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AT 1 2 32 S U M Á R IO 3 INTRODUÇÃO 4 UNIDADE 1 - O interacionismo: considerações sobre o desenvolvimento infantil 13 UNIDADE 2 - Uma mudança necessária: a educação infantil frente ao ensino fundamental de 09 anos 17 UNIDADE 3 - As classes de alfabetização sob uma perspectiva construtivista sócio-interacionista 26 UNIDADE 4 - O conhecimento matemático, histórico, geografico, artístico e o letramento 35 UNIDADE 5 - Geografia, história e ciências nas classes de alfabetização 38 UNIDADE 6 - As artes e a alfabetização 41 UNIDADE 7 - O professor alfabetizador 44 REFERÊNCIAS 2 33 INTRODUÇÃO Vem sendo cada vez mais frequente, en- tre os profissionais de educação infantil, a tentativa de caracterizar com maior clareza a natureza da instituição voltada ao atendi- mento de crianças e 0 a 6 anos, e os aspec- tos que perpassam a construção dessa eta- pa de escolaridade na vida do ser humano. (Kramer et al. (1989), Haddad (1991), Ma- chado (1991), Campos et al. (1989, 1993). A educação infantil passou por mudan- ças significativas desde a promulgação da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educa- ção(Lei 9394/96). A inclusão da mesma no panorama da educação básica representa um importante avanço nas responsabili- dades públicas sobre essa etapa de ensino uma vez que a Lei 5692/71, foi omissa em relação à escolaridade de crianças de 0 a 6 anos. Na atual lei, a seção II em seus artigos 29,30 e 31(alterados pela Lei 11.274/06), são direcionadas a esta etapa da educação e apresentam como finalidade o desenvol- vimento integral da criança de até seis anos de idade 1 , em seus aspectos físico, psicoló- gico, intelectual e social. Há que se conside- rar que a primeira etapa da educação básica está garantida e isso torna a discussão mais fecunda e necessária. A educação infantil coaduna novos obje- tivos a partir da década de 90. Na sociedade atual há que se discutir aspectos referen- tes à constituição de uma nova infância, e repensar que sentidos tem a educação para essa etapa de escolaridade. È fundamen- tal que se identifiquem as concepções de aprendizagem e desenvolvimento presen- tes nas teorias que sustentam a educação infantil, bem como o papel da alfabetização nas práticas que se realizam cotidianamen- te. Nesse sentido, esta apostila tem como objetivos: Entender a perspectiva sociointera- cionista dentre as concepções teóricas que sustentam a educação infantil; Entender o papel da educação infantil com a inserção da criança de 0 a 6 anos no ensino fundamental; Possibilitar a reflexão sobre a impor- tância dos processos sociais e culturais pe- los quais a alfabetização é construída. Refletir sobre o processo de letramen- to de crianças de 0 a 6 anos; Defender a especificidade do letra- mento de crianças de 0 a 6 anos numa pers- pectiva que considere o desenvolvimento cognitivo,afetivo e a interação social. Identificar a interação entre o conheci- mento matemático, histórico , geográfico e artístico e a construção social da criança de 0 a 6 anos; Perceber a importância da geografia, da história e das artes na formação da críti- ca infantil; Identificar a especificidade do trabalho do profissional que atua na Educação Infan- til. 1-A entrada de crianças no ensino fundamental com 6 anos de idade já vem sendo realizada em muitos estados. A Lei nº. 11.114/05(que estabelece o ingresso obrigatório de crianças com 6 anos no primeiro ano do ensino fundamental) e a Lei 11.274/06(que amplia esta etapa escolar para 09 anos de duração), vem sendo objetos de intensos e controvertidos debates nos sistemas de ensino. 4 54 UNIDADE 1 - O interacionismo: considerações sobre o desenvolvimento infantil A ênfase do presente texto volta-se, em primeiro lugar, à análise de forma como a criança e o conhecimento interagem e transforma-se mutuamente, a partir da delimitação de pressupostos localizados na perspectiva sócio-interacionista. Em um segundo momento investiga-se algumas das interações que se evidenciam na instituição de educação infantil, na ten- tativa de clarear como se mesclam, neste espaço, componente cognitivo e afetivo, conceitos cotidianos e científicos, permi- tindo aos sujeitos envolvidos uma elabora- ção peculiar. Assumindo-se a perspectiva sócio-inte- racionista pretende-se justificar a neces- sidade de propiciar às crianças interações das mais diferentes naturezas, pois diver- sidade e a heterogeneidade são elemen- tos indispensáveis no enriquecimento do universo infantil. O desenvolvimento do ser humano no período de 0 a 6 anos é determinante de suas condutas na vida adulta. Nessa fase, acontece um processo de desenvolvimen- to que não se repetirá durante seu desen- volvimento. Desde seu nascimento, a criança neces- sita de cuidados que vão se diversificando à medida que cresce. Ao mesmo tempo em que aumentam suas demandas aumenta a capacidade de oferecer respostas aos estí- mulos externos. Nesse sentido, podemos pensar em dois processos que se interpenetram: a matu- ração(inscrita geneticamente) e a estimu- lação social (que é proveniente do contato com o mundo que a cerca). De início, afir- ma-se que a criança é um ser social, o que significa dizer que seu desenvolvimento se dá entre outros seres humanos, em um es- paço e tempo determinados socialmente. Vygotsky (1989a), afirma que é na in- teração social que a criança entrará em contato e se utilizará de instrumentos me- diadores,desde a mais tenra idade. A ne- cessidade e o desejo de decifrar o universo de significados que a cerca leva a criança a coordenar ideias e ações a fim de solu- cionar os problemas que se apresentam. Quando é alimentada pelo adulto, ouve uma canção cantada por ele, rola sozinha uma bola no chão, observa-se no espelho, é acariciada por outra criança ou tem um brinquedo subitamente arrancado de sua mão, diferentes processos de elaboração mental se fazem presentes, concomitan- temente, na criança. Inicialmente, estas funções apresentam-se de forma embrio- nária. É a vivencia no meio humano, na ati- vidade instrumental, na (e pela) interação com outros indivíduos, que permitirá o de- senvolvimento, na criança, de um novo e complexo sistema psicológico. Para Vygotsky (1989b), estas forma- ções complexas se agrupam em dois ní- veis, com funções distintas, em interação permanente denominadas por este autor como processos elementares (sensações, percepções imediatas, emoções primiti- vas, memória direta) e processos comple- xos ou superiores (percepção categorial, memória lógica, atenção focalizada, emo- ção e imaginação criadora, auto-regulação da conduta). 