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O campo brasileiro em disputa: a expansão do agronegócio e a resistência dos povos do campo no século XXI Paulo Alentejano1 Introdução O presente artigo busca demonstrar como a expansão do agronegócio no Brasil tem reforçado o poder do latifúndio, bloqueado a democratização da terra e impedido a realização da reforma agrária, apesar das lutas dos movimentos sociais e povos do campo. A partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), buscaremos demonstrar como ao mesmo tempo estamos diante de um aprofundamento da expropriação e da violência contra camponeses, indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais e do crescimento da produção agropecuária centrada na grande propriedade, articulada ao grande capital transnacional e sustentada política e economicamente pelo Estado brasileiro. Assim, a luta pela terra adquire novos contornos, ainda que preserve seu conteúdo: a luta dos camponeses, indígenas e quilombolas contra a usurpação das terras que ocupam pelas forças do latifúndio/agronegócio e contra um modelo agrário que concentra riqueza, promove devastação ambiental (desmatamento e contaminação de águas, solos, alimentos e trabalhadores por agrotóxicos) e se reproduz com base na violência e na exploração do trabalho (inclusive com trabalho escravo); a luta por uma reforma agrária que desconcentre a terra, o poder e a riqueza no campo e promova a produção de alimentos saudáveis a partir da perspectiva agroecológica. 1. A violência como método de expansão do agronegócio O modelo agrário dominante no Brasil, ancorado no tripé latifúndio-monocultura-agroexportação, é historicamente violento, injusto e devastador e a longa história de luta dos trabalhadores rurais, povos indígenas e comunidades tradicionais contra esse modelo tem denunciado frequentemente as mazelas que produz. Os dados sobre a violência no campo levantados pela CPT e publicados anualmente no Caderno Conflitos no Campo Brasil (www.cptnacional.org.br) mostram que 2017 foi o ano mais violento no campo brasileiro nas últimas décadas, com 71 pessoas assassinadas (só inferior nos últimos 25 anos aos 73 assassinatos de 2003), sendo que 31 foram assassinadas em 5 massacres ocorridos em Mato 1 Professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da UERJ – FFP/UERJ e dos Programas de Pós-Graduação em Geografia e em Ensino de Ciências e Biodiversidade da FFP/UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe da Unesp, em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes - ENFF. http://www.cptnacional.org.br/ 2 Grosso, Rondônia, Pará, Amazonas e Bahia e que vitimaram sem terras, indígenas, quilombolas e posseiros. Este aumento da violência está diretamente associado à intensificação dos conflitos pela terra. O Gráfico 1, abaixo, aponta para o crescimento da proporção dos conflitos por terra entre os conflitos no campo na última década, pois se entre 2007 e 2009 os conflitos por terra representavam 40% a 50% dos conflitos no campo, este patamar mudou para 50% a 65% entre 2010 e 2015 e pulou para mais de 70% em 2016, atingindo o pico de 81,6% em 2017. Gráfico 1 – Conflitos no Campo e Conflitos por Terra no Brasil – 2007-2017 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 0 200 400 600 800 1000 1200 1400 1600 1538 1170 1184 1186 1363 1364 1266 1286 1217 1536 1431 615 459 528 638 805 816 763 793 771 1079 1168 Conflitos no Campo e Conflitos por Terra - Brasil - 2007-2017 Conflitos no Campo Conflitos por Terra Fonte: CPT. Organização do Autor. Vale registrar ainda o crescimento dos conflitos por terra em termos absolutos, pois estes passaram dos 1.000 casos pela primeira vez em uma década. Já o Gráfico 2 mostra que a maior parte dos conflitos por terra não foi resultante de ações dos movimentos sociais, como ocupações de terra, como apregoam certas vozes ligadas aos interesses do agronegócio, mas de ações de despejo, expulsão, enfim, ações protagonizadas pelo capital/latifúndio na sua sanha de se apropriar de mais e mais terras. Os dados apontam para a redução do percentual de ocupações em relação ao total dos conflitos por terra, caindo de um patamar superior a 50% entre 2007 a 2009 para um padrão entre 20 a 30% entre 2010 e 2015 e para menos de 20% em 2016 e 2017. Isto demonstra que os povos do campo estão sendo vítimas de um brutal aumento da violência na corrida do capital por terras que tem caracterizado o capitalismo global na última década, como registram os estudos sobre este assunto e que resultaram na criação de termos como land grabbing e acaparamiento de tierras. 3 Gráfico 2 – Conflitos por Terra e Ocupações de Terra no Brasil – 2007-2017 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 0 200 400 600 800 1000 1200 615 459 528 638 805 816 763 793 771 1079 1168 364 252 290 180 200 238 230 205 200 194 169 Confitos por Terra e Ocupações - Brasil - 2007-2017 Conflitos por Terra Ocupaçoes Fonte: CPT. Organização do Autor. Em estudo recentemente concluído, CUIN (2018) reforça estes argumentos ao mostrar a dissociação nos últimos quinze anos entre a violência e a capacidade de enfrentamento desta por parte dos movimentos e povos do campo. Como mostra o Gráfico 3, abaixo, as ações dos movimentos sociais e povos do campo, representadas por Acampamentos, Ocupações e Retomadas de Terra caíram de um patamar superior a 600 ações em 2003 para menos de 200 em 2017. Vale registrar que se até 2007 estas ações sempre somaram anualmente mais de 300, após 2010, nunca ultrapassaram o patamar de 250 ações. Gráfico 3 – Ações dos Povos do Campo e Movimentos Sociais – Brasil 2003-2017 20 03 20 04 20 05 20 06 20 07 20 08 20 09 20 10 20 11 20 12 20 13 20 14 20 15 20 16 20 17 - 100 200 300 400 500 600 700 Protagon istas Ação dos Povos do Campo e Movimentos Soc iais Brasil - 2003-2017 Acampamentos, Ocupações Retomadas de Terra L o ca li d a d e s co m O co rr ê n ci a s Fonte: CPT. Elaboração CUIN, 2018. 