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JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL Direitos Sociais Samuel Vasconcelos Marques 4 Sumário 1. Direitos Sociais ..................................................................................51 1.1. Do Estado Liberal ao Estado Social ...............................................51 1.2. Mínimo existencial e reserva do possível .....................................55 1.3. Judicialização da Saúde .................................................................60 Conclusão ..........................................................................................62 Referências ........................................................................................63 JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 51 1. Direitos Sociais Os direitos sociais apresentam-se como espécies de direitos fundamentais, pre- vistos nos artigos 6º ao 11º do texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São estabelecidos a par- tir da noção de liberdades públicas que têm por finalidade a tutela dos menos favorecidos, garantindo-lhes condições mínimas para uma vida digna, sempre objetivando a igualdade. A prestação dos direitos sociais é entendida como uma “prestação posi- tiva”, pois gera ao Estado uma obriga- ção de fazer, uma vez que esta deve ser exercida por meio da implementação de políticas públicas e legislações que ga- rantam a igualdade dos indivíduos. A finalidade dos direitos sociais é atender, de forma precípua, os conside- rados insuficientes, assegurando-lhes uma situação de vantagem para garan- tia de igualdade. Visam também à pro- moção de políticas públicas voltadas à garantia da qualidade de vida, da educa- ção, da saúde, do transporte, da alimen- tação, do trabalho, do lazer, da moradia, da segurança, da previdência social, da proteção à maternidade, da infância e da assistência aos desamparados. Ademais, torna-se salutar desta- car que, conforme o disposto no §1º, do artigo 5º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as normas que definem os direitos e garantias fun- damentais são dotadas de aplicação imediata, ou seja, o Estado, como garan- tidor dos direitos sociais, tem o dever de aplicar de imediato tais direitos. Os direitos sociais têm por neces- sidade para garantia de sua aplicação imediata a adoção de postura positiva do Estado, exigindo para sua concretização, tanto a criação de atos legislativos quan- to atos administrativos, assim como a devida alocação de recursos financeiros. Diante disso, a teoria da reserva do possível, a qual se conceitua diante da existência de recursos financeiros do Estado e da razoabilidade da pretensão deduzida em face do poder público, pas- sou a ser utilizada como fator limitador das políticas públicas sociais. Ademais, ainda nesse quadro, dian- te da limitação de recursos públicos no atendimento de demandas sociais, nasce a dúvida sobre a legitimidade da atuação dos órgãos do Poder Judiciário na efetivação desses direitos e qual seria a extensão de sua atuação. Diante do exposto, apresenta-se como finalidade ao presente artigo a análise sobre o papel do Poder Judiciário na concretização e implementação dos direitos sociais necessários à satisfação do mínimo existencial, dando ênfase es- pecífica, na terceira seção, à problemá- tica de maior contextualização prática, que é a judicialização da saúde. 1.1 Do Estado Liberal ao Estado Social O Estado Liberal revelou-se após a Re- volução Francesa, no fim do Século XVIII, gerando mutação ao quadro político, social e econômico e, trazendo em seu campo de ideias, os princípios individua- FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE52 listas, apresentando-se em contrapon- to à nobreza, para garantia da liberdade pessoal. Apresentou-se como ascen- são da burguesia em face do absolutis- mo do Estado. A modalidade de Estado político ado- tada pelos liberais no Século XVIII é pau- tada, essencialmente, no princípio da não intervenção do Estado na economia, pois, assim, garantiria aos burgueses o poder de usar a economia a seu favor, por meio da prática da autorregulação do mercado, dispensando, assim, o poder do Estado sobre a estrutura econômica social. A proposta política liberal, idealizada por John Locke, no século XVIII, e por ou- tros tantos autores, foi seguida por uma onda de movimentos sociais que exigiam que o crescimento econômico tivesse re- percussão no desenvolvimento