4 55 É a possibilidade elaboração das funções psicológica superiores que fará com que o bebê humano dê um salto qualitativo dian- te dos outros mamíferos. Vygotsky aponta que o desenvolvimento das funções psi- cológicas superiores não se dá aprioris- ticamente, ou como simples movimento reflexo, mas sim através de uma atividade do sujeito, atividade esta de apropriação e utilização de instrumento e signos em um contexto de interação, instrumentos e sig- nos que, por sua vez, farão o papel de me- diadores desta atividade, das interações. A auto-regulação da conduta e a transfor- mação ambiental, frutos da construção da consciência, surgem como a possibilidade advinda da utilização de instrumentos so- cialmente construídos. Voltando ao ponto inicial, Vygotsky (1989 c) parte de uma concepção de indivi- duo geneticamente social, o crescimento e o desenvolvimento da criança estão, nesta perspectiva, intimamente articulados aos processos de apropriação do conhecimen- to disponível em sua cultura __ portanto, ao meio físico e social __ ou seja, aos pro- cessos de aprendizagem e ensino. Para o sócio-interacionismo,aprendi- zagem, ensino e desenvolvimento são processos distintos que interagem diale- ticamente. Eles não existem de forma in- dependente, mas possibilitam a conversão de um com o outro, isto é, a aprendizagem promove o desenvolvimento e este anun- cia novas possibilidades de aprendizagem. Por sua vez, sem a presença de parceiros __ indivíduos que se unem um torno de objetivos comuns, dispostos a trocar algo entre si, realizando juntos e ao mesmo tempo uma atividade na qual o movimento de dar e receber são permanentes entre os envolvidos __ a aprendizagem não é pos- sível, por que o conhecimento passa, ne- cessariamente, pela mediação do outro. ”O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa”. Esta “outra pessoa” pode ser entendida como sendo o parceiro mais próximo, aque- le que ensina: um companheiro mais expe- riente, um adulto, um educador leigo ou profissional, um professor. Mesmo no caso do conhecimento dado pela experiência direta da criança esta experiência ocorre em um determinado contexto físico e so- cial e, portanto, o “outro” se faz aí presen- te sob a forma de tradição hábito, normas ou valores, enfim, sob a forma de cultura, mediador sempre presente na situação de interação. Todavia, o contato entre parceiros nem sempre resulta em aprendizagem, ensino ou desenvolvimento. Onde, quando e como ocorre a interação que promove desenvolvimento? Vygotsky (1985), ao postular o concei- to de zona de desenvolvimento proximal, define-a como sendo “a diferença entre o nível de resolução de problemas sob a direção e com ajuda dos adultos e aquele atingindo sozinho” desta forma, entende- -se que __ em um plano teórico, portanto virtual __ existem dois níveis de desen- volvimento: o real e o proximal. O primeiro (real) faz parte do sujeito, enquanto pro- cesso intrapessoal, na forma de conheci- mentos apropriados e faz parte do social enquanto conhecimentos historicamente acumulados. O segundo (proximal) só se concretiza, só é ativado e se transforma em possibilidade de vir a tornar-se desen- volvimento real em uma situação de inte- ração, na qual se encontrem parceiros com níveis diferenciados de conhecimento, ou 6 7 seja, em uma interação onde a criança es- teja “sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capa- zes”. Na interação social, as formações das funções psicológicas superiores aparecem como o elemento-chave que, articulando ao movimento desenvolvimento/aprendi- zagem/ensino no espaço virtual da zona de desenvolvimento proximal, torna-se o su- porte fundamental para a elaboração tan- to de novas apropriações de conhecimen- tos inéditos, quanto para a confirmação de conhecimentos previamente difundidos. A ação de conhecer se dá no movimento inter e intrapsicológico, no vaivém dialé- tico entre os parceiros: na busca de solu- ções, na competição, na cooperação. Interação, cognição e o lugar da emoção A análise de vertente sócio-interacio- nista permitiu identificar, até o presente momento, o movimento (dialético), o es- paço “geográfico” (meio físico e social-his- tórico, funções psicológicas elementares e superiores, zona de desenvolvimento pro- ximal) e alguns elementos (instrumentos mediadores, aprendizagem, ensino, de- senvolvimento), presentes nas interações adulto/criança, criança/criança. Mas, o que dizer dos elementos movidos pela força do interjogo razão/emoção? Na realidade, a perspectiva sócio-inte- racionista pretende-se unitária ao analisar os processos psíquicos humanos. Nesta li- nha de pensamento, uma teoria que fale só da razão confere a esta um caráter metafí- sico, da mesma forma que aquela que fala só da emoção. Para Vygotsky (1989d), a separação intelecto e afeto enquanto ob- jetos de estudo é uma das principais defi- ciências da psicologia tradicional, uma vez que esta apresenta o processo de pensa- mento dissociado da plenitude da vida, das necessidades e dos interesses pessoais, das inclinações e dos impulsos daquele que pensa. O sócio-interacionismo afirma que o co- nhecimento só é construído quando de- sejos, interesses e motivações aliam-se à percepção, memória, pensamento, imagi- nação e vontade unem-se em uma ativida- de cotidiana dinâmica entre parceiros (Vy- gotsky, 1986, 1991 a, 1991b). Ao analisar o desenvolvimento infantil, Vygotsky (1986) desmistifica o papel da emoção comumente atribuída às crianças pequenas, assim com sinaliza para o fato de que as emoções infantis diferenciam-se qualitativamente (e não quantitativamen- te) das dos adultos. No entender deste autor, ao longo do processo de desenvol- vimento, o acionamento e a forma de atu- ação das funções é que transformam, passando de um plano elementar a outro complexo. A emoção não é vista como algo “natu- ral” da criança que nasce com ela ou que faz parte da sua natureza enquanto espécie. Vygotsky admite que a manifestação ini- cial da emoção é (como de resto são, tam- bém, as outras manifestações da criança) parte da herança biológica. Entretanto, a emoção, junto com as demais funções psicológicas, nas interações sociais, perde seu caráter instintivo para dar lugar a um nível mais complexo de atuação do ser hu- mano, consciente e autodeterminado. Ao enfatizar que só é possível com- preender o papel da emoção no contexto 6 7 dinâmico da vida, Vygotsky evidencia o papel do meio humano nas emoções. Afir- ma que os processos emotivos são plenos de significado e sentido, não determinados exclusivamente pelo principio do prazer, mas, sobretudo pelo fato de que o próprio prazer, na infância, muda de posição entre as outras funções psíquicas. Se o prazer final pode ser, em determinado momento do desenvolvimento, o motor principal da ação, em outro momento o prazer pode es- tar vinculado à própria ação se realizando, ou ainda à antecipação mental da realiza- ção da ação. De fato, a emoção descrita apenas como busca e satisfação de necessidade, de pra- zer, torna-se extremamente empobrecida. Vygotsky segue além em seu raciocínio, vinculando emoção/imaginação. Inicial- mente, refuta a tese de que a imaginação seja fruto de uma atividade mental incons- ciente, de caráter não-social, não-comuni- cável. Em seguida, estabelece um elo entre o desenvolvimento da imaginação e o da linguagem, mostrando o quanto esta libe- ra a criança de suas impressões imediatas, permitindo-lhe agir em um plano desvincu- lado da realidade, essencial para atividade da imaginação. Por fim, relaciona emoção e imaginação, afirmando que a atividade da imaginação está estreitamente ligada ao movimento dos sentimentos, a ponto de explicações lógico-racionais serem per- feitamente aceitáveis no plano emocional, embora não tenhamos um domínio especí- fico da lógica dos sentimentos. Cabe-nos aqui relacionar imaginação e pensamento, para