4 Por outro lado, os dados sobre Violência do Poder Público e Violência do Poder Privado mostram que as ações de despejo e expulsão aumentaram nos últimos anos, principalmente as protagonizadas pelo poder privado, isto é as ações diretas, violentas e arbitrárias do capital/latifúndio contra os povos do campo para se apropriar das terras ocupadas por estes. As ações de despejo que haviam caído sucessivamente entre 2004 e 2008, de um patamar de 300 ações para pouco mais de 100, passaram a crescer novamente a partir de então, ultrapassando o patamar de 250 ações nos últimos dois anos (Gráfico 4). Trata-se nesse caso de uma ação articulada entre o Estado brasileiro e o capital/latifúndio para retirar “legalmente” os trabalhadores das terras que ocupam, via ordens judiciais e acionamento das forças policiais para o cumprimento dessas ordens de despejo exaradas pelo poder judiciário. Gráfico 4 – Violência do Poder Público – Brasil – 2003-2017 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 - 50 100 150 200 250 300 350 Violênc ia Violênc ia do Poder Púb lico Brasil - 2003-2017 Despejos e Tentativas de Despejo n º d e L o ca li d a d e s co m O co rr ê n ci a s Fonte: CPT. Elaboração CUIN, 2018. Já as ações de expulsão empreendidas pelo poder privado que oscilaram entre 150 e 200 ocorrências entre 2003 e 2015, aumentaram nos últimos dois anos, ultrapassando o patamar de 200 ocorrências (Gráfico 5). Neste caso, trata-se da ação de jagunços, ou sua expressão moderna, as firmas de segurança privada, que a mando de fazendeiros retiram na marra os trabalhadores das suas terras, não sendo raros os casos em que estas açõesresultam em violências adicionais como assassinatos. 5 Gráfico 5 – Violência do Poder Privado – Brasil – 2003-2017 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 - 50 100 150 200 250 Violênc ia Violênc ia do Poder Privado Brasil - 2003-2017 Expulsões e Tentativas de Expulsão n º d e L o ca li d a d e s co m O co rr ê n ci a s Fonte: CPT. Elaboração CUIN, 2018. Quando se comparam diretamente as ações dos movimentos sociais e povos do campo com a violência dos poderes público e privado (Gráfico 6), temos a evidência de que a violência cresceu nos últimos anos mesmo com a redução das ações dos movimentos sociais e povos do campo, demonstrando claramente tratar-se de um processo de intensificação da violência expropriatória que marca a expansão do latifúndio/agronegócio. Gráfico 6 – Ações dos Movimentos e Povos do Campo x Violência dos Poderes Público e Privado no Campo – Brasil – 2003-2017 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 - 100 200 300 400 500 600 700 Categor ias de Ações Violênc ia e En frentamento Brasil - 2003-2017 Acampamentos, Ocupações Retomadas de Terra Violências n º d e L o ca li d a d e s co m O co rr ê n ci a s Fonte: CPT. Elaboração CUIN, 2018. 6 Os mapas 1 e 2, abaixo, também elaborados por CUIN (2018), além de corroborarem a conclusão anterior acerca do crescimento da violência no campo, permitem ainda identificar a concentração espacial desta na Amazônia, ao passo que no Centro-Sul e no Nordeste prevalecem as ações dos movimentos sociais.2 No Mapa 1 observa-se que, com raras exceções, entre 2003 e 2009 as ações dos movimentos e povos do campo são predominantes no Nordeste e no Centro-Sul, ao passo que a violência dos poderes público e privado predomina na Amazônia. Mapa 1 – Ações dos Movimentos e Povos do Campo x Violência dos Poderes Público e Privado – Brasil 2003-2009 2 Consideramos que a regionalização do território brasileiro que mais ajuda a compreender a dinâmica dos conflitos pela terra no Brasil, é a que subdivide o país em três regiões, Amazônia (estados da Região Norte, Mato Grosso e Maranhão), Centro-Sul (estados das regiões Sul e Sudeste, Goiás, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal) e Nordeste (estados da Região Nordeste, exceto o Maranhão). Para uma explicação detalhada desta opção metodológica ver ALENTEJANO, LEITE E PORTO-GONÇALVES (2013). 7 Já o Mapa 2 revela, além do crescimento generalizado da violência e do refluxo das ações dos movimentos, a concentração dessas ações violentas na Amazônia, com destaque para os estados do Maranhão, do Amapá, de Rondônia e do Acre. Mapa 2 – Ações dos Movimentos e Povos do Campo x Violência dos Poderes Público e Privado – Brasil 2010-2017 Ora, todo esse processo revelado pelos dados da CPT expostos até aqui converge com os dados recém publicados pelo IBGE com base nos resultados preliminares do Censo Agropecuário de 2017. Por ele, os estabelecimentos agropecuários com mais de 1.000 ha aumentaram ainda mais a área sob seu controle, que já era de absurdos 45% segundo o Censo de 2006 e agora é de 47,5%. Isso para um total de apenas 1% dos estabelecimentos, pouco mais de 50 mil de um total de mais de 5 milhões. Foram 16,5 milhões de ha a mais incorporados pelos grandes, enquanto os menores estabelecimentos, que têm até dez hectares, representam 50,2% do número total de estabelecimentos, mas ocupam apenas 2,3% da área. Essa inominável concentração fundiária segue inalterada, 8 configurando talvez a principal marca histórica do campo brasileiro. Inaugurada com o instrumento colonial das sesmarias, foi