo que chamamos aqui de método 1 e método 2. São as variantes das duas vertentes principais. Como o enfoque neste livro é a alfabetização, o que se dirá a respeito desses dois métodos estará voltado para o processo escolar de alfabetização. No entanto, o método 1 e o 2 servem para qualquer atividade de ensino e de aprendizagem. DUAS CONCEPÇÕES DE UNGUAGEM É importante levar em conta ainda o fato de que, na prática, esses métodos dependem muito da concepção de linguagem que as pessoas têm: professor e aluno, quem ensina e quem aprende. A linguagem exerce, na alfabetização, uma importância fundamental. Na verdade, nesse momento, tudo gira em torno dela. Por isso, dependendo da maneira como uma pessoa interpreta o que a linguagem é, como funciona, que usos tem, pode-se ter um determinado comportamento pedagógico e métodos diferentes na prática escolar. Inversamente, pode-se ver com clareza na prática em sala de aula, nos métodos que a escola usa, qual é a concepção de linguagemsubjacente. Por exemplo, toda cartilha (independentemente do método que lhe seja atribuído pelo autor ou pelos entendidos) baseia-se exclusivamente no método do ensino. Mesmo atividades que devem ser feitas pelos alunos, devem seguir um modelo prévio, transmitido como ensino. Não conheço, em nenhuma cartilha, um espaço real dedicado ao processo de aprendizagem. O aluno procura sempre responder, com o que faz, de acordo com as expectativas do autor da cartilha ou do professor "que passa a lição". Essa atitude revela uma concepção de linguagem na qual o falante se vê diante de um impasse, tendo de decidir entre o certo e o errado. A linguagem apresenta-se como algo "que precisa ser corrigido". Ora, na vida real, quando as pessoas usam a linguagem, não têm esse tipo de preocupação: elas, simplesmente, pensam e falam o que quiserem, do jeito que acharem mais conveniente. Nenhum falante acha que fala errado, a não ser na escola, ou por influência da educação escolar. <41> Outro exemplo: o método fônico considera que uma criança, aprendendo a reconhecer e a analisar os sons da fala, passa a usar o sistema alfabético de escrita de maneira melhor. Essa idéia revela uma concepção de linguagem segundo a qual uma pessoa "fala melhor" quando monitoriza os sons que pronuncia, o que é falso. Quem fala "tchia" em vez de "tia" e aprende a escrever "tia", continua falando "tchia" e nem se dá conta da diferença, porque, quando falamos, nos preocupamos mais com as idéias que queremos transmitir do que com os sons das palavras que irão revelar nossos pensamentos. Há, ainda, o problema da ortografia, que não atrapalha quem fala "tchia" e tem de escrever "tia", mas que irá atrapalhar, e muito, quem fala "drento" e tem de escrever "dentro"; trata-se de regras lingüísticas diferentes. Outra concepção de linguagem muito facilmente detectada através da prática escolar é aquela que considera que a função mais importante da linguagem, senão a única, é a comunicação. A linguagem também serve para comunicar, mas os lingüistas estão cada vez mais convencidos de que a comunicação não é a função mais importante da linguagem, nem talvez a mais usada. Atrás de notícias encontram-se censuras, ocorrem tomadas de posição, transmite-se uma cosmovisão, além de outros pressupostos e de conotações que tornam o literal da comunicação algo secundário, quando não um pretexto para a manipulação das idéias do ouvinte. Quanto de enganação, de mentira e de outras coisas pouco louváveis existe numa simples enunciação ou numas poucas palavras escritas que encontramos pelo mundo e pela vida... Basta refletir um pouco, que essas verdades logo se revelam. Ora, a escola não pode ser ingênua e pensar que a linguagem é essencialmente comunicação. Juntar idéias e sons — formando a linguagem — não é a mesma coisa que "comunicar". A comunicação é uma função importante da linguagem, porém, esta não se reduz apenas a comunicar. O MÉTODO 1- VOLTADO PARA O ENSINO A situação inicial O método 1 volta-se exclusivamente para o processo de ensino. Nesse caso, a situação inicial do aprendiz é interpretada como um começo absoluto de tudo, <42> o marco zero de uma caminhada, uma página em branco onde se vai começar a escrever sua vida escolar. No começo do ano, o professor programa o que vai ensinar, sem sequer conhecer seus alunos, porque o que vai ensinar é um começo absoluto que não precisa de pré-requisito, é um ponto de partida considerado ideal para todos os alunos, independentemente da maneira de ser e de saber de cada um. Essa atitude é até mais comum nas outras séries do que na alfabetização, porque os alfabetizadores já aprenderam, na prática, que não podem ser tão cegos assim. Nas séries mais adiantadas da escola, essa é a regra geral. Alguns professores acham mesmo que a atitude mais adequada é "nem querer saber" o que os espera, que alunos vão ter. Os alunos que se virem, dizem. Nesse quadro, os envolvidos acham que ninguém pode reclamar do professor, porque ele começou do começo e de maneira igual para todos, dando chances iguais para todos. Obviamente, isso é muito conveniente para quem ensina, mas é má pedagogia. A técnica A técnica do método 1, na alfabetização, consiste na atividade do desmonta-e-monta da linguagem, em todos os seus níveis, de todas as formas possíveis. O método 1 considera que a melhor maneira de ensinar alguém é desmontando e remontando, ou montando coisas novas a partir de pedaços. Nesse caso, parte-se sempre de um modelo exemplar, por exemplo, uma palavra- chave. Depois, desmonta-se a palavra em "pedaços" (ou sílabas). Em seguida, desmontam-se as sílabas em letras (ou sons). Feito isso, a palavra é remontada. Assim, o professor espera que o aluno aprenda como funciona a escrita e que relações tem com a linguagem oral. Com alguns pedaços de palavras, pode-se descobrir que é possível formar palavras novas, diferentes das palavras-chave. Por exemplo, desmontando BATATA, tem-se BA, TA, TA. Com esses pedaços, pode-se formar as palavras "Tatá", "bata" e "taba". As sílabas geradoras (o bá-bé-bi-bó-bu) nada mais são do que a organização dos pedaços das palavras, extraídos das palavras- chave, para os alunos construírem palavras conhecidas e palavras novas. Alguns alunos vão seguindo as pegadas do professor e acabam fazendo tudo direitinho. Outros pensam que pegaram o "espírito da coisa" e passam a inventar formas <43> estranhas de escrever, segundo o professor. Por exemplo, escrevem "cavalolalelilolu" ou "tapabapa", mostrando que aprenderam as sílabas geradoras, no primeiro exemplo, e que sabem juntar os pedaços de palavras, formando "palavras novas", no segundo caso. Aprendem o jogo da escola, mas não sabem de seus limites e usos reais, porque o método não ensina isso. Alguns alunos unem palavras aparentemente sem sentido, porque seguem apenas as regras do jogo, que diz que, juntando dois pedaços de palavras, forma-se uma palavra nova. Como não conhecem todas as palavras da língua (todos nós aprendemos palavras novas todos os dias...), as crianças ligam os pedacinhos, achando que o professor, que sabe tudo, saberá qual o significado de uma palavra como "tapabapa", como sabia antes o que significava "taba", que a criança nunca tinha ouvido. Por mais estranho que pareça, alguns professores, diante de fatos como esse, vão direto ao aluno e perguntam "O que significa tapabapa?" O aluno fica assustado com a pergunta: afinal de contas, quem deve saber essas coisas é o professor, não ele. Ele apenas faz a lição, isto é, liga os pedacinhos de letras para formar palavras. A pergunta do professor faz com que o aluno sinta-se mais perplexo ainda, porque além de tudo aquilo que não entendeu, o professor ainda quer que ele se sinta culpado por um erro que ele não sabe onde está nem por que aconteceu. E, se aconteceu, foi mais por culpa do professor do que dele. Desmontar e montar as palavras da língua não é um uso natural nem da linguagem oral nem da linguagem escrita, apenas uma estratégia de ensino escolar. Na linguagem oral, falamos tudo junto, fazendo pausas apenas em alguns lugares. Não falamos fazendo pausa após cada palavra. Na escrita, separamos as palavras com um espaço em branco por razões ortográficas, não porque falamos desse modo. Na verdade o método pretende associar os pedacinhos das palavras aos sons, para que os alunos aprendam a ler. Ora, como a ortografia esconde todas as variações dialetais, logo se percebe que essa técnica causará confusão na cabeça das crianças.Ninguém pode esperar das crianças (na verdade de nenhum falante) que saibam se o que estão remontando com o bá-bé-bi-bó-bu forma uma palavra aceitável ou não na língua. Por outro lado, muito raramente um professor abre o jogo com os alunos e diz que não basta ligar os pedacinhos, mas que é preciso ir além e checar se a palavra que foi <44> formada existe, de fato, na língua e se sua forma de escrita está de acordo com as normas ortográficas. A base: o já dominado Com o método 1, parte-se do zero e vão-se acrescentando informações, uma após a outra, as quais o aprendiz precisa dominar. Dominado ou aprendido algo, passa-se ao conteúdo seguinte, que deve ser aprendido. Aprender é dominar, ou seja, devolver a quem ensinou o conteúdo ensinado. A base desse método é, pois, o conhecimento já dominado. Para isso, decorar é fundamental, sobretudo decorar de modo a repetir um modelo dado e que será cobrado como expectativa de resposta. A repetição é a prática mais comum para se dominar qualquer conhecimento. Portanto, o aprendiz é levado a repetir a lição até dominá-la, e, enquanto não provar que já o faz, repetindo-a corretamente, irá fazer tantas tentativas quantas forem necessárias. Não é raro encontrar professor que vive se queixando dos alunos, dizendo que sempre ensina as mesmas coisas e os alunos não aprendem. Esses professores mostram que usam o método 1. Nesses casos, nunca se questiona o ensino, mas tão- somente o comportamento do aprendiz. O método 1 não é capaz de aceitar que o mais importante não é dominar, mas saber aplicar um conhecimento para realizar uma tarefa. Nem sempre reproduzir um modelo garante a aprendizagem, embora garanta, sim, uma réplica de algo que o aprendiz pode fazer sem saber exatamente o que está acontecendo. Na alfabetização, alguns alunos são exímios repetidores de lições que dominam sem saber o que significam. Conseqüentemente, quando precisam aplicar o conhecimento de maneira criativa e individual, acabam revelando sua ignorância, produzindo escritas absurdas. Por exemplo, alguns alunos copiam corretamente o que lhes é solicitado, fazem sem erros os ditados das palavras já dominadas, escrevem pequenas frases em que só aparecem palavras "já dominadas", mas, quando se vêem diante de palavras cuja escrita lhes é desconhecida, ou não fazem nada, ou escrevem simplesmente amontoados de letras ou de sílabas geradoras. Esses alunos foram ensinados pelo método 1. Alunos que fazem isso raramente chegam a descobrir como o sistema de escrita funciona, como se decifra algo escrito para ler e, conseqüentemente, não chegam <45> a se alfabetizar. Como a escola não pode viver só do que é considerado dominado, logo chega o dia em que o professor se esquece disso e leva os alunos a aplicarem o que ele achava que tinha ensinado e que o aluno tinha aprendido (fazia tudo tão direitinho), e o resultado é uma enorme decepção para ele e, principalmente, para o aluno. O uso da memória O uso da memória, nas atividades escolares, é muito importante e não deve ser confundido com a prática de promover o ensino baseando-se no já dominado. A memorização é fundamental no processo de aprendizagem, mas não pode ser um truque, como acontece no método 1. Neste, o já dominado apenas revela um modelo repetido. No processo de aprendizagem, a memorização faz parte do processo de reflexão, trazendo para a prática do aprendiz todos aqueles conhecimentos necessários para que ele tome as decisões corretas. Às vezes, alguns professores, querendo fugir desse esquema, acabam desterrando a memorização do processo pedagógico escolar. Outras vezes, convencem-se, graças a argumentos falaciosos que ouvem em congressos, palestras ou lêem em livros, de que a memória não tem vez na aprendizagem, e de que aprender é entender e não decorar. São frases feitas de grande efeito e de pouco sentido. É preciso não confundir o memorizar que vem da reflexão de um simples repetir que vem de um exercício vazio de repetição controlada, como acontece com a prática pedagógica do método 1. São duas realidades muito diferentes. Memorizar é fundamental; repetir padrões do já dominado não é uma prática escolar saudável. A hierarquia: do fácil ao difícil O método 1 tem uma concepção de ensino/aprendizagem segundo a qual tudo deve ser hierarquizado, isto é, disposto numa ordem necessária, para que o ensino e a aprendizagem caminhem suavemente. Obviamente, essa hierarquia precisa ir dos elementos mais fáceis para os mais difíceis, como se esperaria de alguém que tem bom senso. Por essa razão, o método 1 gosta de atribuir valores às diferentes tarefas que a escola realiza: o professor precisa saber o que deve ensinar <46> primeiro, caso contrário poderá pôr a carroça na frente dos burros. Será que as coisas são mesmo assim, quando se trata do processo de ensino e de aprendizagem? Na verdade, para o processo de ensino, até certo ponto, a organização hierarquizada é uma atitude esperada, e caberá ao professor seguir uma certa ordem quando for ensinar. No entanto, essa ordem depende muito mais do jeito de cada professor trabalhar do que da verdade das coisas que ensina. E difícil, e talvez seja mesmo impossível, estabelecer uma hierarquia dos elementos que constituem um saber, mesmo em sua forma sistematizada, utilizada pela educação nos currículos escolares. É claro que alguém precisa aprender a ler, para poder ler um livro ou escrever uma carta sem a ajuda de outra pessoa; é claro que alguém precisa aprender aritmética para poder fazer cálculos corretamente. No entanto, tais afirmações são tão gerais, que não se aplicam ao que se quis dizer acima. A questão verdadeira reside no fato de a maioria dos professores e a totalidade das cartilhas considerarem, por exemplo, que a letra X é intrinsecamente mais difícil do que a letra A. Isso acontece porque partem do pressuposto que escrever palavras em que ocorre a letra X é mais difícil do que escrever palavras em que ocorre a letra A. Ledo engano. Na verdade, esses professores estão levando para a prática pedagógica algo que é muito peculiar a eles, e não ao processo de alfabetização. Para uma criança que não sabe ler nem escrever, qualquer palavra é igualmente difícil, não há nenhuma palavra fácil. Para quem duvidar disso, aconselho estudar árabe, por exemplo. Como a escrita dessa língua é muito diferente da nossa, achamos difícil escrever, no começo, qualquer palavra. Somente depois que aprendemos algumas tantas coisas é que vamos descobrir que certas palavras (por serem mais familiares a nós) são mais fáceis de escrever do que outras. Do mesmo modo vamos achar mais fácil escrever certas letras do que outras, porque erramos menos a ortografia com elas. A letra X só é difícil para quem já sabe escrever e tem uma certa prática, mas ainda se confunde com a grafia de certas palavras. A dificuldade do alfabetizando é de outra natureza. Para ele, tudo é difícil. Escrever "casa" é tão difícil quanto para o adulto alfabetizado escrever "ojeriza", "estender" ou "extensão". <47> As dificuldades dos alunos vão mais longe do que em geral imaginam os professores. O aluno que fala "drentu", "bardi", "andano" ("dentro", "balde", "andando") tem uma dificuldade muito séria para acertar a forma ortográfica dessas palavras, e essa dificuldade jamais é suspeitada pelos autores de cartilhas e pelos professores. Alguns professores acham que a letra X é mais difícil porque pode referir-se a vários sons, como o som de S ("externo") e o de SS("próximo"), o que é um absurdo, uma vez que há o mesmo som S em palavras como "externo" e "próximo". O que há de diferente é o uso das letras na escrita. De acordo com as regras de nossa ortografia, poderíamos escrever "esterno", mas, se escrevêssemos "prósimo", o som da letra S, nesse caso, seria o de Z, por estar entre duas vogais. É preciso, pois, separar fatos da fala dos da escrita ortográfica. Além do som de S, a letra X pode ter ainda os sons de KS ("táxi"), de CH ("lixo") e de Z ("exame"). Essas mesmas pessoas que reclamam das dificuldades do X esquecem-se de que uma letra como A pode apresentar muito mais casos de sons diferentes do que a letra X, dependendo do dialeto e de outros fatores lingüísticos. Por exemplo, um aluno fala "fizeru", "acharu", e esse som de U precisará ser escrito com as letras A e M: "fizeram", "acharam". Falamos "todamiga" e temos de saber que há um A que não foi pronunciado, mas que deve ser escrito: "toda amiga". Dizemos "rapais" ou "rapaich", mas, na hora de escrever, suprimimos o I: "rapaz". Por outro lado, em palavras como "caixa", é comum não se pronunciar o I que vem junto com o A, mas não se pode deixar de escrevê-lo. E a lista é longa. Esses casos, que realmente são armadilhas para os alunos, jamais entram nas considerações daqueles que acham que precisam ensinar primeiro A e bem depois X, porque A é mais fácil do que X, tanto para quem ensina, quanto para quem aprende. Na verdade, em todos os ramos do saber, é praticamente impossível dizer o que é mais fácil ou mais difícil: é fácil aquilo que se sabe e é difícil o que não se sabe; o resto não faz sentido. Muitas pessoas contam que descobriram como realmente funcionavam noções básicas de geometria e de álgebra somente quando aprenderam a fazer cálculos avançados. Isso não quer dizer que fossem maus alunos antes, mas precisaram ir além, estudar coisas que aparentemente são consideradas complexas para aprenderem coisas aparentemente <48> mais simples e mais fáceis. Fáceis e difíceis "aparentemente", mas não de fato. Controle rígido e avaliação O método 1 necessita de um controle rígido e absoluto sobre tudo o que é feito, cobrando a mais rigorosa e constante avaliação. Como o ensino é completamente hierarquizado, desenvolvendo-se passo a passo, do mais fácil para o mais difícil, e exigindo que o aprendiz progrida dominando o que foi ensinado, é preciso verificar a todo instante se realmente o aprendiz dominou o que deveria dominar, para que o ensino possa dar um passo adiante. A avaliação, aqui, contempla apenas o que foi ensinado e constitui-se do que o aluno precisa dominar e repetir. Se não houver uma avaliação rigorosa e constante, o aluno pode revelar dificuldade mais adiante, atrapalhando a programação do professor e a ordem natural das coisas, prevista pelo método 1. Se o aluno revelar que não dominou algum ponto, o método 1 manda que se volte atrás e obrigue o aluno a repetir tudo de novo, até demonstrar que já dominou, mesmo que tenha, no final do ano, de repetir o ano todo, voltando àquele zero inicial, àquele ponto de partida em que o aluno é encarado como uma folha de papel em branco. Na avaliação, o que conta são os erros e não os acertos. Como o acerto é considerado previsível dentro da perspectiva do já dominado, são os erros que irão mostrar que o aluno precisa parar e recuperar o que ainda não dominou. O problema desse método de ensino é o erro do aluno, não o que ele aprende. Isso é tão ridículo, sobretudo para as crianças na alfabetização, que elas não conseguem entender como a escola pode ser tão injusta. O aluno escreve urna história de dez linhas e, só porque cometeu dez errinhos, ganha nota cinco. E as outras coisas que escreveu certo, as outras trezentas e oitenta letras que foram escritas corretamente, e o resto que fez e fez bem, não conta? Já que errou uma palavra com J ou G, precisa fazer cópias para dominar a lição estudada, desconsiderando-se todas as demais ocorrências de J e de G que o aluno escreveu corretamente? O método 1 é implacável com a avaliação: errou, tem de voltar atrás e repetir a lição. É pela importância exagerada e equivocada dada a esse tipo de avaliação, que os ditados, na alfabetização, passaram a ser uma das <49> atividades mais importantes e freqüentes. Ditado só serve mesmo para avaliar o processo de ensino, fazendo aparecerem erros, e em nada contribui para a aprendizagem. O aluno não aprende fazendo ditados. Não é pensando que ele vai descobrir, naquele momento, como se escreve uma palavra. O ditado, na verdade, visa a detectar apenas se o aluno já dominou ou não o que se pede nas lições. A fixação da aprendizagem Uma vez constatado que o aluno sabe algo, que já dominou um certo conteúdo programático, o método 1 manda que se faça imediatamente a fixação da aprendizagem. A fixação da aprendizagem é um reforço na atividade de ensino, cujo objetivo é fazer com que o já dominado fique sempre consciente na mente do aprendiz, como naquele momento da avaliação. Nesse caso, em geral, a cópia é a maneira mais comum com que o método 1 trabalha a fixação da aprendizagem, dando-se preferência àquele tipo de cópia repetitiva e longa. Mais raramente, acontece uma revisão geral para que o conteúdo novo seja avaliado e fixado dentro do conjunto geral de conhecimentos a que pertence. Repetir e repetir é o que manda o método 1. O que fazer com o erro No método 1, o erro serve para indicar que o aluno não dominou algum conhecimento nas avaliações. Fora isso, o erro é um problema que o método não sabe resolver. Por isso, a solução que adota é ignorá-lo. Não se discute e muito menos se analisa o que está errado na tarefa do aluno. Simplesmente ensina-se o certo. Há, na tradição pedagógica de nossas escolas, sobretudo nas classes de alfabetização, a estranhíssima idéia de que não se pode mostrar o erro ao aluno, discutir o erro, porque isso levaria o aluno a aprender o errado, tendo maiores dificuldades futuras para fixar o certo. Não deixa de ser curioso ouvir uma afirmação muitíssimo comum segundo a qual a professora não pode deixar o aluno diante de uma escrita errada, porque assim ele fixa o erro e depois não consegue mais corrigir. Por que as crianças fixariam apenas o que está errado, não fazendo o mesmo com o que está certo? Não há aí uma certa discriminação? Alguns professores apagam o que os alunos escrevem errado e colocam o certo, <50> na santa e ingênua crença de que escondendo o erro e mostrando apenas o certo, seus alunos aprenderão melhor. Aprender pelos efeitos O método 1 faz com que o aluno aprenda pelos efeitos, não pelas causas. Se o aprendiz precisa reproduzir o modelo e corresponder às expectativas do professor que ensina, não precisa saber por que acertou ou errou: basta acertar e está tudo em ordem. O método garante a certeza ao aluno de que seguindo as instruções, passo a passo, irá chegar ao resultado esperado. Se acontecer qualquer imprevisto, o aluno não contará com nenhuma ajuda específica que o faça sair do impasse, porque o método não prevê nada fora daquilo que foi efetivamente ensinado e copiado pelo aprendiz. O aluno não pensa no que faz, simplesmente se deixa guiar por um processo de tentativa-e- erro. Obviamente, a escola não tem sido tão rígida assim, na prática, mas infelizmente também não tem estado muito longe dessa realidade. Um bom método de adestramento Como se pôde observar no quadro descrito anteriormente com tintas um pouco carregadas, o método 1 éfortemente mecanicista, dando tudo pronto para o aluno, esperando que ele siga sempre o modelo proposto. Se tentar inovar, corre o risco de errar e não saber mais retomar o caminho suave e tranqüilo das coisas já dominadas. O método 1 é, na verdade, um excelente meio de adestramento e em geral funciona bem com animais que precisam dominar certas habilidades para desempenhar certas tarefas, agindo sempre de um único e mesmo modo. Porém, as crianças são racionais, e pensam o tempo todo, mesmo quando a escola se esquece de que são seres humanos e, portanto, escravos da própria racionalidade. Tudo o que o ser humano faz precisa de um comando de seu pensamento: isso é sublime e, ao mesmo tempo, terrível. O método 1 não é bom para os seres humanos porque somos dotados da racionalidade e refletimos a todo instante. Quando fazemos isso, temos toda a liberdade do mundo de acharmos o que quisermos, seja lá a respeito do que for, com que idade for, na rua, na sala de aula, na igreja ou em qualquer lugar. <51> Refletir pode desviar o esperado pelo método 1, conduzindo os alunos por outros caminhos não previstos e atrapalhando a vida do professor e da escola. Os alunos que usam mais de sua própria reflexão se dão pior quando são submetidos a um processo de ensino baseado no método 1. Eles se dão melhor com o método 2, que será comentado logo a seguir. O MÉTODO 2— VOLTADO PARA A APRENDIZAGEM A base: a reflexão na aprendizagem O método 2 é o oposto do método 1 em tudo e caracteriza-se por estar voltado para o processo de aprendizagem. Leva em conta o fato essencial de que o aprendiz como um ser racional, vai juntando conhecimentos adquiridos pela vida toda, a partir do momento em que nasce. Para isso, usa sua capacidade de refletir sobre todas as coisas. O método 2 é, portanto, centrado na reflexão, oposto ao método de condicionamento. O método 2 concebe a linguagem como expressão do pensamento; o falante a usa de maneira intencional para interagir com os outros. Assim a comunicação é apenas um aspecto desse processo. A situação inicial Num método baseado na aprendizagem e na reflexão, a situação inicial de cada aprendiz é diferente, porque cada um tem a sua própria história de vida e de conhecimentos. Como diz uma velha recomendação da metodologia, deve-se partir sempre da realidade da criança. Mas o que significa, na prática, partir da realidade da criança? A escola, nesse aspecto, tem trilhado caminhos muito estranhos, não raramente achando que a realidade dos alunos é a "tábula rasa". Conhecer a realidade e a história do aluno é fundamental para uma prática educativa que respeite o aprendiz como um ser humano em sua plenitude. As classes de alfabetização formam-se necessariamente com um conjunto de alunos com histórias de vida diferentes, sendo, pelas contingências práticas, classes heterogêneas. Uns sabem algumas coisas, outros sabem outras; alguns já aprenderam algumas coisas <52> próprias da escola, outros não. Algumas crianças tiveram pré- escola e aprenderam os rudimentos da leitura e da escrita, outras nunca estudaram nada. Algumas crianças aprendem coisas em casa, têm lápis, papel, livros, outros nunca tiveram nada disso. Cada aluno tem urna história, e o método 2 vai levar isso em consideração. Como ficar sabendo qual é a realidade de cada um? Em vez de fazer avaliações coletivas — ditado, prova, etc. —, o professor precisará interagir com seus alunos, conversar com eles, deixar que cada um expresse o que sabe, à sua maneira, ou que se cale, porque ficar quieto também é um comportamento revelador. O professor precisará conversar sobre todos os assuntos, inclusive a respeito dos conhecimentos que a escola se propõe a ensinar aos alunos, para que a aprendizagem e o ensino sejam tarefas compartilhadas entre professor e alunos, através dos mais variados modos de interação. Entre outras coisas, o alfabetizador conversará com os alunos, logo no início, a respeito da história de cada um, da comunidade onde vivem, dos ideais de vida, da escola, da família e até a respeito do que os alunos acham que a escrita e a leitura são nas suas mais variadas formas. Ouvir os alunos é necessário para conhecer a realidade de cada indivíduo, ponto de partida do processo de aprendizagem de cada um. O professor pode ainda pedir para os alunos fazerem desenhos ou rabiscos numa folha de papel para ver como usam o lápis e o papel. Se alguém quiser, poderá escrever. Se alguém quiser copiar algo, também poderá fazê-lo, mostrando suas habilidades. Em suma, desde o começo do ano, o professor precisa incentivar os alunos a falar e trabalhar com lápis e papel. Isso permitirá a ele fazer uma análise dos conhecimentos e habilidades dos alunos, de seu comportamento lingüístico oral e escrito, porque essa é a melhor maneira de ficar logo conhecendo a realidade de cada um. O processo de ensino, segundo o método 2, levará em conta o fato de que cada aluno é diferente do outro, e que, portanto, o ensino não poderá ser somente coletivo, mas deverá em grande parte estar voltado para as peculiaridades de cada aluno ou de grupos de alunos que necessitem do mesmo tipo de assistência por parte do professor. Isso não significa que haverá somente aulas particulares. A aula é coletiva, mas numa sala de aula podem acontecer concomitantemente coisas <53> diferentes, sobretudo em relação às atividades realizadas pelos alunos. O professor deverá dizer coisas de interesse comum, voltando-se para toda a classe, e outras de interesse particular, nos momentos adequados, ensinando uma questão ou outra a um ou mais alunos, de maneira especial. Nota Tábula rasa: expressão de origem latina que era usada para significar que deixar limpa a tábula revestida de cera em que se escreviam mensagens breves que não deveriam permanecer escritas durante muito tempo. Hoje, a expressão refere-se à falta absoluta de conhecimento sobre determinado assunto. A técnica: explicações adequadas Como a base do método 2 é a reflexão, a técnica a ser usada se apóia nas explicações adequadas, transmitidas ao aprendiz nos momentos oportunos. A aprendizagem depende crucialmente de entender o que se quer saber, e quanto melhor e mais abrangente for esse entendimento, maior e melhor será o processo de aprendizagem. Entender é ter um conjunto de informações que expliquem a natureza, a função e os usos do conhecimento. Isso não se adquire linear nem automaticamente, pelo simples fato de se ter ouvido alguém falar dessas coisas, mesmo que as palavras sejam familiares e o texto, claro e correto. Cada um reage de uma maneira individual à construção do conhecimento, cada um tem um caminho próprio, cada um atribui valores próprios, muito individuais, aos elementos do conhecimento que constrói no processo de aprendizagem. Tudo isso precisa ser levado em conta, porque faz parte intrínseca da natureza humana e, portanto, de cada indivíduo. Dar explicações adequadas requer do professor um trabalho preliminar de descobrir a necessidade de esclarecimento de cada aluno e da classe como um todo. Para isso, o professor precisa ter um preparo profissional de alta qualidade: competência para analisar todas as situações de trabalho escolar que enfrenta na sala de aula, e para tomar decisões corretas como educador e como professor, dizendo aos alunos o que é necessário, da maneira adequada. Infelizmente, muitos professores são, na realidade, mal formados e, conseqüentemente, incompetentes, a ponto de preferirem usar o método 1, que vemcom toda a programação curricular já pronta nos livros didáticos. No método 1, a competência do professor pode ficar camuflada pela aplicação da lição, retirada de um manual qualquer. No método 2, a competência do professor é posta em xeque a cada momento. Dependendo de sua atitude, fica logo muito claro a todos (inclusive às crianças) o fato de um professor ser um profissional <54> competente ou não. O professor tem de procurar saber a razão de tudo o que seus alunos fazem ou deixam de fazer, caso contrário não saberá o que dizer. O professor não pode ter medo de dizer a verdade aos seus alunos. As crianças também gostam de saber as coisas como elas são, também gostam de ser tratadas seriamente. E fazer isso não é tratá-las como adulto; porém, o respeito sem preconceitos é fundamental. Alguns professores, por razões muito equivocadas, acham que precisam explicar tudo metaforicamente para os alunos. Essa é uma atitude preconceituosa para com a capacidade mental das crianças. O professor como mediador Costuma-se dizer que o professor é um mediador entre o saber e o aluno. Ser um mediador, aqui, é ajudar o aprendiz a construir seu conhecimento, passando a ele as informações adequadas, explicando o que tem de ser explicado. Essas explicações não devem referir-se apenas ao conteúdo programático organizado pelo professor, de acordo com um currículo, o que na prática representa a atividade de ensino. Devem, sobretudo, estar voltadas para os trabalhos que os alunos realizam por iniciativa própria, como atividade específica de aprendizagem. É dessa maneira que o processo de ensino, através da mediação do professor, interfere no processo de aprendizagem levado adiante pelo aluno. Quando o aluno erra alguma coisa, ou não sabe realizar uma tarefa, precisa ouvir do professor uma análise do caso e receber uma explicação adequada para entender o que fez ou deixou de fazer, a fim de agir corretamente nesses casos e fazer progredirem seus conhecimentos. O que fazer com o erro No método 1, quando um aluno erra, o professor volta atrás e repete tudo de novo. No método 2, quando uma explicação não serviu para levar um aluno a corrigir um erro ou a fazer determinada tarefa, o professor precisa procurar uma outra maneira de explicar. Não há burrice maior do que a daqueles professores que dizem que ensinam sempre as mesmas coisas e os alunos não aprendem. Procurar explicações adequadas requer saber abordar um problema de muitas maneiras, de ângulos diferentes, seguir caminhos alternativos. Se, apesar de todo <55> o esforço e competência do professor, ele ainda constatar que determinado ponto não está sendo devidamente entendido por um aluno (ou por uma classe), o que ele deve fazer é passar para o ponto seguinte, sem remorso, sem sentimento de culpa, sem preconceito contra a capacidade de aprendizagem dos alunos. Muitas vezes, para se entender algo aparentemente simples é necessário ter informações complementares, que o professor obviamente tem, mas o aluno não. Freqüentemente, é preciso ter conhecimentos pressupostos ou até mesmo saber relacionar coisas já conhecidas de uma forma determinada para que o novo conhecimento possa ser assimilado e aplicado. Se o professor marcar passo diante das dificuldades, o impasse pode se estabelecer, com sérias conseqüências para o processo escolar. Nessas circunstâncias, o melhor que ele tem a fazer é partir para outra, porque um dia, com ou sem as explicações do professor, os alunos acabarão aprendendo aquela questão deixada incompleta ou mal entendida. Quando os adultos discutem coisas sérias, é muito comum que fatos semelhantes aconteçam: tem-se a nítida impressão de que o interlocutor entendeu tudo errado, e, no debate, a questão é tratada de todas as maneiras possíveis; o resultado acaba sendo o mesmo: cada um sai pensando exatamente o que pensava antes, mesmo diante da evidência estrondosa de uma bela argumentação. Sem dúvida alguma, as pessoas não se convencem apenas graças a uma bela argumentação. Por que, na escola, as coisas deveriam ser diferentes? A concepção de aprendizagem A concepção de aprendizagem do método 2 baseia-se nas decisões que o aprendiz toma, levando em conta as explicações adequadas que recebeu. Isso faz com que ele se aventure no mundo do saber e procure a maneira correta de dar o passo seguinte, como conseqüência de tudo o que aprendeu até o momento. Aqui está o grande segredo da aprendizagem: o aprendiz não só aprende o ponto, mas aprende a aprender. A verdadeira aprendizagem proporciona ao aluno generalizar o processo de tal maneira que a intermediação do professor vai, aos poucos, cedendo lugar à sua própria independência e competência para buscar as explicações adequadas por si mesmo e a construir seu <56> próprio saber. Quanto mais cedo o aprendiz chegar a essa autonomia, melhor será para ele: aprenderá melhor, mais rapidamente, mais dados. O método 1 fixa o aprendiz à lição sob estudo, ao currículo, ao programa, ao que o professor manda fazer. Isso segura o ritmo de muitos alunos os quais, apesar de submetidos ao método 1, na prática agem por conta própria, seguindo o método 2. Para que o aprendiz possa tomar suas decisões, é preciso que a escola tenha um espaço especial em sua programação destinado a esse tipo de atividade. Na alfabetização, é fundamental que os alunos produzam trabalhos espontâneos, façam atividades a partir de sua iniciativa, do jeito que acharem melhor. Mesmo um trabalho com objetivos definidos, como fazer um cartaz ou escrever uma carta reclamando da destruição das florestas ou da