novamente voltar à emoção, componente integrante e in- dispensável dos processos mentais. Para Vygotsky “...o correto conhecimento da realidade não é possível sem um certo elemento de imaginação, sem o distan- ciamento da realidade, das impressões individuais imediatas, concretas, que re- presentam esta realidade nas ações ele- mentares da nossa consciência”. Com esta afirmação, Vygotsky está, também, fazendo uma distinção entre o conhecimento advindo da experiência ime- diata, e aquele construído pela imaginação e que se articulam uns aos outros, possibi- litando, por sua vez, uma penetração mais profunda na própria realidade. Vygotsky (1989e), ao desenvolver uma teoria sobre a formação dos conceitos, mostra como o conhecimento, transforma se em conceito a partir de um movimento de elaboração complexo. O autor afirma que um conceito não é apenas uma formação fossilizada eimutá- vel, “mas sim uma parte ativa do processo intelectual, constantemente a serviço da comunicação, do entendimento e da solu- ção de problemas”. Ao analisar os métodos tradicionais de estudo da formação de conceitos na infân- cia, Vygotsky (1989f) contesta as teorias que descrevem a criança como um adulto em miniatura ou como um ser que evolui acumulando e reproduzindo conhecimen- tos. Afirma que a condição de compreen- são e comunicação são partilhadas, desde o nascimento, por adultos e crianças e que, por sua vez , a formas de funcionamento do pensamento infantil diferem das do adulto “em sua competição, estrutura e modo de operação”. Vygotsky explica que os conceitos não nascem com a criança, nem nela se cons- tituem de imediato, sendo fruto de um longo processo que se inicia “na fase mais 8 9 precoce da infância”. O desafio da criança é o de se destacar das situações e objetos, de destacar objetos entre si, decompor, analisar, sintetizar objetos e situações, ge- neralizar o aprendido em utilização conco- mitante ou posterior. Ao enfatizar que a criança, desde peque- na, tem condições para elaborar “equiva- lentes funcionais de conceitos”, Vygotsky confere às interações que se processam na infância uma importância fundamental. Este autor aponta para a condição da crian- ça enquanto sujeito de seu processo e para a capacidade de abstração, ainda que sin- crética, subjetiva e emergencial. A carac- terística principal do pensamento infantil, que o distingue do pensamento adulto, não é a falta de coerência, mas a “ausência de um certo distanciamento da experiên- cia imediata __ (e não o sincretismo visto como um meio-termo entre a lógica dos sonhos e a realidade) __ que explica as pe- culiaridades do pensamento infantil”. Se um conceito se forma a parir de uma atividade intelectual e de uma atividade instrumental, é preciso, inicialmente, res- saltar que estes dois tipos de atividade interagem dialeticamente. De um lado, en- quanto atividade intelectual, os conceitos constituem-se intimamente articulados aos processos de formação das funções psicológicas elementares e superiores. De outro lado, enquanto atividade instrumen- tal, os conceitos originam-se nas ativida- des instrumentais partilhadas, isto é, nas interações sociais dirigidas à resolução de problemas. Nesta perspectiva os conceitos têm sua gênese nos sujeitos envolvidos na intera- ção, enquanto movimento intrapsicológi- co, mas também __ e ao mesmo tempo __ interpsicológico. O conceito é fruto da inte- ração e não (somente) do sujeito. Decorre daí uma serie de elementos que não apenas se encontram no mesmo espa- ço “geográfico”, mas que nele se movimen- tam, modificando-se mutuamente. Sa- lienta-se, entre estes elementos e forças em movimento, o papel do signo, “como o meio pelo qual conduzimos as nossas ope- rações mentais, controlamos os seus cur- so e as canalizamos em direção à solução do problema que enfrentamos”. Ao analisar o processo de formação dos conceitos. Vygotsky (1989b) admite uma diferenciação entre os conceitos cotidia- nos ou espontâneos e os conceitos cientí- ficos, marcando essa distinção ao caracte- rizar a formação de um conceito cientifico com sendo um ato de pensamento com- plexo, que pressupõe atenção deliberada, memória lógica, capacidade de abstração e domínio dos signos. Já os conceitos cotidianos são aqueles adquiridos pela experiência direta do su- jeito e caracterizam-se pela ausência de generalização, planejamento e delibera- ção. Vale a pena esclarecer que quando Vygotsky distingue os conceitos cotidia- nos dos científicos, não está atribuindo a estes últimos a característica de conheci- mentos vinculados à produção cientifica acadêmica, ou aqueles armazenados pela cultura, mas sim o caráter de conhecimen- to advindo da elaboração intelectual a par- tir da e na atividade instrumental, dirigida à resolução de problemas. Embora diferentes quanto a formas de se desenvolverem e funcionarem, Vygot- sky admite a coexistência e a interação dos dois tipos de conceitos, em um processo único: o processo de “formação de concei- 8 9 tos”. Neste processo unitário, os conceitos organizam-se em distintos níveis de gene- ralização e não pelo acúmulo ou substitui- ção de uns por outros. O aspecto de que cada conceito faz parte de dois contínuos: um representando o conteúdo objetivo ao qual se refere, o outro, o processo de ela- boração deste conteúdo. Nesta perspec- tiva, é impossível desvincular, conteúdo de processo, fato que confere ao conheci- mento objetivo uma dimensão qualitativa, organizada de forma diferenciada pelos sujeitos. Outro aspecto, a ser destacado é o poder conferido ao processo pela articulação dos conceitos entre si e sua organização em níveis de generalização cada vez mais am- plos. Isso confere ao sujeito a agilização do pensamento e maior liberdade intelectual. Sendo assim, passa-se do conhecimen- to empírico ao conhecimento de natureza abstrata. Desta interação surge a possibi- lidade de inserção dos conhecimentos em uma estrutura conceitual, de seu uso deli- berado, modificando-se a relação funcio- nal entre um e outro tipo de conhecimento. Com esta explicação, entendemos que a formação dos conceitos denominados como científicos por Vygotsky tem impor- tância fundamental na constituição e de- senvolvimento dos seres humanos. Sem eles, os conhecimentos se restringiram às experiências imediatas dos indivíduos, permanecendo em um estágio elementar quanto ao seu uso consciente e premedi- tado. Há inda que considerar que a apropria- ção dos conceitos, via experiência direta, é acessível a qualquer individuo, visto ocor- rer nas experienciais interacionais imedia- tas, por um impulso instantâneo ou intuiti- vo. Já os conceitos que exigem um esforço de elaboração de articulação, necessitam não só a ação imediata propriamente dita, mas a utilização de conhecimentos pré- vios que possibilitem a ação, nem sempre possíveis de terem sido apropriados pela experiência direta. Determinados conheci- mentos exigem a capacidade de abstração e de reflexão sobre as questões que se co- locam, um movimento simultâneo de ação e avaliação da ação. Ou seja, um distancia- mento da ação na própria ação. A consequência imediata destas consi- derações é a constatação de que os con- ceitos exigem condições peculiares para sua apropriação, não