humano, contestando as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos. Paralelamente ao liberalismo políti- co, projetou-se o liberalismo econômico, cuja gênese fisiocrata foi vital. O fomento à liberdade econômica sufocou as demais esferas de liberdade, comprometendo a efetiva ideia de desenvolvimento. Na transição para o Século XX, após a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a década de 1920 foi marcada por forte avanço liberal, tendo os Estados Unidos como parâmetro. Após a crise de 1929, deu-se uma retomada intervencionista, a partir do modelo keynesiano. Para John Keynes, no contexto da época, o papel do Estado como interventor na econo- mia apresentava-se como fundamental: “Por isso, enquanto a ampliação das funções do governo, que su- põe a tarefa de ajustar a propen- são a consumir com o incentivo para investir, poderia parecer a um publicista do século XIX ou a um financista americano con- temporâneo uma terrível trans- gressão do individualismo, eu a defendo, ao contrário, como o único meio exequível de evitar a destruição total das instituições econômicas atuais e como con- dição de um bem sucedido exer- cício da iniciativa individual” (Ke- ynes, 1982, p. 289). Posteriormente a Segunda Gran- de Guerra (1939 – 1945), especialmente após a Conferência de Bretton Woods (1944), a política liberal foi defendida, em detrimento do avanço das propostas so- cialistas. Neste mesmo contexto, surgiu um movimento de internacionalização dos direitos humanos, que se efetivou a partir da Declaração Universal dos Di- reitos Humanos (1948), bem como com aprovação da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969): o Pacto de San José da Costa Rica. JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 53 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE54 Já a década de 1970 foi marcada pela propagação dos ideais da Escola de Chicago, destacando-se as ideias de Mil- ton Friedman. Este debate em torno do ideal tamanho do Estado se acirrou com o Consenso de Washington, no contexto da década de 1990, bem como, em tem- pos mais recentes, com as sequelas da crise econômica de 2008. Ficou estabelecido um movimento econômico de Estado chamado de Neo- liberalismo, no qual o papel do Estado, em relação ao modelo anteriormente adotado, foi diminuído, dando, assim, maior liberdade à livre iniciativa. Trata-se de modelo de Estado Regulador, onde o escopo do Estado deve ser pautado no equilíbrio entre os valores sociais do tra- balho e a livre iniciativa. Percebe-se que o papel do Estado nesse contexto está relacionado à pro- moção e efetivação dos direitos e con- dições necessárias para garantia de uma vida digna aos indivíduos, conforme ex- plicita Rawls: “As liberdades básicas e sua prioridade devem garantir igual- mente para todos os cidadãos as condições sociais essenciais para o desenvolvimento adequado e o exercício pleno e informado de suas duas faculdades morais na- quilo que referimos como os dois casos fundamentais”. (RAWLS, 2003, p. 158). Os dois casos fundamentais tra- tam, primeiro, com a capacidade moral do cidadão em ter senso de justiça e se refere à aplicação dos princípios da jus- tiça na estrutura básica e suas políticas sociais e, segundo, diz respeito à capa- cidade moral de ter, buscar e revisar uma concepção de bem ao longo da vida. (RAWLS, 2003, p.32). JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 55 Diante dos modelos econômicos de Estado e a perceptível transição, con- sagra-se o debate entre o crescimento econômico e o desenvolvimento huma- no, na promoção do equilíbrioentre os direitos relacionados ao ideal de liber- dade e dos direitos sociais, que têm por finalidade a busca pela igualdade. 1.2. Mínimo existencial e reserva do possível A concretização dos Direitos Sociais, como já entendido, é dependente de ação positiva prestada pelo Estado e, para isso, faz-se necessária a destinação de recursos materiais e humanos que, naturalmente, estão limitados à noção de reserva do possível. A teoria da reserva do possível en- contra gênese direito alemão, que, por meio de decisão proferida por sua Corte Constitucional, na década de 1970, em julgamento referente ao pleito de estu- dantes por vagas em universidades pú- blicas. A decisão tomada pela Corte foi baseada no artigo 12, §1º da Constituição alemã, que dispõe sobre a liberdade que todos os indivíduos têm para escolha de sua própria profissão e de escolha pelo seu lugar de formação. O