intensificada pela Lei de Terras de 1850 e se manteve intacta pelos sucessivos bloqueios impostos à reforma agrária na história do país. Se considerarmos os dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ( Incra), ao invés dos dados do IBGE, isto é considerarmos os imóveis rurais, ao invés dos estabelecimentos agropecuários3, verificamos que o panorama não é muito diferente. Gráfico 7 – Imóveis Rurais segundo o Número e a Área por Grupos de Área - 2012 Imóveis Rurais - Número e Área por Grupos de Área - 2012 34,10 52,08 12,34 1,481,46 15,74 30,05 52,84 0,00 10,00 20,00 30,00 40,00 50,00 60,00 0 a 10 ha 10 a 100 ha 100 a 1.000 ha mais de 1000 ha Nº Área Fonte: Estatísticas Cadastrais do Incra, 2012 – Organizado pelo Autor. Os imóveis com menos de 10 ha são 34,10% do total, mas ocupam apenas 1,46% da área e os com mais de 1.000 ha representam apenas 1,48% do total de imóveis, mas controlam 52,84% da área. Somados os imóveis com menos de 100 ha correspondem a 86,2% do total e possuem menos de 20% da área, ao passo que os que possuem mais de 100 ha são menos de 15% dos imóveis e concentram mais de 80% da área. Este processo histórico de concentração fundiária foi reforçado com a modernização conservadora da agricultura brasileira conduzida pela Ditadura Empresarial-Militar após 1964, resultando na adaptação da agropecuária brasileira à lógica da revolução verde4 e se mantém até hoje. Carter define assim esse processo: 3 O IBGE utiliza a categoria estabelecimentos agropecuários que considera a unidade produtiva, enquanto o Incra utiliza a categoria imóvel rural, isto é, tem como base a propriedade da terra. Assim, por exemplo, se uma fazenda é arrendada para quatro diferentes agricultores, o Incra contabiliza um imóvel rural e o IBGE quatro estabelecimentos agropecuários. Por outro lado, se três diferentes fazendas são administradas como uma unidade produtiva contínua, o Incra contabiliza três imóveis rurais e o IBGE apenas um estabelecimento agropecuário. Assim, os dados do IBGE e do Incra devem ser considerados como complementares para a análise da concentração fundiária. 4 A revolução verde consiste no processo de modernização técnica da agricultura – baseada em mecanização, quimificação e melhoramento genético – gestada nos EUA e difundida pelo Terceiro Mundo a partir dos anos 1950 sob o pretexto de combater a fome e a miséria, mas que visava na realidade combater o perigo da revolução vermelha/comunista que chegara à China no fim da década de 1940 e ameaçava se espalhar pelo resto do Terceiro Mundo. 9 ...o atual modelo de desenvolvimento rural do país, fundado na promoção do agronegócio e na proteção das grandes propriedades de terras, foi desenvolvido e financiado pelo regime militar. Desde então, a inércia conservadora do Estado se manteve sem grandes alterações, apesar da democratização do regime político, das leis favoráveis à reforma agrária e da expressiva demanda popular por terra.” (CARTER, 2010: 514) Ou como prefere Delgado (2010: 88), estamos diante de um “pacto agrário tecnicamente modernizante e socialmente conservador” que articulou as oligarquias rurais ligadas à grande propriedade territorial com a moderna indústria e o setor financeiro, intensificando a concentração fundiária no país. 2. E para que o agronegócio se apropria de tanta terra? Um dos efeitos da concentração fundiária é facilitar a transferência do patrimônio natural brasileiro para o controle estrangeiro, afinal, quando se trata o agro como negócio (agronegócio) a terra é de fato mera mercadoria que só importa por seu valor de troca no mercado de terras e pode, portanto, ser transacionada sem maiores preocupações, diferentemente de quando o agro é lugar de vida (agricultura) e a terra importa por seu valor de uso. Por isso temos visto crescer a aquisição de terras por fazendeiros, empresas e fundos de investimentos estrangeiros, uma das faces do crescente processo de internacionalização da agricultura brasileira, ao lado do domínio cada vez mais ampliado das grandes corporações transnacionaissobre o setor agropecuário brasileiro através do controle da tecnologia e dos processos de comercialização e processamento agroindustrial. Na definição de David Harvey, vivemos um processo de renovação do imperialismo, caracterizado pela acumulação por espoliação5: Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias. A expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas três últimas décadas; muitos recursos antes partilhados como a água, têm sido privatizados (com freqüência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista da acumulação; formas alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercadorias de fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substitui a agricultura familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no comércio sexual). (HARVEY, 2004: 121) 5 Fontes (2010) polemiza com Harvey em torno da adequação da sua noção de acumulação por espoliação, por considerar que a produção de expropriação é sistemática no capitalismo, dado seu caráter desigual e combinado. Embora não discordemos da autora, consideramos que a noção de acumulação por espoliação ajuda a lançar luz sobre o atual processo de avanço do capital sobre os recursos naturais e os direitos sociais, contribuindo para ressaltar o caráter permanentemente violento da expansão capitalista. 