poluição das cidades, pode ser realizado de maneira a permitir que a expressão individual de cada aluno encontre liberdade de realização. Avaliação: tudo serve No método 2, qualquer coisa que o aprendiz faça ou deixe de fazer serve como material para avaliação da aprendizagem. Avaliação, aqui, não significa dar nota ou conceito, como no método 1, mas realizar um estudo interpretativo daquilo que foi feito, para verificar o que está correto e o que está errado e por que está certo e por que está errado. A avaliação no método 2 tem como objetivo analisar as decisões tomadas pelo aluno ao fazer o que fez, do jeito que fez, para que o professor possa dar as explicações adequadas e para que o aluno corrija seus erros, melhore e dê um passo adiante na formação de seus conhecimentos. No método 1, a avaliação é sempre circunstancial, localizada, e pondera fato por fato isoladamente. No método 2, a avaliação leva em conta o processo de aprendizagem, a história de cada um dentro desse processo; é sempre cumulativa, exigindo uma comparação com o que já foi realizado. No método 1, basta constatar o erro, quantificar, dar a nota ou conceito e ponto final. No método 2, é preciso fazer um dossiê com os trabalhos dos alunos para estudar o caminho que o aluno está seguindo ao construir seus conhecimentos e saber que tipo de hipóteses ele faz a respeito das questões que está estudando. Não basta <57> constatar os erros e deficiências, é preciso interpreta-los e discutir o assunto com o aluno. Nenhuma tarefa é um trabalho isolado: faz parte de um conjunto de outros trabalhos que o aluno vem fazendo, e a avaliação precisa estudar cada caso dentro deste contexto maior. A nota é algo que não faz sentido no método 2. Em vez de nota, o método 2 responde com explicações. Esse tipo de avaliação do processo de aprendizagem em andamento, associado à intermediação do professor, incentiva o alunoa dar o passo seguinte, tentando generalizar os conhecimentos que já tem ou fazendo novas hipóteses sobre a nova questão com que se defronta. Caos e caminhos tortos Um método que privilegie a aprendizagem sobre o ensino nunca será um caminho linear, bem-definido, será antes um modo de progredir circular. Muitas questões serão tratadas em diferentes ocasiões, dependendo da maneira como o aluno reage e trabalha. O professor não precisa preocupar-se em levar um programa à frente, item por item. No final, se o processo de ensino e aprendizagem for bem equilibrado, os alunos acabarão aprendendo tudo aquilo que constitui a expectativa da escola para determinada fase do processo educativo. Na alfabetização, os alunos acabarão aprendendo a ler, a escrever, enfim, a fazer tudo certo e bonito. Esse resultado, no entanto, só começará a aparecer depois de certo tempo. No método 1, como tudo fica sob o controle do ensino, desde o início os alunos apresentam cadernos muito bonitos, com tudo certinho e no devido lugar, dando a impressão de que estão aprendendo às mil maravilhas. Depois de certo tempo, começam a aparecer os problemas, e o caos instaura-se na cabeça de alguns alunos, para desespero do professor, da escola e dos pais. No método 2, tem-se a impressão, no início, de que se está em meio a um caos, por causa do tipo de trabalho que os alunos fazem. Porém, à medida que o tempo passa, a rotina de trabalho leva os alunos a se organizarem melhor, a classe torna-se mais homogênea e, no final do ano, o que parecia um caos acaba revelando ao professor que valeu a pena. Por caminhos diversos, os alunos acabaram chegando aonde o professor queria que eles chegassem. E ninguém fica perdido no meio do caminho, como acontece com o método 1. <58> Como fixar a aprendizagem Como ficou claro pelo exposto acima, o método 2 faz com que o aluno aprenda pelas causas, não pelos efeitos. Nesse caso, o que vale são as hipóteses levantadas nos trabalhos, revelando as decisões que os alunos tomaram, seguindo um processo de reflexão. A fixação da aprendizagem, no método 2, é o outro lado da moeda da reflexão. Quando uma pessoa entende algo, ela automaticamente sabe e, portanto, não precisa "fixar". Isso não quer dizer que tudo o que entendemos (e sabemos) permanece ao nível da consciência o tempo todo, a vida toda. Mas quem sabe verdadeiramente sabe de cor, caso contrário, não sabe. Em muitos casos, sabemos como operar com certos conhecimentos, mas precisamos de auxílio externo para realizar determinadas tarefas. Isso também é saber, e o fato de memorizar todas as etapas intermediárias e procedimentos operacionais é simplesmente um exercício de tornar consciente fatos já entendidos e memorizados. Existe uma memorização que é intrínseca ao próprio ato de entender e aprender, e existe outra memorização que é simplesmente um ato de tornar consciente uma série de fatos do conhecimento. Os dois tipos de memorização são importantes no processo escolar. O que não faz sentido é a memorização como repetição de algo, sem conhecimento nem entendimento do que está sendo feito a não ser do próprio ato de repetir. OS DOIS MÉTODOS NA ALFABETIZAÇÃO No caso do método 1, os cadernos dos alunos mostram que eles logo aprendem a escrever usando apenas as formas já dominadas, mesmo que, para isso, tenham de abrir mão da habilidade que têm para produzir textos. As caricaturas de textos desse método tornam-se pretextos para o uso das palavras já dominadas. Salva-se a ortografia nos cadernos, mas sacrifica-se a produção de textos reais, o uso real da linguagem. No caso do método 2, o aluno aprende primeiro a ler, depois a escrever e somente então passa a se preocupar com a ortografia. No início, escreve a partir das hipóteses que tem sobre a ortografia. Nessa fase, costumam <59> aparecer as formas mais estranhas de escrita quando comparadas com a forma ortográfica estabelecida. Porém, essa prática permite que o aluno passe da habilidade que tem como falante nativo, de produzir textos orais, para a habilidade de produtor de textos escritos. No começo, será uma simples transferência do oral para o escrito. Aos poucos, no entanto, as regras do estilo escrito também começam a marcar presença. Tem-se a impressão, no início, de que o aluno nunca aprenderá ortografia. Com a produção de textos desde o início da alfabetização, salva-se o uso real da linguagem, quer na sua forma oral, quer na sua manifestação escrita. A ortografia é algo que se recupera facilmente com o tempo, com a ajuda dos dicionários e, principalmente, de muita leitura. Porém, quando um aluno entende que fazer um texto é simplesmente utilizar as palavras que sabe escrever, isso significa que ele está muito enganado com relação ao significado real da linguagem. Escrever assim é um erro que a própria escola mais tarde não irá perdoar. Não demorará muito para esse aluno encontrar um professor que diga que ele escreve mal e não sabe organizar um texto de forma correta. O aluno, que acreditava que bastava não errar a ortografia para obter um texto bem escrito, ficará perplexo e não saberá, de imediato, o que há de errado. A culpa será atribuída ao professor de português, e este, por sua vez, continuará dizendo que o aluno não foi bem alfabetizado. Uma boa nota nas avaliações nem sempre garante uma boa educação. Um método não é uma panacéia que resolve todos os problemas educacionais. Todavia, como se pode notar pelas observações anteriores, o processo educativo depende do método adotado. Os dois métodos podem alfabetizar, mas o método 1 o fará de uma maneira indesejável, embora aparentemente adequada. O método 2 exige experiência e competência do professor, paciência dos pais e uma escola preparada para ser uma oficina de trabalho, não apenas uma sala de aula onde o professor ensina e o aluno tem de se virar para aprender. <60> 3 Avaliação, promoção, planejamento A avaliação e a promoção são duas atividades pedagógicas sem as quais a escola não sobrevive, mas nem por isso as pratica de maneira exemplar. O primeiro ponto a ser levantado é a confusão que se estabeleceu nas nossas escolas (e em muitas outras no mundo moderno) entre avaliação e promoção. Nas nossas escolas a avaliação tem como única meta a promoção, ou seja, os alunos recebem notas pelos trabalhos que fazem para passar ou não de ano. Isso parece óbvio e natural para muitos professores, acostumados com essa prática. No entanto, é muito importante que essas duas atividades sejam feitas independentemente. A avaliação deve contemplar um julgamento sobre o que os alunos fazem para aprender e sobre o que o professor faz para ensinar, para que o ensino e a aprendizagem aconteçam da melhor maneira possível. A promoção julga da conveniência ou não de um aluno passar para as atividades escolares do ano seguinte. CAGLIARI, 1996e, NOTAS E CONCEITOS A prática de dar notas ou conceitos é o centro da confusão entre avaliação e promoção. Na verdade, esse hábito desvirtuou até mesmo o modo de avaliar. Algumas pessoas apresentam mil argumentos para dizer que conceitos são melhores do que notas, uma vez que os conceitos englobam menos categorias, facilitando, portanto, um julgamento mais amplo e com menos risco de erros. Certamente esse argumento é um contra-senso, porque se poderia contra-argumentar, entre outras razões, que as notas de O a 10 permitem avaliar com mais justiça do que o uso de apenas 5 conceitos. Na verdade, a questão central não é essa, mas opróprio fato de atribuir notas ou conceitos. Nem a avaliação nem a promoção precisam de notas ou conceitos. O surgimento de notas e especialmente dos conceitos deveu- se não só ao fato de se avaliar o certo e o errado no trabalho do aluno, como também ao fato de se premiar com um elogio o aluno aplicado aos estudos e castigar expondo ao vexame o aluno preguiçoso. Este último argumento é o mais comum para justificar o uso de notas e conceitos, Os professores dizem que, sem as notas, os alunos não estudam e não existe uma <62> competição que os estimule. Alguns acham que as notas são essenciais até para manter a disciplina. Ainda existem professores que reprovam por indisciplina. A necessidade de dar e receber nota tomou-se, com o tempo, compulsória nas atividades escolares e estendeu-se por todos os níveis, abrangendo todas as atividades. Como a escola educa para a sociedade, vemos que nossa sociedade passou a ter a mesma obsessão. Mesmo atividades que não precisam de julgamento de valor passam a ganhar notas, como um jogo social. Tudo pode ser traduzido em valores de O a 10, de acordo com qualquer parâmetro. Por ocasião da última Assembléia Constituinte, até os deputados e senadores passaram a ganhar notas de acordo com o seu desempenho. Uma bela mulher passa a ser conhecida como "mulher nota dez", a exemplo da tradução do título de um filme. Curiosamente, mas não sem razão, as notas são menos encontradas justamente nos esportes e jogos. Como o objetivo é muito claro, ganha quem consegue atingir tal meta: não adianta o time de futebol ter um excelente desempenho, se no último minuto o adversário, que jogava mal, faz o gol da vitória. No boxe, contam-se pontos, mas um nocaute basta para qualquer lutador vencer. Na patinação sobre o gelo e em muitas formas de ginástica olímpica, o júri dá notas baseado na realização de determinadas tarefas e na perfeição com que elas são realizadas. Neste último caso, as notas servem para classificar e indicam o nível do desempenho de cada um na competição, uma vez que o objetivo dessa atividade é apontar o campeão, ou seja, o melhor de todos. Nos concursos de seleção, a situação é semelhante: é preciso classificar para admitir um certo número de pessoas e excluir as demais. Em algumas escolas, as notas servem também para indicar o campeão da turma, da série, da escola. Como se vê, as notas estão por toda a parte. As notas, refletindo um julgamento de valor, funcionam bem quando se trata de classificação e, sobretudo, quando se pretende fazer uma seleção a partir dessa classificação. Isso é muito útil num concurso ou numa competição esportiva. Nesse sentido, vê-se claramente a relação entre notas e competitividade. Nosso problema, porém, é outro: será que os alunos, quando estudam, estão participando de uma competição, de uma seleção para ver quem fica e quem é excluído ou, simplesmente, quem é o campeão? Será esse o objetivo da escola, da educação, dos estudos? <63> Na prática, o uso de notas nas atividades escolares parece deixar bem claro que a escola optou por esses objetivos. Será que estudar é uma competição em que é preciso ganhar, senão se acabam as chances de continuar? Será que não se pode estudar por ideais mais nobres? Será que a escola não pode ter objetivos voltados mais para a formação e menos para a competição? Em qualquer ambiente escolar, é comum haver competição, pela própria natureza das atividades da escola. Quando se reúnem muitas pessoas, fazendo determinadas tarefas, a partir da capacidade de cada um, logo fica evidente que algumas fazem melhor, com mais arte e perfeição do que outras. E a comparação mostra quem é melhor e quem é pior nisso ou naquilo. Na vida, cada um se especializa naquilo que se julga melhor. O fato de que alguém é melhor em determinada tarefa não significa que é preciso desprezar todas as demais pessoas que não sabem fazer com a mesma perfeição. Uma análise das ocupações de trabalho em sociedade ilustra bem o que se disse acima. Cada um cumpre o seu dever da melhor maneira possível e a existência de diferenças é uma característica da própria sociedade. Pode haver promoção escolar sem competição através de notas? A promoção depende de como se faz a programação escolar e dos objetivos que se pretende alcançar. Nas escolas da Antiguidade não fazia sentido reprovar alguém: as pessoas iam para discutir idéias e muitas vezes cada um defendia seu ponto de vista contra o do mestre. A nota só entrou na escola quando a prática pedagógica tirou a aprendizagem como alvo e colocou o ensino em seu lugar. Ou seja, as notas surgiram quando os alunos começaram a ter de reproduzir o que o mestre ensinava, do jeito que era ensinado, deixando de lado as opiniões individuais. É por essa razão que as notas não avaliam o processo de aprendizagem do aluno ou sua esperteza intelectual, mas simplesmente sua capacidade de reproduzir ou aplicar um modelo dado pelo professor ou pelo livro didático. Basta fazer uma análise de provas, testes e exames, para descobrir que essas avaliações nada mais são do que um exercício de "faça segundo o modelo". Essas formas de avaliação exigem que os alunos repitam para o professor o que este lhes disse. Mesmo quando um aluno faz uma redação livre, a nota é fruto do que o professor ensinou e que acha que o aluno precisa reproduzir em seu trabalho, principalmente no que se refere à ortografia, à concordância e a uma <64> certa lógica no desenvolvimento do argumento. Essa prática de aplicar provas determinou o sentido que a avaliação e a promoção passaram a ter na escola. PROMOÇÃO AUTOMÁTICA A promoção é feita a partir dos resultados das notas, o que significa que, no fundo, depende da avaliação. É muito confortável saber que o artigo da Constituição brasileira que diz que toda criança dos 7 aos 14 anos tem direito à escolarização não faz nenhuma menção a notas nem avaliações. Certamente, também não se pensou que uma pessoa pudesse ficar durante 7 anos na primeira série simplesmente porque tem o direito de escolarização garantido pela Constituição. Intui-se que uma lei como essa existe para não ser cumprida, servindo apenas para mostrar para os demais países que o Brasil também se preocupa com a educação. Não só não há escolas para abrigar toda a população necessitada, como a própria escola encarrega-se de marginalizar grande parte das crianças de 7 a 14 anos, julgadas inaptas para o trabalho escolar. No caso, é um desrespeito não só à criança como também à Constituição. Uma pedagogia sadia e lúcida recomenda que a promoção seja automática. Aliás, a promoção não deveria sequer ser objeto de preocupação da escola, a não ser em casos muito excepcionais. Assim, seria candidato à repetição de ano o aluno que não tivesse assistido, por exemplo, a pelo menos metade das aulas, talvez por motivo de saúde ou de trabalho, desde que não tivesse compensado essa falta com conhecimentos escolares adquiridos fora da escola. AVALIAÇÃO E RENDIMENTO ESCOLAR O rendimento escolar não é razão suficiente para reprovar ninguém. Pessoas que apresentam patologias deveriam ter uma escola especial para receberem uma formação adequada. Nesse caso, faz menos sentido ainda falar em reprovação. <65> Alguns professores ficam chocados quando ouvem dizer que o rendimento escolar, expresso por notas ou conceitos, não é razão suficiente para reprovar alguém. Algumas considerações bastam para esclarecer esse ponto, embora haja muito mais a ser dito. Em primeiro lugar, a nota serve paraque o interesse em passar de ano (ganhar diploma) se torne o objetivo maior da educação, deixando a idéia de formação, no sentido pleno da palavra, num plano secundário e mesmo dispensável. O aluno estuda não porque é importante para a vida, mas para livrar-se de mais uma competição intelectual. Uma análise honesta do que de fato acontece com o atual sistema de avaliação mostra que um aluno pode ter nota, passar de ano com louvor e não saber o conteúdo da matéria. Acertar nas provas nem sempre significa que o aluno aprendeu, assim como errar nem sempre significa que ele não estudou ou não aprendeu. Quantas vezes um aluno lembra logo depois da prova como se resolve uma questão? Mas, então, já não há mais tempo. O tempo da avaliação é irreversível, como irremediável é a nota. De nada adianta o aluno dizer para o professor no dia seguinte que ele sabe a lição na ponta da língua. A avaliação não volta atrás. Por outro lado, quantos alunos chegam mesmo a dizer, depois de terminada uma prova, que fazem questão de se esquecer de tudo, porque agora já conseguiram nota necessária para serem aprovados? Quantos estudantes esperam as férias para rasgar os apontamentos, queimar livros e tratar de esquecer a escola, porque a nota já garantiu a promoção e, talvez, até o diploma? Essa atitude é um alarme para a educação e significa, entre outras coisas, que esses alunos estudam apenas para ganhar nota e passar de ano. Esse será o típico cidadão que jamais se interessará pelos estudos depois de diplomado. Estudar não é uma atividade que se faça apenas na escola, mas ao longo da vida, como aprimoramento pessoal e profissional. A educação precisa modificar sua visão de si própria. E preciso educar para a vida, não para a nota. Qualidade de ensino e motivação A falta de nota não é responsável pela baixa qualidade do ensino. Num país como o Brasil, dizer isso é uma piada, uma vez que piorar o ensino é impossível. A qualidade do ensino se consegue com um trabalho <66> competente, quer com relação ao conteúdo técnico das matérias, quer na ação do professor como educador. E nada disso tem a ver com notas. Outro argumento, também inconcebível do ponto de vista pedagógico, é dizer que as notas servem de motivação para o aluno. Se o professor nunca passar uma prova, os alunos não estudam. Pelo menos com medo das provas, eles estudam um pouco. Os alunos acabam tendo esse comportamento porque a escola não deu a eles, desde cedo, uma outra perspectiva de trabalho escolar. Os alunos são vítimas desse processo, não culpados. Ainda nessa linha de raciocínio, alguns professores pensam que seu trabalho (ou o do colega) perde a seriedade, fica sem controle, se não houver provas exigentes e notas baixas. Alguns diretores até consideram que professor bom é aquele que passa muita prova e dá muita nota baixa. Professor que não faz isso, passa a ser avaliado como alguém irresponsável, que gosta de matar o tempo. Como pode ser diretor de escola urna pessoa com essa mentalidade? Avaliação e castigo escolar Se alguém quisesse fazer um livro sobre a vida na escola, encontraria, nas provas e notas, um tesouro em comportamentos patológicos e um sem-número de casos trágicos daí decorrentes. Já ocorreram até casos de suicídio devido a notas e reprovação escolar. O drama que pais e filhos passam a ter nas famílias por causa das notas é algo de que a escola nunca quis tomar conhecimento, embora seja ela a principal causadora dessas tragédias. Por fim, cria-se na escola aquele famoso clima de vingança mútua: professor faz prova para os alunos ganharem notas baixas, se sentirem humilhados e castigados. Em troca, os alunos revidam com uma enorme bagunça nas aulas e nas dependências da escola. Com o aumento das irregularidades de comportamento, o professor se volta de novo contra os alunos, usando sua arma terrível que é a nota. Surpreende-os com provas relâmpagos para complicar ainda mais a relação entre ensino e aprendizagem, comprometendo traiçoeiramente a promoção de alguns alunos e instalando um ambiente de guerra. Alguns professores elaboram provas já sabendo quais os resultados que irão obter: duas questões são escolhidas a dedo para que ninguém acerte; três questões são mal formuladas para enganar de certo modo e confundir <67> o aluno menos esperto; três questões são tão longas que exigem dos alunos um tempo que eles não vão ter para responder direito e de maneira completa; por fim, duas questões de resposta fácil, mas com pequenas armadilhas na escolha das palavras. Esses professores se gabam quando seus alunos erram ao responder as coisas mais banais da matéria. Acreditam que, dessa forma, estão ensinando seus alunos a estudarem direito, a não se deixarem enganar pelas aparências... Um professor que acompanha de perto o trabalho de seus alunos na sala de aula acaba percebendo o que eles sabem e o que não sabem, aluno por aluno. Este acompanhamento é a melhor forma de avaliação, e a mais honesta. A convivência mostra ao professor quem são de fato seus alunos. Essas informações são cruciais para o professor planejar adequadamente suas aulas e dirigir os trabalhos do aluno para que ele progrida. Uma prática semelhante realmente dispensa qualquer tipo de prova e nota. Filosofar sobre a justiça ou não das notas e conceitos é uma discussão bizantina, uma perda de tempo, e equivale a discutir se existe uma avaliação justa. Gostaria, não obstante, de dizer que o problema não está em haver ou não um teste objetivo ou um critério bem-definido para se atribuir uma nota justa. Como vimos, existem muito mais coisas por trás dos testes e critérios utilizados na avaliação, cujo envolvimento com as notas mostra que não é a maneira como a nota é dada que faz justiça ou não, mas o próprio fato de dar notas. O valor dos cálculos na avaliação Algumas vezes ouvi professores alfabetizadores dizerem que um aluno que acertasse mais de 70% da ortografia das palavras teria condições de passar de ano. Analisando, porém, a produção de crianças que tinham sido reprovadas e contando minuciosamente os acertos e os erros, constatei que quase sempre os alunos tinham um índice de acerto maior do que o mínimo exigido. Na verdade, a reprovação não vinha do cálculo de acertos e erros, mas da qualidade dos erros. O professor dizia que não podia aprovar o aluno que tinha escrito "mecadio" em vez de "mercadinho", ou "piçoa" em vez de "pessoa". Numa frase como: "Ze piriri fio uomino <68> mecadio" ("Zé Piriri viu um homem no mercadinho"), o professor achava que estava tudo errado, dizendo que havia apenas uma palavra certa. Obrigado a contar os erros de ortografia pelas letras — o que é mais justo — achou 8 erros e 18 acertos. (Uma contagem mais rigorosa mostraria que há 12 erros e 26 acertos, o que dá uma porcentagem de 3 1,57% de erros contra 68,43% de acertos nesta frase, uma das mais problemáticas do texto.) Se os professores tivessem olhos para ver também o que os alunos acertam, começariam a ver as notas com outros olhos. O erro é sempre muito chocante, mas os acertos não costumam despertar entusiasmo nos professores. AVALIAÇÃO SEM NOTA Tirar as notas da escola não significa acabar com o processo de avaliação. Assim como a promoção não precisa de notas, também a avaliação não precisa delas. A avaliação é uma atividade importante, que deve estar sempre presente na escola e na vida em geral. Na escola, a avaliação deve ser uma análise e interpretação do progresso do aluno. O professor tambémdeve se auto-avaliar. A avaliação é sempre uma atividade voltada para cada indivíduo de maneira específica, porque cada um é diferente dos demais, cada um tem uma história de vida diferente e apresenta uma realidade escolar peculiar. O progresso de um aluno não precisa ser igual ao de outro. O importante é que todos cresçam, trabalhando e fazendo o que tem de ser feito. Passar a mesma prova para todos os alunos de uma classe, sobretudo nas primeiras séries, é desconhecer a realidade de cada aluno. Somente aquele tipo de ensino massilicante, uniformizante, em que o professor manda e os alunos obedecem, leva um professor a aplicar a mesma prova para toda a classe. Não é porque o professor ensinou algo, que todos os alunos aprendem do mesmo jeito. Não é porque o professor ensinou, que já tem o direito de cobrar de seus alunos, na forma de provas ou chamadas, uma reprodução do modelo apresentado, como conteúdo específico ou como conhecimento derivado, aplicado à solução de algum problema. <69> O trabalho substitui a nota Uma escola sem nota precisa, em primeiro lugar, mudar seus objetivos e adotar um processo de educação para a vida, não para passar de ano. Nesse clima pedagógico, o que conta é o trabalho sério do professor e do aluno. A escola precisa trocar as provas, os testes, enfim as notas, por trabalhos que os alunos irão fazer, alguns sob orientação direta do professor, outros por iniciativa própria sob a supervisão dele. Se a escola incentivar os alunos a produzir trabalhos, e se esses trabalhos forem guardados, fica muito fácil para o professor provar, para quem quiser ver, como um aluno começou sem saber muito e, depois de uns tantos meses de aula, aprendeu e fez inúmeras coisas interessantes. Em vez de boletim de notas, OS professores deveriam ter arquivos para guardar os trabalhos que os alunos realizaram ao longo do ano. No final do ano letivo, o próprio aluno poderia ver, nesse arquivo, a história da sua educação naquela série e constatar o quanto progrediu. Através de uma prática intensa de realização de trabalhos, o professor tem condições de estudar o processo de aprendizagem de cada um de seus alunos e orientá-los melhor. Esse tipo de avaliação, porém, exige que o professor conheça profundamente o assunto que ensina para poder analisar e interpretar os resultados encontrados nos trabalhos e propor soluções e melhorias. Somente quem possui um conhecimento técnico sofisticado é capaz de conduzir um processo de avaliação contínuo durante o ano todo, levando em conta tudo o que o aluno fez ou deixou de fazer. Auto-avaliação e autocorreção Uma avaliação que acompanha o processo de alfabetização de cada aluno, além de ajudá-lo, servirá para o professor organizar melhor suas aulas futuras e adaptar seu programa de trabalho à realidade do dia-a-dia, durante o ano escolar. Com isso, o professor ensina ao aluno que avaliação é um ato contínuo, paralelo a tudo o que se faz, e o treina a se auto- avaliar e a refletir criticamente sobre o próprio trabalho. Alguns alunos nem sequer chegam a desconfiar de que podem errar por falta de um trabalho de avaliação acompanhada pelo professor, quando <70> realizam suas tarefas. A escola deve formar pessoas competentes não só para dizer e fazer, como também para julgar o que os outros e o que elas próprias fazem. O aluno na série seguinte Se todos os professores, incluindo não só os da alfabetização, mas também os demais, partirem da realidade de seus alunos, no começo do ano, para ensinar o que acham que deve ser ensinado, tem-se um argumento a mais para a promoção automática na escola. Uma programação geral deve distribuir conteúdos básicos para serem ensinados ao longo dos oito anos do primeiro grau. Se um aluno não aprendeu direito um ponto num ano, o professor do ano seguinte, em vez de reclamar do colega, tem de assumir seu papel e ensinar a esse aluno o que ele precisa saber. Portanto, a promoção automática não precisa se preocupar com a hipótese de um aluno não conseguir acompanhar a matéria no ano seguinte. Mesmo hoje, apesar das provas e das notas, quando um aluno é promovido, não se tem garantias de que ele aprendeu de fato o que estudou no ano anterior. Analisando friamente, constata-se que alguns alunos foram reprovados porque cometeram certos erros em suas provas. Quais serão esses erros, que conhecimentos tão importantes eles envolvem para que um aluno repita de ano? Encontramos, por exemplo, que o aluno errou o sujeito da oração, confundiu o predicativo do objeto direto com outra função sintática ou, mesmo, não soube resolver um binômio de segundo grau. Na alfabetização, os erros de ortografia prevalecem como causas de reprovação. Como avaliar essa avaliação, senão dizendo que é fruto de uma ingenuidade e uma ignorância que só poderia vir de uma escola tão desorientada como a nossa? < CAGLIARI, 1993c. > Será que vale a pena criar tantos problemas por tão pouco? O mundo não vai cair se o aluno não aprendeu o que é predicativo do objeto direto ou como resolver um problema de álgebra, ou qualquer dessas coisas que se tomam objeto de perguntas fatídicas nas provas e testes. Por causa de um predicativo do objeto direto, um erro de ortografia ou o binômio de segundo grau mal resolvido numa prova, muitos alunos já foram reprovados. A escola não sabe dimensionar esses fatos nem mede as conseqüências do que faz. Tal reprovação, além de causar danos emocionais nos alunos, ocasiona danos financeiros às famílias e ao governo. <71> O círculo vicioso de quem não aprende A avaliação por meio de testes e provas muito freqüentemente cria um problema sério para os professores: eles acabam acreditando que aquela forma de avaliação é de fato um espelho do processo de aprendizagem. E se o aluno vai mal na prova, o professor pensa que ele não aprendeu e repete tudo de novo, esperando que um dia o aluno devolva o que foi ensinado do mesmo jeito como foi passado. O processo de aprendizagem não funciona assim. Por isso, alguns professores dizem que ensinam sempre as mesmas coisas e os alunos nunca aprendem: isso mostra que esses mestres não são muito espertos. Por que não ensinar algo diferente? Talvez assim os alunos aprendam. Muitas vezes, para aprender adequadamente um ponto é preciso avançar bastante na matéria. Ora, se o aluno fica marcando passo em algumas idéias e não tem a chance de ver outras, pode ficar condenado a não aprender nada. UMA NOVA VISÃO DA AVAHAÇÃO E DA PROMOÇÃO Como vimos, a escola não sabe avaliar para corrigir e ensinar, mas somente para promover ou não o aluno. A formação de arquivos com os trabalhos realizados pelos alunos é o material de que o professor precisa para poder avaliar o progresso dos alunos. Agir assim requer uma mudança de atitude. Não acontece simplesmente porque alguém decretou uma lei ou uma norma. Deve fazer parte das convicções pedagógicas mais profundas do educador. A implantação do ciclo básico teve mais a pretensão de começar uma discussão sobre o estado da educação do que estabelecer a idéia, que muita gente passou a ter, de que haveria apenas o aumento do período de alfabetização de um ano para dois. A idéia mais elaborada contemplaria a promoção automática para todo o ensino fundamental e médio (primeiro e segundo graus). Muitos professores gostariam de mudar radicalmente sua prática pedagógica, mas encontram obstáculos nas normas e até mesmo no comportamento de diretores <72> supervisores e orientadores pedagógicos,sem mencionar a tradicional queixa dos pais. Se o patrão exige que o professor dê notas a seus alunos, ele pode até agir assim, mas certamente isso será feito com base numa avaliação do progresso de cada aluno e de seus trabalhos, e não através de provas e testes padronizados. Um professor que incentiva seus alunos a trabalhar nas aulas, pesquisando, fazendo todo tipo de atividade escolar, não pode dar outra nota senão 10 ou A. Ninguém pode reclamar disso, porque afinal de contas essa nota é mais do que justa: cada um fez o que devia, dentro de suas possibilidades, e isso é altamente educativo e uma excelente maneira de o aluno e o professor conduzirem o processo escolar. Os alunos podem ter notas sem ligar para isso, considerando uma tarefa do professor, uma obrigação profissional sem conseqüências educacionais. Estudar é outra coisa. É algo sério, que precisa ser feito com responsabilidade, como uma forma de respeito que cada pessoa precisa ter consigo própria. Outra questão que perturba muitos professores é o que fazer com quem não aprende. Na alfabetização, esse é um ponto muito grave: se o aluno não aprendeu a ler, o que vai fazer depois? Em primeiro lugar, se um aluno não aprendeu a ler, é porque o professor fracassou: não é possível que um ser humano não aprenda a ler durante um ano de escola. Infelizmente, isso acontece porque os professores não sabem lidar com esses casos: ficam repetindo sempre as mesmas coisas, em vez de fazer uma análise das dificuldades do aluno e orientá-lo de maneira específica. Quando o professor ensina com competência e seriedade, os alunos aprendem. Todos eles aprendem alguma coisa. Talvez não saibam reproduzir o modelo de maneira exata e completa, mas alguma coisa eles aprendem, e isso basta. < CAGLIARI, 1998a. > Fazer recuperação é uma tarefa desnecessária se na atividade do professor a recuperação estiver presente todos os dias, como deve estar. A necessidade de um período de recuperação surge somente quando o professor ensina seguindo seu programa, sem ligar para o que acontece com seus alunos. Então, de vez em quando, faz uma prova e recomenda uma recuperação para aqueles que tiraram nota baixa. Para os piores, recomenda <73> uma mudança para a classe especial. Para os repetentes incorrigíveis, a única solução que visualiza é a evasão escolar. O PLANEJAMENTO ESCOLAR A questão das notas e da promoção exige uma visão além da série em que o professor atua, especialmente se for na primeira série. As escolas costumam fazer seu planejamento, e os professores deveriam aproveitar essa ocasião para deixar bem claro o caminho que a instituição espera oferecer aos seus alunos nos anos de sua escolaridade. Apresentamos adiante uma sugestão de como o ensino deve ser abrangente, levando em conta as principais áreas da lingüística moderna. Um planejamento do ensino de português (deixando de lado os estudos literários...) deveria abandonar completamente a gramática normativa e desenvolver um trabalho epilingüístico, principalmente no ensino fundamental (primeiro grau), no qual as questões básicas da linguagem fossem tratadas através de um processo de reflexão sobre elas. Por causa da variação lingüística, sabemos que uma língua não dispõe de normas (gramática normativa) que controlam o certo da norma culta e o errado das variações dialetais, e sim regras (gramática descritiva) que mostram como todos os falantes, cada um do seu jeito, no seu dialeto, usam a linguagem. Uma gramática descritiva apóia-se em teorias específicas, como têm demonstrado os lingüistas modernos. Entretanto, para se chegar a essas teorias e a uma descrição adequada dos fenômenos lingüísticos é preciso refletir sobre a língua, num primeiro momento, usando apenas a intuição do sujeito falante e conhecimentos básicos sobre a linguagem. Depois o resultado dessa reflexão tornar-se-á uma interpretação exata dentro dos domínios de uma teoria. Ao processo de reflexão sobre os fatos da linguagem sem "compromissos" preestabelecidos por determinada teoria, chama-se epilingüismo. As aulas de português deveriam ensinar os alunos a refletir sobre a linguagem, deduzindo explicações e regras a partir de conhecimentos que vão sendo adquiridos na escola e da intuição que qualquer falante nativo tem de sua língua. 74 CAGLIARI, 1991a. Um planejamento mais detalhado para o ensino fundamental poderia ser, por exemplo, o seguinte: 1º ano Alfabetização: ensinar a criança a lei; explicar como funcionam os sistemas de escrita, sobretudo a ortografia. História da escrita. treinar o aluno na produção de textos espontâneos. Desenvolver o gosto pela leitura individual e a participação em atividades que envolvam o uso da fala no dialeto padrão. Visão geral da aquisição da linguagem oral. Primeiras noções de variação lingüística. 