Tribunal, ao proferir tal decisão, estabeleceu que a exigência feita sobre o Estado para atendimento de interesse específico em benefício do interessado só seria possível quando observados os limites da proporcionalidade e da razoa- bilidade. Na decisão proferida pelo Tribunal ficou estabelecido que só se pode exi- gir do Estado o atendimento de um de- terminado interesse, ou a execução de uma prestação específica em benefício do interessado, desde que observados os limites da razoabilidade e proporcio- nalidade; e a decisão completava o jul- gado relatando que os sujeitos à reserva do possível devem sopesar a racionali- FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE56 dade de cada caso concreto, refletindo sobre o aspecto econômico do Estado. (KRELL, 2002, p. 52-54). Diante de tal conclusão, o Tribu- nal decidiu que poderia colocar óbice a qualquer exigência acima de um pedido logicamente proporcional às pretensões sociais o que, nesse caso específico, a Administração Pública não estaria obri- gada a ofertar número ilimitado de vagas para o acolhimento de todos os candida- tos às vagas nas universidades públicas. Após a década de 1970, o estudo sobre a teoria da reserva do possível se desenvolveu na Europa até seu advento no âmbito jurídico brasileiro, que se de- senvolveu de forma mais sistematizada a partir dos anos 2000, juntamente com a teoria do mínimo existencial. No Brasil, a interpretação da teoria da reserva do possível foi mais objeti- va e restritiva do que a desenvolvida na Alemanha, pois a leitura proposta sobre a teoria é de que só se podem efetivar direitos na medida do possível, uma vez que a escassez de recursos é fator limi- tante para atuação estatal. Diferentemente da teoria adotada pelos países europeus, a reserva do pos- sível no Brasil foi tratada sob outra ótica, pois essa foi interpretada unicamente como uma “reserva financeira possível”, uma vez que tão somente a existência ou não de recursos públicos disponíveis apresentou-se como único limite para concretização dos direitos sociais. Tal di- ferença é justificada pelas significativas diferenças sociais, culturais e econômi- cas entre os países europeus e o Brasil. Sobre a adoção diferenciada da re- serva do possível no Brasil, Krell (2002, p. 108) diz: Devemos nos lembrar que os integrantes do sistema jurídico alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os di- reitos sociais num Estado de per- manente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 57 Na Alemanha – como nos paí- ses centrais – não há um grande contingente de pessoas que não acham vagas nos hospitais mal equipados da rede pública; não há necessidade de organizar a pro- dução e distribuição da alimenta- ção básica a milhões de indivídu- os para evitar sua subnutrição ou morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conse- guem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário de assis- tência social que recebem, etc. Diante da realidade econômica e social do Estado brasileiro, tal teoria é exercida como fator impeditivo à efetiva- ção dos direitos sociais perante a limita- ção do Estado para disposição de recur- sos estruturais financeiros. A Reserva do Possível consiste, então, na realiza- ção dos direitos sociais condicionada à quantidade de recursos disponíveis, sob pena de, ao dar enfoque a apenas um desses direitos, inviabilizar a prestação de outros. Em razão da falta de recursos para garantia integral de todos os direitos so- ciais, então, cabe ao Estado escolher, de acordo com suas prioridades e critérios, quais políticas públicas deve adotar. As políticas públicas que consistem na des- tinação do orçamento estatal, entretanto, encontram óbice na reserva do possível. Obviamente, mesmo dispondo dessa discricionariedade, as escolhas realizadas pelo Estado devem ser pautadas na ordem constitucional, que determina as diretrizes a se- rem seguidas com o propósito de satisfazer os objetivos fun- damentais nela previstos. Assim, cabe à Admi- nistração Pública, tendo em vista o caso concreto e os direitos conflitan- tes, buscar compati- FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE58 bilizá-los, procedendo a uma análise interpretativa que leva em conta a hie- rarquização desses direitos, fazendo prevalecer, dessa forma, os direitos considerados de maior relevância na- quele determinado momento. Nesse sentido, assim leciona Cano- tilho (2001, p. 448): O entendimento dos direitos