10 A combinação em alto grau da disponibilidade de terra e água faz do Brasil um dos principais focos de atração para os capitais interessados em expandir a produção agropecuária, visto que o padrão agrícola moderno, derivado da revolução verde, é intensivo em terra, água e energia. Ressalte-se, que a tropicalidade (abundância de sol e água) dominante em nosso território garante a intensidade dos processos de fotossíntese, acelerando o metabolismo das plantas e consequentemente seu processo de crescimento, o que favorece ainda mais à acumulação de capital na agricultura, por contribuir para reduzir um dos seus principais entreves que é a diferença entre tempo de trabalho e tempo de produção. O mapa a seguir aponta o Brasil como o país que possui, ao mesmo tempo, as maiores disponibilidades de terra e água. Mapa 1 – Disponibilidade mundial de terras e água Estas vantagens comparativas6 para o desenvolvimento da agricultura no Brasil tornam-se ainda mais nítidas ao analisarmos os dados sobre uso da terra. O quadro a seguir demonstra que a soma das terras não utilizadas ou utilizadas para pastagens no Brasil representa mais do que o dobro das terras nestas mesmas condições existentes nos EUA e na Rússia, os dois países que mais se aproximam do Brasil neste quesito, sem contar o fato de que estes países possuem extensas áreas recobertas permanente ou temporariamente por neve. Vale mencionar ainda que países como China e Índia, os dois países mais populosos do mundo e economias em franca expansão, não possuem mais nenhuma área para expansão da produção agropecuária. 6 O uso desta expressão faz referência à noção proposta por David Ricardo no século XIX, sem entretanto dar a esta o mesmo tratamento que faz o referido autor, pois consideramos que não se trata de vocação natural, mas de atributos historicamente valorizados. Nem sempre a tropicalidade foi vista como benéfica, ao contrário, no mesmo século XIX em que Ricardo viveu e escreveu, era comum a referência à hostilidade do ambiente tropical. 11 Quadro 1 - Disponibilidade de terras aráveis A partir disto constrói-se uma “visão triunfalista dos agronegócios articulada com uma imagem hiperbolizada do Brasil e de seu potencial agrícola” (Almeida, 2010: 110), como parte das estratégias de expansão do grande capital na agricultura brasileira (agroestretégias na expressão de Almeida), como se nestas terras não houvessem indígenas, quilombolas, geraizeros, seringueiros, quebradeiras de coco de babaçu e tantos outros que ocupam de maneira diversificada o espaço agrário brasileiro. Estas agroestratégias articulam-se com o crescente movimento de internacionalização da agricultura brasileira verificada nos últimos anos, no qual destacam-se a intensificação: (1) do controle das transnacionais do agronegócio sobre a agricultura brasileira – seja pela determinação do padrão tecnológico (sementes, máquinas e agroquímicos), seja pela compra/transformação da produção agropecuária (grandes traders, agroindústrias); (2) da compra de terras por fazendeiros, empresas e grupos estrangeiros. No que diz respeito ao controle das transnacionais sobre a agricultura brasileira, o que mais chama atenção nos dias de hoje é a crescente difusão das sementes transgênicas pelas grandes empresas do setor, como Monsanto, Bayer, Syngenta7, que também são as grandes produtoras de agroquímicos, o que contribuiu para a transformação do Brasil no maior consumidor mundial de agrotóxicos, como veremos com detalhes adiante. A propagação desta agricultura de base mecânico-químico-biológica embora tenha se concentrado na grande propriedade monocultora atingiu também a pequena produção camponesa. Como afirma Carvalho: Como a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, parcela dos camponeses incorporou, sob as mais distintas formas, essa noção de progresso expressa na espoliação da natureza. E, mais, com a crescente tendência da 7 A tendência é que esta concentração aumente ainda mais, pois há um movimento de fusão destas gigantes, por exemplo, com a compra da Monsanto pela Bayer. 12 artificialização da agricultura pela burguesia sob a hegemonia do capital financeiro, da oligopolização da oferta de insumos, do beneficiamento e da comercialização da produção agrícola por umas poucas empresas transnacionais, não só a artificialização da agricultura assim como o controle oligopolista da produção agrícola nacional tornaram-se uma realidade inconteste porque dominante e legitimada pelas mais distintas instituições da denominada democracia liberal burguesa vigente no país. (CARVALHO, 2013: 5) Entretanto, vale observar também a ampliação do controle das transnacionais sobre a comercialização e o processamento industrial da produção agropecuária, sobretudo ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus (também conhecido como grupo ABCD). Segundo Delgado & Leite (2010), a participação do capital estrangeiro na agroindústria de esmagamento da soja cresceu de 16% em 1995 para 57% em 2005. Wesz Jr. (2014) aponta que em 2010 o grupo ABCD somado à Amaggi, empresa da família do atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi, dominava 50% do esmagamento, 80% do financiamento da produção e 85% da comercialização de grãos. Essas grandes corporações, originalmente concentravam sua atuação no ramo de cereais, mas nos últimos anos sua atuação tem se expandido para outros setores, em especial o sucroalcooleiro, no qual a presença das grandes empresas transnacionais tem se expandido rapidamente. Este crescente controle das grandes corporações estrangeiras sobre a agropecuária brasileira se reflete também na ampliação da compra de terras por fazendeiros, empresas e grupos de investidores estrangeiros, embora a real dimensão desse processo de aquisição de terras por