sendo resultantes de qualquer tipo de interação. Para que sua apropriação venha a ocorrer é imprescindí- vel a presença de um mediador que enten- da serem determinados conhecimentos necessários àqueles sujeitos, que possibi- lite a realização de certas atividades pelas crianças, assim como se certifique de que a elaboração entre os parceiros tenha, de fato, ocorrido. Quando o adulto está atento a este fato, ele propicia esta articulação. Quando não, o encaminhamento da interação fica a de- sejar e impossibilita a construção do co- nhecimento. Finalmente, é preciso sublinhar que é da interação de diferentes tipos de co- nhecimentos, sua elaboração pelas crian- ças em termos de conceitos nas distintas sociedades e especialmente, nas institui- ções de caráter educativo, que se abrem novas possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem individuais e sociais, de transformação e superação dos níveis an- teriores destes conhecimentos. A elaboração de conceitos pela criança 10 11 irá depender da diversidade, não só quan- titativa, mas, especialmente, qualitativa, das experiências interacionais que viven- ciará nos espaços institucionais nos quais se encontrar. Daí a necessidade de nos determos no estudo das interações que se evidenciam na instituição de educação infantil, a fim de delimitar alguns de seus elementos componentes,bem como o va- lor destas interações em termos de apro- priação e elaboração de conceitos pela criança. Educação infantil e sócio-in- teracionismo A formulação de uma perspectiva só- cio-interacionista nos leva a sublinhar a impossibilidade teórica e prática de des- vincular as dimensões desenvolvimento, aprendizagem e ensino; cognição e afeto; conceitos espontâneos e científicos visto comporem, de forma dinâmica e dialética, o sistema cognitivo. Na instituição de educação infantil, a perspectiva sócio-inte¬racionista requer que se atribua não somente um papel ao adulto/profissional de educação, mas tam- bém um respectivo papel à criança/edu- cada. Isso requer que os conhecimentos presentes nas interações sejam analisados levando-se em conta a simultaneidade de seus componentes cognitivos, afetivos e sociais. Segundo Vygotsky, a evolução intelec- tual é caracterizada por saltos qualitativos de um nível de conhecimento para outro. A fim de explicar esse processo, ele desen- volveu o conceito de “zona de desenvol- vimento proximal”, (ou na tradução mais recente de seu livro “zona de desenvolvi- mento imediato”), que definiu como a “dis- tância entre o nível de desenvolvimento real, (que se costuma determinar através da solução independente de problemas) e o nível de desenvolvimento potencial, (determinado através da solução de pro- ble¬mas, sob a orientação de um adulto, ou em colaboração com companheiros mais capazes). Dessa forma, a zona proximal é a que separa a pes¬soa de um desenvolvimento que está próximo, mas ainda não foi alcan- çado. Vygotsky chama de desenvolvimento real o que a criança é capaz de fazer sozi- nha, por já ter um conhecimento consolida- do. Domina-se a adição, por exemplo, esse é um nível de desenvolvimento real. Já a zona de desenvolvimento proximal compreende a distância entre o desenvol- vimento real e o potencial, que está próxi- mo, mas ainda não foi atingido. O desenvolvimento potencial é determi- nado por aquilo que a criança ainda não do- mina, mas é capaz de realizar, com o auxílio de alguém mais experiente. Por exemplo, uma multiplicação simples, quando ela já sabe somar. Dentre todas as teorias que sustentam a educação infantil, o sócio-interacionismo consegue responder a inquietações vivi- das pelo educador, porém, nos coloca al- guns outros problemas. Quando crianças e profissionais intera- gem em uma instituição educativa, nem sempre o fazem por sua própria vontade e iniciativa, embora pareça ser natural, nos dias de hoje, que estas interações se pro- cessem. Os conhecimentos advindos e sua ela- 10 11 boração em termos de conceitos trarão esta marca em seu bojo. Isso significa que os profissionais e as crianças envolvidas nas interações peda¬gógicas necessitam exercitar permanentemente, procedimen- tos que levem à abstração e ao rigor, difícil tarefa de articulação entre distintos tipos de conhecimentos, promovendo experiên- cias intera¬cionais educativas diversifica- das: as manifestações genuínas, típicas do lúdico; a realização de tarefas com parcei- ros predeterminados ou não pelo adulto; o estudo e a sistematização dos conteúdos abordados no grupo para a formação de conceitos científicos. O difícil exercício da passagem dos co- nhecimentos cotidianos aos científicos é experimentada a todo momento pelo edu- cador e pela criança, o que pode acarretar problemas na relação com o conhecimento escolarizado. Outro problema colocado pela teoria é a formação especializada do adulto-pro- fissional que lida com a etapa da educação infantil. Sobre a forma como se deve dar a formação deste profissional há muito para ser comentado. Entretanto, um aspecto crucial deve ser mencionado: a necessida- de deste profissional ter claro que todas as tarefas, brincadeiras ou atividades que se realizam na instituição têm valor educati- vo. Para que isso seja efetivado na prática, ao educador infantil não basta “gostar de crianças”. È preciso muito estudo sobre os processos de desenvolvimento e aprendi- zagem de crianças nessa faixa etária. Outro aspecto refere-se à vinculação da dimensão do cuidar e do educar crianças menores de 6 anos o que implica o resgate da intencionalidade educativa nelas conti- da. A não-fragmentação do conhecimento e, mais que isso, sua apropriação e articu- lação no grupo, por todas as crianças, só será garantida mediante a presença e inte- gração dos diferentes tipos de interações discutidos no presente texto. Como já vimos, a interação é feita atra- vés de um mediador. Ele é quem ajuda a criança a concretizar um desenvolvimento que ela ainda não atinge sozinha. Na esco- la, o professor e os colegas mais experien- tes são os principais mediadores. O professor deverá atuar na zona de de- senvolvimento proximal. Sua intervenção é direta, pois deve ajudar a criança a avan- çar. O professor acompanhará cada aluno, para auxiliá-lo na superação de dificulda- des. É assim que se trabalha diretamente com o conceito de desen-volvimento pro- ximal. O professor precisa conhecer o desen- volvimento real da criança, mas não pode parar aí, pois é pelo auxílio direto, com ex- plicações, pistas e sugestões, que o aluno avança, consolidando o desenvolvimento que era apenas potencial. No trabalho indi- vidual respeita-se a zona proximal de cada um, pois ela não é homogênea para todo o grupo. A articulação destes conceitos será a principal tarefa das interações pedagógi- cas, não fazendo sentido sua restrição aos conhecimentos tidos como clássicos ou eruditos, especialmente na instituição de educação infantil. Os conteúdos de traba- lho com crianças pequenas não se limitam ao conhecimento lógico-matemático ou linguístico, devendo incluir temas relati- vos ao conhecimento de si, do outro e das questões presentes na sociedade contem- 12 13 porânea. A seguir nos deteremos na discussão sobre a alfabetização, considerada sobre uma perspectiva social