so- ciais econômicos e culturais como direitos originários implica, como já foi salientado, uma mudança na função dos direitos fundamentais e põe como acuidade o problema de sua efectivação. Não obstante se falar aqui da efectivação den- tro de uma ‘reserva possível’, para significar a dependência dos direi- tos econômicos, sociais e cultu- rais dos ‘recursos econômicos’ a efetivação dos direitos econômi- cos sociais e culturais não se reduz a um simples ‘apelo’ ao legislador. Existe uma verdadeira imposição constitucional, legitimadora, entre outras coisas, de transformações econômicas e sociais na medida em que estas forem necessárias para efetivação desses direitos. Vale salientar, então, que a discricio- nariedade nas condutas do administra- dor não permite que ele opte por concre- tizar ou não um direito fundamental, mas sim que, ao realizar a distribuição de re- cursos, faça uma ponderação no tocante aos bens jurídicos em questão. Entretanto, não é possível deixar a cargo do Estado a decisão de implemen- tar ou não ao menos uma parcela míni- ma de cada direito social necessária para JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 59 garantir a vida digna de cada indivíduo, sob pena de atentar diretamente contra os direitos e garantias constitucionais. Tal parcela mínima de implemen- tação dos direitos sociais é chamada de mínimo existencial, que se trata da menor condição necessária para garantia de uma vida digna aos indivíduos a ser prestada pelo Estado. Como já dito anteriormente, o escopo dos direitos fundamentais na Constituição Federal é o de garantia da dignidade da pessoa humana. Sobre a noção de mínimo existen- cial, Canotilho (2001, p. 203) expõe: Das várias normas sociais, eco- nômicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem econômico-social portuguesa: todos (princípio da universalida- de) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos so- ciais (minimum core of economic and social rights) na ausência do qual o estado português deve se considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacional- mente impostas. Nesse sentido, o mínimo existencial é considerado como direito de cada indivíduo às con- dições mínimas para existência digna, que não pode ser objeto de interferência estatal, mas que necessita de ações afir- mativas desse. Apresenta-se, desse modo, um padrão míni- mo de efetivação dos direitos sociais pelo Estado. Vale destacar que oobjetivo maior do Estado é sempre concretizar integral- mente os direitos fundamentais sociais, pois estes são indispensáveis para a vida humana digna. Não sendo possível, em razão de ausência de recursos, invocan- do-se nesse caso a Reserva do Possível, pelo menos o Mínimo Existencial de cada um desses direitos dever ser garantido, porque possui prioridade nas destina- ções orçamentárias. Em síntese, a reserva do possível pode conviver pacificamente com o mí- nimo existencial, pois este atua como um limite para a invocação daquela, ou seja, a reserva do possível só poderá ser in- vocada quando realizado o juízo da pro- porcionalidade e da garantia do mínimo existencial com relação a todos os direi- tos em questão. Por final, o mínimo existencial sur- giu para proteção dos indivíduos por meio da efetivação de uma parcela das garantias constitucionais aptas a pro- porcionar ao ser humano uma vida com dignidade, frente a todo o descaso que presenciamos diariamente do poder público para com as necessidades mais urgentes dos cidadãos. No caso de haver qualquer desres- peito no tocante à concretização ao me- nos do núcleo essencial de determinado direito fundamental social, o Poder Ju- diciário deve ser acionado para intervir, pois, pelo caráter de indispensabilidade dos referidos direitos, eles gozam de proteção jurisdicional, conforme passa- remos a tratar. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE60 dos direitos das minorias. Os deveres constitucionais da atuação do Estado Juiz entendidos mediante o respeito aos princípios do devido processo legal, fun- damentação das decisões, duplo grau de jurisdição e julgamento em sessões públicas apresentam-se como mecanis- mos legitimadores desse papel. Em colaboração à noção constitu- cional estabelecida, Krell (2002, p. 93), aduz que: A Carta de 1988 inovou profun- damente a função a ser cumprida por parte do Terceiro Poder den- tro de um Estado Social, onde os parlamentos e governos de todos os níveis federativos, em geral, não fazem o suficiente para criar as condições materiais ade- quadas para garantir a efetivida- de dos direitos sociais e os prin- cípios da dignidade da pessoa humana e da erradicação da po- breza (artigos 1º, III, e 3º, III, CF). Notadamente, dentre as funções estatais do Poder Judiciário, não se en- contra competência para disposição de recursos e planejamento de políticas pú- blicas, nem mesmo o de intervenção so- bre as competências dos demais pode- res, como, por exemplo, os serviços de saúde, políticas de segurança públicas, assistência e previdência. Entretanto, caso haja por parte dos órgãos estatais o descumprimento dos deveres jurídico políticos, de modo que a efetividade dos direitos sociais seja com- prometida, deve ser atribuída ao Estado Juiz a função de coerção para execução das políticas públicas legalmente estabe- lecidas. Seguindo esse sentido, Ana Paula de Barcellos (2008, p. 230) diz que os ór- 1.3. Judicialização da Saúde No sistema constitucional brasileiro, os Poderes Legislativo e Executivo apresen- tam-se como funcionalmente responsá- veis quanto ao manejo dos recursos para prestação de políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais sociais. Tendo essa noção como ponto de partida, considerando também o fato de que a disponibilidade de recursos pú- blicos é insuficiente frente às inúmeras necessidades sociais é uma realidade que tem o condão de causar a insatis- fação dos indivíduos que, comumente, acabam procurando o Poder Judiciário para a resolução do impasse. Uma crítica em relação à efetivação dos direitos sociais por meio da atuação do Poder Judiciário é de que seria uma violação ao princípio constitucional da separação dos poderes, uma vez que a função de mediação do orçamento pú- blico compete aos Poderes Legislativo e Executivo. No entanto, apesar de o Poder Ju- diciário não dispor de meio de legitima- ção como os demais poderes, não se pode entender que esse é impedido de atuar nas questões referentes aos direi- tos sociais, uma vez que a compreensão do princípio da separação dos poderes destinou ao Poder Judiciário o papel de defesa da ordem constitucional, e, es- pecialmente, dos direitos fundamentais, que é caracterizado constitucionalmen- te, conforme o que determina o §1º, do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como de aplicação imediata. Ademais, o Poder Judiciário exer- ce função contramajoritária em defesa gãos do Poder Judiciário têm legitimidade para impor prestações de políticas públi- cas necessárias para garantia do mínimo existencial, correspondente à efetivação da dignidade da pessoa humana. Entretanto, ainda conforme Ana Paula de Barcellos (2008, p. 355), não é legítimo ao Poder Judiciário a imposição às condições ideais de desenvolvimento humano, haja vista que as decisões ju- diciais podem provocar distorção social, pelo fato de proporcionar a um grupo es- pecífico um benefício extra às custas da sociedade, fora da noção democrática, e em detrimento de um enorme contin- gente de pessoas que vivem em condi- ções de pouca dignidade, sem condi- ções de buscar auxílio do Judiciário. De certo, não cabe ao Poder Judi- ciário o papel de supressão de todas as carências sociais, tendo em vista que não conseguirá obter a efetividade pretendi- da diante da falta de condições materiais suficiente para tanto, como já entendido na teoria da reserva do possível, assim como em razão das decisões judiciais que podem satisfazer aos anseios de uns em detrimento de outros. Em acordo com o exposto, a teoria da reserva do possível pode ser consi- derada como dificuldade para concreti- zação dos direitos sociais pelo Poder Ju- diciário, frente à limitação dos recursos públicos para o atendimento de todas as demandas sociais, contudo, essa não pode ser levantada quando em relação à implementação de direitos sociais bási- cos e fundamentais ao núcleo essencial de dignidade levantado pela teoria do mínimo existencial. Com base em todo o exposto, le- vanta-se aqui a problematização da presente seção quanto à judicialização JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 61 da saúde, direito social básico e funda- mental ao direito constitucional de maior importância, o direito à vida, que não se dispõe a atender somente o anseio de existência do ser humano, sabendo que a incolumidade física, mental e social são fatores relevantes para a própria aferição da dignidade da pessoa. Desta forma, diante da essenciali- dade do direito à saúde