2º ano Continuação do trabalho de alfabetização. Treino de leitura em voz alta com pronúncia no dialeto padrão. Produção de narrativa orais e escritas - Atividades de pesquisa envolvendo leitura individual. Produção de textos de natureza diferente, como cartas notícias, etc. Introdução de noções básica de fonética e de fonologia. 3° ano Estudo mais sistemático de fonética e da variação lingüística. Estudo das relações entre linguagem oral e linguagem escrita. Autocorreção da ortografia. Produção de textos orais e escritos. Leitura de lazer e de pesquisa. Exploração de textos literários, sobretudo poesia. 4° ano Estudo mais sistemático de fonologia. Estudo das funções básicas da linguagem e da pragmática, ou seja, dos usos da linguagem oral e escrita. Produção de textos orais e escritos. Leitura de lazer e de pesquisa. lJabaibo com contos e pequenos romances. 5º ano Estudo de morfologia. Noções básicas de sociolingüística, ou seja, dos vínculos entre os usos da linguagem e a realidade socioeconômica e cultural das pessoas (dialetos, por exemplo). Produção de textos oriundos de pesquisas. Leitura de lazer e de pesquisa. Cuidado especial na produção de textos orais. Leitura de romances. 6º ano Estudo de sintaxe, regência e concordância. Introdução à teoria da literatura. Leitura literária orientada. Produção de textos mais sofisticados. Apresentação das línguas indígenas brasileiras. 7° ano Estudo de semântica lexical e argumentativa. Introdução à análise literária. Leitura de obras importantes da literatura nacional e internacional. Estudo da história da língua portuguesa. Produção de textos de pesquisa e de obras de modelo literário. 8º ano Estudo de lingüística textual (estudo da estrutura textual, tipos de texto e de fenômenos como coerência e coesão) e de psicolingüística (aquisição da linguagem, interação lingüística, linguagem e pensamento). Relatos de pesquisas desenvolvidas pelo aluno. Produção de textos literários e científicos. Leitura de textos científicos, artísticos e de autores famosos da literatura universal. História da ortografia. História da literatura. Diante de um quadro como esse, percebe-se logo que um aluno precisa apenas participar das atividades escolares normais para ter o direito de passar de ano. Como verá coisas diferentes a cada ano, a única exigência para sua promoção é saber ler e escrever, o que deverá aprender no primeiro ano. No ensino médio (segundo grau), podem-se introduzir teorias lingüísticas adaptadas, num trabalho metalingüístico, estudando a formalização das regras descobertas <75> no primeiro grau, interpretadas agora segundouma teoria e formando uma gramática moderna descritiva da língua. No terceiro grau (graduação), haveria um aprofundamento no estudo da linguagem, através da reflexão epilingüística e da formalização metalingüística, com vistas a um estudo crítico de teorias. Na pós-graduação, além do aprofundamento de conteúdos teóricos e da especialização de conhecimentos em determinada área da lingüística, os alunos deveriam tornar-se pesquisadores. AVALIAÇÃO NA ALFABETIZAÇÃO Aprender a ler e a escrever no primeiro ano não significa saber tudo sobre a produção da leitura e da escrita, tampouco saber de cor a forma ortográfica de todas as palavras. Também não significa que o aluno possa escrever sem se preocupar com a ortografia. O professor deve deixar o aluno começar escrevendo como ele acha que as palavras são. Depois, deve ensinar o aluno, desde o primeiro ano, a corrigir a ortografia e a passar a limpo as suas lições. Em termos mais específicos, a expectativa dos professores alfabetizadores com relação a seus alunos no final do primeiro ano poderia ser a seguinte: • Saber ler algo novo que lhe é apresentado. • Produzir textos espontâneos, não importando os erros de ortografia. • Ser capaz de corrigir individualmente um texto, de modo a eliminar os erros de ortografia, com o auxílio de um dicionário ou fichário de palavras. • Participar das atividades escolares. • Reproduzir oralmente textos que lê (com total liberdade para fazê-lo a seu modo). • Preparar e ler um texto no dialeto padrão. • Escrever com letras de fôrma e com letras cursivas. Como se vê, a escola não pode fugir à sua missão. Basta fazer um trabalho sério, competente e constante, que não precisará de provas, testes, notas nem terá dúvida de que assim todos os alunos serão legítimos merecedores de aprovação final. Por outro lado, isso <76> não significa que todos os alunos terminarão o ano iguaizinhos. A escola precisa saber lidar com as diferenças. É justamente nas diferenças individuais que a sociedade se enriquece e a vida se torna mais interessante. A LIÇÃO DE CASA Uma última observação a respeito de atividades escolares relacionadas à avaliação diz respeito às lições de casa. Alguns pais pensam que uma escola que não pede lição todos os dias é fraca e ruim. Isso é um absurdo, principalmente nas primeiras séries. Lugar de estudar é na escola, onde os alunos encontram os professores e os materiais à disposição. Em casa, podem eventualmente fazer uma tarefa ou outra, mas normalmente farão outras coisas, sobretudo brincar e se divertir. Criança precisa se divertir e, se não fizer isso em casa, fará na escola. A criança precisa aprender desde cedo que há hora de brincar e hora de estudar, lugar para brincar e lugar para estudar. Se a escola não deixar os alunos brincarem em casa, obrigando-os a fazer longas e difíceis tarefas, as crianças acabarão passando a infância e a adolescência mal vividas e com raiva justa e imperdoável desses professores irresponsáveis, que infelizmente proliferam em nossas escolas. Um bom planejamento escolar deve necessariamente abrir um espaço durante o período de aulas para os alunos fazerem as tarefas que o professor acha que eles devem fazer. Essa carga de lição de casa já seria uma aberração em escolas particulares, em que estudam as crianças mais favorecidas social e economicamente. Nas escolas públicas, onde os alunos pobres estudam, elas tornam-se um absurdo. Esses alunos não têm condições de estudar em casa: não há lugar, não há livros, e seus pais, em geral, pouco sabem para ensinar (alguns são até analfabetos) e quase nunca têm tempo para essa tarefa, depois de um dia de trabalho. Mesmo em séries avançadas, é inconcebível que um pai ou uma mãe tenha de colaborar com a escola, ensinando aos seus filhos matemática, geografia, história ou coisas como predicativo do objeto ou sujeito oculto. Isso é tarefa exclusiva da escola. <77> Muitos pedagogos equivocadamente insistem em querer que a família seja uma extensão da escola, e em pretender que os pais ajudem seus filhos a fazer suas tarefas escolares e a estudar as lições, sobretudo para provas e exames. Por outro lado, já desde as primeiras séries a escola deve incentivar os alunos a criar o hábito de estudar em casa por iniciativa própria, gastando nessa atividade uma pequena parcela de tempo. A medida que vão crescendo, o tempo dedicado aos estudos em casa deve ir aumentando e o tempo da brincadeira e do lazer, diminuindo. É mais importante a constância na atividade de estudo individual em casa, do que gastar muito tempo de vez em quando. E, mais importante, é preciso mostrar ao aluno que ele deve estudar sem envolver seus familiares. Mas, para que isso aconteça, o professor não pode passar tarefas todos os dias, nem que absorvam grande parcela do tempo que o aluno dispõe fora do período escolar. Se a criança tem de fazer enormes e complicadas lições, como achará tempo para estudar, para ler? O hábito de estudar em casa não deve prever somente assuntos escolares do momento. Pelo contrário, deveria satisfazer uma certa curiosidade científica e artística do gosto pessoal. Quando se ensina a pesquisar e a trabalhar em sala de aula, o aluno poderá fazer o mesmo em casa, não para dar satisfação ao professor, mas para estudar o que ele, aluno, escolheu para si. Muitos cientistas e artistas famosos desenvolveram grandes trabalhos por iniciativa própria, estudando e trabalhando fora da escola, pelo gosto da pesquisa e da arte e para realização pessoal, sem prova, sem nota, sem professor, sem diploma. A escola que conseguir formar alunos assim é a verdadeira escola. <78> 4 O método das cartilhas A CARTILHA NA ESCOLA E NA VIDA Já comentamos que a cartilha era antigamente apenas um abecedário; depois tornou-se uma tabela de letras, que representava as escritas dos padrões silábicos da fala; reestruturando-se em seguida em palavras-chave e sílabas geradoras, deixando assim de ser apenas um livro para ensinar a ler e tornando-se um livro para fazer exercícios de escrita. Então começou a apresentar textos com palavras já estudadas pelos alunos, numa ordem crescente de dificuldades, e foram incorporados exercícios gramaticais e estruturais para o aluno desmontar e montar palavras. Tempos depois, recebeu a companhia do manual do professor e uma seção especial, dedicada ao período preparatório, cuidando da prontidão dos alunos para a alfabetização. As tabelas de letras sumiram e até o alfabeto não fazia mais parte da cartilha. Adota-se esse tipo de livro didático até hoje amplamente. Mesmo quando, por alguma razão, baseada em conhecimentos adquiridos em treinamentos, ou através de simples acompanhamento dos modismos da educação, alguns professores deixam de usar as cartilhas, constata-se que o método das cartilhas tem resistido muito mais às críticas e encontra-se em praticamente todas as salas de aula de nossas escolas. Muitos professores fizeram sua própria cartilha, com material de preparação de aulas elaborado em anos de trabalho. Alguns chegaram até a publicar esse material, fazendo ver aos demais colegas como conseguiram uma boa receita para a alfabetização. Os próprios órgãos encarregados da educação, atendendo a pedidos de professores, compram, todos os anos, uma quantidade enorme de cartilhas para uso nas escolas públicas. Há ainda aqueles professores (e Secretarias de Educação), que, não querendo adotar uma cartilha, compram, em substituição, livrinhos de histórias, os quais,além de reduzir o trabalho de alfabetização a interpretações subjetivas dos textos e transformar a sala de aula em palco de fantasia sem fim, ainda são usados por alguns professores para extrair o que antes eles faziam com as cartilhas, agora de maneira muito mais confusa e difícil. A opção por um trabalho alternativo, sem cartilhas, exige, antes de tudo, que se conheça como elas são, o que propõem, como propõem, o que pretendem e, <80> principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão, apresentaremos a seguir alguns comentários para explicar melhor o que representam as cartilhas no processo de alfabetização. O que muitas vezes salva o trabalho escolar nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de alguns professores, que conseguem obter resultados surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim. Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em comum o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única coisa que varia é a maneira como esse "produto" vem apresentado. Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais, nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé- bi-bó-bu. É por isso que muitos professores não vêem outra saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi- bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais interessante das cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto, essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas idéias são organizadas em lições e passadas para os alunos. Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada lição trata apenas de uma unidade silábica. Os conteúdos das lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao mais difícil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim, apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o aluno na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá saber escrever e ler por conta própria. Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma palavra-chave, ilustrada com um desenho, e destacam a sílaba geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em seguida, apresenta-se a família silábica daquela sílaba destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com elementos já dominados, mais elementos novos introduzidos na lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que palavras <81> principalmente, o que deixam de fazer. Por essa razão, apresentaremos a seguir alguns comentários para explicar melhor o que representam as cartilhas no processo de alfabetização. O que muitas vezes salva o trabalho escolar nesses casos é a competência, a habilidade e o bom senso de alguns professores, que conseguem obter resultados surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim. Uma análise mais cuidadosa mostra que esses livros têm em comum o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de sílabas geradoras, ou seja, aplicando o bá-bé-bi-bó-bu. A única coisa que varia é a maneira como esse "produto" vem apresentado. Como é constituído de letras, nosso sistema de escrita tem como chave de decifração o princípio acrofônico associado aos nomes das próprias letras. Partir daí para palavras-chave é um pequeno pulo. Como as letras representam consoantes e vogais, nada mais natural do que estudar o processo de alfabetização através das sílabas. Foi assim que surgiu o interesse pelo bá-bé- bi-bó-bu. E por isso que muitos professores não vêem outra saída para ensinar a ler e a escrever, a não ser com o bá-bé-bi- bó-bu. Na verdade, esse é o aspecto mais interessante das cartilhas, em que se emprega o princípio acrofônico. No entanto, essa vantagem é prejudicada pela maneira como essas idéias são organizadas em lições e passadas para os alunos. Um exemplo típico de cartilha é apresentado a seguir. Cada lição trata apenas de uma unidade silábica. Os conteúdos das lições são organizados de forma hierárquica, do mais fácil ao mais difícil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim, apresenta-se um resumo, em que o alfabeto pode estar ou não presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o aluno na etapa seguinte, que é o uso de textos que o aluno deverá saber escrever e ler por conta própria. Todas as lições têm a mesma estrutura: partem de uma palavra-chave, ilustrada com um desenho, e destacam a sílaba geradora, que é quase sempre a primeira sílaba da palavra. Em seguida, apresenta-se a família silábica daquela sílaba destacada. Vêm abaixo algumas palavras novas, escritas com elementos já dominados, mais elementos novos introduzidos na lição. Depois, aparecem os exercícios estruturais em que palavras <81> são desmontadas e remontadas com elementos feitos de sílabas geradoras ou de pedaços de palavras. Ou, então, aparecem os exercícios de "faça segundo o modelo". Há, ainda, um pequeno "texto" para leitura, cópia e ditado, e que pode servir também para exercícios de interpretação de texto. Nas lições mais adiantadas, além das tradicionais cópias, aparecem os exercícios de escrita: "minhas primeiras frases" e "minhas primeiras histórias". Recheando esse esqueleto, uma quantidade enorme de atividades, que vão desde a colagem de letras e palavras recortadas de jornais e revistas, até propostas de representações teatrais pelos alunos. Em geral, essas atividades dão a falsa impressão de que uma cartilha é diferente da outra. Como se disse antes, elas são diferentes apenas na maneira como aplicam o bá-bé-bi-bó-bu. As cartilhas partem de uma concepção de linguagem segundo a qual uma palavra é feita de sílabas, uma sílaba, de letras, uma frase é um conjunto de palavras e um texto é um conjunto de frases. Isso está evidente nas atividades de "desmonte" das palavras e reagrupamento das unidades geradoras. Ora, a linguagem tem esses aspectos, mas ficar apenas nisso produz uma imagem distorcida. A linguagem é basicamente a união de sons e de significados, tudo muito bem ligado, através das diferentes estruturas gramaticais que exercem funções próprias e que têm usos específicos nos diferentes contextos em que ocorrem. A maneira como as cartilhas lidam com a fala e a escrita confunde as crianças, uma vez que passa a idéia de que a linguagem é uma "soma de tijolinhos", representados pelas sílabas e unidades geradoras. Ora, as crianças aprenderam a falar de outra maneira e, portanto, para elas, a linguagem apresenta-se como um todo organizado de maneira muito diversa daquela que a escola lhes mostra. No fundo, as cartilhas deixam de lado toda a trama da linguagem, ficando apenas com o que há de mais superficial. Isso faz com que os alunos passem a fazer apenas um uso superficial da fala e da escrita nas suas atividades escolares futuras. A alfabetização gira em torno de três aspectos importantes da linguagem: a fala, a escrita e a leitura. Analisando esses três pontos, tem-se uma compreensão melhor de como são as cartilhas ou qualquer outro método de alfabetização. <82> A CARTILHA E A FALA A variação lingüística A variação lingüística mostra como umalíngua é composta de inúmeros dialetos, que apresentam semelhanças e diferenças. As semelhanças constituem a base comum que permite agrupar os dialetos em torno de uma mesma língua. Com relação às diferenças, algumas não causam estranheza, pois são aceitas socialmente, como o fato de algumas pessoas falarem "tia" e outras "tchia". Há, porém, diferenças que representam a fala de pessoas pobres, que não usam a norma culta da língua, e que são, pois, interpretadas de maneira preconceituosa pela sociedade como um modo errado de falar. Exemplos: "drento", "drobar", em vez de "dentro", "dobrar", etc. A cartilha simplesmente ignora tal realidade lingüística da sociedade. O aluno vai seguir as lições da cartilha usando, desde o começo, uma fala espelhada no modelo apresentado pelo professor. Como a cartilha é um livro que se propõe a tratar dos assuntos de maneira gradual, quase sempre lidando com questões muito fáceis, pressupõe-se que os alunos acompanhem sem dificuldade o uso da fala padrão, mesmo que em casa sejam falantes de dialetos que apresentam enormes diferenças com relação ao dialeto da escola. A dificuldade do aluno surge quando ele se vê obrigado a responder a perguntas formuladas pelo professor. Como não domina a norma culta, fala seguindo seu próprio dialeto, recebendo dos professores inúmeras correções, acompanhadas ou não da zombaria dos colegas. O idioleto do professor Através da prática dos professores em sala de aula, percebe- se que o que se entende por dialeto padrão é na verdade um idioleto do professor. Ou seja, usa-se como modelo de fala uma maneira especial de pronunciar certas letras, de modo a facilitar a compreensão pelo aluno das relações entre letras e sons em função das formas ortográficas das palavras. Obviamente, esse modo de falar inventado pelo professor é usado de modo especial em certas atividades do processo de alfabetização, como nos ditados ou nas explicações básicas da introdução de uma lição nova. <83> Por ser um dialeto artificial, sem vida na sociedade, nenhum professor conseguirá manter esse modo de falar o tempo todo, porque ele também é um falante nativo de uma variedade lingüística (dialeto). Quando o professor se esquece de que está passando matéria, fala como se estivesse usando seu modo de falar coloquial de fora da sala de aula. Alguns professores convencem-se de tal maneira que aquela fala que inventaram para ensinar os sons das letras é, de fato, a ideal, que acabam tornando-se pessoas pedantes fora da escola, levando para o dia-a-dia uma pronúncia estranha de professor de alfabetização. Para ilustrar o que ficou dito acima, seguem alguns exemplos. Um professor, para explicar aos seus alunos a diferença entre a escrita de L e U, pronuncia todas as letras L com o som de L, incluindo aquelas que já passaram a ter o som de U (mesmo na norma culta, pronunciando "balde" em vez de "baudi"; "alto" em vez de "autu", etc. Outro exemplo: o professor faia "ta-té-tchi- tó-tu", "da-dé-dji-dó-du" (sem perceber que palataliza os "tis" e "dis"), mas ensina que se deve dizer "balde" e não "baudji"; "póte" e não "pótchi", etc. Do mesmo modo, exige que o aluno leia "tudo" e não "tudu", etc. Esses professores acham que, procedendo assim, farão com que os alunos errem menos quando forem escrever. Esquecem- se, porém, de que eles mesmos dizem "balde" porque conhecem a forma escrita da palavra. O aluno, por sua vez, não sabe como se escrevem as palavras e, conseqüentemente, não pode saber quando se usa L ou U: é "falta" ou "fauta"? é "flauta" ou é "flalta"? Somente quem sabe escrever saberá responder corretamente a perguntas como essa. O método das cartilhas não leva em conta, no entanto, que a maior dificuldade dos alunos, sobretudo daqueles que não são falantes da norma culta em uso na sociedade, é aprender que nem tudo o que eles falam fora da escola está de acordo com a norma culta. Para esses alunos, falar palavras como "casa", "batata", tem o mesmo valor de palavras como "drentu", "drobar", "uzómitrabaia", "pranta", etc. E verdade que esses alunos terão mais facilidade para escrever corretamente as palavras depois que aprenderem a norma culta, mas pressupor tal conhecimento como estratégia para aprender ortografia é algo descabido. Ortografia se aprende de outra maneira. Nota Idioleto: variedade lingüística típica de um indivíduo: não pertence a um dialeto (variedade lingüística comum a muitas pessoas). XAVIER & MATEUS, 1990. <84> A silabação Outro problema sério que o método das cartilhas (o bá-bé-bi- bó-bu) traz é o uso da silabação a todo instante. Tudo gira em torno da silabação. Isso faz com que o aluno passe a pensar que, para ler, é preciso silabar (silabar para decifrar a escrita e silabar para ter uma pronúncia bonita, bem-articulada). Alguns levam até para a própria fala essa pronúncia silabada. Ao fazer isso, o ritmo e a entoação (para não falar de outros elementos prosódicos da fala) ficam totalmente modificados, descaracterizando a fala natural, com conseqüências como pedantismo e preciosismo, de quem fala assim, e, sobretudo, com dificuldades de expressão do falante e de compreensão geral dos textos. A cartilha ensina os alunos a silabarem e depois quer que eles leiam com fluência: isso é contraditório! As crianças aprendem a falar e dizem tudo de maneira adequada nas mais diferentes circunstâncias da vida, justamente porque, como falantes nativos, aprenderam a agir assim e nisso são perfeitas. Poderiam aprender a ler usando esse mesmo comportamento fonético. Porém, a escola destrói essa habilidade já conquistada, porque acha que falando naturalmente os alunos não irão aprender a grafar corretamente as palavras nem a ler no dialeto padrão. Há um equívoco educacional nessa atitude escolar. Observando a fala para escrever Quando vão aprender a ler e a escrever, as crianças têm, como única referência de conhecimento já adquirido, a própria fala. Elas observam demais a própria fala, nesse momento. A cartilha, porém, ignora esse fato e, aos poucos, induz os alunos a interpretarem os fenômenos fonéticos da fala, tendo como modelo a forma escrita das palavras e não a realidade fonética. Depois de certo tempo, os alunos já não conseguem sequer analisar a própria fala ou a de outras pessoas, a não ser através da escrita ortográfica. E uma pena. <CAGLIARI, 1989b. > A escola deveria aproveitar essa habilidade de percepção da fala que as crianças têm para explorar a linguagem oral cada vez mais e fazer com que essas análises se tornem conhecimentos solidamente estabelecidos. Isso é importante e servirá como um recurso significativo para se entender muitos outros aspectos da natureza da linguagem. Até para aprender ortografia é uma excelente estratégia, porque o aluno não ficará mais tentando achar a forma ortográfica, falando possíveis pronúncias de professores alfabetizadores, mas saberá que a fala funciona diferentemente da ortografia. É muito importante passar da habilidade de falar naturalmente uma língua para a de ler textos com fluência: para tanto, a cartilha precisa mudar radicalmente sua postura diante da linguagem oral. Confusão entre fala e escrita As cartilhas apresentam praticamente a cada passo erros grosseiros de fonética, porque confundem fatos da fala com fatos da escrita. Um exemplo clássico encontra-se na interpretação dos valores fonéticos da letra X, em que se distinguem o que alguns professores chamam os sons S e SS quando, na verdade, eles representam um único som, comose pode comprovar, observando a pronúncia de palavras como "próximo" e "extra" (para os que falam "éstra" e não "échtra"). Outro fato notório é que a cartilha considera a mesma coisa o BA de "banho" e o de "batata". Como a cartilha está completamente equivocada a respeito do funcionamento da fala e como a maioria dos professores não recebe uma formação lingüística adequada, em particular com relação à fonética, muitas explicações relacionadas a certos erros da fala ou da escrita que alguns alunos cometem na alfabetização chegam às raias do ridículo, como aquelas relativas às famosas trocas de letras. Dificilmente se encontra um professor que faça uma análise correta desses erros. Eles acham que os alunos têm problemas auditivos (há sempre uma deficiência qualquer quando aparece um erro na alfabetização), que os alunos falam errado porque vivem constantemente distraídos, que não sabem observar corretamente as letras, que não são capazes de memorizar diferenças elementares, como as pronúncias de "vaca" e "faca", etc. A incompetência desses professores fica evidente quando se pede para que analisem (ou escrevam) palavras inventadas (sem ortografia definida), como, por exemplo, "vixrrabzó" (com a letra X representando o som de CH). Em primeiro lugar, eles não são capazes de ouvir direito e têm dificuldade em memorizar, exigindo que o enunciado seja repetido inúmeras vezes. Não sabem se existe ou não um I depois do X, estranham se lhes é perguntado se o RR é surdo ou sonoro, <86> trocam V por F, B por P, Z por 5, exatamente como fazem seus alunos, de quem eles tanto reclamam. O pior de tudo é que esses professores nem sequer são capazes de entender os erros que eles próprios cometem. Haverá sempre aquelas pessoas que acabam concluindo que, apesar de todos esses problemas, os professores alfabetizam e os alunos aprendem (pelo menos alguns). E isso, é necessário admitir, é verdade. Acontece, porém, que a escola não pode adotar essa postura: ela não faz sentido. Se podemos ter um ensino decente, por que nos contentarmos com um ensino indecente? < CAGLIARI, 1984b. > Veja "Ditados e ditadores" (CAGLIARL 1990, p. 94-117, no qual se relata uma pesquisa realizada a partir de um ditado especial feito para professores alfabetizadores e os resultados obtidos. A CARTILHA E A ESCRITA A cartilha moderna apresenta um método de alfabetização baseado na aprendizagem da escrita (e não da leitura, como antigamente). Tudo na cartilha gira em torno da escrita. Até a fala dos professores que seguem a cartilha imita a escrita e não a linguagem oral dos falantes nativos da língua. Essa visão centrada na escrita será levada pelos alunos até o dia em que puderem estudar seriamente lingüística e aprenderem que a escrita é apenas uma forma de representação gráfica de alguns elementos fonéticos da linguagem e esta, na sua essência, é oral. A escrita prevalece sobre a fala Depois que a cartilha passou a fazer parte da escola, os estudos sobre a oralidade ficaram praticamente excluídos: tudo é feito por escrito. A escrita, então, passou a ser considerada algo nobre, perfeito, portador do pensamento lógico e literário, ao passo que a fala começou a ser considerada algo vulgar, uma linguagem cheia de erros e falhas, deselegante, incapaz de traduzir o pensamento mais sofisticado da cultura. Infelizmente esses são grandes preconceitos de nossa cultura. As pessoas esquecem-se de que sem a linguagem oral sequer poderia haver linguagem escrita. A escrita requer decifração para ser entendida, e decifrar é devolver o texto escrito à forma oral de realização da linguagem. É uma ilusão pensar que se pode passar diretamente da decifração da escrita para o pensamento puro, sem passar pela organização da linguagem humana, <87> a qual, na sua essência mais profunda, nada mais é do que a união de significados com sons da fala. Embora a cartilha tenha em tão alta estima a escrita e faça com que tudo, no processo de alfabetização, gire em torno dela, constata-se que ela não sabe quase nada a respeito dos sistemas de escrita e, pior ainda, divulga muitas idéias estranhas e erradas a respeito desse assunto. A palavra Sem dúvida alguma, a palavra é a unidade principal de todos os sistemas de escrita. A cartilha foi além: não só assumiu isso, como passou a trabalhar como se a palavra escrita fosse a unidade mais importante da linguagem, o que é falso. Na verdade, a palavra, como unidade lingüística, é algo muito confuso e de difícil definição e manipulação. A grande prova disso pode ser encontrada na própria alfabetização, observando- se a dificuldade que os alunos têm no começo para segmentar a própria fala em palavras, seguindo os padrões da escrita. Todavia, a palavra é o centro das atenções da cartilha. Pode- se até ter uma frase ou um pequeno texto, junto com as lições, porém o que vale não é o texto em si, mas o fato de ele conter apenas palavras já estudadas. Uma frase é pura e simplesmente uma seqüência de palavras. Do significado de cada palavra, tira- se o significado total do texto. Essa é uma visão muito reducionista da linguagem humana, a qual, no entanto, fica tão marcada na formação dos alunos, que eles podem continuar com essa idéia pelo resto da vida. Desse modo, a linguagem como expressão do pensamento e como ação sobre o mundo fica destruída. Essa é uma das razões pelas quais muitos alunos têm dificuldades em lidar com a linguagem na escola e fora dela, escrevem sempre coisas estranhíssimas nos seus textos e têm enorme dificuldade para entender as sutilezas (e às vezes até as coisas mais óbvias) da linguagem. O que a cartilha faz diante da palavra escrita que ela considera a essência da linguagem? Começa um jogo de desmonte e remontagem, pressupondo-se agora que as palavras são feitas de pedacinhos que se juntam. Esses pedacinhos, é claro, serão organizados em famílias, compostas de uma consoante mais uma das cinco vogais da escrita. Assim, a família do B é constituída de ba-bé-bi-bo-bu. Como resquício do princípio acrofônico, <88> tradicionalmente ligado ao alfabeto, cada família recebe uma palavra-chave, que servirá de recurso mnemônico. Por exemplo: BARRIGA será a palavra-chave para a família do bá-bé-bi-bó-bu. Como um dos objetivos do monta-e-desmonta é associar letras às sílabas da linguagem oral, estudam-se primeiro as famílias mais simples, constituídas de uma consoante mais uma vogal (usando apenas as letras disponíveis na escrita, não os fonemas que cada letra apresenta na fala), e depois as famílias em que aparecem grupos de consoantes, como a família do chá-ché-chi- chó-chu, do prá-pré-pri-pró-pru, etc. Finalmente, são estudados os casos em que ocorre uma consoante no final de sílaba, como nas palavras an-jo, cam-po, etc. As cartilhas apresentam os piores textos, elaborados por "razões pedagógicas", para gerar as unidades das lições com os elementos já dominados. Basta comparar os textos das cartilhas com os textos espontâneos das crianças para perceber imediatamente como os primeiros são ridículos e idiotas. Os textos das cartilhas não lidam adequadamente com os elementos coesivos e, às vezes, nem com a coerência discursiva, o que faz deles péssimos exemplos para os alunos. <MASSINI-CAGLIARI, 1997a. > Elementos coesivos dizem respeito àquelas palavras que fazem referência a outras mencionadas antes num texto, com os pronomes substituindo nomes, advérbios, etc. A coerência discursiva refere-se ao fato de se manter uma lógica nasafirmações que o texto traz, um compromisso com a verdade do texto, e ao fato de se passar de um assunto a outro mantendo uma relação harmônica entre as partes. Muitos alfabetos Mas há outros aspectos da escrita a serem considerados. Nenhuma cartilha explica a seus usuários que usamos "diferentes alfabetos", como ABCÇDEFG... e abcçdefg... Certamente, o professor dirá que temos letras maiúsculas e minúsculas (além das letras de fôrma ou imprensa e das letras cursivas ou manuscritas). No entanto, o essencial, que é o fato de existirem alfabetos diferentes, nesses casos, passa despercebido. Uma letra maiúscula pode ser escrita em tamanho menor do que uma letra minúscula, porque não é o tamanho que conta, mas a forma gráfica. Alguns alunos têm grandes dificuldades para perceber que letra é um valor abstrato ao qual podemos associar uma variedade de alfabetos diferentes. E a cartilha não explica isso. Os alunos acabam constatando por si, depois de certo tempo, mas isso pode ser um processo longo e difícil. A escrita cursiva O método das cartilhas tem uma preferência declarada pela escrita cursiva, embora isso não fique evidente ao analisarmos os próprios livros, nos quais se utiliza <89> também a letra de imprensa. Para se ter uma idéia da importância da escrita cursiva na alfabetização, é preciso analisar o que acontece nas salas de aula e nos cadernos dos alunos — e não apenas nas cartilhas. Essa atitude de valorizar a escrita cursiva revela um preconceito da escola e um equívoco sério. Ninguém nega que a escrita cursiva seja importante, que é mais fácil escrever rapidamente na forma cursiva do que usando letras de fôrma. Também é verdade, porém, que a letra cursiva representa essas vantagens apenas para as pessoas que já estão muito familiarizadas com a escrita e com a leitura, ou seja, pessoas já alfabetizadas. Para quem está aprendendo, a letra de fôrma — especialmente a maiúscula — proporciona um material gráfico melhor para a leitura e até para as primeiras escritas. Tanto isso é verdade que as crianças quando estão passando dos rabiscos para as primeiras formas gráficas utilizam espontaneamente a letra de fôrma, mesmo estando habituadas a ver as duas formas de escrita no seu cotidiano. A escrita cursiva é uma maneira de adaptar o grafismo das letras aos maneirismos pessoais: por isso, freqüentemente se constata que é difícil ler a letra do outro. A escrita cursiva apresenta um traçado de letras ligadas, facilitando uma escrita rápida, que, por outro lado, dificulta o trabalho de leitura. Como exige uma ação mais complexa do usuário pela sua natureza gráfica, a escrita cursiva torna-se mais difícil para quem não tem prática. Os alfabetizadores gostam dela também por essa razão, uma vez que, sendo mais difícil de elaborar, permite avaliar melhor se um aluno está aprendendo ou não a traçar as letras. A escrita cursiva tem um uso quase exclusivamente pessoal. Com o grande desenvolvimento tecnológico das máquinas de escrever (chegando até os computadores), a escrita deixou de ser feita à mão, ficando essa atividade restrita a pequenas notas pessoais. Isso fez a escrita cursiva perder um pouco da sua importância no mundo moderno. Apesar disso, o método das cartilhas e a escola continuam insistindo na escrita cursiva. Alguns professores acham que, se os alunos começarem a escrever com letras de fôrma, não vão aprender a escrever com letras cursivas, e no processo de alfabetização o alvo a ser atingido é a bela escrita cursiva, redondinha, igual para todos. Padronizar a escrita cursiva desse modo é ir contra a sua própria natureza, cuja característica fundamental é ser uma expressão gráfica individualizada. <90> Equívocos a partir da escrita cursiva Um certo número de erros encontrados nas tarefas escolares dos alunos deve-se a confusões causadas pelo uso da escrita cursiva. Como ela deforma certas letras quando agrupadas, fica difícil saber exatamente onde começam e onde terminam algumas letras e até mesmo quais os elementos gráficos que as constituem. É por isso que um aluno pode pensar que, na escrita cursiva a letra "b" é formada por traços que se assemelham às formas da letra "I", seguida dos de uma letra — A. "v"; ou que a letra "h" é uma combinação de "I" e "s"; que a letra "A" é formada de um "C" e "e". Ou, ainda, P — O que a letra "a" e a letra "d" são a