e cultural, com en- foque na ampliação do ensino fundamen- tal para 09 anos. O letramento ganha con- tornos práticos à medida que nos damos conta de que toda atividade educativa planejada e sustentada teoricamente é ca- paz de produzir resultados satisfatórios na educação como um todo. 12 12 1313 UNIDADE 2 - Uma mudança necessária: a educação infantil frente ao ensino fundamental de 09 anos A inclusão de crianças de 06 anos no ensino fundamental vem revelando dis- cussões em todos os âmbitos da educação. Isso porque essa entrada reduz em um ano a educação infantil e aumenta em um ano o ensino fundamental. Há controvérsias em torno do problema. De um lado estão aqueles que acreditam no aumento da es- colaridade como um fator de democratiza- ção de oportunidades educacionais e de outro aqueles que temem que essa etapa da educação da criança reduza as opor- tunidades da infância, uma vez que mui- tos ainda separam o tempo da brincadeira (tempo da educação infantil) do tempo da aprendizagem (ensino fundamental),como se isso fosse possível dentro da educação. Dentre os problemas apontados por es- pecialistas sobre essa entrada estão ques- tões que envolvem o brincar, a descoberta do prazer pela leitura, as oportunidades de criação oferecidas às crianças e a questão da alfabetização. A alfabetização não é somente a sim- ples capacidade de ler e escrever. Estas ha- bilidades são fundamentais dentro do pro- cesso de aprendizagem da alfabetização, porém não são suficientes para se afirmar que alguém é alfabetizado. O conceito de alfabetização sofreu mudanças ao longo dos tempos e em cada momento histórico, por isso podemos dizer que é um fenôme- no socialmente construído. Ao aprenderem a ler e a escrever nas situações escolares contemporâneas,as crianças são envolvidas em processos cen- trais de transmissão social do conhecimen- to na sociedade. É evidente que, para se tornarem alfa- betizadas, as crianças devem ter acesso e ser capazes de exercitar numerosas habi- lidades intelectuais (isto é, habilidades lin- guísticas e psicológicas). A alfabetização, sob uma perspectiva psicológica, é um conjunto multifacetado de habilidades instrumentais que envol- vem processos cognitivos os quais operam na produção e compre¬ensão de textos. Sob uma perspectiva sociológica denota os saberes sociais acumulados e sistemati- zados pela cultura e que servem de apoio ao desenvolvimento dos saberes escola- res. Contudo, as teorias linguísticas, psico- lógicas e sociológicas não podem sozinhas explicar as condições essenciais para o aprendizado destas habilidades. É neces- sário entender que tipos de atividades promovem a formação das habilidades que dão vida ao processo de letramento. Ao entender a passagem dos conceitos cotidianos aos científicos estamos de certa forma próximos ao entendimento de que esse é um processo de letramento. Assim,, o potencial de atividades como cantigas de roda, parlendas, poemas e poesias, quadri- nhas, adivinhações, contação de historias, não podem ser esquecidos pois favorecem essa passagem e contribuem para o letra- mento. Soares (1998) faz a distinção entre conceitos que muitas vezes são tomados como sinônimos. Para a autora alfabetiza- ção significa a ação de tornar alfabeto. Al- fabetizado por sua vez significa aquele que 14 15 é capaz de ler e escrever. Por ouro lado, o surgimento do conceito de letramento, fez com que outro signi- ficado se inscrevesse dentro da alfabeti- zação, pois além de saber ler e escrever o letramento propõe como ação principal o desenvolvimento da capacidade de usar socialmente a leitura e a escrita, e consi- dera a alfabetização um estado ou condi- ção que adquire um grupo social de ter-se apropriado da escrita, da leitura e de suas práticas sociais. Dessa forma, saímos de uma condição restritiva de alfabetização para deslocar- mos nosso olhar para práticas que não ti- nham lugar dentro do conceito de alfabe- tização. Assim, a educação infantil assume uma característica que necessita ser cuidado- samente questionada: É papel da educa- ção infantil alfabetizar as crianças? O que temos privilegiado no cotidiano escolar? As vozes das crianças no processo são ou- vidas ou silenciadas? Estamos abertos aos interesses das crianças? Qual a concepção de infância conduz meu trabalho? Cabe-nos esclarecer o sentido de infân- cia que perpassa a construção da educação infantil. Para Kramer(2006 a), a infância é portadora de um significado que define as práticas que desenvolvemos com as crian- ças, ou seja, o sentido que damos a essa etapa de desenvolvimento define o traba- lho que realizamos. A educação infantil ainda convive com diferentes funções. Ora assume um cará- ter compensatório, ora educacional e em outras um caráter assistencialista. Aos poucos ganha espaço uma nova concepção de criança e o binômio educar/cuidar fica mais nítido entre os educadores. Porém, é fundamental entender aspectos que sin- gularizam a infância. Kramer (2006b) afirma que a criança cria cultura, brinca e nisso reside sua sin- gularidade. Nesse sentido, a brincadeira é uma experiência de cultura. È possível tra- balhar com crianças sem brincar? Nessa construção cotidiana a criança atua sobre os objetos e a partir deles cons- trói sua própria história. Subvertendo a or- dem natural das coisas, a criança estabele- ce uma relação crítica com a tradição. Cabe ao adulto conhecer as formas de produção da criança, participar, sem infantilizar-se. Outro aspecto levantado pela autora é o pertencimento da criança a uma classe social. Nesse sentido, conhecer a infância significa conhecer a realidade sócio-cul- tural em que se encontra a criança, o que define, sem dúvida as formas como ela lida com o conhecimento. Assim, qualquer tentativa de entender o alcance e a extensão das habili-dades necessárias para a alfabetização, repousa, em última análise, sobre os usos e valo¬res destas habilidades na sociedade em que se encontra a criança. Qualquer conside¬ra- ção sobre os usos da leitura e da escrita deve levar em conta o julgamento social sobre a funcionalidade desses processos e sobre as mudanças que provoca na vida da mesma. A alfabetização e o insucesso escolar Os debates sobre a alfabetização não são recentes. Começaram a ser ventilados na década de 60, em parte como resultado da crescente demanda para que a escola- 14 15 rização realizasse todas as formas de mu- danças sociais e da frustração resultante quando esta, em muitos aspectos, deixava de fazê-Io. Uma das questões levantadas nestes debates era se as dificuldades na aquisição da leitura e da escrita na escola deveriam ser atribuídas principalmente às experiências de aprendizagem em casa ou na escola. A teoria dos códigos sociolinguísticos de Bernstein (Bernstein, 1971) tornou-se uma base para a con¬cepção de que o uso da linguagem em casa e os contextos de aprendizado social oferecidos para a crian- ça da classe proletária (baixa) davam-lhe uma gama mais limitada de experiências linguísticas; além disto, estas experiên- -cias tendiam a ser julgadas como insufi- cientes na escola. O autor afirmava que o código linguístico apresentado pela escola (código elaborado)era diferente daque- le trazido pelas crianças(código restrito), principalmente