e do crescente fenômeno da judicialização de políticas públicas em razão da ineficiência das ações dos Poderes Legislativo e Execu- tivo, surge a necessidade de analisar o papel do Poder Judiciário na execução de políticas públicas na área da saúde. Segundo estudo elaborado pelo Ins- tituto de Ensino e Pesquisa (Insper) para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre os anos de 2008 e 2017, o número de demandas judiciais relativas à saúde aumentou em 130%. A pesquisa mos- trou que o pleito pela saúde foi respon- sável por 498.715 processos de primeira instância distribuídos em 17 tribunais de justiça estaduais, e 277.411 processos de segunda instância, dentre 15 tribunais de justiça estaduais, conforme pode ser ob- servado nas figuras a seguir: TJ 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 TOTAL TJAC 0 0 3 9 44 116 217 175 257 266 1.087 TJAL 2 441 1.197 1.103 1.929 1.169 640 1.623 2.935 2.871 13.910 TJCE 159 954 906 1.353 2.410 4.086 4.654 14.759 5.843 28.025 63.149 TJDFT 0 0 1 3 10 26 44 136 585 2.663 3.468 TJES 3 3 8 9 10 31 24 31 46 67 232 TJMA 555 2.244 4.106 4.154 3.438 2.355 2.589 2.186 2.238 2.411 26.276 TJMG 36 376 627 762 1.159 1.836 1.998 2.268 3.625 5.546 18.233 TKMS 39 53 701 1.188 1.986 2.908 4.046 3.940 5.684 5.825 26.370 TJMT 452 2.006 2.362 1.995 2.262 2.151 2.677 1.508 1.495 1.123 18.031 TJPE 529 2.241 2.474 3.245 8.228 12.206 5.531 5.041 6.011 6.261 51.767 TJPI0 7 7 7 12 23 40 67 41 61 265 TJRJ 36.908 18.390 3.954 23 15 41 115 182 122 173 59.923 TJRN 266 1.406 2.106 2.519 2.484 2.514 2.811 2.483 2.698 4.092 23.379 TJRO 0 0 180 266 579 1.231 308 455 3 0 2.982 TJSC 182 235 388 485 899 1.970 4.561 7.010 8.387 12.303 36.420 TJSP 2.317 3.746 7.729 9.379 14.022 16.531 19.627 21.518 21.356 23.465 139.690 TJTO 5 1 4 42 103 180 254 471 584 600 2.244 TOTAL 41.453 32.103 26.753 26.502 39.590 49.374 50.136 63.853 61.910 95.752 487.426 Figura 1: Número de Processos em primeira instância 2008-2017 Fonte: Relatório Analítico Propositivo Justiça e Pesquisa - Judicialização da saúde no Brasil: o perfil das demandas, causas e propostas de solução (INSPER, 2019) TJ 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 TOTAL TJAC 1 0 12 45 17 45 140 70 112 207 649 TJAL 2 12 443 1.387 1.510 855 904 393 222 624 6.352 TJCE 488 5.172 4.322 5.749 4.535 3.405 2.678 3.709 4.791 5.092 39.941 TJES 0 1 2 6 54 184 155 157 194 188 941 TJMA 0 0 0 96 232 373 656 678 606 509 3.150 TJMG 647 2.439 3.235 4.265 6.537 6.445 7.404 8.612 9.453 10.397 59.434 TKMS 13 93 966 1.186 1.209 1.967 2.381 2.067 2.685 2.950 15.517 TJMT 198 2.207 2.813 2.555 0 0 0 0 146 558 8.477 TJPE 307 1.828 2.206 2.412 2.546 1.820 2.618 3.707 4.349 3.810 25.603 TJPI 0 1 0 20 5 35 62 41 70 88 322 TJRJ 1.293 9.139 7.780 8.873 9.434 10.326 11.423 11.840 10.454 12.517 93.079 TJRN 0 0 0 0 0 0 39 197 322 397 955 TJRO 15 38 73 52 76 44 14 26 27 25 390 TJSC 5 1.081 1.101 838 954 1.034 1.110 1.946 3.191 3.067 14.327 TJTO 0 0 0 1 25 45 64 135 185 229 684 TOTAL 2.969 22.011 22.953 27.485 27.134 26.578 29.648 33.578 36.807 40.658 269.821 Figura 2: Número de Processos Segunda Instância 2008-2017 Fonte: Relatório Analítico Propositivo Justiça e Pesquisa - Judicialização da saúde no Brasil: o perfil das demandas, causas e propostas de solução (INSPER, 2019) FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE62 Ademais, ainda segundo a pesquisa do Insper, os números tiveram reflexos diretos no orçamento do Ministério da Saúde, que registrou um crescimento, em sete anos, de aproximadamente 13 vezes nos gastos com demandas judiciais, al- cançando R$ 1,6 bilhão no ano de 2016. Ao verificar o número de ajuizamen- to de ações, fica evidente que o papel do Poder Judiciário gera uma interferência na esfera orçamentária e consequente- mente, ao assegurar o direito fundamen- tal à saúde para alguns, pode, por outro lado, estar embaraçando outro direito fundamental à sociedade, haja vista a li- mitação dos recursos públicos. Dessa maneira, a fim de diminuir as discrepâncias que possam derivar da efetivação dos direitos sociais pelo Poder Judiciário, com o reconhecimento de um direito para apenas uma pessoa em de- trimento de toda sociedade, a preserva- ção dos direitos sociais deve ser realizada mediante o equilíbrio entre a característi- ca constitucional dos direitos fundamen- tais quanto a aplicação imediata e a teoria da reserva do possível, garantindo a má- xima eficácia possível em consideração à estrutura do Estado, mas