mesma coisa, distinguindo-se apenas pelo som que têm nas palavras (assim como o "t" e o "tch", em palavras como TV e TIA, — etc.). O aluno pode até constatar que há uma diferença na altura da "perninha", que também varia, de caso para caso. Afinal, esse tipo de variação acontece a todo instante e nunca foi considerado relevante, por que seria então no caso de "a" e "d"? Dificuldades como essas em geral passam despercebidas pela maioria dos professores, os quais se contentam em apagar o erro do aluno e mostrar a forma certa. Há outros problemas da escrita com os quais a cartilha não lida adequadamente. Por exemplo, há uma série de exercícios e orientações que vem desde o período preparatório, esclarecendo à criança que se escreve da esquerda para a direita. Quando diz isso ao aluno, o professor está pensando na ordem das letras nas palavras. Porém, o aluno pode pensar de outra maneira seguindo a instrução recebida e entendida dentro do quadro de suas dificuldades particulares, alguns alunos acabam escrevendo de forma espelhada letras esquerda como S, C, etc., em início de palavras. Uma letra puxa outra e de repente o aluno está escrevendo a palavra e até a frase inteira de forma espelhada. E o professor (mal-informado) pode achar que essa criança tem problema de lateralidade cerebral, um caso sério para a medicina resolver. Escrita sem sistema Como a cartilha não apresenta nem discute, em momento algum, a natureza, a função e os usos dos sistemas de escrita, alguns alunos acabam enveredando por caminhos complicados, em geral becos sem saída para si e para o professor. É o caso daquele aluno que faz <91> uns rabiscos e diz que escreveu seu próprio nome. O professor pensa que ele está "doido", sobretudo porque, ao ser indagado, o aluno mostra que sabe ler o que escreveu. Esse mesmo professor, que concluiu que seu aluno era "doido", horas depois vai ao banco, assina um cheque fazendo exatamente o que fez seu discípulo e não acha nada estranho; pelo contrário, orgulha- se de ter uma assinatura exótica, cheia de rabiscos. O aluno provavelmente levou para a sala de aula algo que constatara na vida: as pessoas assinam o próprio nome — isto é, escrevem — fazendo rabiscos. Cópias e ditados Através de cópias e ditados, o trabalho prossegue, até que o aluno passe por todas as lições, podendo, então, ganhar seu famoso diploma de alfabetização. O aluno, nesse meio tempo, vai desmontando e remontando palavras para ver o que acontece: não tem liberdade nem lhe é facultado ter qualquer iniciativa para escrever o que gostaria. Pelo contrário, toda aventura individual pode levar ao erro, e o erro pode ser irremediável. Por isso, ninguém pode escrever nada, a não ser o que já tenha estudado com o professor. Os alunos copiam palavras muitas vezes para fixar sua forma ortográfica; depois, copiam as primeiras frases e, finalmente, os primeiros textos. Somente depois de terminada a cartilha, podem começar a escrever frases por iniciativa própria e, mais adiante, os primeiros textos. Antes de chegar a este ponto, tudo é feito de maneira coletiva: todos realizam a mesma tarefa,da mesma maneira, no mesmo momento. A cartilha pensa que ensina a ler, por meio de cópias e ditados e desmontando e montando as palavras em famílias de letras. A cartilha jamais discute a leitura em si, a decifração. Somente em dois momentos (e de maneira equivocada) trata das relações entre letras e sons: quando apresenta os dois sons do E e do O, e os cinco sons do X. O que falta no estudo da escrita Infelizmente, a cartilha não apenas trata a escrita de maneira inacreditavelmente equivocada, como deixa de tratar de muitos aspectos da escrita que são interessantes e importantes e que, por essa razão, deveriam começar a ser estudados desde a alfabetização. <92> A história da escrita deveria fazer parte das preocupações da escola e dos livros didáticos desde a alfabetização. As crianças adoram ouvir histórias e a da escrita é verdadeira e fascinante. Em particular, deverse-ia contar a história das letras do alfabeto, os diferentes tipos de letras (ou estilos) que o alfabeto latino produziu ao longo da história do Ocidente. Seria interessante apresentar ainda, mesmo que sumariamente, um relato sobre a ortografia da língua portuguesa, para mostrar aos alunos de um modo muito interessante como a ortografia funciona numa sociedade. O mundo em que vivemos está cheio de escrita ideográfica, feita com pictogramas ou com caracteres convencionais. Esse é um aspecto interessantíssimo para ser explorado pela escola e, conseqüentemente, pelas cartilhas, na alfabetização. Os alunos podem inventar sistemas de escrita seguindo modelos conhecidos. Podem experimentar escrever o que quiserem com eles e testar se as demais pessoas conseguem ler ou não, conferindo, assim, os limites e a importância da convencionalidade na escrita. Uma atividade como essa permite ao aluno ler e escrever logo no primeiro dia de aula, o que pedagogicamente é motivo de grande alegria e de entusiasmo para os alunos e grande motivação para continuarem explorando novas formas de escrita até chegar à escrita com as letras do alfabeto. A escola precisa explicar como funciona o sistema de escrita, o que são letras, como se decifra uma escrita com letras, o que é escrever à moda de uma transcrição fonética — com a qual os lingüistas registram os sons da fala de acordo com a pronúncia de cada um — e comparar esses modos de escrever com a escrita ortográfica. A escola precisa explicar o que é ortografia, como funciona, como os alunos fazem para escrever respeitando a ortografia, para corrigir os textos que produzem, para tirar dúvidas. A escola precisa não incutir nas pessoas o medo de escrever errado alguma palavra de conhecimento comum. Para isso, ela precisa ensinar os alunos, primeiro, a aprender a escrever e, depois, a escrever de acordo com as regras ortográficas, sem medo de ter dúvidas, de perguntar, de buscar informações nos dicionários ou com as pessoas que sabem, porque ninguém passa pela vida sem ter dúvidas de ortografia. Às vezes, temos uma imensa dúvida ortográfica com uma palavra que parecia conhecida, familiar, que sempre escrevemos. Se a sociedade <93> fosse melhor preparada pela escola, não se escandalizaria diante dessas dúvidas. Mas do jeito que a cartilha trata o assunto, parece burrice não ter certeza sobre a ortografia das palavras. É óbvio que a escola vai cobrar dos alunos que memorizem a ortografia das palavras de uso comum, de acordo com o nível de escolaridade, mas poderia ser muito mais benevolente com os erros. E quando não se sabe como se escreve uma palavra, não adianta pensar, refletir, especular: é preciso perguntar a quem sabe ou olhar no dicionário. A pior conseqüência da maneira como a cartilha trata a escrita na alfabetização decorre inegavelmente da sua concepção de texto. Mas esse ponto terá um tratamento especial, mais adiante. A CARTILHA E A LEITURA Como a cartilha ensina a ler Existe uma leitura que é a decifração da escrita, que a cartilha pensa ensinar aos alunos quando mostra as famílias de letras e propõe exercícios de desmonte e remontagem de palavras. E é só o que os livros apresentam. Como a cartilha tem uma maneira equivocada de tratar a escrita, a leitura também fica prejudicada, pois depende crucialmente da escrita. Alguns alunos chegam mesmo a explicitar o processo de decifração que aprenderam, dizendo, por exemplo, "le-a-la, te-a-ta" ao tentar ler "la-ta". Quando chega o momento da leitura, alguns professores obrigam seus alunos a acompanhar com os olhos letra por letra, uma depois da outra, decifran do-as individualmente e falando o que estão lendo. Os mais espertos acabam realizando uma leitura silabada que, com o tempo, pode até adquirir velocidade suficiente para dar a impressão de fluência. Todavia, não raramente ocorre que, mesmo esses alunos fluentes e rápidos na leitura, quando acabam de ler um texto, não são capazes de lembrar o que leram, a não ser uma ou outra palavra (geralmente aquelas que apresentaram dificuldade de leitura, em que o aluno gaguejou, parou para pensar...). Do modo como a cartilha trata a escrita e a fala, é quase impossível que um aluno, na alfabetização, leia <94> com o devido ritmo e a desejada entoação. As cartilhas preferem leituras coletivas às silenciosas, sem cobranças. Os alunos são solicitados freqüentemente a ler de surpresa um texto novo (é claro, composto só de palavras já estudadas, ou de palavras com sílabas das famílias de letras já dominadas). Preparar uma leitura com antecedência vai contra os costumes das cartilhas. A leitura de improviso é mais uma atividade para testar se o aluno aprendeu ou não a lição, se já dominou um determinado conteúdo ou não. Para um aprendiz ler em voz alta, como deveria ser a leitura, ele precisa decifrar a escrita com facilidade, o que, nos primeiros meses de alfabetização, não está ao alcance da maioria dos alunos. A cartilha usa, ainda, a leitura como forma de ensinar e fixar a pronúncia da norma culta, freqüentemente exigindo dos alunos uma leitura com uma pronúncia artificial. A interpretação de textos segundo a cartilha O método das cartilhas introduziu uma nova atividade quando percebeu que alguns alunos, bons leito res, não eram capazes de dizer com as próprias palavras o que tinham lido. Essa atividade é a interpretação de textos. Qualquer texto passou a ser um pretexto para colocar em prática aquela atividade. Mais uma vez, a cartilha meteu as mãos pelos pés. Fazer interpretação de texto passou a ser preencher os vazios de perguntas feitas com trechos do texto. Por exemplo, se o texto diz: "Maria foi visitar a vovó", pergunta-se: "Quem foi visitar a vovó?" "Maria foi fazer o que na casa da vovó?" "Maria foi visitar a..." Ora, achar que um falante nativo de português não é capaz de ouvir (ou ler) uma frase banal como essa e não a entender é um insulto à racionalidade da pessoa. Alguns professores, que preferiram trocar os textos das cartilhas por "livros paradidáticos", passaram a dar importância exagerada à interpretação de textos, reduzindo suas aulas a essa atividade. Nesses casos o professor costuma propor um longo exercício de perguntas e respostas, em um momento inoportuno para esse tipo de atividade, já que o aluno mal sabe ler. O que os alunos gostariam mesmo de fazer era aprender a ler e a escrever, para ler por si e escrever suas historinhas como bem quisessem. <95> OUTROS PROBLEMAS DAS CARTILHAS O método das cartilhas tem outros problemas que não são menos graves do que aqueles relativos à fala, escrita e leitura.Alguns deles merecerão aqui um destaque. Aprender em ordem O princípio da progressão controlada, baseado na idéia dos elementos já dominados, ordenando as dificuldades progressivamente com cronogramas minuciosos, estabelecendo o que vem antes e o que vem depois no ensino e na aprendizagem, amarra de tal forma o processo de alfabetização que os alunos passam a fazer apenas o que o professor manda. Por outro lado, esse princípio serve de base para a avaliação que permite ao professor passar para a lição seguinte ou não. Como tudo vem rigidamente em seu lugar, quando o aluno erra, deve voltar atrás e repetir a lição. O princípio da progressão controlada pressupõe que apenas o elemento novo introduzido na lição constitui dificuldade para o aluno, uma vez que o resto "já foi dominado". Acontece, porém, que à medida que os alunos avançam, acabam se esquecendo de coisas já vistas, e isso gera uma enorme confusão na aplicação do método. A única saída para esses casos é separar os alunos atrasados em classes especiais, onde começarão tudo de novo. Para alguns alunos, esse processo irá se repetir até que ele abandone a escola, julgando-se incapaz nos estudos. O entulho gramatical As cartilhas costumam trazer exercícios de gramática que são verdadeiros entulhos jogados nas lições para preencher o tempo dos alunos com atividades de linguagem. Esses exercícios tratam, sobretudo, de gênero, de número e de graus das palavras. Há, ainda, exercícios de identificação de categorias gramaticais. Querer ensinar essas coisas na alfabetização é um desastre. Como não há explicações sérias, apenas exercícios como "faça segundo o modelo", nota-se que muitos alunos erram, nesses exercícios, coisas que, de fato, conhecem perfeitamente, como falantes nativos da língua. Assim, um aluno ao ser perguntado sobre o feminino de "o pai" escreve "o paioa"; de "tio", escreve "tioa". <96> Nenhum falante confunde "pai" com "mãe" ou "tio" com "tia", a não ser fazendo exercícios gramaticais como esse. Resumindo, esses exercícios não só não ensinam nada, como ainda induzem os alunos a errar. Para muitos alunos, parece mais natural que o aumentativo de "macaco" seja "grande macaco" ou "gorila" ou talvez até "cigecougue" (King-kong), mas não "macacão". Para elas, definitivamente, "macacão" é um tipo de roupa. Metáfora e fantasia Faz parte da praxe das cartilhas conduzir um processo de ensino em que se diz quase tudo de maneira metafórica, indireta, evitando um tratamento sério, objetivo, preciso e direto das verdades que se devem ensinar. Por se tratar de crianças, alguns professores falam com seus alunos como se todos vivessem num mundo de fantasia. Supõem que as crianças não conseguem acompanhar uma explicação correta e objetiva, precisando sempre aprender através de subterfúgios pedagógicos. Então, sílaba virou "pedacinho", as palavras-chave precisam ser apresentadas através de uma história fantasiosa e representar uma idéia importante no texto básico da lição. Para tudo, deve haver uma história e, se possível, uma musiquinha para cantar, cuja letra repita inúmeras vezes os elementos da lição. Tudo precisa vir acompanhado de gravuras, figuras, com muito colorido e enfeites. Ninguém contesta o fato de que as crianças gostam de histórias e se divertem em meio a esse clima de sala preparada para festa de aniversário; porém, quando vão para a escola, sabem que não estão indo a uma festa, mas a um lugar sério, onde se aprendem coisas sérias, úteis para a vida e, portanto, importantes. Elas têm essa consciência da seriedade. A escola, não obstante, às vezes torna-as levianas e comodistas. O excesso de histórias, na maioria das vezes sem nenhuma graça, apresentadas apenas como pretexto pedagógico, acaba levando a um ensino absurdamente metafórico. Evita-se a todo custo falar de como as coisas são na realidade. Na prática tradicional das cartilhas não se podem usar termos técnicos. As letras não têm nomes: em vez de U, os alunos dizem "a letra do chifre"; a letra o é "a letra da boca", porque foi com o desenho dos chifres do boi que aprenderam a escrever a letra U, e com o desenho de uma boca aberta que aprenderam a letra Q <97> Remanejamento para evitar problemas A cartilha equivocadamente confunde ensino com aprendizagem, avaliação com promoção, favorecendo uma atitude de segregação dentro da escola e da própria sala de aula, com os remanejamentos de alunos para classes especiais. Tudo precisa ser avaliado e receber uma nota, e o que saiu errado precisa ser refeito, até acertar. O método das cartilhas procura uma homogeneização que destrói a iniciativa individual, partindo do princípio de que educar é fazer com que todo o mundo saia da escola exatamente com a mesma cara. O diferente é combatido e não pode existir na escola. As diferenças individuais não são permitidas porque não podem ser avaliadas através de testes coletivos, iguais para todos. As cartilhas representam a prática de métodos mecanicistas, bons para adestramento, para condicionamento, mas muito ruins para quem quiser usar a reflexão para construir o conhecimento. Na cartilha, tudo vem pronto para o aluno, basta digerir: não há lugar para uma reflexão autônoma, para uma livre iniciativa, para a criatividade, para continuar com as características próprias. A uniformização é um imperativo. O erro não tem vez Como as cartilhas não sabem lidar com as diferenças no processo de aprendizagem e como prevêem somente o certo, nenhum erro será objeto de estudo. Por essa razão, não encontramos nas cartilhas, nem nos manuais de professores, formas de proceder quando um aluno não aprende algo que o professor explicou direitinho, segundo manda o figurino. Os professores sabem, por experiência própria, que é difícil ensinar a ler e a escrever, mas quem analisa uma cartilha fica com a impressão de que tudo é tão simples e perfeito, que ninguém nunca erra nem tem dúvidas. As cartilhas são implacáveis com relação a quem não entra no esquema e, por isso, não têm nenhuma sugestão para o professor aproveitar quando a evidência dos fatos da vida mostra claramente que o método não funcionou. A única saída é repetir tudo de novo, da mesma maneira, remanejar a criança para uma classe de alunos com dificuldades de aprendizagem, os chamados "alunos carentes". E se não se corrigirem, a saída da escola é a solução para o problema. < CAGLIAR!, 1985b e 1986b. <98> O fascínio pelo já pronto A maioria dos professores que usam o método das cartilhas foi informada de que essa ou aquela cartilha é, de fato, um grande livro didático, com métodos excelentes de alfabetização, comprovados desta e daquela maneira. Ouviram dizer que tal colega usa tal cartilha e seus alunos são alfabetizados da melhor maneira possível. Por falta de espírito crítico, por falta de competência necessária para discutir a questão a fundo e seriamente, muitos professores continuam achando que a melhor maneira de alfabetizar é pelo método das cartilhas, se possível, seguindo o próprio livro didático. Outros (poucos?) preferem as cartilhas pela comodidade de aplicar em sala de aula um método já pronto, escolhendo, de preferência, aquelas que vêm com toda a parafernália didática preparada para o ano letivo. Há ainda o interesse econômico, que tem feito das cartilhas um negócio muito lucrativo, sobretudo junto aos órgãos públicos encarregados da educação. Para um bom trabalho de alfabetização, sobretudo nas es colas públicas, é mais importante ter lápis e papel do quecartilhas. Apesar de tudo, o governo insiste em distribuir cartilhas, esquecendo-se do lápis e do papel. Em algumas escolas, os alunos recebem um belo livro e fazem as lições com tocos de lápis e sucata de papel de escritório. SUBSTITUTOS DAS CARTILHAS As considerações acima mostram como é problemático o uso do método das cartilhas na alfabetização. Mas, se a cartilha é tão ruim assim, o que fazer para alfabetizar sem a cartilha e, sobretudo, sem o método das cartilhas? Qual é a saída, ou melhor, quais são as alternativas? Depois desse longo caminho, analisando a história e os métodos de alfabetização, podem-se tirar algumas conclusões interessantes que nos levarão a entender por que proceder de um jeito e não de outro, na escola, a fim de conduzir um processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita de maneira mais correta e proveitosa. Em primeiro lugar, é preciso entender que o segredo da alfabetização está na aprendizagem da leitura. Aprender a ler, aqui, significa aprender a decifrar a escrita. <99> Para saber decifrar a escrita, é preciso saber corno os sistemas de escrita funcionam e quais os seus usos. Como a escrita é uma forma gráfica de representação da linguagem oral, é necessário estudar os mecanismos da produção da linguagem oral, quais os seus usos e, ainda, como a linguagem oral se relaciona com a forma escrita que a representa, num contexto culturalmente específico da sociedade moderna. Infelizmente, constata-se que não basta jogar o livro fora ou dizer que não se quer mais seguir o método do bá-bé-bi-bó-bu, para levar adiante um bom trabalho de alfabetização. Há coisas erradas demais no sistema educacional do Brasil, que tornam qualquer iniciativa de boa vontade fadada ao fracasso, por falta de infra-estrutura, pela presença constante e sufocadora de uma máquina burocrática anacrônica e, principalmente, pela incompetência de alguns professores. Estes recebem das escolas de formação todos os equívocos, preconceitos e barbaridades que depois levam para a sala de aula. Alguns autores de livros didáticos, por sua vez, são tão despreparados quanto os malformados professores. Acrescente-se a isso a exigência ridícula de pais e avós que fazem questão de que seus filhos sejam educados exatamente da maneira como eles o foram. Apesar desse quadro pouco animador, aos poucos, os professores interessados podem ir deixando de lado a velha prática de alfabetização e iniciar um trabalho novo, com dedicação ao estudo para suprir as lacunas e deficiências e muito bom senso. A própria prática - mestra da vida - ajuda muito. O professor não pode ter medo de levar seus alunos a sério, de ir direto ao assunto, conduzindo um processo equilibrado de ensino e aprendizagem. Afinal de contas, o professor sabe ler e escrever. Com um pouco de reflexão mais cientificamente controlada, ele é capaz de realizar um excelente trabalho, sem precisar gastar muito tempo, refazendo desde o início sua formação. O professor também aprende ensinando. Se seus alunos forem instigados a construir um processo de alfabetização baseado na reflexão, na pesquisa, no trabalho compartilhado, o próprio professor verá, para sua surpresa, que ele também está aprendendo. Mais do que isso, ele começará a deixar de lado a idéia de que seu trabalho é maçante, acabando por descobrir o mundo fascinante da construção do conhecimento pelos alunos, como uma mãe deslumbrada <100> diante do crescimento de seu filho, num processo de aprendizagem verdadeiro, como deveria existir sempre nas escolas. A CARTILHA E OS PROFESSORES CAGLIARI, 1997c. Apesar de todos esses problemas, o método das cartilhas é considerado em geral muito conveniente pelos professores. Se o aluno não aprender, a responsabilidade não é dele, nem do método, mas da incapacidade do aluno. Como o método considera que todos os alunos partem do zero e vão estudando ponto por ponto, do mais fácil para o mais difícil, isso dá uma falsa aparência de ordem e organização. Todos os alunos devem fazer a mesma coisa, do mesmo modo, no mesmo tempo. Para o professor, fica fácil avaliar quem está acompanhando e quem está ficando para trás. Como o trabalho é igual para todos e avança aos poucos em complexidade, os professores conseguem fazer com que seus alunos apresentem cadernos muito bonitos, em que tudo está perfeito, em ordem, sendo muitas vezes uma cópia exata do próprio caderno do professor, que ele usa como modelo. Se o aluno errar alguma coisa, o professor apaga e coloca o certo. Os pais e diretores olham os cadernos desses alunos e acham que tudo vai às mil maravilhas. Ledo engano, que não irá durar muito. Por trás de toda aquela aparente ordem, esconde-se muita coisa mal compreendida, que irá produzir péssimos frutos nas séries posteriores. No esforço para salvar a ortografia e a aparência correta da escrita, o método da cartilha destrói a habilidade do aluno de lidar com a linguagem na sua forma plena e natural, como fazia antes, quando apenas falava. O método da cartilha produz cadernos belos, sem erros, porque os alunos só reproduzem o já dominado, e o professor só permite que ali fique registrado o que está certo. Depois, quando os alunos tiverem de escrever espontaneamente, cometerão toda sorte de erros, mostrando uma "desaprendizagem" perigosa. Aos professores que dizem que também se aprende pela cartilha, que muita gente fez isso e aprendeu bem, deve-se rebater, lembrando todos aqueles que não aprenderam e que tiveram de abandonar a escola por causa de um método que privilegia um planejamento <101> escolar rigoroso e detalhado, inocentando os professores e os livros de sua incompetência. Os professores que adotam as cartilhas nem sequer param para analisar cuidadosamente o que fazem, ou para investigar por que alguns alunos aprendem e outros não, ou ainda para ponderar a que preço seus alunos aprendem. Finalmente, convém ressaltar que, em séries posteriores, já não aparecem mais cartilhas. Alguns professores, no entanto, são tão obcecados por elas, que continuam aplicando esse método nas séries posteriores. Livros de matemática tendem fortemente a seguir o método de ensino das cartilhas. O que salva, em parte, as aulas de português é a produção de textos, a leitura e a literatura. Como a matemática não tem dessas coisas, o ensino torna-se insuportável para grande parte dos alunos, que se vêm obrigados a ter um estudo cujo único objetivo é o de reproduzir um modelo. Afinal, para que servem os exercícios de matemática, da maneira como aparecem em certos livros? A atividade parece que se esgota em si mesma, e o aluno faz a tarefa para ver se acerta e não tem a sensação de estar aprendendo algo que poderá ser útil e aplicável na vida real. Um fato semelhante acontece com certos professores de português que passam um ano inteiro fazendo exercícios de análise sintática. O uso do método das cartilhas (com livro ou sem livro) é largamente difundido entre os professores alfabetizadores porque é um programa de trabalho já pronto, do começo ao fim, que se escolhe no início do ano e que será aplicado ao longo dos dias escolares. Algumas pessoas partilham da opinião de que não se pode estudar sem um livro didático, só que, em vez de escolher livros mais interessantes, preferem as cartilhas, porque são mais "práticas". Na verdade, há uma longa tradição escolar que tem produzido cartilha atrás de cartilha, sem propor nada de diferente. Se um professor achar no mercado editorial atual uma obra que ensine a alfabetizarsem o bá-bé-bi-bó-bu, será um fato surpreendente. Os livros didáticos são feitos, em geral, por professores, e como eles não têm outra visão do processo de alfabetização, repetem sempre o velho esquema. O círculo vicioso se fecha quando, por falta de material adequado e de uma sólida formação lingüística crítica, os professores justificam a própria incompetência apegando-se à única tábua da salvação que conhecem, o próprio método das cartilhas. <102> 5 Panorama do processo de alfabetização VALORIZAR O QUE É PRIORITÁRIO O trabalho escolar de primeira série tem vários objetivos, mas o principal deles é alfabetizar as crianças. A alfabetização é uma das coisas mais importantes que as pessoas fazem na escola e na vida. Os esforços devem estar voltados para isso, embora a escola não deva se esquecer dos outros objetivos que tem como instituição. Para realizar um trabalho de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita sem o método do bá-bé-bi-bó-bu, é preciso ter em mente alguns pontos fundamentais. Em primeiro lugar, é necessário saber exatamente o que se quer fazer e o que se entende por alfabetização. Muitos problemas surgiram na história da alfabetização realizada na escola porque os objetivos a serem alcançados não eram muito claros. Por exemplo, todo o período preparatório veio como uma concepção de alfabetização baseada numa teoria discriminatória contra a capacidade intelectual das crianças, criando nelas uma auto-avaliação de incapacidade para aprender os conhecimentos que se adquirem nas escolas. A alfabetização passou a se resumir, então, em grande parte, a exercícios que preparavam o aluno para o estudo, enquanto o mais importante era deixado de lado, ou seja, o conteúdo específico que torna uma pessoa alfabetizada. Não é raro ouvir histórias de crianças que não queriam mais ir à escola porque não aprendiam a ler nem a escrever, mas apenas a rabiscar e a fazer joguinhos. Alfabetizar é ensinar a ler e a escrever. Como já dissemos, o segredo da alfabetização é a leitura (decifração). Escrever é uma decorrência do conhecimento que se tem para ler. Portanto, o ponto principal do trabalho é ensinar o aluno a decifrar a escrita e, em seguida, a aplicar esse conhecimento para produzir sua própria escrita. Conhecendo a rotina nas escolas, a primeira coisa a ser feita é uma faxina: jogar fora uma série de atividades que nada têm a ver com os objetivos, tornando o trabalho mais simples e mais tranqüilo tanto para o professor como para o aluno. Brincar, cantar, contar histórias, recortar, colar, desenhar, etc. sem dúvida são atividades escolares. Mas isso não é ensinar a ler nem a escrever. Aprende-se a ler e a escrever, lendo e escrevendo, e não pulando corda e fazendo festa. <104> Tem hora para aprender a ler e escrever e tem hora para brincar. Juntar essas duas coisas o tempo todo é uma loucura pedagógica: tira a seriedade da formação escolar e introduz uma leviandade nos trabalhos. Brincar é imprescindível, mas deve ter seu valor claramente estabelecido para todos. OS ALUNOS SÃO FALANTES NATIVOS Rigorosamente falando, na alfabetização não é preciso ensinar ninguém a falar: nossos alunos já aprenderam isso quando tinham de um a três anos. São todos falantes nativos do português, cada qual usufruindo o dialeto da região em que nasceu e viveu e que é partilhado pelas pessoas com quem convive. Ensinar a norma culta também vai ser uma preocupação da escola, e deve começar desde a alfabetização. Porém, essa deverá ser uma atividade secundária, tecnicamente falando, com relação à aprendizagem da leitura e da escrita. Qualquer aluno pode alfabetizar-se perfeitamente sem precisar mudar o modo de falar de seu dialeto. Vendo essa questão por outro ângulo, percebe-se claramente que o professor não precisa preocupar-se com o fato de seus alunos falarem errado no início. Não é necessário que os alunos aprendam a pronunciar bem as palavras, sílabas ou outros elementos fonéticos para aprenderem a escrever as palavras. Uma coisa não é condição para a outra. Tampouco quando um aluno é falante de um dialeto não aceito como norma culta pela escola, não precisa abandonar seu dialeto para aprender a norma padrão. Quando alguém estuda uma língua estrangeira, por exemplo, inglês ou francês, não deixa de ser falante de português. Aprende-se uma língua, sem esquecer a outra. Do mesmo modo, quando alguém está aprendendo um dialeto diferente, não precisa se desvencilhar daquele que conhece. Na sociedade, a variedade lingüística deve adaptar-se ao contexto, às exigências do momento, do lugar e das pessoas com quem se fala. Numa sociedade tão heterogênea como a nossa, as pessoas acabam falando mais de um dialeto: um em casa e outro na vida formal em sociedade. Variações de pronúncia (do R; das fricativas CH e TCH; variações como "déis" ou "dés", etc.), de concordância (por exemplo, <105> "chegou os homens" em vez de "chegaram os homens"), de regência (por exemplo, "eu preciso dinheiro" em vez de "eu preciso de dinheiro") fazem parte da vida dos falantes em geral, marcando um uso informal e outro formal da língua. MASSINI-CAGLIARI, 1997b A IDADE PARA SE ALFABETIZAR Por razões ideológicas, interesses políticos e econômicos, somados a uma postura tradicionalista de pessoas que trabalham nos órgãos públicos da educação. corroborada por alguns psicólogos e outros que se acham entendidos no assunto, ficou estabelecido que a alfabetização, no Brasil, começaria aos sete anos e que o primeiro grau (atual ensino fundamental) se encerraria aos quatorze anos. Durante muitos anos venho fazendo uma campanha pessoal para convencer as pessoas de que seria muito melhor que a alfabetização começasse aos cinco anos (como, aliás, acontece na grande maioria dos países do mundo) e que o primeiro grau se estendesse até os doze anos. Com quatorze anos, muitos jovens já são arrimo de família, têm de trabalhar duro para sobreviver e sustentar irmãos, pais, avós, etc. Além disso, começando a alfabetização aos cinco anos, todas as crianças passariam a gozar de um beneficio que hoje está restrito àqueles que freqüentam a pré-escola. Dos cinco aos sete anos, a pré- escola é importante como escola e não como creche. Muda-se a Constituição do país, mas não se muda a mentalidade dos governantes, e os problemas sérios continuam sem solução. Aos cinco anos uma criança está mais do que pronta para ser alfabetizada, basta o professor desenvolver um trabalho correto de ensino e de aprendizagem na sala de aula. Nessa idade, ela já conheceu e aprendeu muita coisa da vida, do mundo e até da história, já testou sua participação na sociedade, seu relacionamento com pessoas diferentes. Aprender a ler e a escrever, dentro desse contexto, é algo simples e banal, considerando-se a capacidade e a experiência de vida de qualquer criança com cinco anos. Duvidar da capacidade de aprender das crianças de cinco anos é um grande equívoco, mesmo quando anunciado em teses e livros publicados por intelectuais com muitos títulos acadêmicos. <106> QUERER SER ALFABETIZADO Se com cinco anos uma criança pode ser alfabetizada, isso não significa que ela queira ser alfabetizada. Dependendo do modo de vida, algumas pessoas não acham que a alfabetização seja algo de muita importância. As vezes, ganhar dinheiro é o que realmente conta. Algumas pessoas chegam à idade adulta sem se interessar pela alfabetização. Para elas, ler e escrever não é algo tão fundamental como nós comumente achamos que seja. Essasconsiderações mostram que, mais importante do que a idade é a vontade do aluno de se alfabetizar. Estar na escola é um fato que cria expectativas. Mas alguns alunos podem ter uma visão muito restrita do que os espera. Por isso, é necessário que o professor, no início do ano, converse com seus alunos para saber de suas expectativas com relação ao trabalho escolar de alfabetização que terão pela frente. É preciso conversar a respeito do que significa aprender a ler e a escrever, o que se faz com esses conhecimentos, em que sentido a vida das pessoas se modifica depois que aprendem a ler e a escrever, quais as previsões de uso desses conhecimentos pelo resto da vida, fora da escola. Não é raro haver alunos, provenientes de classes pobres, que achem que vão aprender a ler e a escrever como uma espécie de obrigação da escola. Como em casa ninguém lê nem escreve e não há livros (nem caneta ou papel), essas crianças acham que aprender a ler e a escrever é simplesmente fazer a lição da escola. A escrita e a leitura têm muitos usos, que precisam ser discutidos ao longo do processo de alfabetização, e uma boa conversa deve acontecer antes mesmo do início das atividades de ensino e aprendizagem. Os autores das cartilhas nunca pensam que esse tipo de troca de informações entre o professor e o aluno e dos alunos entre si seja algo importante. Mas é imprescindível. A questão exposta acima está relacionada com o próprio conteúdo que vai ser ensinado. A escola sempre parte do princípio de que o professor é quem decide o que é bom e o que deve ser excluído do processo educacional. Mas é bom também perguntar aos alunos quais são seus anseios. O que eles pretendem ler? O que eles pretendem escrever? O que pretendem fazer no começo da alfabetização? O que pretendem fazer depois, quando já souberem ler e escrever fluentemente? O que pretendem fazer depois, quando saírem da escola já formados? <107> Muitos professores ficam surpresos com as exigências dos alunos. É muito comum, por outro lado, a escola subestimar a vontade das crianças. Às vezes, elas estão ansiosas para copiar coisas que lhes interessam, mas um professor que ouviu dizer que cópia é algo que deve ser abolido da escola causa grande frustração nos alunos. É melhor, na maioria das vezes, deixar os alunos fazerem coisas por iniciativa própria, mesmo que seja uma missão quase impossível, do que obriga-los a fazer somente aquilo que o professor decide que deve ser feito. Quando as crianças fazem trabalhos por decisão própria, o processo de aprendizagem voa, mesmo quando os resultados aparentemente não são tão organizados e muito bem apresentados quanto os feitos sob o controle direto do professor. Para muitos alunos, o professor deverá explicar o que significa aprender a ler e a escrever, segundo as expectativas da escola e da sociedade. Deve fazer ver a todos os alunos a importância do trabalho escolar que irão começar. UM MÉTODO SEM MÉTODOS O melhor método de trabalho para um professor deve vir de sua experiência, baseada em conhecimentos sólidos e profundos da matéria que leciona. O fato de não ter um método preestabelecido não significa que o ensino seguirá navegando à deriva, O professor terá sempre as rédeas nas mãos, porque, afinal de contas, ele é um educador e não um simples observador. O fato de não se ter um método rígido para alfabetizar não significa, tampouco, que o trabalho escolar será feito sem método algum. Quando o