estrangeiros seja uma incógnita, uma vez que o Incra, órgão responsável pela administração fundiária no Brasil, não tem instrumentos efetivos de controle disto.8 De toda a forma, em 2008 existiam 34.632 imóveis registrados no Cadastro do Incra como pertencentes a estrangeiros, perfazendo um total de 4.037.667 ha, sendo 83% grandes propriedades (SAUER & LEITE, 2010). A fragilidade dos mecanismosde controle do Estado sobre o território brasileiro é reconhecida inclusive por um ex-presidente do órgão que admite que o governo não tem dados sobre investidores e pessoas físicas que já detêm terras no país e chama atenção para as brechas legais que facilitam o acesso de estrangeiros à propriedade da terra no Brasil: “Basta abrir um escritório ou estar associado a um brasileiro, que pode comprar o que quiser de terras.”9 8 O Sistema Nacional de Cadastro Rural é baseado em autodeclaração e praticamente não possui mecanismos de aferição de sua fidedignidade – ao contrário de outros tipos de declaração, como acontece com o imposto de renda que também é inicialmente baseado em autodeclaração, mas em torno do qual a Receita Federal constituiu um eficiente sistema de fiscalização. O que não significa dizer que não haja instrumentos de burla do imposto de renda, pelo contrário, há inclusive nas empresas de consultoria econômico-financeira especialistas em impostos que se dedicam à busca das brechas legais para a redução do pagamento de impostos. 9 Afirmação feita por Rolf Hackbart, ex-presidente do Incra durante palestra no BNDES no Rio de Janeiro em 2008. 13 Há, portanto, controvérsias sobre o volume de terras já pertencentes a grupos, empresas e fazendeiros estrangeiros, assim como são diferentes os interesses que impulsionam este novo movimento de internacionalização das terras no Brasil, mas não há como negar a existência e a gravidade de tais processos, da mesma forma como é inegável a contribuição disto para a fragilização de nossa soberania territorial. Isto, aliás, não é um fenômeno que se restringe ao território brasileiro, como demonstram estudos recentes: Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês de “land grabbing”. (SAUER & LEITE, 2010: 1). Segundo estes autores, são três os fatores que impulsionam este movimento: governos de países com pouca disponibilidade de terra e preocupados com o abastecimento alimentar que buscam além de suas fronteiras terras para expandir a produção agropecuária; empresas financeiras em busca da apropriação da renda da terra; empresas do setor agroindustrial que buscam expandir seus lucros e seu controle sobre o processo de produção. As consequências desta crescente internacionalização da agricultura brasileira se refletem, por exemplo nas transformações do padrão produtivo da agropecuária brasileira e na questão da segurança alimentar. Desde a segunda metade do século XX, a agropecuária brasileira passou por importantes processos de transformação que se intensificaram nas últimas décadas, com a consolidação do agronegócio, “associação do grande capital agroindustrial com a grande propriedade fundiária, sob patrocínio fiscal, financeiro e patrimonial do estado” (Delgado, 2006:1). Nos últimos anos, temos presenciado a reprimarização das exportações brasileiras, com destaque para produtos minerais (sobretudo o minério de ferro) e agropecuários. Este processo tem fortes implicações sobre a nossa segurança alimentar, como veremos a seguir. Segundo dados do IBGE, entre 1990 e 2016, a plantada com lavouras temporárias no Brasil aumentou de 45,98 para 71,40 milhões de ha, isto é, cresceu 25,42 milhões de ha. Entretanto, o aumento concentrou-se basicamente em três produtos voltados prioritariamente para exportação ou transformação industrial, as chamadas commodities – soja, cana e milho. A área plantada com soja cresceu de 11,58 para 33,30 milhões de ha, a área com milho de 12,02 para 15,03 14 milhões de ha e a área com cana passou de 4,32 para 10,24 milhões de ha. Somadas as áreas dessas três culturas o aumento foi de 31,66 milhões de ha, passando de 27,93 para 59,59 milhões de ha. Gráfico 2 – Área plantada com lavouras temporárias – Milhões de ha - Brasil – 1990-2016 To tal Ar ro z Fe ijã o M an di oc a Al im en to s B ás ico s Ca na M ilh o So ja Co mo di tie s 45,980,738 4,158,547 5,304,267 1,975,643 11,438,457 4,322,299 12,023,771 11,584,734 27,930,804 71,406,509 2,004,643 2,946,801 1,439,754 6,391,198 10,245,102 16,039,474 33,309,865 59,594,441 Área Plantada com Lavouras Temporárias (ha) - Brasil - 1990-2016 1990 2016 Fonte: IBGE. Organizado pelo Autor. Por outro lado, a área destinada à produção de três alimentos básicos da dieta da população brasileira (arroz, feijão e mandioca) diminuiu mais de 5 milhões de ha, caindo de um total de 11,43 para 6,39 milhões de ha, sendo que a maior redução foi a da área plantada com feijão, que caiu de 5,3 para 2,94 milhões de ha. Vale destacar adicionalmente que entre 1990 e 2016, a soja ultrapassou o milho em termos de área plantada, assumindo a condição de maior lavoura do país. Foi também a cultura com maior crescimento em termos proporcionais, quase triplicando a área plantada. Outro dado revelador dos caminhos da produção agropecuária brasileira é o relativo à expansão da criação de bovinos no Brasil, atividade que se caracteriza pelo caráter extensivo, e cujo número de cabeças (215,2 milhões) já é maior que o número de brasileiros (210 milhões). Neste caso observamos que a criação de bovinos expandiu-se em todas as regiões do país, mas com destaque 15 para a Amazônia, onde a expressão foi mais