sempre objeti- vando a preservação do mínimo existen- cial à dignidade da pessoa humana. Conclusão Buscou-se, inicialmente, na presente pesquisa, a construção de uma base histórica dos direitos sociais no desen- volvimento do papel do Estado, pois a contextualização temporal é necessária para essência dos direitos fundamen- tais, haja vista que a característica da historicidade desses direitos remonta a ideia de que seus conceitos estão em constante evolução. Observou-se que, não obstante ne- cessitarem de legislações e atos gover- namentais, os direitos sociais encontram maior dificuldade em sua concretização diante da insuficiência de recursos pú- blicos para atender todos os anseios sociais. A teoria da reserva do possível, fundamentada na de disponibilidade de recursos estatais e na razoabilidade da pretensão deduzida em face do Poder Público, passou a ser aplicada como principal fator limitador às políticas esta- tais sociais, sobretudo perante a atuação do Poder Judiciário. É sabido que compete aos Poderes Legislativo e Executivo a disposição e aplicação dos recursos públicos, as- sim como o planejamento e execução dos serviços e políticas públicas. Porém, quando a ineficiência na prestação de po- líticas públicas é causa para comprome- timento da eficácia dos direitos sociais, nasce o papel do Poder Judiciário para imposição de efetivação de prestações necessárias para garantia das condições mínimas de dignidade à sociedade. Em tal contexto, a teoria da reserva do possível pode apresentar limite à efe- tivação dos direitos sociais pela atuação do Poder Judiciário, diante da escassez de recursos públicos, porém torna-se necessária quando a discussão se tratar de direitos básicos essenciais para ga- rantia do mínimo existencial. De tal modo, o papel dos órgãos do Poder Judiciário é de garantir a máxima eficácia aos direitos socias, mediante o equilíbrio entre a teoria da reserva do possível e da característica da aplicação imediata dos direitos e garantias funda- mentais, de modo que não beneficie um indivíduo em detrimento da sociedade, mas sempre visando preservar as con- dições mínimas para uma existência hu- mana digna. Por fim, conclui-se que o papel do Poder Judiciário na efetivação dos direi- tos fundamentais, garantindo um equilí- brio saudável entre a reserva do possível e o mínimo existencial, é característica de um Estado Social, pois garante se- gurança aos valores fundamentais da igualdade, da cidadania e da justiça so- cial, concretizando, assim, o maior valor protegido pela Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana. JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 63 Referências BARCELLOS, Ana Paula de. 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Filmes, desenhos animados, histórias em quadrinhos e videogames eram inspirações para desenhar. Integra o Núcleo de Design (NDE) da Fundação Demócrito Rocha, onde faz o que mais gosta: imaginar, criar e ilustrar. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) Presidência: João Dummar Neto Direção Administrativo-Financeira:André Avelino de Azevedo Gerência Geral: Marcos Tardin Gerência Editorial e de Projetos: Raymundo Netto Análise de Projetos: Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Gerência Pedagógica: Viviane Pereira Coordenação de Cursos: Marisa Ferreira Design Educacional: Joel Bruno Secretaria Escolar: Thifane Braga | CURSO JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL Concepção e Coordenação Geral: Cliff Villar Coordenação Executiva: Ana Cristina Barros Coordenação Adjunta: Patrícia Alencar Coordenação de Conteúdo: Gustavo Brígido Editorial e Revisão: Verônica Alves Edição de Design: Amaurício Cortez Projeto Gráfico e Diagramação: Welton Travassos Ilustração: Karlson Gracie Coordenação de Produção: Gilvana Marques Produção: Juliana Guedes Análise de Projeto: Narcez Bessa Marketing e Estratégia: Andrea Araújo, Kamilla Damasceno e Wanessa Góes Performance Digital: Alice Falcão | TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ Presidente do Tribunal de Justiça do Ceará: Desembargador Washington Luís Bezerra de Araújo Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Ceará: Desembargadora Maria Nailde Pinheiro Nogueira Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça do Ceará: Desembargador Teodoro Silva Santos | ISBN 978-65-86094-00-8 Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. 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