professor é um bom conhecedor da matéria que leciona, ele tem um jeito particular de ensinar, assim como os alunos têm seus jeitos de aprender. Essa heterogeneidade, em vez de atrapalhar, é fundamental em todo processo educativo. Alguns órgãos públicos que respondem pela educação partem do princípio de que todos os professores de determinado nível e matéria precisam fazer as mesmas coisas, do mesmo modo, porque senão — dizem eles — como se poderá transferir alunos de uma escola para outra? O que essas pessoas não percebem é que, <108> em nome de uma burocracia idiota, preferem comprometer o mais importante, que é o trabalho verdadeiro que deve ser feito pelos professores nas salas de aula. Se um aluno sai de uma escola onde aprendeu alguma coisa e vai para outra escola onde se está estudando outra coisa, deverá adaptar-se à nova realidade e, com o tempo, isso acontecerá inevitavelmente, assim como quem muda de país vai ter que adaptar sua vida à do novo ambiente. O bonito da verdadeira educação é ser um caleidoscópio: a diferença a todo instante é seu charme e beleza; cada momento revela algo novo e surpreendente. A educação deve formar pessoas diferentes, não clones, réplicas intelectuais. O professor que domina a matéria não precisa preocupar-se com métodos: ele saberá entender e resolver tudo o que encontrar pela frente na sala de aula. Além do mais, dentro do processo de ensino, ele organizará suas atividades de um modo geral: o que vai passar para os alunos, quando e como. Associado ao modo de trabalhar de cada professor, isso acaba se traduzindo, na prática escolar, num método de trabalho. Depois de terminado o ano, o caminho percorrido mostra que nada aconteceu por acaso, mas que houve uma intenção de realização, houve decisões importantes, houve opções de escolha, enfim, houve, na prática, um método de trabalho. Entretanto, o que aconteceu num ano não precisa ser repetido no ano seguinte, mesmo porque os alunos serão diferentes e surgirão fatos novos. Quando se adota um modelo de trabalho escolar como método para ser aplicado ano após ano, incorre-se no erro de supor que o que conduz o ensino e a aprendizagem é a estrutura programática de um método, e não a interação entre o processo de ensino e de aprendizagem, mediado pelo professor, levando em conta a realidade de seus alunos, a cada dia de aula. EM QUANTO TEMPO SE ALFABETIZA? Outra questão que precisa ser comentada é o tempo necessário para alguém se alfabetizar. Se a escola eliminar o entulho do período preparatório, se for clara e objetiva, priorizando a decifração da escrita como segredo da alfabetização e dedicando uma hora por dia <109> às atividades específicas, todos os alunos aprenderão a ler (com mais ou menos dificuldade) em dois ou três meses de trabalho. Esse é o tempo suficiente para que os alunos aprendam a decifrar o que está escrito. Quem sabe fazer isso está, tecnicamente falando, alfabetizado, O resto é o desenvolvimento dessa habilidade e a complementação com conhecimentos que serão aprendidos depois. Ao longo dos últimos anos, o processo de alfabetização foi confundido com tantas coisas estranhas e ficou amarrado a tantas atividades inúteis, que o tempo necessário para um aluno aprender a ler (e a escrever) se espichou demais. O que podia ser feito num semestre passou a ser feito em um ano. Com o ciclo básico, alguns professores passaram a entender que agora o aluno tem dois anos para se alfabetizar, o que é falso. Em alguns casos, contando com a pré-escola e o segundo ano, o aluno leva três anos para se alfabetizar, o que é um absurdo. O professor precisa ter idéias bem claras a respeito do que espera de seus alunos em todos os períodos escolares. A falta de uma perspectiva como essa desorienta o professor e confunde os alunos. Em todo o processo educacional, há coisas importantes que receberão uma atenção especial, e coisas secundárias, que são em geral irrelevantes. Por exemplo, é de importância fundamental que o aluno tenha em mãos a chave da decifração da escrita— o segredo da alfabetização. Sem isso, tudo o mais fica prejudicado. Uma vez adquirida a chave da decifração da escrita, o aluno tem condições de desenvolver, até por si só, o resto do processo de alfabetização, explorando a extensão e a profundidade da matéria. O professor que sabe disso trabalha mais satisfeito, porque consegue acompanhar o progresso de seus alunos, valorizando o que cada um faz, inclusive o seu próprio trabalho. Por outro lado, alguns professores vivem em meio a muitas frustrações porque exigem demais do processo de alfabetização e têm pressa de resolver todos os problemas de fala, leitura e escrita dos alunos em apenas um ano. É preciso aliviar um pouco essas tensões na escola, acalmar a ansiedade e ter perspectivas mais realistas, O tempo é o melhor remédio, e a paciência, uma virtude do educador. O importante é o professor e os alunos trabalharem séria e constantemente, com perseverança e calma, porque a aprendizagem não tem dia marcado para acontecer. < CAGLIARI 1992a. <110> QUEM COMANDA É O PROFESSOR O professor deve assumir o comando de seu trabalho e não abrir mão disso. Não é o Ministério da Educação, nem a Secretaria Estadual ou Municipal de Educação, nem o diretor da escola, nem a coordenadora, nem a monitora de alfabetização, nem a associação de pais e mestres, nem a comunidade, nem os pais, nem os avós ou os tios, nem as teorias acadêmicas, nem as cartilhas ou os livros que devem impor ao professor o que fazer. Antes de mais nada, é preciso salvar o direito sagrado de cátedra. Na educação se propõe, e não se impõe. Quando a autoridade — seja de quem for — se impõe à razão do professor, significa que a educação perdeu seu Sentido e tornou-se uma máquina de produzir resultados intelectuais. A educação vive da criatividade de todos. A tarefa escolar de sala de aula precisa ser devolvida aos professores. Eles precisam ter liberdade para poder se responsabilizar pelo que fazem. Se todo o mundo dá palpite, a educação vai de mal a pior, e ninguém se responsabiliza pela situação. Discutir é uma coisa, impor um comportamento profissional ao professor é outra, muito diferente e intolerável. De um professor deve-se cobrar competência e responsabilidade e não métodos ou adesão aos modismos acadêmicos. Algumas pessoas acham que atualizar-se significa falar de acordo com a última palestra que ouviu ou livro que leu. A busca de conhecimentos novos é tão importante para a sobrevivência do sistema quanto a alimentação para os seres vivos. Mas tais conhecimentos precisam ser digeridos, ponderados, avaliados, para depois entrarem na corrente sanguínea do sistema educacional. REMANEJAMENTOS SÃO AVILTANTES O professor que realiza um trabalho sério em sala de aula não pode permitir que ocorra remanejamento de alunos. As classes formam turmas de amigos, que é preciso respeitar. A discriminação é sempre aviltante. Não é raro casos de professores incompetentes que adoram remanejamentos, porque, assim, podem ficar sempre com os melhores alunos. Isso alivia o trabalho e esconde sua incompetência. O trabalho duro acaba sobrando para uns poucos professores que têm de aceitar <111> qualquer coisa, uma vez que nem sequer são considerados professores de uma escola, mas apenas tapa- buracos do sistema. CONDIÇÕES MATERIAIS Um bom trabalho de alfabetização não pode ser desenvolvido sem as condições materiais adequadas. Criança odeia ficar sentada, mas a maioria das salas de aula reservadas aos alfabetizandos é exatamente igual às das demais séries. Criança gosta de escrever em pé, às vezes até deitada. As salas de alfabetização precisam ser mais espaçosas para permitir maior trânsito de alunos. É impossível desenvolver um trabalho adequado com uma classe que tem um número exagerado de alunos. Mais de vinte alunos por professor cria dificuldades muito sérias para um bom trabalho. Infelizmente, por causa de uma noção errada de humanidade e dó, alguns educadores acabaram engolindo dos governantes classes superlotadas. Preferiram optar pela má educação a decepcionar as promessas eleitoreiras dos governantes, que prometem um lugar na escola para todas as crianças, sem saber o que isso representa em termos de educação nas situações atuais. Cuidar das escolas é algo que eles não querem. Escolas em condições precárias de funcionamento, superlotadas e com pessoal mal pago fazem o perfil da educação neste país. Depois de algumas semanas de aula, professores e alunos passam a viver num clima de guerra, numa irritação geral, causada por esses fatores. Para consertar a alfabetização não basta abolir a cartilha e o bá-bé-bí-bó-bu; é preciso muito mais. Tudo o que foi exposto aqui deixa claro que cada professor terá de traçar seu caminho de trabalho e não deverá esperar soluções prontas. Assim como a aprendizagem, o ensino também é um processo que deve ser construído pelo professor à medida que acontece e, a cada vez que ocorre, terá um jeito próprio de ser. Isso, porém, não impede que se ilustre um trabalho de alfabetização sem a cartilha e sem o bá-bé-bi-bó-bu sem, contudo, fazer, desse exemplo, o modelo ideal que deva ser seguido por todos e sempre. Exemplos são exemplos: são elucidativos, mas não impositivos. E claro que uma boa idéia sempre acha um seguidor, e adota-la não significa necessariamente escravizar-se a ela. <112> É dentro desse espírito que propomos seguir idéias, sugestões e apresentamos exemplos. E sempre bom discutir certos assuntos na teoria e constatar que de fato funcionam na prática. LEITURA E ESCRITA Ao contrário do que muita gente pensa, inclusive professores de alfabetização, para alguém ser alfabetizado, não precisa aprender a escrever, mas sim aprender a ler. Ou seja, no processo de alfabetização, o professor poderia prescindir do ensino da escrita, mas não da leitura. Em outras palavras, a alfabetização realiza-se quando o aprendiz descobre como o sistema de escrita funciona, isto é, quando aprende a ler, a decifrar a escrita. De posse desses conhecimentos, escrever nada mais é do que colocar no papel esses conhecimentos fornecidos pela leitura. Quem escreve deve guiar-se necessariamente pelos conhecimentos da decifração da escrita. Deve escrever pensando em como seu leitor fará para descobrir (decifrar) o que escreveu. Se cometer erros, poderá deixar seu leitor confuso ou mesmo impossibilitado de entender o que foi escrito. Se fizer tudo de acordo com as convenções e as regras do sistema de escrita, seu leitor poderá decifrar com facilidade. Portanto, o segredo da alfabetização, como se disse várias vezes, é a leitura, ou seja, a decifração da escrita. Em sentido mais amplo, a alfabetização tem outros objetivos, além de ensinar a decifrar a escrita, sobretudo na escola. Saber escrever corretamente é um deles. A escrita não deve ser vista apenas como uma tarefa escolar ou um ato individual, mas precisará estar engajada nos usos sociais que envolve, principalmente como forma especial de expressão de uma cultura. Sem dúvida alguma, um bom professor terá sempre essa preocupação em mente, em todos os momentos da vida escolar. Porém, como essa questão está mais ligada aos usos especiais que se faz da escrita do que à aquisição propriamente dita da habilidade de escrever, o alfabetizador dará mais atenção a esse último item do que ao anterior. Em séries mais adiantadas, quando os alunos já souberem escrever com facilidade e tiverem um estilo próprio, a perfeição do texto será objeto de trabalho específico. <113>A reprodução de modelos O método das cartilhas — o bá-bé-bi-bó-bu — ensina o aluno a escrever reproduzindo um modelo. Em seguida, o aluno aprende a ler o que escreveu. Esse método vai no sentido oposto ao sugerido neste livro. Para a cartilha, o importante é aprender a escrever juntando pedacinhos (as sílabas geradoras), sempre supondo que esses pedacinhos, por serem conhecidos, permitirão a leitura. Essa abordagem envolve muitos equívocos e erros, como ficou claro no capítulo anterior. A progressão, no método do bá-bé-bi-bó-bu, é rigorosa, e o aluno só faz algo segundo um modelo preestabelecido, até dominar o exercício, passando então à lição seguinte. Se o aluno cometer algum engano, o erro é logo apagado e substituído pela forma correta. Isso faz com que os alunos apresentem lindos cadernos. Um fato comum na história de alguns alunos é que eles foram excelentes estudantes nas duas primeiras séries, mas apresentaram seriíssimas dificuldades na terceira. Na alfabetização, o aluno escrevia tudo muito bonito, sem erros de ortografia, como mostram seus cadernos. Na terceira série, apareceram dificuldades insuperáveis porque a tarefa não consiste mais em reproduzir o modelo dado pelo professor, mas exige que o aluno tome a iniciativa de fazer um texto, uma redação ou o que for preciso nas diversas atividades escolares. Até sua letra piorou. Não é mais capaz de escrever sem cometer inúmeros e estranhíssimos erros de ortografia. O aluno tinha aprendido a escrever tão bem... Por que, agora, não sabe mais? A explicação para esses casos é simples e, ao mesmo tempo, trágica. O aluno não aprendeu, de fato, como o sistema de escrita funciona, como se lida com o texto oral e o escrito, como funciona a ortografia e como se resolvem dúvidas. Simplesmente fazia o que o professor mandava, seguindo o modelo das coisas já dominadas. Na terceira série, não existe mais modelo (semelhante àquele a que estava acostumado) e não faz mais sentido escrever somente palavras já dominadas. Nesse momento, começa a refletir sobre seu trabalho, sobre como funciona a escrita, como funciona a cabeça de quem vai ler o que ele escreve, achando, talvez, que vai encontrar em todos os leitores que achar pela frente uma espécie de professor que apaga o errado e coloca o certo quando necessário. Em vez disso, encontra a constatação do seu fracasso, do erro incorrigível, levando-o ao desespero. E, junto com ele, desesperam-se professores, pais, amigos, etc. <114> Esse aluno deveria ter tido a oportunidade de errar antes. Deveria ter tido antes a oportunidade de refletir sobre o sistema de escrita. Não deveria ter ficado repetindo um modelo e construindo a escrita apenas com elementos já dominados. A terceira série foi a primeira viagem fora da cartilha. Somente então foi solicitado a refletir sobre como funciona o sistema de escrita e a elaborar suas próprias hipóteses a respeito dela. Só na terceira série, esse aluno começou a produzir escrita como se fosse um iniciante no processo de alfabetização, e o resultado do que faz se assemelha muito aos resultados obtidos pelas crianças quando começam a escrever errado no início da alfabetização. Conseqüentemente, as pessoas passam a considerá-lo um aluno mal-alfabetizado. Se essa criança tivesse sido alfabetizada de outra maneira, se tivesse tido a chance de mostrar ao professor o que pensava a respeito da fala, da escrita e da leitura, apresentando um trabalho de escrita feito por iniciativa própria e não apenas seguindo um modelo de coisas já dominadas, teria resolvido seus problemas logo no início. O professor deve ter em mente que nem sempre um aluno que escreve corretamente está sabendo o que está fazendo e como funciona a escrita. Por outro lado, não é porque um aluno erra, ao tentar escrever uma palavra, que ele não esteja aprendendo a escrever. É preciso distinguir bem o ato de escrever do resultado que uma escrita produz. O método das cartilhas preocupa-se apenas com o gesto, com o ato de escrever em si, uma vez que o resultado é controlado rigidamente pelo professor e passa a ser então totalmente previsível. Por outro lado, um aluno que tem seu espaço de aprendizagem aberto pelo professor para construir seu conhecimento, sabe que o ato de escrever é uma tentativa que pode levar a um resultado correto ou não. Sabedor disso, deverá fazer um juízo de valor sobre sua ação e verificar se, de fato, obteve êxito. Nesse caso, o professor sabe perfeitamente bem que, primeiro, precisa deixar o aluno aprender a escrever, para depois cobrar dele o resultado esperado, em termos de correção ortográfica e perfeição gráfica. A descoberta do mundo da escrita A descoberta do mundo da escrita é mais fácil para alguns alunos do que para outros. As crianças que vivem em casas onde há livros, revistas, jornais, onde as <115> pessoas lêem e escrevem, começam logo cedo a se interessar por essas atividades e a saber coisas a respeito da escrita e seu funcionamento. Por outro lado, crianças que vivem em casas onde não se lê e não se escreve crescem tendo um outro tipo de comportamento e de conhecimentos a respeito da escrita e da leitura. Fora de casa, no mundo, a escrita está em toda a parte, e tanto ricos como pobres sabem que ela existe e podem até dizer que num jornal, na embalagem de um produto, nas placas comerciais há coisas escritas. Isso não quer dizer que todos sejam capazes de distinguir qualquer material de escrita do que não é escrita. Mas, de modo geral, as pessoas sabem que desenhos figurativos não constituem escrita. Sabem que a escrita pode ser feita de inúmeras maneiras, o que torna muito difícil ter uma idéia clara sobre ela. Por exemplo, não é fácil distinguir rabiscos de escrita cursiva. Ao contrário do que algumas pessoas pensam uma leitura incidental não representa um reconhecimento de uma escrita como desenho. Por exemplo, uma criança pode reconhecer que se trata de Coca-Cola porque está vendo uma garrafa desse produto ou uma propaganda ou, mais especificamente, um rótulo onde aparece escrito, de maneira típica, o nome da marca. O reconhecimento do rótulo (leitura incidental, nesse caso) é de fato uma leitura. Como a criança não conhece as relações entre letras e sons, não pode identificar como o sistema de escrita funciona de maneira específica. Porém, nosso sistema de escrita não se presta a ser lido e escrito apenas através das relações entre letras e sons, uma por uma. Embora não seja a maneira mais comum e própria de se ler e escrever, urna pessoa poderia em princípio tratar todas as palavras escritas como se fossem ideogramas, e escrevê-las e lê-las como se estivesse diante de um sistema ideográfico de escrita. Parece que a primeira tentativa que as crianças fazem para penetrar no mundo da escrita tem como estratégia considerar toda escrita como sendo ideográfica. Muitas crianças abordam a escrita dessa maneira quando ainda são muito novas e estão explorando o mundo. Mas algumas chegam a levar essas idéias para a sala de aula e, se o professor não perceber, durante um certo tempo elas tratarão a escrita escolar como se fosse um puro sistema ideográfico. Essa idéia é reforçada muitas vezes quando uma criança (ou um analfabeto) pergunta a um adulto (ou a quem sabe ler) o que está escrito. A resposta não é uma explicação de como a escrita funciona, mas a <116> identificação de uma ou mais palavras. Isso a leva a imaginar que um conjunto de sinais gráficos (misteriosamente elaborados) refere-se a uma palavra. No início, raramente achaque existe um sinal para cada som da fala. Essa é uma idéia muito elaborada, que exige uma explicação particular e detalhada. Ninguém chega a ela sem a ajuda de alguém que já conhece como nosso sistema de escrita funciona. E por isso que ainda hoje há sistemas de escrita que não foram decifrados, apesar de todas as tentativas: falta alguém para dizer como se relacionam os caracteres com a linguagem oral. Na sociedade, existem pessoas que lêem ou interpretam a escrita, respondendo à pergunta mencionada acima, dizendo que em tal lugar está escrita tal palavra; mas também, não é raro as pessoas virarem decifradores tentando ler. Ao fazer isso, algumas características do sistema começam a emergir e podem servir de informações a quem não sabe ler. Por exemplo, é comum alguém soletrar ou fazer sua tentativa de decifração pronunciando possíveis sílabas. Seria muito estranho alguém que pronunciasse apenas segmentos fonéticos, como se estivesse interpretando uma transcrição fonética. Ora, aquele esforço de decifração transmite a quem não sabe ler a idéia de que se lê por sílabas, ou seja, que a escrita vem associada a sílabas, antes de estar associada a palavras, e muito dificilmente deixa claro que existem unidades menores do que a sílaba. Outro fato comum ocorre quando alguém vai escrever e tem dúvidas sobre a ortografia de uma palavra. Nesse caso, pode perguntar diretamente por uma letra: "teste" se escreve com X ou com S? Diante disso, uma pessoa analfabeta intui que a escrita tem um conjunto de nomes especiais para analisar as palavras, antes de descobrir o que ela representa. Mas o que fazer com esses nomes? O que significa "xis" ou "esse"? Num primeiro momento, essas palavras não têm um significado para o ouvinte analfabeto ou significam apenas nome de letra, e a palavra "letra" significa apenas "escrita" e não unidade de um sistema. Outro procedimento é responder às dúvidas ortográficas de alguém usando o princípio acrofônico, típico do método das cartilhas; isto é, comportando-se na vida real como um professor alfabetizador. Quando alguém está tendo dificuldades para escrever um nome, a resposta vem da seguinte forma: L de lata, E de escola, S de sapo, C de cebola, A de árvore, U de urubu e X de xarope, e acento agudo no E: LÉSCAUX. <117> Diante disso, uma pessoa analfabeta poderá fazer uma idéia de que a escrita é algo surrealista e um jogo no qual cada um diz o que bem quiser. Aquele procedimento de decifração, sem uma explicação muito detalhada e convincente, não é transparente para o analfabeto. Só mostra as relações entre letras e sons para quem conhece as regras do jogo. No máximo, um analfabeto pode perceber que um certo padrão frasal se repete, como em "u de urubu", "a — de árvore", o que já exige um enorme esforço de análise. No mais, em geral, as relações entre letras e sons não são nem um pouco transparentes. Algumas crianças interessam-se pela escrita logo cedo e começam a reconhecer certas palavras que vêem freqüentemente. Depois, querem saber como se escreve o próprio nome e acabam decorando que determinada letra é a letra do seu nome. Aqui também funciona o princípio acrofônico: A de Antônio, R de Regina, T de Tomás, etc. Esse tipo de explicação é muito precioso para a criança porque ensina duas coisas importantes: o nome das letras e seu valor fonético através do princípio acrofônico. Quando o professor começar a falar de escrita para as crianças, precisa lembrar-se de que a maioria delas já tem informações a respeito. Se ele fizer com que elas explicitem essas informações, conversando a respeito do que já sabem, terá um bom motivo e um caminho interessante para ensinar a ler e a escrever. Algumas classes, com crianças que já passaram por escolas maternais ou pré-escolas, têm alunos que sabem muito mais a respeito da escrita. Por isso, o professor deve fazer esse levantamento antes de organizar o trabalho de ensino. Reconhecer e respeitar esses conhecimentos das crianças motiva-as a aprender mais rápido, uma vez que elas constatam que já sabem muita coisa. Por outro lado, esse estudo prévio é crucial no caso daqueles alunos que sabem muito pouco ou quase nada a respeito do sistema de escrita. Com esses alunos, o professor deverá tomar cuidados especiais, devendo ensinar noções que parecem óbvias a todo o mundo, mas que não foram sequer percebidas por algumas crianças. Se esses alunos não receberem uma boa explicação, por exemplo a respeito da distinção entre desenho e escrita ou, ainda, que escrevemos com letras representando os sons das palavras, dificilmente acompanharão explicações mais específicas a respeito do funcionamento da escrita, da leitura e da fala. <118> 6 A decifração da escrita REGRAS PARA A DECIFRAÇÃO DA ESCRITA Neste capítulo, começaremos a analisar que conhecimentos uma pessoa precisa ter para decifrar e ler algo escrito no nosso sistema de escrita. Em outras palavras, vamos ver quais são as regras que guiam uma pessoa nessa tarefa. Para quem já sabe ler, a decifração é algo mecânico, assim como o controle fonético dá-se naturalmente para quem já aprendeu a falar. Mas se quisermos explicitar esses conhecimentos, vamos encontrar uma série de normas, mesmo porque, se elas não existissem, não haveria a convenção social que torna a escrita algo compartilhado pelos usuários. O conhecimento dessas regras constitui o segredo da decifração da escrita, que, por sua vez, é o segredo do processo de alfabetização. Há uma tradição equivocada segundo a qual não se deve ensinar os alunos a decifrar a escrita, mas a ler "com naturalidade"... Como alguém consegue ler um texto se não sabe decifrá-lo? Constata-se em geral que os professores não sabem dizer quais são os conhecimentos que uma pessoa precisa ter para saber ler e, por isso, recusam-se a adotar o estudo da decifração como matéria em suas aulas. A questão, com efeito, é muito complexa, e os livros não costumam tratar desse assunto correta e seriamente. Apresentaremos a seguir os principais pontos que urna pessoa precisa conhecer para saber ler. 1. Conhecer a língua na qual foram escritas as palavras Diante de uma escrita chinesa, se eu não souber chinês, posso ficar tentando descobrir o que está escrito, mas jamais conseguirei ler. A história das decifrações tem mostrado isso. Conhecer a língua é o primeiro requisito para se ler. Por outro lado, conhecendo uma língua, posso usar esse conhecimento para tentar "ler" algo escrito em outra língua. O fato de uma criança saber que está escrito uma determinada palavra, e não outra, ajuda muito a refletir sobre seus conhecimentos da escrita e da leitura e a ousar um processo de decifração. Se dissermos a uma criança que a palavra está escrita numa língua que ela <120> não conhece, isso certamente não irá animá-la a usar seus conhecimentos para ler o texto. 2. Conhecer o sistema de escrita É preciso saber distinguir um desenho (figurativo ou abstrato) de uma manifestação de escrita. O desenho representa algo do mundo (ou relativo a ele), e a escrita representa a linguagem oral (uma palavra). A linguagem oral, por sua vez, representa o mundo. Uma mesma forma gráfica, portanto, pode ser apenas um desenho ou uma escrita. 3. Conhecer o alfabeto O alfabeto que usamos é uma das possíveis formas do alfabeto latino e segue um conjunto de normas atuais. É composto de letras, formando um conjunto, tendo cada letra um nome, que lhe foi dado para indicar um dos sons possíveis que a letra apresentana língua, através do uso de um princípio acrofônico. Contar um pouco da história do alfabeto é, talvez, a melhor maneira de apresentá-lo para as crianças. 4. Conhecer as letras As letras são unidades do alfabeto que representam os sons vocálicos ou consonantais que constituem as palavras. Variam na forma gráfica e no valor funcional. As variações gráficas seguem padrões estéticos, mas são também controladas pelo valor funcional que as letras têm. É importante aprender a distinguir as letras entre si e com relação a outros sinais e marcas da escrita. Saber dizer que letras aparecem em seqüência numa palavra é mais fácil com alguns tipos de letras (por exemplo, letras de fôrma) do que com outros (escrita cursiva). Saber os nomes das letras é importante para poder conversar a respeito de quais rabiscos são letras e quais, não. 5. Conhecer a categorização gráfica das letras As letras podem ter muitas formas gráficas, gerando diferentes alfabetos, como podemos ver na história dos sistemas de escrita. Apesar da diferença gráfica entre essas formas, uma mesma letra permanece a mesma porque exerce a mesma função no sistema de escrita, ou seja, é usada exatamente da maneira exigida pela ortografia das palavras. <121> As letras são categorias abstratas que desempenham uma determinada função no sistema, que é preencher um determinado lugar na escrita das palavras. Assim, no caso da palavra CASA, de acordo com a ortografia da língua portuguesa, é escrita com as seguintes letras: 1ª letra: letra cê; 2ª letra: letra a; 3ª letra: letra esse; 4ª letra: letra a, novamente. A forma gráfica pode variar até os limites das convenções que permitem ao leitor, vendo um rabisco, reconhecer a letra cê, a, esse e a. Ou seja, é preciso saber a categorização das letras, quer no seu aspecto gráfico (equivalência das letras nos diferentes alfabetos), quer no seu aspecto funcional (quais letras devem ser usadas para escrever determinada palavra e em que ordem). 6. Conhecer a categorização funcional das letras Apesar de variarem graficamente, as letras — como unidades abstratas do alfabeto — têm valores funcionais fixados pela história das letras, pelo processo de adaptação a uma determinada língua e, principalmente, pela ortografia das palavras. Portanto, não se pode escrever qualquer letra em qualquer posição numa palavra. Se as letras não tivessem esses valores, poderíamos, por exemplo, escrever CASA com as letras APXP (onde A C, P = A, X = S), ou mesmo MRIT, desde que houvesse uma convenção que permitisse isso. Além disso, seguindo as possibilidades geradas pela ortografia, a palavra pronunciada "casa", em princípio, poderia ser escrita das seguintes formas (apesar de apenas a primeira forma ter sido escolhida pela ortografia): CAZA QAZA KAZA CASA QASA KASA CAG CAXA QAXA KAXA Nota O desenho das letras está muito diferente dos modelos tradicionais, mas podemos lê-la porque distinguimos "letras" nesse rabisco, e, para tanto, nos servimos dos conhecimentos ortográficos da palavra CASA, ajudados pelo contexto em que aparece essa escrita. A alfabetização depende crucialmente do conhecimento da categorização gráfica e funcional. Aí se localiza um divisor de águas: quem consegue entender isso, pula a barreira do analfabetismo e aprende a ler; quem não consegue, fica tentando em vão outras maneiras de aprender. Grande parte do trabalho de alfabetização deverá voltar-se, portanto, para o estudo desses dois aspectos. <122> 7. Conhecer a ortografia A ortografia é mais importante do que a simples idéia de um alfabeto no nosso sistema de escrita, porque ela controla a categorização gráfica e funcional, muito mais do que o princípio alfabético. A dificuldade de ler começa com o problema da identificação das letras. No início da alfabetização, uma criança tem tantas dificuldades em reconhecer as letras em uma escrita cursiva quanto um adulto experiente em ler "a letra do outro" como no nome do remetente de uma carta. CAGLIARI, 1986b e 1994b. Saber que a ortografia congelou o modo de escrever as palavras ajuda muito os alunos a não tentar fazer do alfabeto um sistema de transcrição fonética e a perceber que a fala segue as variações dialetais, neutralizadas na escrita pela ortografia. Conhecer a natureza, a função e os usos da ortografia é importante ainda para entender as relações entre letras e sons e entre fala e escrita. A ortografia comanda a função das letras no sistema de escrita, estabelecendo a ordem dos caracteres nas palavras e o valor fonético de cada um deles, de acordo com a linguagem oral (dialetos de todos os usuários). Além disso, estabelece como a linguagem oral deve ser segmentada para formar as unidades da escrita, que chamamos de palavras. Por outro lado, a ortografia fez com que a escrita tivesse como função permitir a leitura, ou seja, permitir que os usuários de diferentes dialetos pudessem <123> reconhecer uma determinada palavra e, assim, entender o que está escrito. Uma vez identificada a palavra, através do estudo dos sons e dos significados, o usuário está livre para dizer o que está escrito, usando seu dialeto ou outro qualquer, porque as marcas dialetais ficaram neutralizadas pela ortografia na escrita. Dentro desse quadro constatamos que é mais fácil partir da escrita ortográfica para a decifração da linguagem, atribuindo valores fonéticos às letras, do que analisar a fala e chegar à forma ortográfica que a palavra tem. Em outras palavras, as relações entre letras e sons são mais simples e fáceis do que as entre sons e letras. Ou ainda, é mais fácil decifrar e ler do que escrever. Juntando os segmentos da fala de todos os dialetos e as letras, segundo o estabelecido pela ortografia das palavras, temos o quadro completo das relações entre letras e sons. Tem sido dada pouca importância ao estudo da ortografia, quer nos sistemas de escrita quer nas atividades escolares. A única coisa que alguns professores sabem fazer é corrigir erros de grafia. O importante, contudo, está em compreender bem como é a ortografia e como ela atua na linguagem escrita e na leitura. Desse conhecimento, como vimos, dependem muitas noções básicas, necessárias e indispensáveis para que uma pessoa possa ler. 8. Conhecer o princípio acrofônico O princípio acrofônico existe desde a formação do primeiro alfabeto. O nome das letras traz, em seu início, o som mais característico que a letra representa no sistema de escrita. Assim, no nome "bê", da letra B, encontramos o som "b", que é o som mais comum que essa letra assume. E isso acontece com praticamente todas as letras. O princípio acrofônico na verdade é um conjunto de regras que usamos para decifrar os valores sonoros das letras. Num primeiro momento, atribuímos a cada letra o som que é dado pelo seu nome. Depois, somamos os sons para descobrir que palavra está escrita. Nesse momento, são feitos os arranjos necessários a respeito dos valores sonoros das letras em função da história das palavras, da ortografia e do dialeto que o leitor conhece. Alguns professores acreditavam que as cartilhas tinham algo de especial e inexplicável, que fazia os alunos aprenderem. Esse algo especial encontrava-se na <124> prática escolar que aplicava o princípio acrofônico de uma forma ou de outra para ensinar as crianças a ler. Na verdade, o princípio acrofônico é uma das ferramentas mais importantes que o leitor tem para realizar sua tarefa de decifração e leitura.9. Conhecer os nomes das letras Os nomes das letras são: a, bê, cê, cê-cedilha, dê, é, efe, gê, agá, i, jota, cá, ele, eme, ene, ô, pê, quê, erre, esse, tê, u, vê, dáblio, xis, ípsilon, zê. Notar que o nome da letra H não se escreve com H, o nome da letra K é com C (porque não se escrevem palavras comuns com K na nossa língua), no nome da letra W não aparece o som correspondente, nem no nome da letra Y. Isso mostra que no nosso sistema o princípio acrofônico não está mais presente em todas as letras. Mas isso acontece principalmente com letras de pouco uso, como K, W e Y; a letra H é exceção. Em Portugal, em vez de "dáblio" diz-se "duplo vê". Em inglês o nome significa "duplo u". Alguns dialetos (por exemplo, do Nordeste) têm outros nomes para algumas letras, para facilitar o uso do princípio acrofônico. Eles dizem, por exemplo, fê, lê, mê, nê, rê. Muitos professores de alfabetização adotam os dois nomes para as letras, e isso facilita o trabalho. 10. Conhecer as relações entre letras e sons (princípios de leitura) Para saber que som uma letra tem, é preciso relacioná-la com seu nome (som básico) e em seguida estudar o contexto em que ocorre (letras que vêm antes e depois), para saber se existe alguma regra especial que modifica o som básico em função do contexto - por exemplo, S entre duas vogais tem o som de "zê"; C diante de A, O, U tem o som de "ka" e não de "cê", etc. Por outro lado, é preciso levar em conta o dialeto do leitor. Por exemplo, para alguns falantes, a letra T tem os sons de "tche" e "tê", mas para outros tem apenas o som de "tê". Alguns falantes dizem "catano" em vez de "catando" e, para esses, a letra D não tem som, nesses contextos verbais. As considerações acima mostram que existem regras que controlam os valores fonéticos que as letras podem ter numa língua. Conhecer essas relações é indispensável para decifrar e ler. Essas regras podem transformar-se em exercícios em sala de aula. Os alunos adoram <125> descobrir as regras a partir de um conjunto de dados que lhes é apresentado. Os professores devem aproveitar esse interesse — para os alunos, um desafio ou jogo — e deixar que eles construam, a partir da análise dos dados, o conhecimento de como o sistema de escrita funciona e como se faz para ler. 11. Conhecer as relações entre sons e letras (princípios de escrita) Como vimos anteriormente, se alguém quisesse escrever "kaza", teria diante de si muitas alternativas, mas deveria acabar escolhendo apenas a forma estabelecida pela ortografia. Para quem toma por base a ortografia para chegar à fala de acordo com a norma culta ou com a pronúncia de seu dialeto, o caminho partindo das letras para chegar aos sons é relativamente fácil. Por exemplo, o aluno pode ver escrito DENTRO e ler "drentu", aplicando seus conhecimentos básicos das relações entre letras e sons, e depois adaptar o resultado final à pronúncia do seu dialeto. Ao ler a palavra XA, dará à letra X o som de CH, porque de acordo com as normas da nossa língua em início de palavra todo X apresenta apenas o som de CH. Por outro lado, partindo da fala (que é sempre dialetal) para a escrita, ou seja, indo dos sons para as letras, o caminho é outro. Não basta, por exemplo, saber que X no início de palavras representa o som de CH, uma vez que esse som pode ser representado também por CH. Ao ouvir e tentar escrever "chá" ou "cheque", o aluno deverá decidir se essas pronúncias serão representadas por X ou por CH: XÁ, XEQUE/CHA, CHEQUE. Quando se diz "andano" e "drentu", dificilmente se descobre a forma ortográfica dessas palavras: ANDANDO e DENTRO. Mas, no caminho inverso, quando se conhece a norma padrão é mais fácil deduzir que a forma ANDANDO é equivalente a "andano" e DENTRO, a "drentu". 