significativa, passando de 17,8% do rebanho brasileiro em 1990 para 39,1% em 2015. Por fim, vale registrar também o grande crescimento da produção de madeira no país a partir da silvicultura, isto é a produção em escala industrial de árvores para fabricação de papel e celulose ou carvão vegetal, ou ainda madeira para a indústria moveleira, da construção civil, entre outros usos. A comparação entre o crescimento da população brasileira e o crescimento da produção agrícola, revela uma acentuação da insegurança alimentar no país. Entre 1991 e 2010, a população brasileira passou de 146.917.459 habitantes para 190.715.799 habitantes, um crescimento de 29,8%. No mesmo período, a produção de arroz aumentou 33% e a de feijão 27%, ou seja, a de arroz superou levemente o crescimento populacional e a de feijão ficou abaixo deste, o que significa dizer que caiu a disponibilidade de feijão por habitante, o que explica que este produto seja importado hoje até da China. Por outro lado, a produção de milho cresceu 237%, a de cana-de-açúcar 255% e a de soja 288%, o que confirma a prioridade da agricultura brasileira atual pelos produtos voltados para exportação ou a produção de matérias primas para a indústria em detrimento da produção de alimentos para a população. Todos esses dados apontam para a inexorável ampliação de nossa insegurança alimentar, decorrente de um modelo produtivo que expande a produção de commodities em detrimento da produção de alimentos, fortalece o agronegócio e não a agricultura, muito menos uma agricultura de base camponesa e agroecológica. Como diz Carvalho: O denominado agronegócio vigente no país (as empresas capitalistas direta e indiretamente relacionadas com o campo) enaltece e reproduz sem se ruborizar, pela promoção consciente da subalternidade colonial brasileira perante as economias altamente desenvolvidas, a primarização da economia exportadora nacional onde predomina a espoliação da natureza. (CARVALHO, 2013: 10) Tais processos espoliativos da natureza se refletem, por exemplo, no avanço do desmatamento. Segundo dados do IBGE10 temos o seguinte cenário em relação aos grandes biomas brasileiros: a área desflorestada se aproxima hoje dos 20% da área florestal original da Amazônia; por sua vez, da Mata Atlântica, restam apenas 12% da área total,do Pampa, 46%, do Cerrado, 51%, da Caatinga, 54% e do Pantanal, 85%. Entretanto, a maior expansão recente do desmatamento tem se concentrado no Cerrado e na Amazônia. Já no que diz respeito aos agrotóxicos, o uso cada vez mais intenso transformou o Brasil no maior consumidor mundial desde o ano de 2008. Segundo estudo publicado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) em 2012, a utilização de agrotóxicos nas lavouras do país saltou de 10 Disponível em www.ibge.gov.br/home/geociencias/recursosnaturais/ids/default_2012.shtm http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/recursosnaturais/ids/default_2012.shtm 16 599,5 milhões de litros no ano de 2002 para 852,8 milhões de litros em 2011. Tal crescimento está associado ao crescimento das lavouras de soja, milho e cana, prioritariamente voltadas para exportação ou transformação industrial, as que mais consomem agrotóxicos, mas os alimentos básicos também estão sendo intensamente contaminados. Pelo levantamento realizado, o consumo de agrotóxicos entre 2002 e 2011 aumentou de 11 para 12 litros/ha e o de fertilizantes de 90,1 kg/ha para 94,8 kg/ha. (ABRASCO, 2012) Dentre os principais tipos de agrotóxicos consumidos no Brasil destacam-se os herbicidas que representaram 45% do total de agrotóxicos comercializados, seguidos dos fungicidas que respondem por 14% do mercado nacional e dos inseticidas que correspondem a 12%, cabendo aos demais tipos 29%. (ABRASCO, 2012: 15/16) Quando consideradas as lavouras, observamos que em 2011, o consumo médio de agrotóxicos (herbicidas, inseticidas e fungicidas) por hectare de soja foi de 12 litros, o de milho 6 l/ha; de algodão 28 l/ha; de cana 4,8 l/ha; de cítricos: 23 l/ha; de café: 10 l/ha; de arroz 10 l/ha; de trigo: 10 l/ ha e de feijão: 5 l/hectare. (ABRASCO, 2012: 20) A dependência de volumes crescentes de agrotóxicos e fertilizantes demonstra cabalmente o quão insustentável é a agricultura brasileira. Os ideólogos do agronegócio usam a expressão “produção de commodities” para designar a produção em larga escala e de forma especializada de cana, milho, soja, outrora denominada simplesmente monocultura. Rejeitam a noção de latifúndio, afirmando que é a moderna tecnologia e a elevada produtividade que marcam o campo brasileiro. Dizem que não existe trabalho escravo no campo, mas uma “cultura trabalhista diferenciada”. E que a agricultura brasileira é sustentável. Novas justificativas para velhas práticas. Mudam os nomes, mas a realidade persiste no campo brasileiro: violência, exploração e devastação. E cinismo também. Já dizia Marx que para desvendar as relações sociais precisamos ir muito além das aparências. Nada mais falacioso do que o discurso dos ideólogos do agronegócio de que a terra já não é mais fundamental para a agricultura contemporânea, pois está é intensiva em capital e tecnologia. Terra é não só fundamental para o agronegócio, como hoje também para uma série de outras estratégias do capital, dentre elas a especulação movida por grandes empresas transnacionais, bem como fundos financeiros os mais diversos que cada vez mais investem em terras como ativos financeiros. De outro modo, como explicar a resistência do agronegócio à atualização dos índices de produtividade para desapropriação de terras para reforma