de classe popular, que não tinham acesso a experiências escolares antes da entrada na escola. Bernstein afirmava que a escola, não o lar, deveria ser o foco de qualquer inter- venção para se obter uma maior equidade no acesso às oportu¬nidades de aprendi- zagem (Bernstein, 1975). A escola e seus processos de aprendizagem também cons- tituíram o foco de um importante proje- to de pes¬quisas que visava a explorar a aquisição da leitura e da escrita e suas con- sequências sociocognitivas nos anos 70. Outras teorias explicaram profunda- mente a questão do fracasso escolar das crianças de camadas desfavorecidas so- cialmente, e dentre elas podemos identi- ficar a teoria da privação cultural, a teoria dos transtornos de déficit, e outras que se relacionavam ora a fatores de ordem orgâ- nica, ora a fatores educacionais. Cabe-nos salientar que em todas as teorias explica- tivas sobre o fracasso escolar, a escola fi- cava isenta de responsabilidade sobre o mesmo, tornando á criança e à família os culpados pela não aprendizagem escolar. Esse fracasso geralmente se manifesta após a entrada da criança na escola e não podemos desconsiderar que o sucesso ou fracasso de alguns processos estão rela- cionados à fatores interdependentes, e nunca explicáveis isoladamente. A discussão que ora se apresenta no meio educacional recai sobre os proces- sos de alfabetização, que para a maioria dos educadores não tem surtido efeito na vida das crianças, que saem da escola sem aprender noções básicas de leitura, escri- ta e matemática. Se desejarmos que a al- fabetização seja vista como um objetivo identificável, popular e justo da escolariza- ção, precisamos compreender muito mais o processo social pelo qual é adquirida. Além disto, a alfabetização não é simples- mente adquirida, mas também construída através de um processo de interiorização e exteriorização de habilidades e atitudes construídas no plano cognitivo individual, que por sua vez é influenciado pelo aspec- to sociocultural. Nem o corpo docente nem os estudan- tes encontram-se na sala de aula sem algu- mas pressuposições sobre o desempenho uns dos outros. Salas de aula e professores fazem parte de escolas, sistemasescolares e política educacional socialmente deter- minada, e a experiências trazidas de casa e da comunidade pelos alunos já os preparou de algum modo para a escolarização. A aprendizagem da leitura e da escrita 16 1716 ocorre em um ambiente social através de intercâmbios interacionais nos quais o que deve ser aprendido é, até certo ponto, uma construção conjunta de professor e aluno. A finalidade dos ambientes educacionais é tornar possível esta construção mútua. 16 1717 UNIDADE 3 - As classes de alfabetização sob uma perspectiva construtivista sócio- -interacionista Este texto dá continuidade às questões colocadas inicialmente sobre o processo de letramento das crianças de 0 a 6 anos. Nesse sentido, faz uma breve análise sobre as condições desse processo enfocando o que o alfabetizador precisa saber para al- fabetizar ou seja os caminhos percorridos pela criança –da ação ao pensamento, as formas de representação da criança, o pa- pel do jogo simbólico e do desenho dentro do processo, e a evolução da escrita infan- til na concepção de Emília Ferreiro. O texto foi dividido didaticamente em tópicos que se articulam entre si na busca pela compreensão de todo o processo da alfabetização. Para desenvolver uma proposta de al- fabetização de crianças numa perspectiva construtivista sociointeracionista, o pro- fessor precisa saber: Como se processa a aquisição da lín- gua materna pela criança dentro desta perspectiva; Quais são os níveis psicogenéticos da escrita e da leitura; As formas de representações utiliza- das como instrumentos pelas crianças - a fala, o jogo simbólico e o desenho; O papel do jogo simbólico e do dese- nho na alfabetização de crianças; O pensamento, as concepções e as im- plicações pedagógicas das teorias de Lu- ria, Vygotsky e das descobertas de Emilia Ferreiro no processo de alfabetização de crianças. Alfabetização: a palavra e a língua Ainda recém-nascida, os pais - os primei- ros alfabetizadores - conversam, brincam e envolvem a criança no mundo mágico da linguagem, e logo ela se torna “falante” da língua de sua comunidade cultural. A alfabetização começa no ventre da mãe, quando os pais nomeiam e conver- sam com o filho ou a filha ainda em ges- tação, colocando palavras e letras nesses diálogos informais e afetivos. Como um “andaime”, os pais e as pessoas que lidam com crianças pequenas vão lhes proporcionando as bases estruturais para pensar e observar o mundo à sua volta. A cada dia, a criança vai se alfabetizan- do, buscando significados e respostas às suas curiosidades nesse processo que se prolonga por toda a vida e não só nos pri- meiros anos escolares. A alfabetização de uma criança vai além da aquisição da leitura e da escrita.Exige-se do alfabetizando um universo de conheci- mentos, uma pluralidade de procedimen- tos, atitudes e valores que lhe permitam compreender e agir no mundo. O aprender da criança, na postura pedagógica condi- zente com o construtivismo, dá-se a partir de suas potencialidades, na interação com os outros e com o seu meio social. Podemos constatar, nas escolas infan- tis cuja prática pedagógica é desenvolvi- da numa linha sócio- construtivista, que crianças de 3 a 6 anos já se apropriam da língua escrita e falada de forma prazerosa 18 19 e natural. No contato com crianças pequenas é possível verificar que elas fazem pergun- tas, explicam fatos, descrevem pessoas e objetos, reconhecem e utilizam letras e numerais nos seus escritos; portanto, já se comunicam oralmente e de forma gráfica. As crianças, na escola e em casa, querem escrever, ler, desenhar, pintar, recortar, colar, ler livros de histórias. Demonstram um desejo de aprender natural. São curio- sas, observadoras, questionadoras, ati- vas. E isto pode ser verificado facilmente nas crianças a partir de 3/4 anos de idade, com maior ou menor intensidade tendo em vista a proveniência das mesmas, seu ambiente cultural e as oportunidades e contatos vividos. De qualquer forma, in- dependentemente de seu convívio social e cultural anterior, todas as crianças chegam à escola falando a língua materna. Como todas já são falantes da mesma língua, cabe ao professor alfabetizador continuar esse processo, solidificar e or- ganizar as experiências linguísticas. Isso pode ser alcançado rapidamente pelas crianças quando os alfabetizadores (pais, adultos, professor, outros) lhes proporcio- nam contatos variados com textos ilustra- dos, desenhos, palavras; quando lhes dão explicações; quando comentam com elas acontecimentos para que os compreen- dam. A linguagem é compreendida pela crian- ça quando ela é capaz de integrar as pala- vras e frases num contexto de “significa- dos”. No desenvolvimento das habilidades de comunicação, é importante o uso das linguagens informativa e criativa, pois é dessa forma que a criança poderá alcançar a consciência linguística. Através de exer- cícios variados e jogos é que ela se apro- priará das normas de nossa língua, quais sejam: separação de fonemas e palavras, construções significativas, usos de prono- mes, verbos, descobertas