12. Conhecer a ordem das letras na escrita Para ler, é preciso ainda saber em que direção a escrita vai. Quando dizemos que escrevemos da esquerda para a direita, significa que a seqüência das letras nas palavras obedece a essa ordem. Algumas crianças, muito preocupadas com o traçado das letras, interpretam mal essa afirmação sobre a direção da escrita e acabam escrevendo (sobretudo as letras arredondadas) de forma espelhada, uma vez que o movimento <126> da mão, nesse modo de escrever, vai da esquerda para a direita e, na forma correta, da direita para a esquerda: Podemos escrever seguindo outras direções. O importante é permitir uma leitura clara, o que se obtém através da identificação da linha de base sobre a qual as letras das palavras se apóiam. 13. Conhecer a linearidade da fala e da escrita A questão anterior está ligada à característica linear da fala e da escrita. Quando falamos, pronunciamos os elementos segmentais (vogais e consoantes) e os elementos prosódicos (entoação, ritmo, volume, velocidade, duração e ainda a nasalidade, o acento, a qualidade de voz, etc.) todos ao mesmo tempo e variando a cada momento. Mas, na escrita, fazemos algumas separações. Representamos as vogais e as consoantes sem outras especificações. Depois, colocamos alguns sinais de pontuação no final das frases, embora se deva modular a frase de maneira apropriada desde o início. Escrevemos uma vogal e depois a modificamos colocando um til ou um acento. As pausas da fala nem sempre têm correspondência fixa com as pausas ou sinais de pausa vírgulas, pontos) da escrita. A segmentação de palavras na escrita, indicada pelo espaço em branco, corresponde menos ainda a pausas ou segmentações na fala. Isso tudo mostra que a fala e a escrita têm muitas diferenças e que não há uma correspondência direta entre o que se escreve e o que a escrita representa da fala. A escrita simplesmente dá indicações que permitem a leitura. Cabe ao leitor, como conhecedor da língua, tirar do texto as informações necessárias para <127> reconstruir a linguagem oral na leitura, como se o que ele fosse ler fosse o que ele estivesse dizendo por iniciativa pessoal. 14. Reconhecer uma palavra Definir uma palavra na linguagem oral é uma tarefa difícil, mas é fácil na escrita. De acordo com as normas ortográficas, todo conjunto de letras separado por um espaço em branco constitui uma palavra. O critério semântico ajuda muito, mas não resolve todas as dúvidas. No esforço para ler, a decifração começa a fazer sentido no momento em que o leitor descobre uma palavra. Para chegar lá, o fato de a escrita separar as palavras por espaços em branco ajuda enormemente. O professor deve mostrar ao aluno que uma primeira tarefa é começar a identificar as segmentações das palavras. Para tal, deve ater-se apenas à escrita. 15. Nem tudo o que se escreve são letras Além de letras, a escrita usa sinais de pontuação, acentos e outras marcas, que é preciso conhecer. A letra A com um til representa um som diferente, ou seja, um A nasalizado. Porém, nem todo A nasalizado será escrito com A mais til. A escrita usa de acentos para marcar variações da qualidade das vogais, mostrando se são abertas ou fechadas. Os sinais de pontuação são diacríticos que servem para orientar a entoação e a prosódia, embora façam isso de maneira muito precária. As vírgulas servem, às vezes, para indicar pausas ou elementos parentéticos. O ponto final representa uma pausa longa possível, mas nem sempre necessária. Outras marcas como ponto de interrogação, exclamação, reticências, etc. representam também elementos prosódicos, sobretudo relacionados com a entoação. O desconhecimento dessas marcas às vezes confunde o leitor iniciante, que julga tratar-sede uma letra que ele desconhece, o que bloqueia o processo de decifração. 16. Nem tudo que aparece na fala tem representação gráfica na escrita Como o leitor raciocina não só como alguém que está tentando desvendar os segredos da escrita, mas também como um falante que pode refletir sobre sua <128> fala, é preciso controlar as expectativas com relação ao que se vai ou não encontrar na escrita, comparada com a fala. No fundo, essa é uma questão complexa. Nem todas as características sonoras da linguagem oral têm representação gráfica no sistema de escrita. No sistema alfabético, as letras representam apenas os segmentos fonéticos, isto é, aquelas unidades chamadas vogais e consoantes, que são definidas como unidades constitutivas das sílabas das palavras. Na prática, as vogais são mais facilmente reconhecíveis através do prolongamento das sílabas: caaaa- vaaaa-loooo, aaaan tiiii-gooo; e as consoantes pela observação dos movimentos articulatórios da boca: ca-ca-ca-ca va-va-va-va lo lo-lo-lo, an-an-an-an ti-ti-ti-ti go-go-go-go. Como vimos, elementos prosódicos também têm pouca ou nenhuma representação na escrita. Esses elementos ficaram de fora porque o sistema de escrita segmentou a fala em palavras sem levar em conta unidades maiores. Essas unidades formadas da soma de palavras, como o grupo tonal por exemplo, precisam ser recuperadas através dos conhecimentos que o leitor tem da língua. Dado que nossos leitores são falantes do português, saberão concatenar as palavras devidamente, como se o texto fosse falado por iniciativa pessoal. Apesar dessa limitação do sistema de escrita, na alfabetização basta o professor falar, por exemplo, que o aluno precisa ler com ritmo e entoação e explicar o que isso significa. Nota Neste livro optamos pelo uso das letras do alfabeto com seu valor sonoro baseado no princípio aerofônico e não na forma de transcrição fonética usual dos lingüistas (alfabeto próprio e escrita entre colchetes) Assim o som da fricativa alveolar surda será representado aqui por "çê" e não por (s). Essa opção foi feita para mostrar ao professor que ele também pode fazer boas transcrições fonéticas, usando apenas os conhecimentos do alfabeto e uma boa observação de como as pessoas falam. Por outro lado, mostra ao professor como a escrita parece estranha quando se sai da ortografia, revelando um pouco da sensação que o aluno tem ao se alfabetizar. 17. O alfabeto não é usado para fazer transcrições fonéticas CAGLIARI, 1992c. > Se deixarmos de lado a ortografia, podemos usar nossos conhecimentos do sistema de escrita alfabético para fazer transcrições fonéticas. Como os valores das letras foram estabelecidos em função da ortografia da língua e da fala dos dialetos, e não a partir das possibilidades articulatórias do homem, tendo em vista todas as línguas e dialetos do mundo, o uso do alfabeto para se fazer transcrição fonética é precário — há melhores sistemas para isso. Não obstante, esse uso especial do alfabeto apresenta uma certa eficiência que pode ser aproveitada pela escola. Dessa forma, pode-se transcrever foneticamente a variação lingüística que encontramos nos dialetos. Pode-se transcrever, por exemplo, as maneiras diferentes que as crianças têm de pronunciar as palavras e registrá-las sob a forma escrita. Esse tipo de prática ajuda <129> da enormemente a contrastar a escrita que respeita a ortografia com a transcrição fonética da fala, com a qual os alunos começam a escrever. Alguns alunos acabam pensando que o alfabeto serve apenas para escrever os sons à moda das transcrições fonéticas, e isso causa algumas dificuldades não só na escrita, como também no processo de aprendiza gem da leitura. Mostrar as duas possibilidades de uso do alfabeto é indispensável para os alunos poderem trabalhar tranqüilamente. A COMPETÊNCIA TÉCNICA DO PROFESSOR Saber decifrar a escrita é o segredo da alfabetização. E muito importante que o professor tenha isso sempre em mente. Ele deverá fazer muitas coisas como professor e principalmente como educador. Mas ensinar a ler é sua tarefa principal. Para tanto, é preciso ter, em primeiro lugar, os conhecimentos necessários para que alguém possa ler o que vê diante de si. Os < CAGLIARJ, 1992c e 1 99 6h. cursos de formação de professor têm se preocupado muito com outros aspectos da escola, dando muitas vezes um valor indevido aos aspectos pedagógicos, metodológicos e psicológicos. Como educador, o professor precisa ter uma formação geral, e esses conhe cimentos são básicos. Como professor alfabetizador, precisa ter conhecimentos técnicos sólidos e completos. Para ensinar língua portuguesa, é preciso saber o mais possível sobre a linguagem em geral e sobre a língua portuguesa em particular. Para ensinar alguém a ler e a escrever, é preciso conhecer profundamente o funcionamento da escrita e da decifração e corno a escrita e a fala se relacionam. <130> Um professor bem-preparado, com competência técnica, sabe exatamente o que fazer em qualquer situação de seu trabalho. Sabe o que o espera pela frente, quais os problemas que costuma enfrentar e como resolvê-los. Se acontecer algum imprevisto, saberá como se comportar. Esse tipo de discurso encontra-se em qualquer livro de pedagogia: é o óbvio. A aplicação dessas palavras à vida das pessoas, porém, é uma questão não tão óbvia, e menos fácil e comum ainda entre os professores. Se se perguntar a um professor alfabetizador tradicional como ele faz para ler uma simples palavra como POTE, ele responde que a gente verifica quais são os sons das letras e diz "pote". E se quiser escrever a mesma palavra, basta observar que sons a palavra tem, ver as letras correspondentes a esses sons e escrever: POTE. E como alguém sabe quais são os sons das letras? A sua resposta será que se aprende isso com o bá-bé-bi- bó bu. O conhecimento de como a escrita, a leitura e a fala funcionam está restrito a essas noções. Com apenas esses conhecimentos, no entanto, ninguém é capaz de ensinar uma pessoa a ler e a escrever como se deve. Nessas circunstâncias, um aluno precisará descobrir, por conta própria — porque é falante da língua portuguesa, capaz de refletir sobre o funciona mento de sua fala e da fala alheia e de decifrar a escrita —, muitas informações, sem as quais não poderá tornar-se um leitor. A AUTONOMIA DO PROFESSOR A explanação acima é oportuna para que o professor reflita sobre seu trabalho, vendo as questões não do ponto de vista metodológico, mas da sua competência. Ele não precisa de "pacotes" educacionais. Os métodos e técnicas não passam de ferramentas que ajudam em alguns casos e atrapalham em outros. Um professor competente saberá avaliar quais livros didáticos são úteis e interessantes e se trazem erros e omissões de questões importantes ao ensino. O professor precisa libertar- se das pessoas que apresentam soluções miraculosas num livro ou método. Mas, para isso, para que esta autonomia possa se sustentar, deverá ser realmente compe tente e um especialista em sua área. <131> Um professor que pergunta numa palestra o que ele deve fazer para ensinar a um aluno como ler sem soletrar, como ensinar os grupos consonantais, como ele pode explicar ao aluno o emprego das consoantes nasais em final de sílaba, etc, mostra quão despreparado está para o desempenho de seu trabalho. Como um professor como esse pode alfabetizar alguém? Se nem ele sabe resolver essas questões, de que forma seus alunos poderão saber? Por outro lado, um professor quepassou vários anos em sala de aula tem uma experiência de vida muito rica, que pode e deve ser aproveitada, para tirar daí o que a escola de formação não lhe deu. Existe uma idéia muito preconceituosa em nossa sociedade com relação aos autodidatas. No entanto, essa talvez seja a maneira mais usual e eficiente de corrigir os defeitos de um sistema educacional falho. Aos poucos, o professor pode ir lendo livros de lingüística geral ou de áreas particulares (fonologia, sociolingüística, semântica, etc.) e verificando onde esses conhecimentos entram na sua prática de sala de aula e quais as conseqüências que eles trazem. Deve estudar os sistemas de escrita e decidir como levar esses conhecimentos para suas aulas. Deve, sobretudo, refletir como usuário da língua portuguesa a respeito dos mecanismos da fala, escrita e leitura e quais os seus usos. Deve procurar explicitar, através de pequenas regras, o que faz quando ouve, fala e escreve. Se o professor sabe ler, pode refletir sobre todos os conhecimentos necessários para realizar essa tarefa e traduzir essa reflexão em regras, que serão passadas oportunamente para os alunos. Deve refletir sobre as próprias dificuldades e tentar descobrir formas de superá-las, porque assim saberá voltar-se às dificuldades particulares dos alunos e procurar urna solução para elas. Muitas das coisas que se ensina neste livro poderiam perfeitamente sair de um trabalho pessoal de qualquer professor alfabetizador, já que na vida profissional lidamos com todas essas questões. Simplesmente não estamos acostumados a refletir sobre elas e menos ainda a explicitá-las na forma de um estudo. Mas é justamente essa explicitação que traz à consciência do professor sua competência. <132> Procedimentos para o estudo das letras Como já dissemos várias vezes, aprender a ler é o segredo da alfabetização. Para alguém conseguir ler algo, precisa saber como esse sistema de escrita funciona, isto é, precisa saber decifrar a escrita. De acor do com o sistema de escrita, o processo de decifração ocorre de uma determinada maneira. Para decifrar uma escrita feita com letras de um alfabeto, a questão mais importante é saber quais sons estão associados a quais letras. Por essa razão, apresenta-se, logo adiante, a título de sugestão, o modo como um professor pode trabalhar esse aspecto na alfabetização. Antes disso, porém, é bom lembrar alguns fatos que servem de guia para que o processo de alfabetização seja mais eficiente. 1. Fornecer as explicações básicas ao aluno Do ponto de vista funcional, a escrita escolar que usamos baseia-se num alfabeto de 26 letras (incluindo o "ç"), em alguns diacríticos, como os acentos e o til, e em marcas, como os sinais de pontuação. Cada letra representa um valor abstrato, que pode ter inúmeras formas gráficas. Esse valor é dado pela expectativa de ocorrência em palavras, de acordo com as normas ortográficas. Por exemplo, "E" representa o mesmo valor de "e", e, embora graficamente esses dois caracteres sejam muito diferentes, é possível escrever a mesma palavra, variando esses caracteres: "SELO" e "selo". A escrita representa sons da fala. O próprio nome das letras traz em si um dos sons (em geral o principal) que a letra representa. Ler não é o mesmo que escrever. Quando se lê, o que vale é a decifração que conduz ao reconhecimento da palavra, indo da análise de letra por letra e de combinações de letras, até compor o resultado final. Feita a decifração, o contexto em que aparece escrita a palavra em geral é suficiente para mostrar para o aluno que ele está no caminho certo. Quando se trata da palavra isolada, é preciso verificar as alternativas possíveis, que o aluno pode checar, levando em conta os conhecimentos que tem da linguagem oral, como falante nativo. Depois, ele vai aprender que pode encontrar escrita uma palavra que não conhece. Precisará, então, consultar um dicionário. Entretanto, o procedimento é diferente quando se escreve. Em primeiro lugar, observam-se os sons que a palavra apresenta na linguagem oral. Em seguida, faz-se uma hipótese a respeito de quais letras podem ser usadas para transcrever os sons detectados. Finalmente, leva-se em conta a ortografia. Se o aluno já souber como é a forma ortográfica da palavra, escreve com facilidade. Se não <134> souber ou tiver dúvidas, deverá resolvê-las antes, perguntando ou procurando no dicionário. É sempre bom lembrar que não é preciso ter uma ilustração para se escrever ou ler: um texto basta, ou seja, algo falado (quando se vai escrever) ou algo que se pode falar (quando se vai ler). É interessante recordar também que a escrita não representa a fala de um dialeto em particular. Qualquer falante, de qualquer dialeto, pode ler decifrando as letras e compondo as palavras segundo a fala de seu dialeto. Ao escrever, pensa nos sons das palavras em seu dialeto, procura a forma padroniza da pela ortografia e escreve. É preciso estar atento para o fato de que se pode fazer "leitura incidental" e até escrever palavras com letras, como se fossem glifos, ou seja, caracteres ideográficos. Como, porém, o sistema também é fonográfico e usa letras, o segredo da escrita das palavras é a combinação de letras. Isso simplifica enormemente a tarefa de escrever uma palavra, seja ela familiar ou não. O mesmo vale para a leitura: pode-se ler uma palavra como se fosse um ideograma, mas essa não é uma leitura produtiva. Quem sabe combinar os valores fonéticos das letras para deci frar as palavras escritas tem muito mais vantagens e facilidades para ler. E é assim que os alunos devem aprender. Essas noções básicas devem ser discutidas com os alunos desde o início dos trabalhos e sempre que o professor tiver oportunidade. Se perceber que algum aluno está fazendo confusão com alguma dessas idéias, precisará esclarecê-lo. O professor precisa explicar cada uma dessas noções, e não ficar camuflando com histórias ou exercícios que indiretamente propiciem o aluno a chegar às conclusões desejadas. É preciso ir direto ao assunto, sem rodeios. 2. Explicar o que é uma letra O aluno deve saber ainda que as letras são dispostas em linhas (em geral horizontais e mais raramente de cima para baixo), e que uma letra sucede a outra, da esquerda para a direita, linha por linha. As letras têm tamanhos e formas definidas nos alfabetos. Letras maiúscula e minúscula indicam alfabetos diferentes (conjuntos diferentes de caracteres), e não letras em tamanho grande ou pequeno. Toda letra tem uma forma básica, que serve para distinguir um caractere de outro, mas pode variar e ter "enfeites" sem interferir nas suas características distintivas, como as serifas das letras de fôrma maiúsculas. Corno as letras são dispostas no espaço, <135> em linhas, apoiadas na linha-base horizontal, e a seqüência é da esquerda para a direita, elas têm uma direção fixada por esse espaço, de tal modo que não se pode virá-la de cabeça para baixo, da direita para a esquerda. A letra deverá estar disposta na escrita das palavras, tal qual aparece no alfabeto. Aliás, a disposição das letras no próprio alfabeto já mostra esse fato. As letras são escritas separadamente, no alfabeto de letras de fôrma, mas são interligadas na escrita cursiva. Com relação aos usos da escrita, o aluno deve saber onde se pode encontrar exemplos de escrita, através do reconhecimento do que é letra e do que não é. Letras podem vir acompanhadas de figuras ou rabiscos: é preciso saber distinguir um de outro. É necessário saber por onde começar a ler ou a escrever, eonde terminar, o que são palavras isoladas e o que é um texto. As vezes, juntamente com o aspecto gráfico e funcional de urna letra, o autor tira proveito artístico ou qual quer outro efeito, para "enriquecer" a escrita com mais idéias. É preciso distinguir um uso lingüístico da escrita de outros usos possíveis. Como vivemos num mundo onde coexistem muitos sistemas de escrita, o aluno precisa saber isolar a escrita alfabética, composta de letras e seguindo uma ortografia, de outras formas de escrita, tais como numérica, simb&lica, as que utilizam sinais e marcas. É preciso, ainda, distinguir uma escrita linear de certas formas "abrevia das" ou "compostas", em que as letras são simples pretexto para urna escrita do tipo ideográfica e não- linear. Enfim, antes de se ensinar as relações entre letras e sons, o aluno deve saber o que é uma letra e corno reconhecê-la quando a encontrar pela frente. Reconhecer o material da escrita e suas características básicas é im prescindível para começar um trabalho de decifração, descobrindo quais sons as letras apresentam em deter minada palavra. Aprender a ler significa aprender todas essas coisas. Alguns alunos se perdem em detalhes (segundo o professor), mas sem superar essas "pequenas" dificuldades, tudo o mais fica comprometido. E se o aluno não for capaz de decifrar uma palavra, ele não saberá ler e não poderá ser considerado alfabetizado, mesmo que consiga dizer coisas que vê escritas, ou reproduzir graficamente o traçado de palavras. 3. Explicar como segmentar a fala em palavras Uma palavra separa-se de outra na escrita por um espaço em branco. Para saber como segmentar uma <136> palavra, observando a linguagem oral, há duas estratégias importantes: a primeira, é separar por significado — cada significado corresponde a uma palavra possível; a segunda, é tentar colocar outra palavra no local que se quer segmentar — se isso for viável, a segmentação é possível. Tudo isso é muito mais complicado na prática do que esse comentário revela. Mas essas idéias representam um primeiro passo para os alunos poderem segmentar a fala oral em palavras, que deverão escrever, sem muitas dificuldades. A palavra final será sempre dada pela ortografia. E, nesse caso, quem sabe sabe; quem não sabe tem de perguntar. Por exemplo, embora represente uma idéia só, é possível separar em palavras escritas a expressão "assistir à televisão", porque podemos reconhecer um significado em "assistir" e outro em "televisão", o que nos permite variar parte da expressão: "assistir ao jogo", "assistir ao filme", "ver televisão" "consertar televisão", etc. Pode-se colocar uma palavra intercalada entre uma e outra: "assistir sempre à televisão". Porém, no caso de "macarrão", se houver segmentação, pode-se ter "maca", mas o que sobrou fica sem sentido: "-rrão"; tampouco pode-se intercalar algo entre uma palavra e outra: "maca-gostoso-rrão"... Compare as formas "casa pequena" e "casinha" e faça os testes. Os alunos não devem se preocupar em cortar palavras no final de linha, porque esse é um procedimento encontrado em livros, mas não na escrita comum do dia-a-dia. Nota E aconselhável pendurar uma faixa sobre a lousa em que apareçam primeiro as letras de fôrma maiúsculas e depois as letras de fôrma minúsculas e minúsculas lado a lado. 4. Explicar como descobrir as regras de decifração Deve haver um cartaz bem grande (ou uma faixa) com as letras do alfabeto em sala de aula, para que os alunos possam consultar sempre que desejarem. Quando o professor for ensinar as relações entre letras e sons, começará pelo nome das letras. Em geral, a classe como um todo conhece todas as letras do alfabeto, porque as crianças costumam ir aprendendo, mesmo antes de entrar na escola, pelo menos as letras iniciais do próprio nome. Decorar os nomes das letras é importante, mas o professor não irá exigir isso, através de exercícios de memória, nos quais os alunos recitam o alfabeto. Isso se aprende e se decora com o próprio estudo das letras. O professor poderá pedir para os alunos ditarem palavras para verem como são escritas e para proceder à análise de uma ou de outra letra do interesse deles. <137> Poderá, se quiser, proceder a uma análise geral da palavra, dizendo o nome de cada uma das letras que a compõem. Seguindo a ordem da esquerda para a direita (ordem correta), pode-se ler a palavra corretamente, mas se a leitura for feita da direita para a esquerda, tem-se um amontoado de sons sem sentido (raramente dá certo ler da direita para a esquerda. Entretanto, pode-se ter palavras diferentes, ou até mesmo a mesma palavra, como AMOR e ROMA; ASA, etc.). Descobrir regras de decifração (relação letra/som) e de escrita (relação som/letra) é uma estratégia para se alfabetizar com rapidez e segurança, deixando de lado o método das cartilhas, o famoso bá-bé-bi-bó-bu. Nessa atividade, o professor pode programar aulas e material, fazendo o levantamento dos sons que as letras têm. Por outro lado, pode fazer um levantamento das letras que são usadas para representar um mesmo som. Escrever listas de palavras para mostrar as funções das letras será um procedimento cotidiano. Os exemplos das listas servirão para uma discussão reflexiva sobre as relações entre letras e sons e demais fatos lingüísticos, como a variação dialetal e a ortografia. Como resumo e conclusão das reflexões, o professor ajudará os alunos a formularem regras que expliquem os fatos considerados. As cartilhas jamais pensaram nessas coisas, porque nunca se preocuparam em ensinar como decifrar a escrita, deixando que o aluno descobrisse isso por conta própria, de tanto escrever palavras com "pedacinhos". É incrível que alguns professores alfabetizadores nunca tenham pensado nesses fatos e, quando se pede a eles para organizar um material nesse sentido, sentem-se embaraçados e confusos. JUNTANDO E GENERALIZANDO Um estudo detalhado de letra por letra é apresentado no Apêndice no final deste livro. Recomenda-se que o professor consulte-o sempre que necessário. Levando em consideração esse estudo em anexo, pode-se ver a questão das relações entre letras e sons por outro ângulo. Como algumas letras têm um comportamento muito semelhante entre si (paralelismo), ou se comportam de uma maneira semelhante sempre que se encontram em determinadas circunstâncias, isso permite <138> juntar o que for igual e generalizar os casos comuns a mais de uma letra. Desse modo, em vez de uma série de regras parecidas, para letras diferentes, pode-se ter a mesma regra para todos os casos que se enquadram dentro das regras propostas. Refletir sobre tais questões é uma maneira um pouco mais sofisticada de conduzir a análise dos conhecimentos necessários para que alguém consiga ler e escrever. Uma incursão por esse território será feita a seguir. Em primeiro lugar, é preciso distinguir fatos de leitura (decifração) de fatos de escrita (produção de escrita). Um fato pode ser fácil para o aluno quando ele tem de decifrar e ler, mas pode ser muito complicado quando, observando esse fato na fala, ele tem de decidir como escrever. As facilidades e as dificuldades de ler não são as mesmas quando se trata de escrever. Esse é um ponto que as cartilhas nunca levaram em conta porque tratam apenas da escrita, mesmo quando estão pensando na leitura. Além de distinguir fatos da leitura de fatos da escrita, procuraremos avaliar o que é mais "fácil" e o que é mais "difícil", partindo da complexidade que as letras têm nas suas relações com ossons da fala, e vice-versa. A própria natureza das letras, suas funções e empregos serão a medida usada para definir se uma letra é mais difícil ou mais fácil do que outra, na decifração ou na escrita. Essa é uma ordem de análise científica, não uma ordem pedagógica. Para um aluno principiante, escrever ou ler qualquer coisa é sempre muito difícil. Somente quem conhece o funcionamento de todo o sistema pode hierarquizar o que, para si, é mais fácil ou não. O mito de que a letra x é a mais difícil deve-se ao fato de as pessoas já alfabetizadas encontrarem dificuldades ortográficas quando estão diante dessa letra. Para o principiante, ler ou escrever CASA ou EXTRA pode apresentar o mesmo grau de dificuldade e, nessas circunstâncias, é difícil hierarquizar qualquer tópico com segurança. OQUE É MAIS FÁCIL DE DECIFRAR Antes de mais nada, é bom relembrar o que se disse acima a respeito das noções de "fácil" e "difícil" aplicadas ao estudo das letras. Trata-se de uma dificuldade <139> medida de acordo com a complexidade dos fatos de nossos sistemas de escrita (decifração e ortografia) e de fala (variação lingüística). Essas dificuldades aparecem cada vez mais à medida que o aluno progride nos estudos. No início, tudo é igualmente muito difícil. Entretanto, sabendo das dificuldades futuras, o professor poderá entender melhor o percurso que os alunos farão. Quando se fala em decifração, subentende-se leitura. Vamos separar os comentários a respeito das letras que representam vogais (A, E, I, O, U) das demais que representam consoantes. As vogais mais fáceis de decifrar são o I e o U. Sempre que se encontrar uma delas lê-se "i" ou "u". Igualmente fáceis são essas mesmas vogais quando são ou podem ser nasalizadas. Exemplos: JUNTO, TINTA. Em seguida, tratemos da vogal oral A. Essa vogal muda de qualidade vocálica quando se junta a ela a nasalização (note a diferença entre LÁ e LÃ). A letra A, quando nasalizada, pode gerar a formação de ditongos, juntamente com o M, ou o NH, como em ACHARAM, BANHA. Pode ainda ser nasalizada ou não quando ocorrer um M ou N ou NH no início da sílaba seguinte, como em: CAMADA, BANANA, BANHA. As vogais mais difíceis são o E e o O. Ambas apresentam regras semelhantes (mudando apenas os valores fonéticos em jogo). A letra E pode ser lida como "é" ou como "é" em sílabas tônicas (o valor fonético "é" ocorre raramente em sílabas átonas, e somente em palavras derivadas, como CAFEZINHO, ou na pronúncia especial de certos dialetos do Norte e do Nordeste). Exemplos: DELE, DELA, BELO, BELEZA. Em sílabas átonas, a letra E pode, ainda, ser lida com o som de "i". Veja os exemplos: FERE, "féri", EMPRESTADO, "imprêstadu". A letra O pode ter o som de "ô" ou de "ó" quando ocorre em sílaba tônica (em sílaba átona, o som de "ó" ocorre somente em palavras derivadas e na pronúncia de certos dialetos, semelhantemente à letra E). Em sílabas átonas, é comum a letra O ter o som de "u". Confira os seguintes exemplos: FOCA, FOGO, COMIDA, COZINHA. Todas as vogais juntas apresentam regras semelhantes quanto à nasalização, embora somente a vogal A mude sua qualidade vocálica básica ao se nasalizar. Assim, quando uma vogal se encontra diante de um M ou de um N, que por sua vez ocorre diante de outra comsoante, <140> a vogal precisa ser nasalizada: CAMPO, CANTO, ENTRE, EMBORA, VINDA, LIMPO, ONDA, OMBRO, JUNTO, TUMBA. Quando a vogal vem diante de uma consoante nasal (M, N, NH), a qual, por sua vez, ocorre diante de outra vogal, a vogal precedente pode nasalizar-se ou não. Se ocorrer diante de NH pode ditongar-se ou não: CAMA, CANA, BANHA, PENA, LENHA, LEME, VIME, CINEMA, VINHO, ZONA, COMA, SONHA, UNA, UMA, UNHA. Em final de palavra, as vogais E e I, quando seguidas de M, podem ditongar-se com "i", e a consoante nasal pode ser um "nh" na fala. Por outro lado, as vogais O, U e A, quando seguidas de M, em final de palavra, podem ditongar-se com "u", e a consoante nasal pode ser uma velar, como nos seguintes exemplos: VEM, VIM, ALGUM, BOM, ACHARAM. Finalmente, toda vogal com til representa um som nasalizado. Porém, na escrita o til só pode ocorrer sobre A e O, como em: LÃ, MÃE, CIDADÃOS, LEÕES, PÕEM, etc. Com relação às consoantes que são mais fáceis de decifrar, podem-se ter três grupos. Primeiro grupo: H e os dígrafos CH, LH, NH, mais Ç e J. Segundo grupo: P B, T, D, F e V. Terceiro grupo: L e Z. Com relação ao primeiro grupo, a letra H só ocorre em início de palavra e aí não tem som algum (é preciso começar a decifração pela vogal que vem logo depois). Exemplos: HORA, HINO, HÁBITO, HERÓI. Como parte de um dígrafo, modifica o som da letra que a precede, mas resulta num valor fonético de fácil controle pelo falante ("chê", "lhê" e "nhê"). Exemplos: CHINA, PALHA, VENHA. A letra Ç tem sempre o som de "çê", e a letra J tem sempre o som de jê". Exemplos: MAÇÃ, POÇO, JOVEM, AJUDAR. As letras do segundo grupo representam valores fonéticos fáceis quando ocorrem em início de sílaba. Em final de sílaba, são pronunciadas com um "i" optativo. Apresentam maior dificuldade quando são a primeira letra de grupos consonantais terminados em R ou L (ou mais raramente S). Exemplos: POTE, BOLA, TATU, DADO, FACA, VACA, OBJETO, RITMO, ADVOGADO, TRABALHO, BROTAR, LIVRO, FRANGO, etc. No terceiro grupo, estão as letras L e Z em início de sílaba. Nesse contexto, a letra L tem sempre o som de "lê", e a letra Z tem sempre o som de "zê". Em final de sílaba, a letra L tem o som de "u", e a letra Z, de "çê". A <141> letra L apresenta certa dificuldade quando ocorre formando grupos consonantais, ou seja, entre uma consoante e uma vogal, na mesma sílaba. O QUE É MAIS DIFÍCIL DE DECIFRAR Podemos agrupar as maiores dificuldades de decifração das consoantes em seis grupos. Primeiro grupo: letra C e grupos consonantais SC, XC; segundo grupo: S; terceiro grupo: G e os dígrafos GU e QU; quarto grupo: R (o dígrafo RR é de fácil leitura); quinto grupo: os casos de juntura intervocabular envolvendo R, S, Z e M; e sexto grupo: X e os dígrafos XC e XÇ. Com relação ao primeiro grupo, a letra C tem o valor fonético de "çê" diante de E, I ou de outra consoante, como no caso dos dígrafos SC, SÇ ou XC. Nos demais casos, tem o som de "kê" (diante de A, O, U ou de outra consoante). Exemplos: CEBOLA, CIDADE, NASCIMENTO, NASÇA, EXCEÇÃO, CABANA, COR, CRISE, CLARO, TÉCNICA. Quanto ao segundo grupo, a letra S tem o som de "çê" no início de palavra, depois de consoante e no dígrafo SS, como em SAPO, SELVA, PSICOLOGIA, PASSO Entre duas vogais, tem o som de "zê". Exemplo: MESA. A letra S não representa som nos dígrafos SC, SÇ e na forma de plural de certas palavras, em certos contextos, em alguns dialetos (cf. "as casas amarelas foram vendidas"). Em alguns dialetos, a letra S, em final de sílaba, tem o som de "çê", mas, em outros, tem o som de "chê". Nesse caso, se houver uma consoante sonora no início da sílaba seguinte, no meio da palavra, a letra S pode ter os valores sonoros correspondentes nos dialetos mencionados acima, ou seja: "zê" e "jê". Confira os exemplos: BESTA, COSTA, DESDE, MESMO, SATANÁS, TOMÁS. Com relação ao terceiro grupo, a letra G é semelhante à letra C: diante de E e de I tem um tipo de som ("jê") e, diante de outras letras, tem outro tipo de som ("guê"). Os grupos de letras GU e QU podem ser dígrafos ou não. Só são dígrafos diante de E e de 1 e nunca diante de outra vogal (A, O e U. No entanto, em algumas palavras, os grupos GIJ e QU não são dígrafos, uma vez que o U é pronunciado.Somente o falante nativo sabe se o u é pronunciado ou não numa determinada palavra. Não há regras. Exemplos: GENTE, GIRAFA, GARRAFA, GULOSO, GOTA, GLÓRIA, GRAÇA, IGNORAR; <142> dígrafos: GUERRA, GUIMARÃES, QUENTE, ANIQUILAR, AQUI, AQUELE; não-dígrafos: AGÜENTAR, SAGÜI, LÍQÜIDO, FREQÜENTE. O quarto grupo é o formado pela letra R (o RR é de fácil decifração — tem como única dificuldade a variedade de sons em diferentes dialetos). O R representa o som do tepe (vibrante simples) quando está entre duas vogais, e representa o som da fricativa velar (ou da vibrante múltipla) quando está em início de palavra. Acontece que esse segundo valor fonético é típico do RR em posição intervocálica, motivo da confusão que alguns alunos fazem com as duas formas de escrita. Nos outros contextos, a variação é menos problemática (final de sílaba, por exemplo). É preciso levar em conta, ainda, o fato de o R em final de verbos não ser pronunciado em certos dialetos ou em certos registros de fala (fala informal). Em todos os casos, soma-se ainda a grande variedade de sons foneticamente possíveis nos vários dialetos, sem contar a ocorrência ora de uma pronúncia vozeada (sonora), ora desvozeada (surda). Exemplos: CARO, CARRO, MURO, MURRO, RATO, RIO, RUA, BRASIL, POBRE, CRAVO, PORTA, CERTO, MAR, PLANTAR, FERIR. O quinto grupo refere-se aos casos de juntura intervocabular envolvendo R, S, Z e M. Juntura significa ligar uma palavra com outra na fala. Quando escrevemos, separamos as palavras com um espaço em branco, mas, quando falamos, não é isso o que acontece. Não há uma pequena pausa entre uma palavra e outra; pelo contrário, o que