agrária? Como afirma Medeiros: Terras improdutivas ou produzindo pouco fazem parte das necessidades criadas pela expansão das atividades empresariais. Transformá-las em áreas passíveis de desapropriação, com a possibilidade de se transformarem em assentamentos, 17 significa subtraí-las do mercado e excluí-las do cerne desse circuito de reprodução” (MEDEIROS, 2010: 4) O quadro abaixo sintetiza o que está em disputa no campo brasileiro hoje: apesar de já controlar praticamente um terço do território brasileiro (280 milhões de ha, 32,9% do total), o latifúndio/agronegócio pretende avançar sobre as terras hoje sob controle estatal, especialmente as Unidades de Conservação, as Terras Indígenas e os Assentamentos Rurais, que somados abrangem 41,2% do território brasileiro. Quadro 2 – Distribuição das Terras por Categoria de Uso no Brasil Fonte: Incra, Embrapa. Organizado pelo Autor O fato da soma da área de Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Assentamentos Rurais, Territórios Quilombolas e Imóveis Rurais (862,6 milhões de ha) superar a área do Território Brasileiro (850 milhões de ha) já indica as sobreposições existentes entre algumas dessas categorias, o que remonta ao histórico processo de grilagem de terras existente no Brasil, mas que se renova permanentemente. 3. E como os movimentos sociais do campo estão reagindo a tudo isso? Na contramão do avanço do agronegócio, a defesa da reforma agrária e da justiça no campo tem se associado a outras bandeiras, como a causa ambiental, a soberania alimentar e a luta pela democracia. Vale dizer que esta não é apenas uma luta brasileira, como nos lembra o sociólogo argentino Miguel Teubal: ...la lucha por la tierra y la reforma agraria hacia fines del siglo XX, comienzos del nuevo milenio, constituye una lucha contra el modelo de agricultura industrial o agroalimentario, impulsado por estas transnacionales que dominan tecnologías de punta, canales de comercialización de alimentos, grandes industrias alimentarias, así como también la producción de semillas y productos transgénicos. Surge en consecuencia que la lucha por la tierra es también una lucha en contra de un nuevo establishment surgido en escala mundial que incide sobre múltiples aspectos que atañen a la tierra y al sistema agroalimentario en su conjunto. Es, asimismo, una lucha 18 en contra de toda una cultura impulsada por ese establishment vinculado al mercado y a la mercantilización de la vida misma. (TEUBAL, 2009: 226/227) Neste sentido, a construção de uma reforma agrária agroecológica tem sido colocada como pauta central pelo MST e outros movimentos sociais do campo. Trata-se não apenas de mudar o padrão técnico dominante com a rejeição aos agrotóxicos, mas de construir outras práticas produtivas, outras formas de comercialização, outras relações de trabalho, outras relações sociedade-natureza que superem a fratura metabólica (FOSTER, 2005) instaurada pelo capital. A multiplicação das feiras da reforma agrária nos estados e a realização da Feira Nacional da Reforma Agrária, em São Paulo, já na sua terceira edição, espaços nos quais não apenas se vende diretamente a produção dos assentados, mas também se debate a reforma agrária e a agroecologia e se manifesta a cultura popular, são exemplos dessa construção. Assim também o são os Armazéns do Campo abertos em São Paulo, Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, espaços onde os alimentos saudáveis se misturam à música, à poesia e à política. Também a realização do Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas, em 2012, que reuniu 37 organizações da sociedade civil, incluindo dezenas de movimentos camponeses, indígenas e quilombolas, representou um importante passo neste sentido, com o conjunto desses movimentos assumindo a bandeira da reforma agrária agroecológica. Todos esses exemplos mostram que não é possível pensar a agroecologia dissociada da reforma agrária e do fortalecimento da agricultura camponesa. Enquanto o modelo agrário brasileiro for marcado pelo domínio da grande propriedade monocultora, a agroecologia não será mais que um fenômeno marginal. Infelizmente, no que diz respeito à reforma agrária pouco foi feito pelos sucessivos governos: As medidas de reforma agrária adotadas até o momento procuravam satisfazer exigências imediatas, neutralizar conflitos locais e,acima de tudo, evitar um confronto maior com os grandes proprietários de terra. Dessa forma, elas não representaram ações contundentes com o objetivo de transformar o sistema fundiário e suas assimetrias nas relações de poder. O efeito distributivo das políticas agrárias do Brasil, apesar de significativo em alguns municípios, tem tido um impacto mínimo sobre a estrutura agrária do país. Mesmo com as iniciativas promovidas no primeiro governo Lula, a reforma agrária brasileira é, em termos proporcionais, uma das menores de toda a América Latina. (...) No total, esse processo de reforma beneficiou 5% de toda a força de trabalho agrícola e distribuiu 11,6% do total de terras cultiváveis.” (CARTER, 2010: 60/61) https://encontrounitario.wordpress.com/ https://encontrounitario.wordpress.com/ 19 E não foi por falta de terras disponíveis, pois ainda existem hoje no Brasil 120 milhões de ha improdutivos autodeclarados e 172 milhões de ha de terras devolutas (Delgado, 2010). Ao invés de realizar a reforma agrária nas áreas onde se concentram as lutas pela terra, os sucessivos governos brasileiros empurram as famílias assentadas para a fronteira agrícola, no que denominamos de descolamento geográfico entre as lutas pela terra