do sujeito e ou- tras, primeiro no nível da linguagem oral e, posteriormente, no da linguagem escrita. Por volta de 4 a 6 anos, muitas crianças já controlam o sistema fonético da língua ma- terna, lidam com a gramática e utilizam o vocabulário básico da mesma, mesmo sem representar graficamente estas habilida- des. As formas de representa- ção da criança: a fala, o jogo simbólico, a imitação, o de- senho Para Vygotsky, a aquisição da língua es- crita é a aquisição de um sistema simbólico de representação da realidade. Os professores alfabetizadores não po- dem desconhecer a natureza do conheci- mento infantil ou como ele se processa. As crianças constroem sua inteligência a par- tir de suas possibilidades de representar, o que é possível a partir dos dois anos de ida- de, estendendo-se até aproximadamente os seis anos. Piaget, em seus estudos, deixa clara a importância das formas de representação que as crianças utilizam nas suas intera- ções com o mundo. Por isso, as crianças devem ser respeitadas nos seus modos de falar, brincar simbolicamente, imaginar. Ele demonstra ainda que só há represen- tação quando, no sistema de significação que constrói a inteligência, o significado se diferencia do significante. Essa diferencia- 18 19 ção é garantida e possível no final do está- gio sensório-motor, por volta de 2 anos de idade, quando a criança já evoca os mais diversos significados através de signifi- cantes diferenciados, alcançando, assim, a função simbólica ou semiótica. Através de formas de representação como a fala, o jogo simbólico, a imitação e o desenho, a criança passa a interagir com o mundo não mais no plano da ação, do estágio sensó- rio-motor, mas num nível simbólico. Esses instrumentos são utilizados pela criança para aprender e compreender o real. A passagem da ação para o plano da re- presentação é garantida inicialmente pela linguagem. Mas isso não acontece de for- ma simples e linear. A princípio, a criança não consegue ainda refletir, pensar sobre as palavras, as noções e as operações que sabe executar na ação, e ela precisa, então, adaptar-se ao plano das representações, refazer e coordenar ações já realizadas no estágio anterior, o sensório-motor. Nesse estágio, a criança constrói a ação prática, a permanência do objeto, estabe- lece relações espaço temporais e causais e só depois dessas construções é que pas- sa para o plano do pensamento. As ações passam a ser interiorizadas e reconstruí- das pelas representações. É a capacidade de representar que possibilita à criança a tomada de consciência da organização do mundo e o entendimentode fatos passa- dos, presentes e futuros. E a criança co- meça a entender e usar, adequadamente, as noções do hoje, do ontem e do amanhã. A representação é condição básica para as operações mentais. É muito importante valorizar as repre- sentações utilizadas pelas crianças no processo de alfabetização, porque as ati- vidades representativas contribuem para a estruturação operatória do pensamento. Os educadores devem propiciar o exercí- cio das trocas simbólicas entre as crianças no cotidiano da sala de aula como forma de tomada de consciência das ações realiza- das, assegurando a elas um saber com sig- nificado real, e estarem atentos para que as propostas educativas sejam adequadas e contribuam para a superação dos confli- tos cognitivos da aprendizagem infantil. O papel do jogo simbólico na alfabetização Os estudos de Piaget e Vygotsky leva- ram-nos a refletir sobre o significado do jogo simbólico (faz-de-conta) e do brin- quedo na infância. A ludicidade propicia à criança o desenvolvimento das estruturas cognitivas, a construção da personalidade, o intercâmbio do cognitivo e do afetivo, o avanço nas relações interpessoais, o co- nhecimento lógico-matemático, a repre- sentação do mundo e o desenvolvimento da linguagem, leitura e escrita. Quando brincam, as crianças operam com significados e significantes como ob- jetos substitutos. No brinquedo ou brinca- deira, uma ação substitui outra ação, um objeto substitui outro objeto, outro ser. Isso é facilmente observado nos conta- tos com crianças, como por exemplo: quan- do uma criança faz da vassoura um cavalo, de uma boneca uma filha e ainda se coloca no papel de mãe. Ao representar, a criança utiliza como forma de relacionar significan- tes e significados, sua expressão corporal, plástica, musical, gráfica e dramática. Vygotsky coloca que, assim como a criança representa um cavalo com um cabo 20 21 de vassoura, a escrita também passa a ser para a criança um tipo de objeto substitu- to. A cada vez que a criança vai se inserindo nesse universo de representações, o brin- quedo, o jogo simbólico e o desenho pas- sam a ser uma necessidade. Para ele, é assim que a criança vai pe- netrando nos espaços da alfabetização, desde o estágio pré-operatório interagin- do com a escrita como um jogo que tem regras e, como regras, contém também o imaginário. Nas interações sociais, a criança neces- sita da escrita e da linguagem necessárias no jogo de interlocuções que se estabele- cem na vida e no espaço escolar. Pouco a pouco, ela vai percebendo a função social da escrita e da leitura. Assim, a criança só chega a perceber a importância da escrita e da leitura quando precisa escrever um recado, um bilhete, uma carta para um amigo, quando precisa registrar uma receita para depois relem- bra-Ia, por exemplo. Ela percebe as fun- ções de registro, de guardar na memória e de comunicação que a escrita lhe permite. Existe, assim, uma intrínseca relação entre o brinquedo, o jogo simbólico e a psi- cogênese da língua escrita. Na magia das letras, “oralidades” se transformam em textos escritos e reto- mam como oralidades na voz das crianças que lêem essas histórias. A ludicidade, entretanto, não se pren- de a uma forma específica logo, nem a um objeto específico (brinquedo). Ela é uma interação subjetiva com o mundo e com as pessoas - a socialização de informações e da própria ludicidade. Por isso, é importante que as ativida- des lúdicas invadam as práticas docentes nas salas de aula, aproveitando todos os momentos para proporcionar aos alunos o acesso ao desenvolvimento e ao conheci- mento, que a brincadeira proporciona e que se traduzem na produção de novas possi- bilidades de interpretação, de expressão, de ação, e construção de relações sociais. Uma parte do mundo vivido pela criança é refeita novamente na e pela brincadeira. O papel do desenho no de- senvolvimento da escrita infantil O desenho desempenha um importante papel no desenvolvimento e na aquisição da língua escrita pela criança. O ato de desenhar e o ‘próprio dese- nho proporcionam um conjunto de apoio, dentro do qual a escrita (o texto) pode ser construída. As crianças, muitas vezes, en- saiam para a escrita através do desenho e, à medida que desenham, vão anunciando, oralmente, o texto que pretendem escre- ver. Dependendo do contexto de seu dese- nho, a criança pode representar o seu tex- to com apenas uma palavra. A maior parte do que a criança quer dizer no seu texto é transmitida por seu desenho. No início da aquisição da escrita, ela utiliza-se do de- senho como apoio ao seu texto. Apresenta muito mais significado no desenho do que no texto propriamente