ocorre mais freqüentemente é a ligação de uma palavra com outra como se ambas fossem uma coisa só. Em português, além disso, costumam ocorrer algumas modificações quando certas palavras se juntam. Vamos ver uma série de exemplos, mostrando qual a pronúncia quando duas palavras se juntam: Palavras isoladas Palavras concatenadas casa amarela (1) casamarela está aqui (2) estáqui fala alto (3) falaálto está alto (4) estáalto parte azul (5) parteazul carro azul (6) carroazul todo ódio (7) todoódio está infeliz (8) estáinfeliz compre ovo (9) compreôvo <143> No primeiro exemplo, quando se juntam dois "as", um deles cai, o mesmo acontecendo com o exemplo número dois. Porém, nos exemplos 3 e 4, houve o encontro de dois "as" mas nenhum deles caiu. Será que existe alguma regrinha para esses casos? Vamos ver que tipo de sílaba ocorre nesses contextos. No exemplo 1, têm-se uma sílaba átona final e uma sílaba átona inicial. No exemplo 2, ocorre uma sílaba tônica final, seguida de uma sílaba átona inicial. No exemplo 3, tem-se uma sílaba átona final, seguida de uma sílaba tônica inicial. No exemplo 4, ocorrem duas sílabas tônicas. Considerando apenas o exemplo 1, não se sabe qual vogal deixou de ser pronunciada. O exemplo 2 é de difícil análise. Porém, nos exemplos 3 e 4, nota-se que a vogal tônica permanece sempre, e que a vogal átona mantém-se apenas quando é final da palavra e a seguinte começa com vogal tônica, como no exemplo 3. Podemos formular agora uma regra: em juntura intervocabular, a segunda vogal cai se for idêntica à primeira em sua qualidade, e se for, além disso, átona. Essa regra inclui todos os exemplos estudados. O que acontece, porém, quando se juntam duas vogais de qualidades diferentes? Vejamos os exemplos de 5 a 9. Nota-se que, no contexto de juntura, formam-se ditongos crescentes (o final do ditongo é mais saliente do que o inicio). E isso ocorre independentemente da qualidade das vogais e da tonicidade que elas apresentam, como mostram esses exemplos. Fez-se uma análise mais completa do fenômeno para evidenciar, mais uma vez, como refletir sobre as relações entre fala e escrita. Do ponto de vista da decifração e da escrita, a dificuldade dos alunos é maior no caso da juntura que provoca a queda de alguma vogal. Envolve também algumas dificuldades com a segmentação, nos demais casos, uma vez que as sílabas se fundem, com a formação dos ditongos. A dificuldade mais comum que os alunos enfrentam, encarando o problema por outro ângulo, é saber se devem ou não escrever o artigo "a", em contextos de juntura com outra vogal precedente (ou, mais raramente, subseqüente). Por exemplo, é comum alguns alunos omitirem o artigo em expressões como "toda a família". Confere, ainda, "toda a amizade", em que caem dois "as" na fala, mas não na escrita. Em alguns casos, a presença do artigo não é obrigatória, mas muda levemente o significado da frase, como em: "comprava a cebola por quilo e a banana a dúzia" em confronto com "comprava cebola por quilo <144> e banana a dúzia". No primeiro caso, o falante quer marcar uma oposição, no segundo caso, apenas enumera fatos. Com relação à decifração, a maior dificuldade dos fenômenos de juntura intervocabular acontece quando, em final de palavra, há uma consoante e, no início da palavra seguinte, uma vogal. Nesses casos, a consoante final junta-se à vogal inicial, formando uma sílaba única e dificultando, assim, o trabalho de segmentação da fala. Pior ainda é o fato de haver mudanças muito significativas na qualidade fônica dos elementos envolvidos. Por exemplo, uma letra R em final de palavra tem o som de RR (cujo valor fonético varia de dialeto para dialeto, como já se viu antes). Porém, quando se encontra em juntura intervocabular, o R tem o som da vibrante simples (tepe) e não da vibrante múltipla (RR). Concluindo, troca-se o som de RR por R, como se pode ver nos exemplos a seguir: MAR ALTO, VIR AQUI, POR ALI, CARÁTER AGRESSIVO, etc. Quando o aluno analisa sua fala contínua, encontra um tipo de som, mas, depois que a segmenta, depara-se com outro, pronunciando a palavra isoladamente. Isso costuma causar dificuldades sérias para alguns alunos, no início. O professor precisa explicar ao aluno que a fala funciona de um jeito e a escrita, de outro. A escrita funciona como se as palavras ocorressem sempre isoladas. Fato semelhante é o caso do S ou Z em final de palavra e vogal no início da palavra seguinte, em juntura. As letras S ou Z, nesses casos, têm sempre o som de "zê", independentemente do dialeto. Porém, quando o aluno segmenta e vai analisar a palavra isoladamente, descobre que o som mudou de "zê" para "çê" ou "chê". Veja os exemplos: CASAS AMARELAS, TRÊS AMIGOS, DEZ AMIGAS, RAPAZ INFELIZ, etc. Em final de palavra, quando ocorre M e a palavra seguinte começa por vogal, a nasal pode formar a sílaba independente com a vogal seguinte. Nesse caso, se a nasal for precedida por I ou E, ocorre uma consoante nasal palatal ("nhê"); se o M for precedido por outra vogal, ocorre uma consoante nasal velar. Veja os exemplos: VEM AQUI, VIM AQUI, HOMEM AMARELO, VIERAM AQUI, RUM AMARGO, BOM AMIGO, etc. A mesma regra aplica-se quando, mesmo não havendo a letra M na escrita, ocorre uma vogal nasal no final de palavra, em juntura intervocabular. Observe os seguintes <145> exemplos: MÃE INFELIZ ("mãi-nhi-fe-liç"), IRMÃ INFELIZ ("ir- mã-rji-fe-liç"), PÕE AQUI ("põi-nha-ki"), etc. Como se disse, essa regra, diferentemente da regra estabelecida para o R e o S, o Z é opcional. Isso significa que, em vez da consoante nasal indicada para a fala, pode não ocorrer nenhuma consoante nasal, permanecendo apenas sílabas diferentes, de acordo com a forma de cada palavra. Assim, os exemplos acima, poderiam ser ditos da seguinte maneira: "véi-a- ki", "vi-é-rãua-ki", "bõu-a-mi-gu", "ir-mã-i-fe-liç","põi-a-ki", etc. Aqui também a variação entre escrita e fala traz dificuldades para o aprendiz, sobretudo quando ele se depara com esses fatos pela primeira vez. Uma simples explicação, contudo, é quase sempre suficiente para que o aluno perceba como deve agir perante a fala e a escrita. A falta de explicação, no entanto, pode deixar algumas crianças num impasse ou em sérias dificuldades, não entendendo por que as palavras variam tanto e quais são as regras que regem as variações. Mesmo que o aluno não as aprenda, o simples fato de ouvir uma explicação significa para ele que se trata de uma questão difícil, que ele aprenderá mais tarde. Sem nenhuma explicação, o aluno procurará uma e acabará confuso, julgando-se incapaz de aprender. O último grupo de dificuldades de decifração da escrita proposto anteriormente é aquele que se refere ao X e aos dígrafos XC e XÇ. A letra X tem o som de "chê" no início de palavra, o que torna sua leitura fácil, nesse contexto. Em final de palavra, tem o som de "kç" ou "kch", dependendo do dialeto: TÓRAX, PIREX, LATEX, etc. Quando ocorre em final de sílaba, no meio da palavra, a letra X tem o som dc "çê" ou de "chê", dependendo do dialeto: EXTRA, EXPLICAR, etc. Aqui, pode haver uma ditongação da vogal anterior quando se trata do som de "ê", como cm: "eichplicarr" (EXPLICAR). O mesmo acontece com os dígrafos XC e XÇ: EXCEÇÃO ("eçeçãu", "eichçeçãu"). Porém, não ocorre uma pronúncia como "echçeçãu". A maior dificuldade com a decifração da letra X ocorre quando ela representa uma consoante em início de sílaba e ocorre em contexto intervocálico, como nos seguintes exemplos: VEXAME, EXAME, PROXIMO, FIXO, etc. Como temos dito várias vezes, quando o leitor se encontra diante de casos assim, saber as relações entre letras e sons resolve o problema da decifração só em parte. Para chegar à conclusão final, deverá lançar mão de outro expediente, que consiste <146> em decifrar o que for possível e checar se o resultado obtido produz uma palavra da língua portuguesa. Se não produz, ocorreu algum equívoco nas relações entre letras e sons. Se produz, ainda assim é preciso checar o contexto em que a palavra se insere para saber se ela está correta. Por exemplo, alguém vai tentar ler a palavra FIXA na frase "a etiqueta estava fixa no caderno". Como o X entre vogais pode ter o som de "chê", uma leitura possível seria "ficha". Porém, confrontando com o contexto, o aluno percebe que a palavra que ele descobriu não faz sentido ali. Deverá procurar então uma outra alternativa. Sabe-se que entre vogais a letra X pode ter ainda o som de "kç". Portanto, a leitura é "fikça" e o texto adquire seu sentido correto. Finalmente, deve-se destacar que as dificuldades de decifração apresentadas acima levam em consideração o fato de se usar a leitura como uma forma de aprendizagem e o emprego da norma culta em sala de aula. Porém, na realidade individual de cada aluno, sobretudo quando ele está lendo sozinho, a passagem da escrita para a leitura o conduz de maneira natural à fala do seu dialeto. Nesse caso, as diferenças entre escrita e fala aumentam, dependendo da variedade lingüística em uso, podendo trazer dificuldades sérias para alguns alunos. OQUE É MAIS FÁCIL DE ESCREVER Existe uma diferença notável entre a decifração da escrita e a produção de escrita com relação ao que é mais fácil ou difícil. Alguns casos são de fácil decifração, mas apresentam dificuldades sérias na escrita. As dificuldades referem-se ao fato de haver mais de uma possibilidade de escrita, em princípio, ou de a forma lexical de uma palavra, na fala, ser diferente da forma escrita, em geral, por causa da variedade lingüística do aluno. Para o professor e para o aluno, é interessante e útil fazer um levantamento desses casos, já que essa também é uma maneira de ensiná-lo a decifrar a escrita e a escrever sem o bá-bé-bi-bó- bu. Vamos começar fazendo um levantamento do que é mais fácil de escrever. Esse é um estudo das relações entre sons e letras (da fala para a escrita) e não entre letras e sons (da escrita para a fala). <147> De modo geral, é fácil escrever quando ocorrem os casos de: P/B, T/D, F/V É curioso, pois os professores dizem que é justamente nesses casos que ocorrem as famosas trocas de letras, ou seja, quando os alunos escrevem P em vez de B, F em vez de V e T em vez de D. A explicação mais comum é que as crianças cometem essas trocas de letras porque têm dificuldades auditivas para distinguir sons sonoros de surdos. Essa afirmação não faz sentido, porque analisando tudo o que as crianças fazem, logo se percebe que elas usam sons surdos e sonoros, em outras situações, sem a menor dificuldade (lembrar que as vogais são sonoras, assim como as laterais; as vibrantes podem ser sonoras ou surdas, assim como as fricativas...). Um aluno pode trocar letras pelo simples fato de sussurrar os sons das palavras que escreve e, assim, produzir uma fala sem sons sonoros, razão pela qual acaba concluindo que precisa escrever as letras "surdas" e não as "sonoras". Mais complicado é o caso de pessoas que não fazem essa distinção na fala (por exemplo, os imigrantes poloneses). Nesses casos, o aluno precisa se guiar pelo significado para escrever uma letra ou outra. Então, sempre que achar que precisa escrever F, deverá levantar a hipótese de ter de escrever também V. A decisão final será tomada em função do significado e da ortografia. Assim, se ele pretende escrever "vaca" e pensa em F para a primeira letra, deve comparar as duas formas: FACA e VACA. Em seguida, começa a aprender que a escrita com F refere-se à ferramenta e a escrita com V refere-se ao animal. Será mais dificil quando não houver um par mínimo. Por exemplo, se o aluno for escrever "livro", irá comparar as duas possibilidades: LIFRO e LIVRO. Nesse caso, como a troca de V por F não muda o significado, a única solução é o aluno decorar a ortografia. Passando a outros casos, constata-se que é mais fácil escrever o som de "zê" no início de palavra, porque a única letra que representa este som nesse contexto é o Z. É claro que o aluno principiante está pensando em geral nas relações entre letras e sons fora dos contextos. Por isso, esse exercício complementa as informações de que ele precisa para aprender. Em outras palavras, ele pode achar que o som de "zê" também pode ser escrito com X (EXAME) ou com S (CASA). Pode, então, chegar à conclusão de que ZEBRA é escrita como <148> XEBRA ou SEBRA. Porém, ao estudar a distribuição dos sons e das letras no contexto da palavra, o aluno vai aprender algumas regrinhas: neste caso, que o som de "zê" em início de palavra só pode ser escrito com a letra Z. Essa regra então resolve uma dificuldade e ajuda o aluno. Outros casos: o som de "lê" em início de sílaba é fácil de transpor para a escrita: LATA, LADO, LIVRO, etc. Quando faz parte de grupos consonantais, pode ser fácil se, na fala do aluno, ocorrer a consoante lateral e não a vibrante, como em: PLANTA, GLÓRIA, CLARO, etc. O mesmo vale para os sons "mê", "nê" e "nhê", em início de sílaba: MAPA, CAMA, NATA, CANA, TENHO, BANHO, etc. O som de "jê" só pode ser escrito com J quando a vogal seguinte for A, O ou U: JACA, JOVEM, JUNIOR, CORRIJO, CORUJA, HAJA, VIAJA, etc. O som de "guê" só pode ser escrito com a letra G quando a vogal seguinte for A, O ou U (não seguida de outra vogal): GOLA, GULA, GARRAFA, etc. Se for preciso escrever o som de "guê" seguido das vogais "ê" ou "i", o aluno deverá escrever a letra U entre o G e a vogal Eou I: GUERRA, GUIMARÃES, etc. O som de "kê" é um pouquinho mais difícil. Há uma tendência para escrevê-lo com C quando o som "kê" vem antes de A, O ou U (não seguido de outra vogal): CADA, COLAR, etc. Por outro lado, há uma tendência para escrevê-lo com QU quando o som de "kê" vem seguido do som de "u" e do som de outra vogal, como em: QUATRO, FREQÜENTE, INÍQUO, etc. O som de "kê" seguido de E ou de I só pode ser escrito com QU: QUENTE, QUINTO, etc. Há outros modos de ver o problema. Por exemplo, pode-se ensinar aos alunos que, no início de palavra, só se escreve um R, nunca dois: RATO, RIO, etc. Nenhuma palavra começa com Ç, nem com NH ou LH (exceto LHE e algumas palavras estrangeiras como LHAMA, NHOQUE, NHEENGATU, etc.). Do mesmo modo, não se escrevem palavras com certas seqüências de letras, como por exemplo, numa mesma sílaba, HR, TH, etc. (a não ser em palavras estrangeiras ou grafadas com ortografia antiga). Outro tipo de regra que se pode ensinar é a seguinte: as terminações verbais de verbos derivados escrevem-se com -IZAR (e não com -ISAR), como: FERTILIZAR (de fértil), UTILIZAR (de útil). Porém: ALISAR (de liso — se fosse "alisizar" seria com - IZAR). Outra regra: palavras derivadas que não terminam em S no singular <149> que recebem a terminação com o som de "eza" são escritas com -EZA. As que terminam em - s são escritas com -ESA. Exemplos: BELEZA (de belo), INTEIREZA (de inteiro), porém: MARQUESA (de marquês), INGLESA (de inglês), etc. Mais uma regra: os finais paroxítonos dos verbos que terminam com o ditongo nasal "ãu" são escritos com -AM, e os finais oxítonos, com - ÃO. Exemplos: FIZERAM, ESTAVAM, IAM; porém: ESTÃO, FARÃO, SÃO, ACHARÃO, etc. É relativamente fácil mostrar aos alunos que, ao encontrarem uma vogal nasalizada seguida de uma consoante, no meio de palavra, se essa consoante for P ou B (M é muito raro), a ortografia obriga o uso da letra M, entre a vogal e a consoante. Nos demais casos (consoantes diferentes de P e B), a ortografia obriga o uso da letra N, entre a vogal nasalizada e a consoante. Exemplos: CAMPO, BOMBA, CANTO, BANCO, ONÇA, INFELIZ, ENVIAR, ENLATADO, etc. Com relação às vogais, é mais fácil escrever os sons "é", "é", "ó", "ô", os quais, quando identificados na fala, passam a corresponder às letras E ou O (desconsiderando a acentuação gráfica). Os sons de "a" e de "â" serão escritos com a letra A (desconsiderando o til). Também é fácil escrever os sons de "i" e "ii" quando ocorrem em sílabas tônicas, porém nas sílabas átonas é muito difícil. Nesse campo, também é possível estabelecer certas regrinhas úteis. Por exemplo: pode-se dizer aos alunos que, ao encontrarem o som de "à" em final de palavra, ele será escrito sempre com til: LÃ, IRMÃ, ÍMÃ, TALISMÃ, etc. Se tiverem de escrever o ditongo "ãu" em palavras que não são verbos, usarão as letras -ÃO (e não -AM): IRMÃO, ÓRGÃO, ALEMÃO, etc. O professor não deve se preocupar se, por acaso, houver exceções às suas regras. Fatos novos ajudam a melhorar as regras ou a indicar seus limites. Por exemplo, é muito raro encontrar palavras em português que se escrevem com I + s + consoante. Em geral, quando se tem os sons de "is + consoante" (ou "ich + consoante", em alguns dialetos), a palavra escrita começa com a vogal E: ESCOLA, ESPADA, ESQUADRA, etc. Como exceção temos ISQUEIRO, ISTMO, ISCA... e alguns nomes de origem estrangeira: ISRAEL, ISLAMITA, ISLANDÊS. Algumas regras requerem conhecimentos gramaticais mais sofisticados e, por essa razão, são menos interessantes na alfabetização. E o caso de regras que envolvem conceitos como "verbo", "adjetivo", "palavras primitivas <150> e derivadas", "sílabas tônicas e átonas", "paroxítonas e oxítonas", etc. Às vezes, uma pequena explicação a respeito desses conceitos pode ajudar. Não custa o professor tentar uma vez para ver a reação da classe. Poderá se surpreender com o interesse de alguns alunos. OQUE É MAIS DIFÍCIL DE ESCREVER A grande dificuldade que os alunos têm para passar da observação da fala para a escrita reside no fato de esta não ser uma espécie de transcrição fonética (como, às vezes, o sistema alfabético nos leva a crer). Igualmente complicado é o fato de alguns alunos falarem dialetos, cujas palavras têm uma forma muito diferente da forma das palavras da norma culta, usada como referência mais próxima da escrita que respeita a ortografia. Essas dificuldades somente se resolvem com o tempo. Entretanto, o conhecimento do funcionamento da escrita, da fala e da leitura pode ajudar muito a se obter um bom resultado com esses alunos. Dentro desse quadro de preocupações, deve-se lembrar que uma discussão a respeito da variação lingüística (dialetos) e que papel a ortografia desempenha no nosso sistema de escrita é imprescindível e deve ser freqüentemente recordada pelo professor. A passagem da fala para a escrita apresenta algumas dificuldades especiais no caso de algumas letras, justamente pelo fato de o aluno ter de optar por uma única forma entre várias possibilidades. Vejam-se, a seguir, alguns casos. O som de "chê" pode ser escrito com CH ou com X, e só a ortografia pode dizer onde vai uma letra e onde vai outra. Os professores costumam dizer que essa é uma dificuldade inerente à letra X, mas na verdade é inerente ao X e ao CH, quando se consideram os fatos a partir da fala, e não da escrita. Notar que o som de "chê" (ou "jê") que ocorre no final de sílaba, em certos dialetos, será representado por S, Z ou X (X somente no meio da palavra), como em CASAS, RAPAZ, EXTRA, DESDE, etc. Outro exemplo tradicional é o caso da escrita da letra L, representando o som de "u", como parte final de alguns ditongos. As vezes, esse "u" é escrito com L e, às vezes, é escrito com U, como se pode ver nos <151> exemplos: "baudi" BALDE, "méu" — MEL, "çóu" — SOL, porém: "çaudadi" — SAUDADE, "mêu" — MEU, "çôu" — SOU, etc. Em alguns casos, é possível distinguir a forma ortográfica pelo significado, como em ALTO e AUTO, mas esses casos são raros e ajudam pouco. Mais um caso dificil é o som de "çê", que pode ser escrito com S, Ç, C (somente diante de I e E), Z (somente em final de sílaba) e X. Aqui também dizer que apenas a letra x é complicada significa ver o problema apenas pela ótica de uma letra. Um caso mais simples é o do som "zê", que pode ser escrito com Z, S ou X. Porém, em início de palavras, só se emprega a letra Z. A letra S tem o som de "zê" apenas entre vogais ou diante de uma consoante sonora. O som de 'jê" se confunde na escrita apenas quando está diante de I ou de E — quando pode ser escrito com G ou com J. Nos demais casos, será usado apenas o J. O som de "kê" apresenta dificuldade apenas diante de A, O ou U, quando pode ser representado por C ou por QU. Diante dos SONS "j" ou "e", só se escreve QU, nunca C. A dificuldade de escrever R ou RR não é grande. Só se usa RR, por oposição a R, quando o som estiver entre duas vogais. Nesses casos, a distinção se faz pelos valores fonéticos diferentes. Nos demais casos, o aluno escreverá sempre um R só. A dificuldade maior que o professor encontra comumente se relaciona com a variação lingüística e com a forma lexical de algumas palavras, em alguns dialetos. Notar que algumas diferenças de fala, na verdade, não trazem dificuldades para a escrita. Por exemplo, há pessoas que falam "tchia", "djia" e há pessoas que falam "tia" e "dia", mas esse tipo de variação não atrapalha a escrita (casos de distribuição complementar de sons no sistema fonológico). Issosignifica que uma pessoa que fala "drentu", "ãdãnu" pode aprender facilmente a escrever DENTRO e ANDANDO, mesmo sem eliminar sua pronúncia original. Como se disse anteriormente, aqui também é possível fazer algumas regrinhas que mostram que certas dificuldades são mais aparentes do que reais. Por exemplo, o som de "ksi" pode ser escrito com X ou com -QUE-SE. Porém, só serão escritos com -QUE-SE se forem verbos, cujo infinitivo apresenta o som de na última sílaba, como COLOCAR, SOCAR, FICAR, etc. Portanto, nos demais casos, a escrita será provavelmente com X. <152> Com relação às vogais, a grande dificuldade está na escrita dos sons "i" e "u" átonos e de alguns casos de vogais nasalizadas. Os sons de "i" e "u" átonos podem ser escritos com as letras I, U ou E, Q Aqui, não há regras para facilitar o aprendizado, a única saída é recorrer à ortografia. Deixar de lado a dúvida e imediatamente procurar ver com que letras determinada palavra é escrita. Apesar do que foi dito acima, o professor poderá mostrar a seus alunos que em certos casos é muito mais comum o uso das letras E e O do que I e U Considerações a respeito de "inícios de palavra", "prefixos", "finais de palavra" e "sufixos" podem revelar tais tendências. Já se falou antes, por exemplo, que palavras que se iniciam com o som de "chk" ou "çk", dependendo do dialeto, são escritas com ESC, e não de outra forma: ESCADA, ESPADA, ESCORREGADOR, ESCOLHER, ESPÍRITO, etc. Se o aluno conseguir perceber que certas palavras têm um "mesmo sufixo", e se souber como se escreve esse sufixo, poderá generalizar a regra e ter menos dificuldades na escrita. Por exemplo, vendo as seguintes palavras, constata-se que todas acabam com os mesmos sons (porque têm o mesmo sufixo): AMAVEL, TERRÍVEL, INCRÍVEL, HORRIVEL, POTÁVEL, etc. Exemplos semelhantes ensinam os alunos a escrever o sufixo - VEL. Outros exemplos, como HORROROSO, BONDOSO, FORMOSO, DANOSO, CURIOSO (e as respectivas formas do feminino), podem ajudar o aluno a escrever o sufixo -OSO, -OSA. Outro sufixo comum é -MENTE: INFELIZMENTE, ALEGREMENTE, TRISTEMENTE, PREGUIÇOSAMENTE, etc. É fácil explicar aos alunos que a terminação -ÃO (tônico), ou melhor ainda, o ditongo nasal que tem o som de "ãu" tônico se escreve com O e não com U. Do mesmo modo o ditongo nasal que tem o som de "õi" se escreve com ÕE e não com ÕI. Conferir: PÃO, MELÃO, FARÃO, TÃO, SIMÃO, ou PÕE, PÕEM, SIMÕES, LIMÕES, FERRÕES, LEÕES, etc. Alguns alunos falam o gerúndio, usando a terminação -NO e não -NDO. O professor pode aproveitar a oportunidade e explicar que a norma culta admite que se fale "-ndu" e se escreva -NDO. Portanto, em vez de escrever: ANDANO, FAZENO, FALANO, CORRENO, FUGINO, o aluno, ao aprender o sufixo do gerúndio, aprenderá a escrever também ANDANDO, FAZENDO, FALANDO, CORRENDO, FUGINDO, etc. <153 > Fazer um levantamento de sufixos e de rimas pode ser uma boa estratégia para o professor ensinar a escrever certos pedaços de palavras. Isso acelera o domínio da ortografia. O professor deve mostrar o que há de igual e o que há de diferente e, se possível, até mesmo a extensão dessas considerações. Esse procedimento tem a vantagem de ensinar não só a escrever, mas também a refletir sobre a linguagem em geral e a escrita em particular. Outra dificuldade séria que os alunos encontram é quanto à escrita da nasalidade vocálica. Escrever M, N e NH em início de sílaba é fácil. Porém, escrever M e N em final de sílaba traz muitas dificuldades para certos alunos, porque, em seus dialetos, eles não pronunciam essas consoantes nasais, apenas nasalizam a vogal precedente. Mesmo nos dialetos (em geral do Sul do país) em que se falam comumente essas consoantes nasais, é freqüente ouvir pessoas que não as falam, sobretudo numa fala mais rápida, menos formal. Como a norma culta não exige que essas consoantes nasais sejam pronunciadas, fica mais difícil para o professor ensinar ao aluno quando se deve escrevê-las. A tendência geral dos alunos é escrever as palavras sem nenhuma marca de nasalidade, seguindo o exemplo da palavra MUITO, que não leva til nem tem consoante nasal entre o I e o T Mas o ditongo Ul é um ditongo nasalizado. Com relação ao problema da nasalidade, a melhor estratégia é fazer uma análise da fala, escolhendo exemplos apropriados, propostos pelo professor e pelos alunos, para esclarecer, em primeiro lugar, a diferença entre ocorrências orais e nasalizadas de vogais e ditongos, anotando em colunas, palavras como: CAMA CAMPO PENTE ONÇA CANA BOMBA CANTA ENLUARADA BANHA LIMPO VINDA ENVIAR CATA BOBA VIDA JUTA CANTA BOMBA VINDA JUNTA OUÇA MATA A IDA CEDO ONÇA MANTA AINDA SENDO O uso de pares mínimos é sempre uma boa maneira de mostrar os contrastes e de ajudar o aluno a passar da fala para a escrita com mais informações. <154> Logo no início, alguns alunos apresentam alguns problemas na ordem das letras de algumas palavras. As inversões de letras representam os casos mais comuns. O professor não precisa preocupar-se com esse fato. Trata-se apenas de uma dificuldade inicial que os alunos resolvem por si mesmos. E o caso de quem escreve ON em vez de NO, ou mesmo TAMA em vez de MATA, ou ainda CESUSU em vez de SUCESSO. Mais complicado do que a ordem é a dificuldade que os alunos têm para segmentar. Aqui também a melhor estratégia é deixar que eles escrevam como pensam e esperar que descubram por si mesmos como fazer. Algumas expressões levam mais tempo para os alunos segmentarem corretamente. Se o professor perceber que alguns alunos estão demorando muito para segmentar expressões mais fáceis, poderá organizar algumas aulas com o objetivo de ensinar a segmentação. Nesse caso, basta usar exemplos dos próprios alunos e analisá-los com eles. A regra de identificação semântica (uma idéia, uma palavra) não ajuda muito nesse momento. Na verdade, essa regra pressupõe muitos outros conhecimentos, inclusive de como a escrita funciona. O fato de os alunos virem palavras escritas separadas por espaços em branco é a melhor indicação de que dispõem. Em último caso, dizer sempre que se deve escrever junto ou separado isso ou aquilo porque é assim que a ortografia estabeleceu. Portanto, quem tiver dúvidas, não adianta ficar pensando sozinho: é preciso perguntar a quem sabe ou procurar no dicionário. A DIFÍCIL ARTE DE LER E DE ESCREVER Como se pôde ver nos estudos das letras, as relações entre letras e sons são muito complexas. Isso explica por que decifrar e escrever o nosso sistema de escrita é uma tarefa que exige muito conhecimento. Ficou claro também que as relações entre letras e sons não são exatamente as mesmas das relações entre sons e letras. Resumindo, para ler, são necessários alguns conhecimentos e, para escrever, além dos relacionados à leitura, são necessários conhecimentos complementares. Isso mostra, ainda, que é melhor <155> começar o processo de alfabetização ensinando o aluno a decifrar a escrita e a ler, do que a escrever, como faz tradicionalmente o método das cartilhas. Depois que o aluno aprendeu um pouco a ler, pode ir tentando escrever, mas, se misturar as duas coisas, acabará com sérios problemas de leitura e, pior ainda, de escrita. Uma decorrência das reflexões acima expostas é a consciência que o professor deve ter de que para ler e para escrever são necessários inúmeros conhecimentos, alguns complexos. Muitas vezes, a cartilha e o professor ensinam muito pouco ao aluno e cobram dele um resultado injusto. Um aluno aprende umas poucaspalavras-chave, umas poucas famílias de sílabas geradoras, e a regra insistente de que ele deve observar a própria fala (ou a do professor) para escrever. Soma-se a isso a expectativa de que aprendendo a escrever aprenderá automaticamente a ler. Além de essa ser uma forma muito complicada de ensinar a ler e a escrever, é incompleta e, por essa razão, pode não ser suficiente para dar os subsídios necessários para os alunos resolverem seus problemas. Alguns alunos resolvem suas dificuldades por conta própria, não levando muito a sério algumas coisas que ouvem na sala de aula, e procurando as informações complementares que nem a cartilha nem o professor forneceram. Outros tentam aplicar ao pé da letra e à risca as regras que são apresentadas, e mais nada (porque o aluno só faz o que o professor manda, senão aprende errado...), e acabam sem saída. Então, vêem seus colegas que já encontraram uma saída, que fazem coisas certas, enquanto eles fazem tudo errado. Esses alunos acabam entrando em pânico e causando muitos problemas para si, para o professor, para a escola, para o governo e para os pais. Nessa situação, encontramos alunos que, seguindo a cartilha e a regra de observar a própria fala a fim de escrever, fazem o seguinte: ao tentar escrever uma palavra simples como PAI, a primeira coisa que fazem é falar e observar. Dizem "pai-paaaaa" e escrevem o A porque detectaram o som de "a". Depois, falam: "paiaaaa-iiii" e reconhecem o ditongo e escrevem AI. Voltando à fala, repetem: "pa-pa-pa-ii" e escrevem PA, que é da família do pá-pé-pi-pó-pu, e sempre se deve escrever essas coisas, como se aprende com as palavras-chave. O resultado final é: AAIPA. <156> CAGLIARI, 1997c. > Muitas pessoas, vendo as crianças escreverem coisas assim, em vez de estudar por que isso acontece, analisam a questão apenas superficialmente, dizendo que elas não sabem escrever, que escrevem de qualquer jeito, que não têm direção certa para colocar as letras e não aprendem porque escreveram "aaipa" e dizem que escreveram "pai", numa clara evidência de que têm problemas de aprendizagem, certamente de fundo psicológico ou neurológico. A incompetência desses profissionais é um crime contra as crianças. A criança simplesmente fez o que o professor mandou. Ela simplesmente ainda não dispunha das informações necessárias para escrever de outro modo. Para o professor, parecia claro e evidente que "pai" se diz "pai" e se escreve PAI, porque ele, professor, já sabe muito mais do que a simples regrinha de "escreva observando a fala". O pior disso tudo é a preocupação do professor com o aluno que escreve AAIPA. Para que um aluno que escreve assim possa superar sua dificuldade, tem de deixar de lado algumas das explicações mais comuns e enfáticas que o professor dá. Nem todos os alunos conseguem superar essa barreira, porque acreditam demais nos professores. Mas tudo tem limite. Depois de um certo tempo sem obter resultados, alguns alunos começam a duvidar de si, do professor, da escola e transformam a própria vida num dilema. Muito freqüentemente, antes que isso aconteça, o aluno já deve ter passado por outra experiência traumatizante, ao ser colocado numa classe especial, com colegas que também não conseguem aprender. Essas classes são portas fáceis para os alunos abandonarem a escola e os estudos, principalmente numa escola pública. A AÇÃO DO PROFESSOR O professor deverá explicitar aos seus alunos como se faz para ler e, ao realizar essa tarefa, deverá tratar das relações entre letras e sons na leitura e na escrita. O professor não deverá explicar tudo o que consta no estudo das relações entre letras e sons (Apêndice). Para o aluno começar a ler e a escrever, alguns conhecimentos são prioritários e outros vão ser adquiridos com o tempo. A respeito das relações entre letras e sons, é mais importante ensinar ao aluno como aprender, <157> do que ficar analisando detalhadamente letra por letra, caso por caso. Ao estudar uma determinada letra, por exemplo A ou G, o professor irá abordar alguns aspectos, deixando outros para depois. Ele voltará muitas vezes a falar no assunto, e algumas observações serão feitas somente quando houver razão para isso, ou porque um aluno perguntou ou porque se tornou necessário para corrigir um erro, ou até mesmo por curiosidade. Mantendo uma prática regular de análise do processo de decifração com os alunos, os conhecimentos vão se sofisticando à medida que os alunos aprendem mais a respeito da leitura e da escrita. E importante deixar os alunos tomarem a iniciativa de refletir sobre os fenômenos que estudam, porque sozinhos também chegam a resultados interessantes e até surpreendentes. Os conhecimentos passados já adquiridos servem de apoio para o desenvolvimento de novos conhecimentos. Assim funciona o processo de aprendizagem. O ensino nada mais é do que a criação das condições adequadas para que a aprendizagem aconteça. Em geral, não vale a pena o professor ficar explicando questões que são muito complexas. Essas explicações servem para uma análise lingüística, mas já não são tão interessantes para a alfabetização. As crianças acabam aprendendo a decifrar e a escrever muito mais tranqüilamente através de umas poucas regrinhas e praticando a leitura e a escrita, do que através de explicações muito complicadas. O professor precisa ter bom senso para avaliar a situação. Se os alunos quiserem saber algo que exige uma explicação técnica muito sofisticada, o professor pode dar uma explicação mais elaborada, mesmo que os alunos não compreendam bem o alcance e a profundidade do que ele diz. É melhor ouvir uma explicação correta, mesmo que difícil, do que uma mentira, um erro ou uma explicação que deverá ser abandonada logo adiante. Um roteiro de idéias gerais para começar uma discussão pode levar em conta os tópicos: Quando se vai ler. 1. Usamos o nome das letras para saber que som a letra tem: a letra A tem o nome de a e o som de "a". A letra C tem o nome de cê e o som de "çê". 2. Uma letra pode ter mais de um som, representando sons diferentes. A classe vai aprender isso aos poucos. Por enquanto, é só não estranhar se isso acontecer. <158> 3. A letra A também tem o som de "ã". 4. A letra C tem o som de "çê" somente quando vier antes das letras I e E. Nos demais casos (diante de A, O, U, R, L ou de qualquer outra consoante), terá o som de "kê". Quando se vai escrever: 1. Em primeiro lugar, é preciso descobrir a palavra, isolando-a da frase. 2. Depois, é preciso saber a ordem das sílabas na palavra. 3. É preciso descobrir as vogais e consoantes que formam as sílabas e em que ordem. 4. Para cada segmento (vogal/consoante), é necessário escrever uma letra, partindo dos conhecimentos adquiridos, no caso da leitura. 5. Ficar atento aos problemas causados pela variação lingüística: quem é falante do dialeto padrão tem um tipo de dificuldade e quem é falante de outros dialetos tem outro tipo de dificuldade. 6. Checar o que se escreveu com a forma gráfica das palavras de acordo com o estabelecido pela ortografia, ou seja, aprender a ter dúvidas ortográficas inteligentes. 