e a política de reforma agrária (Alentejano, 2004) e outros autores também têm destacado. ...os assentamentos de reforma agrária estão concentrados nas regiões de fronteira e nas partes mais empobrecidas do país (...) Mais de 70% das terras repartidas entre 1985 e 2006 estão na Amazônia, a dizer, na região Norte e os estados vizinhos de Mato Grosso e Maranhão. No entanto, a pressão mais intensa pela reforma agrária aconteceu nas regiões Sul e Sudeste do país. Entre 1988 e 2006, essas duas regiões do país – de fato as mais desenvolvidas e onde o valor das terras é mais alto – registraram a metade das ocupações de terra, mas só tiveram o assentamento de 9% das famílias, numa área total que apenas alcançou os 5% do território distribuído pelo Estado. (CARTER & CARVALHO, 2010: 294) E assim, chegamos ao século XXI, sem que a reforma agrária tenha sido realizada no Brasil, apesar de prometida por sucessivos governos, ditatoriais ou democráticos. Mas, a luta dos movimentos sociais rurais tampouco permitiu que deixasse de ser um espectro permanentemente presente na pauta política nacional, afinal: O debate em vigor no Brasil sobre a reforma agrária toca assuntos que ultrapassam a questão fundiária e o desenvolvimento rural. Os assuntos em pauta levantam problemas mais profundos da sociedade brasileira. Na alvorada do século XXI, a reforma agrária continua sendo parte de uma conversação complexa e contenciosa sobre o futuro do Brasil – suas promessas e necessidades, seus temores e sonhos. (CARTER, 2010: 71). E esta mobilização continua hoje presente, num contexto em que o governo Temer, articulado aos ruralistas, avança na desconstrução de direitos indígenas e quilombolas, favorece a grilagem e a privatização das terras dos assentamentos rurais, desmonta as políticas de assistência técnica, crédito, educação e tantas outras a reação torna-se ainda mais essencial. Foi esse o recado dado pelas crianças sem terrinha no I Encontro Nacional das Crianças Sem Terrinha, realizado em julho de 2018, que reuniu em Brasília mais de 1.000 crianças de 24 estados brasileiros para, através de jogos, brincadeiras, oficinas, música, teatro e poesia, debater reforma agrária, alimentação saudável e direito à educação, saúde e cultura para as crianças do campo. Sob o lema “Sem Terrinha em movimento: brincar, sorrir, lutar por reforma agrária popular”, as crianças realizaram ainda um passeio/manifestação na Esplanada dos Ministérios e na Praça dos Três Poderes, onde expressaram sua inconformidade com o fechamento de escolas no campo e exigiram reforma agrária e alimentação saudável. Uma das principais cantigas que ecoou pelos inóspitos e insensíveis 20 espaços da capital federal foi “Sou Sem Terrinha do MST/Acordo todo dia pra lutar você vai ver/Por terra, por escola, saúde, educação/Desse meu direito eu não abro mão”. Que a lição das crianças sem terrinha anime a todos a seguir na luta. Bibliografia ABRASCO. Dossiê Agrotóxicos. Rio de Janeiro, ABRASCO, 2012. ALENTEJANO, Paulo. Os conflitos pela terra no Brasil: uma breve análise a partir dos dados sobre ocupações e acampamentos.in CPT. Conflitos no Campo Brasil 2003. Goiânia: CPT, 2004. ALENTEJANO, Paulo, LEITE, Luiza Chuva Ferrari & PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Atlas dos conflitos no campo brasileiro. CPT/GeoAgaria-FFP-UERJ/Lemto-UFF. Goiânia/São Gonçalo/Niterói, 2013. ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Agroestratégias e desterritorialização – os direitos territoriais e étnicos na mira dos estrategistas dos agronegócios. In O Plano IIRSA na visão da Sociedade Civil Pan-Amazônica. 2009. CARVALHO, Horacio Martins de. O camponês, guardião da agrobiodiversidade. Curitiba, mimeo, 2013. CARTER, Miguel. Desigualdade social, democracia e reforma agrária no Brasil. In CARTER, Miguel. (org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2010. CARTER, Miguel. Desafiando a desigualdade: contestação, contexto e conseqüências. In CARTER, Miguel. (org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2010. CARTER, Miguel & CARVALHO, Horacio Martins de. A luta na terra: fonte de crescimento, inovação e desafio constante ao MST. In CARTER, Miguel. (org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2010. CUIN, Danilo Pereira. Geografia dos conflitos por terra no Brasil (2003-2017). TCC. Niterói, UFF, 2018. DELGADO, Guilherme Costa. O que significa agronegócio no Brasil. Brasília: IPEA, 2006. _________. A questão agrária e o agronegócio no Brasil. in CARTER, Miguel. (org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2010. _________. Do capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012. DELGADO, Nelson G. & LEITE, Sérgio P. Nota técnica: produção agrícola. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 2010. FONTES, Virginia.O Brasil e o capital-imperialismo – teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV, UFRJ, 2010. HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004. MEDEIROS, Leonilde S. de. A polêmica sobre a atualização dos índices de produtividade da agropecuária. 2010 (Consultado em http://www.mst.org.br/node/9041). PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter & ALENTEJANO, Paulo R. R.A violência do latifúndio moderno-colonial e do agronegócio nos últimos 25 anos. in CPT. Conflitos no Campo Brasil 2009. Goiânia: CPT, 2010. SAUER, Sérgio & LEITE, Sérgio Pereira. A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil. Rio de Janeiro: OPPA/CPDA/UFRRJ, 2010. http://www.mst.org.br/node/9041 21 TEUBAL, Miguel. 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