7. Resolver as dúvidas ortográficas, perguntando a quem sabe ou olhando no dicionário. Com esse conjunto de informações específicas sobre as relações entre letras e sons, mais o estudo de uma meia dúzia de outras letras e noções básicas sobre a escrita, vistas anteriormente, o professor terá um aluno que já sabe bastante e que até pode se arriscar a escrever algumas palavrase pequenas frases. Este é o segredo da alfabetização. Um trabalho como esse não leva mais de dois meses e, após esse tempo, o professor constata que seus alunos já sabem ler e escrever, certamente com muita dificuldade, mas já sabem o que devem fazer para progredir, porque o segredo já foi aprendido. A perfeição virá com o tempo e com muito trabalho tanto por parte do professor como do aluno. Existe uma grande diferença na prática de ensino que distingue a competência do professor do conteúdo da matéria que ele ensina. Todos esses conhecimentos detalhados e explícitos a respeito da fala, escrita e leitura fazem parte da competência técnica do professor. Será daí que ele irá tirar os conteúdos daquelas <159> matérias que ensina, O que ele vai tirar, como vai apresentar e quando ensinar são coisas que ele deve julgar e resolver, levando em conta as circunstâncias. É por isso que se disse que, quando o professor é de fato competente, ele sabe o que ensinar, como ensinar e quando ensinar. Se ele não tem essa competência técnica, a única saída é usar um método preestabelecido como o bá-bé-bi-bó-bu, ou um livro guia como a cartilha, levando para sua prática, juntamente com os problemas que esses métodos têm, sua incompetência de modo velado ou aberto. APRENDENDO A ESTUDAR O esforço dispendido na análise das letras do alfabeto é um bom exercício de reflexão sobre o funcionamento do nosso sistema de escrita com relação ao seu aspecto alfabético, ortográfico e sobre as características fonéticas mais importantes que essas letras representam. Somente de posse desses elementos uma pessoa pode decifrar algo escrito e ler um texto. Todos nós, como usuários familiarizados com o sistema de escrita, sabemos como proceder para decifrar a escrita, mas comumente lemos e escrevemos sem explicitar, a cada instante, as regras que permitem que façamos isso. Agimos automaticamente, guiando-nos, como convém, pelo fluir do texto, acompanhando as idéias que queremos expressar ou que vamos descobrindo à medida que a leitura prossegue. Ou seja, acontece com as atividades de leitura e de escrita algo semelhante ao que acontece quando falamos: precisamos de toda a gramática, de todo o vocabulário disponível, de todos os mecanismos articulatórios de produção de fala, mas não ficamos pensando nessas coisas. Quando falamos, simplesmente usamos esses conhecimentos interiorizados para guiar a expressão lingüística do pensamento. Assim como um lingüista precisa saber explicitar as regras da linguagem para poder entendê-la, analisá-la e formar a ciência da linguagem, assim também o professor de alfabetização precisa saber explicitar todos os conhecimentos necessários para que alguém possa ler e escrever e se alfabetizar. O grande problema dos nossos professores, acostumados com a cartilha, está < CAGLÍAR1, 1996h. <160> em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos. Desse modo, acabaram deixando de lado a própria reflexão sobre a matéria que lecionam. É fundamental e imprescindível que o professor alfabetizador saiba analisar qualquer fato que aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e saiba interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim, saberá também conduzir com tranqüilidade e competência o processo de ensino (que depende do professor) e o processo de aprendizagem (que depende do aluno, mas que necessita do professor como mediador e guia). O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para alguém ler em nosso sistema de escrita é um exercício que não se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no Apêndice. Uma tarefa como essa tem como objetivo apenas ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver a sua argumentação diante dos fatos observados, chegando a regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor desenvolver esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo terá uma poderosa ferramenta de trabalho: sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos precisará de conselhos, recomendações, subsídios, métodos e livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu trabalho e aconteça o que acontecer em termos de leitura e de escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá- los a descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita, enfim, a se alfabetizarem, O tempo, o programa predeterminado, o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora pedagógica...), tudo isso torna-se irrelevante: o que conta é seu trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor irá pouco a pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a escrever. Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e expandir-se e, quanto mais longe for, melhores condições trará a tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os alunos a analisar fatos, a refletir, a tirar conclusões, a formular regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais detalhadas e abrangentes, não estará ensinando aos seus alunos apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de <161> em confiarem demais nos métodos e em seus procedimentos. Desse modo, acabaram deixando de lado a própria reflexão sobre a matéría que lecionam. É fundamental e imprescindível que o professor alfabetizador saiba analisar qualquer fato que aconteça no processo de aprendizagem da leitura ou da escrita e saiba interpretar o valor correto dos acertos e erros. Assim, saberá também conduzir com tranqüilidade e competência o processo de ensino (que depende do professor) e o processo de aprendizagem (que depende do aluno, mas que necessita do professor como mediador e guia). O esforço de pensar e explicitar as regras necessárias para alguém ler em nosso sistema de escrita é um exercício que não se esgota no estudo das letras feito neste capítulo e no Apêndice. Uma tarefa como essa tem como objetivo apenas ensinar o professor a refletir sobre essa matéria e a desenvolver a sua argumentação diante dos fatos observados, chegando a regrinhas que possam orientar o aluno. Se o professor desenvolver esse hábito, com tudo aquilo que encontra pela frente no seu trabalho (e nos seus estudos), após pouco tempo terá uma poderosa ferramenta de trabalho: sua competência técnica. Quanto mais se imbuir disso, menos precisará de conselhos, recomendações, subsídios, métodos e livros didáticos do tipo cartilhas ou similares. Ele começará seu trabalho e aconteça o que acontecer em termos de leitura e de escrita, será um bom motivo para discutir com seus alunos, levá- los a descobertas, motivá-los a tentar produzir leitura e escrita, enfim, a se alfabetizarem. O tempo, o programa predeterminado, o tipo de aluno (a escola, o diretor, a coordenadora pedagógica...), tudo isso torna-se irrelevante: o que conta é seu trabalho. Com a competência técnica de que dispõe, o professor irá pouco a pouco realizando um trabalho sério, cujos frutos estarão no fato de ele ensinar a todos os alunos a ler e a escrever. Esse esforço de reflexão do professor pode aprofundar-se e expandir-se e, quanto mais longe for, melhores condições trará à tarefa de educar e alfabetizar. Quando o professor incentiva os alunos a analisar fatos, a refletir, a tirar conclusões, a formular regras, a melhorar as regras já existentes, tornando-as mais detalhadas e abrangentes,não estará ensinando aos seus alunos apenas o conteúdo da matéria. Mais do que isso e principalmente, estará ensinando-lhes os bons hábitos de <161> estudar, de investigar. Os resultados deverão ser considerados muito importantes (e imprescindíveis). Para o educador, durante a formação de seus alunos, mais importante do que os resultados é a formação de bons hábitos de estudo. A cartilha tira a iniciativa do aluno de pensar, refletir, pesquisar e chegar a conclusões. Se o professor, abandonando o método do bá-bé-bi- bó-bu, conduzir um processo de ensino e de aprendizagem, refletindo junto com seus alunos, depois de certo tempo, seu trabalho de mediador torna-se muito reduzido, uma vez que seus alunos saberão como estudar o que não sabem. Muitas vezes, os professores preocupam- se tanto com notas, com resultados positivos em testes e provas, que acabam se esquecendo de que é muito mais importante saber como estudar do que dominar o conteúdo de uma determinada matéria. Infelizmente, alguns professores jamais pensam nisso. Passam anos ditando pontos, lendo livros didáticos, resolvendo exercícios, aplicando provas, passando testes, atribuindo notas, e a educação fica reduzida a esse ritual de reproduzir um modelo, fazer segundo o que foi visto, etc. Tudo gira em torno do ensino do professor, e o aluno não tem nenhum espaço para desenvolver seu processo de aprendizagem. Ele não aprende de fato, apenas repete o modelo segundo as expectativas do professor. O problema de nossas escolas não está somente na alfabetização, no ensino da leitura e da escrita; talvez o problema mais grave seja não ensinar a estudar. <162> 8 Sugestões de atividades na alfabetização O TRABALHO COM A LEITURA Como se tem insistido tanto até aqui, o segredo da alfabetização é a leitura, é ensinar ao aluno como decifrar a escrita. Outras interpretações sobre a leitura só fazem sentido depois que o leitor tiver acesso à decifração. Por outro lado, outras práticas escolares não se comparam em importância à decifração da escrita. Há muitas maneiras de se chegar ao conhecimento que permita ler um texto, algumas muito confusas e demoradas, como a prática que proporciona o aluno a descobrir por si — tendo o professor como simples espectador —; outras estão mais voltadas para um trabalho conjunto de ensino e aprendizagem, envolvendo professor e aluno numa mesma tarefa. Além de uma atitude sadia diante do processo de alfabetização, há muitas coisas práticas que ajudam pouco ou mesmo atrapalham o trabalho em sala de aula. A seguir, serão feitos alguns comentários a respeito disso. Primeiras leituras Em vez de começar o trabalho com letras e palavras escritas ortograficamente, pode-se mostrar aos alunos que eles conseguem ler outros sistemas de escrita, por exemplo, os pictogramas usados de modo geral na sociedade moderna, como as indicações de toalete masculino e feminino, os logotipos de marcas famosas, etiquetas, símbolos, etc., explicando que a essas formas gráficas se pode associar uma palavra, e que isso é ler, no sentido mais técnico do termo. Aqui há um mundo inteiro a ser explorado. O professor pode mostrar para os alunos que se ele fizer um tracinho, pode representar o número 1; se for acrescentando outros tracinhos, pode representar os demais números, estabelecendo uma contagem. Isso é urna estratégia aritmética: para saber que número representa um conjunto de tracinhos, basta contar. Esse é um processo de decifração de um sistema de escrita. Depois, com as letras faz-se a mesma coisa, só que, em vez de contar, será preciso descobrir que som a letra tem e ir somando esses sons até descobrir a palavra, como se descobre um número. Um número é a soma de unidades aritméticas e uma palavra é a soma de unidades sonoras na fala e de letras na escrita. <164> MASSINJ-cAGLIAR1, 1993c. > Pode-se mostrar a diferença entre desenho e escrita. Uma figura é um desenho quando é usada para representar um objeto do mundo. E uma escrita quando é usada para representar uma palavra da linguagem oral. O professor pode fazer o desenho de uma casa (ou mostrar uma foto), fazer o desenho de um caminho, ou de alguém andando, e fazer o desenho de uma pessoa (ou uma foto de si próprio). Cada figura ou foto está representando coisas do mundo, não constituindo, portanto, linguagem escrita. Porém, juntando a foto do professor com o desenho de um caminho ou de alguém andando, mais o desenho da casa, nessa seqüência, posso representar uma frase como: "Vou para casa". Nesse momento, as figuras deixam de ser apenas desenhos e passam a representar palavras. As figuras transformam-se em escrita. Ler o que está escrito significa saber que palavras as figuras representam. Escrevendo desse modo, pode-se ter leituras variadas: "Fui para casa", "Irei para casa", "Ele vai para casa", etc. Essa demonstração deixa claro para os alunos que eles podem usar figuras para representar as palavras que querem escrever. Podem testar a leitura, isto é, o processo de decifração e de interpretação da escrita, pedindo aos colegas que leiam o que escreveram. O professor pode explorar esse tipo de atividade, escrevendo palavras, frases, pequenas mensagens e até pequenas histórias. Recortando material de jornais e revistas, o professor pode mostrar aos alunos como esse tipo de escrita (pictográfica, com desenhos) é usada na vida real. Pode exemplificar como, além de desenhos que representam figuras de objetos, esse tipo de escrita inventa desenhos para representar palavras, como os logotipos, as grifes, os escudos, as bandeiras, etc. Inventando um código Os alunos podem inventar seus sistemas de escrita servindo- se de pictogramas. Podem tentar escrever histórias e fazer bilhetes. O professor deve acompanhar o trabalho dos alunos, mostrando-lhes como o sistema que estão inventando funciona: coisas iguais são escritas da mesma maneira, coisas diferentes precisam de formas diferentes ou de marcas diferenciadoras, tendo o cuidado de permitir que as outras pessoas possam interpretar o código e ler. Para isso, ou se usa uma figura evidente num pictograma ou se ensina aos possíveis leitores como interpretar e ler os caracteres. <165> Os alunos podem inventar desenhos convencionados por eles para representar palavras. Podem, por exemplo, recortar figuras de objetos, animais, pessoas, e colocá-las em colunas, fazendo ao lado os símbolos ou desenhos que representarão as palavras que essas fotos mostram. Depois, podem tentar escrever usando o sistema de escrita que inventaram. Um aluno vai mostrar e explicar aos outros o que fez, enfim, vai ensinar os demais a lerem seu sistema de escrita. O professor irá discutir as vantagens e as desvantagens da tarefa. Irá pedir para que escrevam sem a chave da decifração, ou seja, usando apenas os símbolos inventados, sem mostrar as figuras a que eles se referem. Em seguida, o aluno pedirá para os colegas descobrirem o que ele escreveu. Como fica muito difícil guardar na memória todos os símbolos e seus significados inventados na sala de aula, essa tarefa será resolvida apenas em parte. Exceto quem inventou o símbolo, os outros terão muita dificuldade para ler o que foi escrito. Com isso, o professor mostra aos alunos que seria bom todos usarem apenas um sistema de escrita porque, uma vez estabelecido, todos se comunicariam apenas através dele. Isso seria muito mais útil e fácil de ser usado na sociedade, onde vivem milhões de pessoas. Essa imitação do que aconteceu historicamente,há muito tempo, ajuda os alunos a desenvolverem conhecimentos a respeito do funcionamento da natureza da escrita. Além disso, motiva-os a progredir, pois eles começam a ver que, de certo modo, não só já entraram no mundo da escrita e da leitura, como também já conseguiram ler e escrever. É sempre possível escrever coisas enigmáticas ou códigos secretos. A criptografia é algo que fascina as crianças: por que não deixá-las usar isso, neste momento inicial de descoberta da escrita? Podem fazer dicionários em que apareçam dois sistemas de escrita: um pictográfico de fácil reconhecimento, e outro constituído de caracteres arbitrários, como os de um código secreto. Esses jogos de escrita e leitura servem para mostrar à criança que escrever e ler é algo fácil ou difícil, dependendo da forma como o sistema se apresenta. As letras já foram um sistema de escrita muito mais fácil do que são hoje. E isso pode servir de motivo para se introduzir um pouco da história da escrita e das letras do alfabeto, mostrando seu caráter pictográfico antigo e a época em que havia pouca variação na forma gráfica das letras. <166> A palavra como unidade de escrita A história da escrita servirá também para mostrar aos alunos que ela gira em torno de palavras, e não apenas de letras. Isso irá facilitar, futuramente, a tarefa que os alunos terão pela frente de segmentar a fala para escrever palavras, bem como a de lidar com letras isoladas em sílabas e em palavras. Unidades de fala menores do que a palavra podem ser tratadas, nesse momento, através do uso de rébus, como se explica com o exemplo a seguir. Pode-se escrever a palavra "irmão" desenhando um menino ao lado de outro, o que consistiria num pictograma e não num rébus para a palavra "irmão". Por outro lado, pode-se também escrever essa mesma palavra, fazendo o desenho das pernas de uma pessoa andando ("ir") ao lado do desenho de uma mão. Os dois desenhos representam agora uma única palavra "irmão". Esse modo de escrever tem o nome técnico de rébus. Através dessa estratégia de escrita, é fácil mostrar aos alunos que se pode escrever baseando-se no significado das palavras ou nos sons que elas têm. Temos, assim, um sistema ideográfico e um sistema fonográfico. Nota IR MÃO O rébus é um jogo mental muito antigo e comum, consiste em exprimir palavras ou frases através de desenhos ou de sinais cuja leitura e interpretação oferecem uma analogia com o que se quer fazer entender Exemplos: 20V — "vim te ver"; D+ = "demais" Letras e sons Para chegar aos segmentos fônicos que correspondem às letras, a questão é muito mais complexa. Vão ser necessárias três etapas: primeiro, será preciso reinventar as letras, o que se pode fazer a partir dos próprios pictogramas que deram origem às nossas letras; segundo, aplicar o princípio acrofônico para atribuir a cada letra um som especial, particular e distintivo no sistema; terceiro, aprender a analisar os sons que a palavra que se quer escrever tem na fala, achar as letras correspondentes, na ordem correspondente e, então, escrever a palavra, segmento por segmento, com as letras convencionadas. Esse pode ser um longo caminho, mas basta percorrê-lo uma vez, passo a passo. Isso não significa que com essa atividade os alunos já aprenderam a escrever facilmente palavras com letras. O que se pretende nesse momento é simplesmente mostrar ao aluno como diferentes sistemas de escrita funcionam e o que os espera pela frente. Para o professor mostrar aos alunos como observar os sons da fala, há duas maneiras principais, ou seja, duas estratégias de observação. A primeira consiste em <167> silabar uma palavra, prolongando o som das vogais (mais raramente de algumas consoantes, como as fricativas). Por exemplo, a palavra BATATA: "baaaa-taaaataaaa". Note que existe uma parte diferente ("ba') e duas iguais ("ta-ta"). Note ainda que o som de "a" é o mais longo nas três sílabas. Desse modo, pode-se perceber a recorrência prolongada de um mesmo som, a vogal "a". Outro exemplo: FESTA: "féééés-taaaa" (ou "fééééchtaaaa"). Agora, destacamos um som na primeira sílaba, que é o "ééé", e outro diferente na segunda, "aaa". Por outro lado, na segunda sílaba da palavra FES-TA, tem-se o mesmo som observado na palavra BA-TA-TA. Seguindo esse procedimento de análise, acompanhado dos devidos comentários, o professor pode mostrar aos alunos como observar os sons da fala de uma maneira muito interessante para a alfabetização. A outra estratégia para analisar os sons da fala consiste em silabar as palavras, repetindo as articulações das consoantes nos inícios das sílabas. Por exemplo: BATATA: "babababa-tatatata- tatatata"; ou FESTA: "fésfésfésfés-tatatata"; ou CADERNO: kakakakaderderderder- nunununu". O professor pode fazer vários exercícios desse tipo, analisando com os alunos o que há de igual e o que há de diferente. Na primeira abordagem, o professor ajuda os alunos a destacar as vogais das sílabas e, na segunda, a consoante inicial das sílabas. Há outras maneiras de mostrar como analisar a fala. Uma delas, de uso muito comum, é fazer levantamento das rimas. Toma-se uma palavra e procuram-se outras que terminem nos mesmos sons (em geral, as rimas são dadas não por sílabas completas, mas somente pelas vogais das sílabas finais das palavras). Por exemplo: encontrar palavras que rimem com AVIÃO: CORAÇÃO, IRMÃO, DEDÃO, ACHARÃO, etc. Outra maneira é identificar palavras que comecem com os mesmos sons (aqui é preciso levar em conta a sílaba como um todo). Por exemplo, palavras que comecem com o som de "çi": CIDADE, SINO, CINEMA, SITIO, CIGARRO, SINAL, etc. Outro exemplo são palavras que comecem com o som de "dis": DESCOBERTA, DESCASCAR, DESCARREGAR, DESMONTAR, DISTRIBUIR, DISTINTO, DISPUTAR, etc. O professor irá fazer todos esses exercícios sem escrever nenhuma palavra: todos acompanharão a análise somente através da fala e da audição. Além disso, o professor pode inventar mil situações para explicar fatos importantes da escrita e da leitura. Por exemplo, pode começar escrevendo a palavra "camelo", <168> recortando uma foto ou um desenho de camelo e mostrando a associação entre a palavra "camelo" e sua representação. Pode decompor a palavra através da análise dos sons e atribuir a cada segmento uma forma de representação gráfica. Essa representação pode ser feita com desenhos de objetos cujos nomes permitam, através do princípio da acrofonia, associar o desenho à fala. Nesse segundo modo de escrita, um desenho não representa mais uma palavra inteira, mas apenas um pedaço, de preferência apenas um som, o som inicial do nome do desenho. Procedendo assim para cada som da palavra "camelo", acaba-se tendo um tipo de escrita com letras figurativas. Por exemplo, como um dos resultados possíveis, a palavra "camelo" poderia ser escrita com "letras" na forma de desenhos (pictogramas) representando, por ordem, um cabide ("e"), um avião ("a"), o mar ("m"), um elefante ("e"), uma lata ("L") e um ovo ("o"). Ensinar o truque para ler essa escrita é ensinar o aluno a ler letras. Se há algo de bom e eficiente nas cartilhas é a aplicação do princípio acrofônico através do bá-bé- bi-bó-bu. Os alunos aprendiam a ler com a cartilha por essa razão. Se um aluno preferir usar um cacho de uva, representando o som "u" no final da palavra "camelo", está perfeito, e o professor pode mostrar aos alunos que podemos falar "camelu" ou "camelo", razão pela qual ele optou pelo som de "o", e o aluno, pelo som de "u". A solução encontradapelo aluno pode criar uma boa oportunidade para o professor falar um pouco sobre ortografia e variação lingüística. Como se vê, um assunto puxa outro. O professor sabe de onde vai partir quando começa seu trabalho de ensino, mas quase nunca sabe de antemão onde vai parar. E é assim que deve ser. Quando os alunos inventaram um sistema de escrita, basearam-se no significado das palavras: as fotos e os desenhos correspondiam às idéias que as palavras <169> representavam. Os sons vinham depois de identificados os significados e produziam palavras da língua portuguesa porque os alunos estavam representando, na escrita, a língua que falam. Assim, vendo a foto de uma casa, atribuímos a ela a palavra que tem esse significado e que se pronuncia, em português, com os sons "kaza". A escrita revelou uma idéia, através da atribuição de uma palavra aos sinais gráficos. Ao fazermos isso, descobrimos também os sons dessa palavra que representa a idéia que falamos. Portanto, as palavras sempre se compõem de idéias e sons. Podemos dividir o significado de uma palavra em partes, gerando novas idéias (significados), que fazem parte da idéia mais geral. Por exemplo, podemos dividir a idéia de "casa" nos componentes que constituem uma casa, como telhado, paredes, chão, janela, porta, etc. Ao fazer isso, descobrimos que essas idéias formam novas palavras. As idéias não conseguem sobreviver sem os sons das palavras. E sons sem significado não formam palavras, são apenas ruídos. Por outro lado, quando segmentamos os sons da palavra "casa", temos "ka-za". No todo, existe um significado. Porém, considerando cada pedaço (sílaba) em separado, perde-se o significado original, podendo ou não resultar outro significado. Assim, "ka" significa, isoladamente, "aqui", "cá estou eu"; mas "za" não significa nada (talvez um apelido...). Mexer com o significado para saber o que faz parte de uma idéia ou não é muito complicado e, na prática, é uma tarefa impossível de ser feita até o fim... Sempre se descobre algo novo. Porém, com os sons das palavras tudo é bem mais simples e fácil. O alfabeto Aos poucos, passa-se da escrita ideográfica para a fonográfica, do aspecto figurativo dos caracteres para o convencional, dos grifos para as letras e, assim, chega-se ao alfabeto das letras de fôrma maiúsculas. Essas letras serão usadas por um bom tempo e com elas os alunos aprenderão a decifrar nossa escrita tradicional e a escrever seus primeiros textos. Quando se chega às letras, o melhor é falar logo do alfabeto e apresentar todas as letras de uma vez. Para isso, seria bom que houvesse na sala uma faixa com o alfabeto das letras de fôrma maiúsculas, que pudesse ficar bem visível, talvez acima da lousa (ou quadro-negro), para que os alunos tenham esse modelo constantemente <170> diante dos olhos. Esse alfabeto deve conter todas as letras do dicionário, seguindo a ordem alfabética, ou seja: A B C Ç D E F G H IJ K L M N O P Q R S T U V W X Y Z. Apresentado o alfabeto, ensina-se o nome das letras, não só para que os alunos o aprendam, mas também para terem um referencial dos sons que as letras têm. É claro que a questão na verdade é bem mais complicada, mas nesse momento basta o professor alertar para a dificuldade futura, esclarecendo que um dos sons possíveis que as letras têm pode ser encontrado no próprio nome das letras. Portanto, sabendo o nome das letras, pode-se decifrar a escrita de uma palavra, sem grandes dificuldades. O professor pode, por exemplo, apresentar uma palavra na forma escrita, sem dizer do que se trata, e pedir aos alunos para decifrá-la. Descobre-se que a tentativa não deu certo, quando não se chega a nenhuma palavra (conhecida). Então, pode-se deixar de lado algumas letras e tentar recuperar a palavra (descobrir seu significado). Desconfiar e tentar são tarefas comuns nesse momento. É sempre muito importante estar atento para o fato de o resultado da decifração ter de revelar uma palavra conhecida, cujo significado é evidente, e não apenas sons. Na vida às vezes nos deparamos com palavras desconhecidas, mas isso não acontece na alfabetização ou, se acontecer, será algo extremamente raro. Portanto, se o resultado final é uma palavra desconhecida, o aluno deve desconfiar que a decifração apresentou alguma interpretação errada dos valores fonéticos de uma ou mais letras. O que vale sempre é o resultado final, ou seja, a palavra, que o aluno deverá reconhecer facilmente, como falante nativo. Para ilustrar o que foi dito, suponhamos que o professor escreveu CASA e pediu para os alunos identificarem primeiro os nomes das letras: c, a, esse, a. Com os nomes das letras, os alunos tentam juntar os sons relevantes e descobrir de que palavra se trata. Um aluno pode dizer que está escrito "saça". Então o professor o faz ver que não existe a palavra SAÇA (não se conhece um significado para essa seqüência de sons) e volta- se atrás e se procura um som diferente e possível para as letras. A letra C pode ter o som de "kê" e a letra S pode ter o som de "zê". O resultado, agora, é "kaza". Está descoberta uma palavra conhecida. Com essa técnica, o professor pode escolher palavras, fazer com os alunos o reconhecimento das letras escritas, identificar cada letra com seu respectivo nome, <171> dizer que palavra está escrita, analisar os sons e fazer a correspondência das letras com os sons, para verificar naquela palavra que sons as letras têm. Isso não só ensina os alunos a identificarem as letras, como também ensina-os a ler palavras simples. Não é tudo, mas já é um grande avanço. Primeiros problemas com a decifração Com o progresso obtido, logo começam a aparecer problemas que deverão ser tratados cuidadosamente. Alguns deles exigem explicações um tanto complicadas. E sempre preferível dar uma boa explicação, mesmo que complicada, a ter de camuflar o problema, disfarçar, usar de subterfúgios com explicações metafóricas. Se os alunos não entenderem direito (ou nada), não faz mal. Algumas explicações precisam ser dadas por causa das circunstâncias, mas como os problemas voltarão a aparecer em outras ocasiões, os alunos terão outras chances de aprender. Quando o professor prefere uma explicação aparentemente fácil, metafórica, incompleta e meio deturpada, corre o risco de ter de se desculpar mais tarde. Alguns alunos se sentirão enganados quando descobrirem que a verdade tem outra cara. Ao iniciar a decifração da escrita, os alunos irão encontrar algumas dificuldades causadas pela falta de informação a respeito de alguns aspectos da linguagem oral e escrita. O professor não pode ensinar tudo de uma vez. Portanto, é preciso reconhecer a falta de informações preliminares e procurar resolver isso à medida que for conveniente e importante. Somente depois que os alunos tiverem ouvido explicações a respeito de muitos fatos básicos da linguagem oral e escrita, poderão entender verdadeiramente os mecanismos da decifração. Mas começar tentando decifrar a escrita é a melhor prática para discutir e aprender. Entre esses problemas estão os seguintes: a variação lingüística; a aquisição da linguagem oral e da escrita; as noções básicas de fonética e fonologia; o modo como a fala, a escrita e a leitura funcionam e quais os seus usos; o que é decifrar uma escrita e como fazer; o que é a ortografia e como resolver dúvidas ortográficas; como é um texto na linguagem oral e como é um texto na linguagem escrita; como analisar e interpretar os erros; como avaliar a importância de atividades pedagógicas relacionadascom os conteúdos programáticos e outros menos importantes. <172> O professor não poderá tratar cada um desses assuntos de maneira isolada e completa, numa ordem predeterminada. As explicações devem acontecer quando for o momento e de maneira dosada às necessidades. Em geral, é preciso abordar vários aspectos de muitos tópicos numa única ocasião. Somente em séries mais adiantadas, quando os alunos já tiverem certas noções básicas, será o momento oportuno de fazer um estudo mais detalhado e organizado desses pontos. Pares mínimos Voltando ao trabalho específico de decifração da escrita e de técnicas para aprender a ler, há um tipo de exercício, muito usado pelos lingüistas, que ajuda a explicar aos alunos como detectar os segmentos fonéticos da fala, para relacioná-los depois às letras do alfabeto. São os pares mínimos. Obtém-se um par mínimo quando se juntam duas palavras de significados diferentes, cuja forma fonética varia apenas com relação a um som. Por exemplo: "bato/mato" (a única diferença fonética é B, que se opõe a M no início das palavras do par), "casa/caça", "mar/mas", etc. Do ponto de vista da fala, "concerto" e "conserto" são palavras ambíguas (como "manga", por exemplo, que significa uma fruta e uma parte de roupa), mas do ponto de vista da escrita, formariam uma espécie de "par mínimo", porque representam palavras de significados diferentes. O professor pode explorar essas duas possibilidades: pares mínimos considerando a fala ou a escrita, relacionados entre si ou não. Com o par mínimo falado, destacam-se os sons que distinguem uma palavra de outra; com o par mínimo escrito, destacam- se as letras diferentes que representam um mesmo som. Perceber diferenças em meio a igualdades é um requisito muito importante em todo trabalho lingüístico. Feito isso, basta mostrar quais letras serão usadas para representar os sons distintivos, explicando que no próprio nome da letra, já se tem uma dica de que som ela representa, ou de que letra terá de ser usada para escrever, quando já se sabe o som, observando a fala. Rimas Outra atividade muito útil para ensinar o reconhecimento de segmentos fonéticos de palavras é o uso de rimas: palavras terminadas em sons semelhantes, como, <173> por exemplo, em "ão": "avião", "coração", "habitação", "irmão", etc. O professor pode escrever na lousa as palavras rimadas, ditadas pelos alunos, fazendo colunas, de tal modo que se perceba na escrita que todas essas palavras terminam com um mesmo conjunto de letras e sons (no caso, "ão"). Fazer exercícios que levem o aluno a aprender a relacionar as letras com os sons das palavras é fundamental. Categorização gráfica das letras Outro aspecto importante dos sistemas de escrita é a categorização das letras do alfabeto. Como usamos muitos alfabetos, é preciso saber que uma mesma letra pode ser escrita com formas gráficas diferentes. Depois que os alunos já avançaram bem no trabalho de decifração, usando apenas as letras de fôrma maiúsculas, o professor pode apresentar escritas de palavras com alfabetos diferentes, em colunas, para que os alunos percebam que, para cada lugar de escrita na palavra, há uma letra, e que as letras, nas colunas verticais, pertencem a alfabetos diferentes (colunas horizontais), e têm, portanto, o mesmo valor alfabético. Primeiras leituras de textos Depois que os alunos conseguirem decifrar por si palavras isoladas, o professor os levará a ler pequenos textos. Aqui, há alguns pontos importantes a serem considerados. Em primeiro lugar, é preciso que o professor convença-se de que é mais importante que o aluno leia e não que exiba para ele ou para a classe que já sabe ler. Assim, o professor estimulará seus alunos a lerem em particular, para si, até que adquiram habilidade e velocidade de leitura para ler em voz alta para a classe, sem grandes dificuldades Ler textos de uma ou duas frases, no início, exige um grande esforço de decifração (são muitas letras...). Porém, esses textos oferecem a vantagem de poderem ser facilmente decorados. Portanto, o professor deixará que cada aluno descubra o que está escrito. Feito isso, poderá, então, dizer o que foi que leu. Aqui, o fato de reproduzir literal e exatamente o que está escrito não é importante. O que conta é o fato de o aluno descobrir o que está escrito porque, para isso, ele precisará ter decifrado pelo menos as palavras mais importantes para a compreensão do texto. Uma leitura mais rigorosa, mais fiel ao texto, será cobrada mais adiante. < MASSINI-CAGLIARI, 1998a. <174> Com o tempo, vai-se passando de textos curtos para textos cada vez mais longos, deixando sempre os alunos lerem individualmente. Se algum aluno quiser ler para os colegas, será preciso que prepare muito bem sua leitura com antecedência. Se o professor perceber que o aluno está lendo mal (gaguejando, silabando, sem ritmo, sem a correta entoação, etc.), deverá solicitar do aluno que prepare melhor sua leitura, mostrando como ela deve ser feita. Interpretar ou discutir o que leu Convém relembrar que é desnecessário, e mesmo ridículo, querer fazer interpretação de texto nas primeiras séries. Análise literária ou análise de discurso de textos deverão ser feitas em séries avançadas. Portanto, o professor não deverá ficar preocupado se seus alunos estão entendendo ou não o que estão lendo, pois é claro que estão entendendo, uma vez que os textos são, em geral, histórias de fácil compreensão. Trabalhar as sutilezas dos textos é de menor importância na alfabetização. Isso não quer dizer que o professor não possa discutir certos assuntos com seus alunos, servindo-se da leitura de textos. Nesse tipo de atividade, o que vale é a discussão das idéias pessoais, incluindo as expressas pelo autor do texto. O que não faz sentido é querer discutir o texto como fato lingüístico ou literário. Discussões podem ser feitas mesmo sem o pretexto de um texto. Fazer discussões em sala de aula é uma atividade de grande importância. Interpretar textos com perguntas e respostas é uma idiotice. O que ler Os alunos precisam ser incentivados a ler todo tipo de material, quer com relação à forma gráfica, quer com relação aos variados tipos de textos. Devem ler coisas impressas e coisas manuscritas, devem ler propagandas ou outro material semelhante. O professor precisa mostrar aos alunos material escrito com os mais variados tipos de letras. Usos artísticos da escrita merecem um destaque. Usos especiais em propagandas também são interessantes, como palavras decoradas com desenhos que ilustram seu significado. Por exemplo, a palavra "incêndio" escrita com letras pegando fogo. É preciso ler histórias (muitas), notícias, reportagens que falem de assuntos científicos, técnicos, curiosos, da vida de pessoas famosas, etc. É preciso ler jornal, <175> revistas, receitas culinárias, instruções de uso de equipamento, de montagem ou de conserto, enfim, ler de tudo. E ler nunca é demais. O TRABALHO COM A ESCRITA Quando se falou da leitura, incluíram-se muitos fatos relativos à escrita, porque um processo necessariamente implica outro. Aos poucos a escrita vai tornando-se familiar quando se estuda como se deve ler. O próprio sistema de escrita revela-se com a descoberta da decifração. Em outras palavras, as noções básicas de um sistema de escrita, do ponto de vista gráfico e funcional, são aprendidas no processo de aprendizagem da leitura. Por essa razão, insistimos no fato de que o segredo da alfabetização está em saber