escrito. Com o tempo, as crianças aprendem a criar textos autônomos e explícitos, fazen- do os independentemente do apoio dos desenhos, alcançando, assim, um estágio mais avançado de escrita e leitura. Na escola infantil e nas classes iniciais 20 21 de alfabetização do Ensino Fundamental, os desenhos de crianças não-alfabéticas parecem manter o mundo imobilizado. Elas tendem a fazer desenhos de objetos, ani- mais e pessoas posicionados aqui e ali na página: uma casa, uma menina, um cão e outros elementos - sem nenhuma ligação ou relacionamento entre eles. Quando co- locam em seus desenhos, ao pé da folha, uma linha, podemos então perceber uma possibilidade de relacionamento entre os elementos que desenhou. Os desenhos das crianças mostram-nos a visão de mun- do que têm e como percebem as coisas e pessoas que estão ao seu redor e, princi- palmente, como elas se percebem neste mundo. A criança, descobre, nos seus riscos e ra- biscos, uma “gente”, um “animalzinho”, um “objeto”. Descobre, nas pontas dos dedos, um impulso para a vida; percebe que suas mãos podem, através de um objeto (lápis, caneta, pincel, graveto, palito), imprimir marcas sobre qualquer superfície: o muro, a areia, o barro, o papel. Os seus desenhos ou tentativas de escrita são consequên- cia de seus atos infantis. O signo gráfico é resultante de uma ação carregada de uma intencionalidade ainda não totalmente ex- pressa. O olho, espectador dessa conversa entre a mão, o gesto e o instrumento, per- cebe formas. A criança não desenha o que vê, mas o que sabe, o que sente. A princípio, a criança utiliza-se de uma visão animista como defesa e proteção contra um mundo que ela desconhece. À medida que vai se desenvolvendo cogni- tiva e graficamente, este mundo, antes ilusório, vai sendo dominado através de palavras mágicas, de gestos teatrais, de si- nais gráficos evocativos, enfim, através de representações. Sua segurança lhe é de- volvida, e ela passa a acreditar e agir con- cretamente sobre o mundo. Um mesmo processo com vários enfoques teóricos É importante para nós educadores per- cebermos e conhecermos os pontos co- muns, as semelhanças e diferenças teóri- cas desses pesquisadores para podermos entender o processo de alfabetização das crianças numa perspectiva construtivista sócio-interacionista. Este suporte teórico é necessário para o desenvolvimento de nossa prática pedagógica na sala de aula. Apesar de cada teórico ter sua própria concepção quanto à aquisição da língua escrita, podemos observar que todos são construtivistas; partem de uma aborda- gem genética e sociocultural da escrita e preocupam-se com seu processo de aqui- sição pela criança, que, acreditam, inicia-se muito antes de a criança chegar à escola e estende-se por muitos anos. Podemos, após vários estudos, considerar que esses teóricos se somam, se completam e se am- pliam nas suas teorias. As descobertas de Emilia Ferreiro e seus colaboradores, anunciadas a partir de 1979, trouxeram uma verdadeira revo- lução conceitual a respeito da evoluçãoda escrita na criança. Foi quando surgiu, no Brasil, um estudo mais aprofundado das teorias psicogenéticas de Piaget, Luria, Vygotsky e Wallon, entre outros teóricos. Em relação à escrita, Vygotsky e Emilia Ferreiro têm muitos pontos em comum. Entre eles, podemos salientar que ambos consideram a escrita como um sistema de representação da realidade, e o processo de alfabetização como o domínio progres- 22 23 sivo desse sistema, que se inicia muito an- tes da escolarização. Vêem a alfabetização como um processo dinâmico e ativo e não como a mera aquisição de uma habilidade mecânica que permite fazer a correspon- dência letra-som. Luria, colaborador de Vygotsky, entre os demais de seu grupo de pesquisas, realizou um estudo experimental sobre o desen- volvimento da escrita. Sua pesquisa partiu de um grupo de crianças que não se encon- trava ainda alfabético, propondo-lhes que repetissem uma série de sentenças dita- das por ele, em número maior do que as crianças pudessem memorizar, e repeti-Ias na ordem em que foram colocadas. Como a dificuldade dessas crianças era visível, Lu- ria propôs-lhes, então, que escrevessem à medida que as falassem, para que pudes- sem lembrar-se delas posteriormente. A partir dessa atividade, Luria pôde ob- servar e desenhar o percurso que a crian- ça percorre na aquisição da escrita, o que denominou de pré-história da escrita. Des- cobriu que, primeiro, as crianças imitam os movimentos do adulto de forma mecânica, reproduzindo rabiscos sem nenhuma rela- ção com as sentenças que ele ditava. Os ra- biscos feitos pelas crianças não auxiliavam em nada para que as sentenças pudessem ser relembradas. Com esses rabiscos, as crianças não con- seguiam lembrar da sequência das senten- ças e tampouco do seu conteúdo. A esse tipo de grafismo, Luria denominou rabis- cos mecânicos. Num segundo estágio de evolução do grafismo, Luria observou que as crianças faziam uma espécie de mapea- mento que lhes permitia relembrar o con- teúdo, deixando marcas ou pistas que as orientassem pela posição no espaço, cha- madas por ele de marcas topográficas. Num terceiro momento, as crianças se utilizavam de desenhos estilizados como forma de escrita. Nesse estágio, as crian- ças começavam a se preocupar com as di- ferenças de conteúdo das sentenças di- tadas pelo pesquisador, atentando para o ritmo da fala; assim, faziam rabiscos ou marcas pequenas para as frases curtas e rabiscos grandes para frases longas. As crianças preocupavam-se em distinguir, através de rabiscos, o conteúdo dito em relação à quantidade de palavras faladas, o tamanho da sentença, forma e outras características possíveis de se perceber. Assim, as crianças usavam essas diferen- ciações como suporte para a memorização das sentenças. Neste ponto, as crianças descobriam a natureza instrumental da es- crita (registrar, guardar na memória, comu- nicar), através de suas representações pic- tográficas - utilização de desenhos como instrumento, como signos mediadores que representam os conteúdos das sentenças e lhes possibilitam a memorização. Não sendo isso ainda satisfatório, as crianças, num quarto estágio, passaram a inventar formas de representar informa- ções difíceis de serem desenhadas. Cria- ram, então, a escrita simbólica, ou seja, um círculo escuro para representar a noi- te, um retângulo azul para representar a piscina etc., chegando, por último, a uma quinta etapa, quando utilizaram a escrita simbólica culturalmente disponível. Aqui, já estavam inseridas no processo de alfa- betização e já dominavam os mecanismos da escrita propriamente dita. Luria ressalta, em seus textos, que esse percurso da criança é comum a todas elas e não um processo individual, e que ele é 22 23 fruto da interação da criança com a língua escrita, seus usos no dia-a-dia e da com- paração que ela faz com a escrita formal do adulto. Coloca, ainda, que as variações existentes nesse percurso, são decorren- tes das experiências concretas vividas pe- las crianças. Exemplificando: As crianças que têm mais oportunidades de contatos com ma- terial impresso, livros, revistas, jornais, assimilam mais rápido o que é desenhar e escrever, fazendo distinção do que é tex- to e do que é gravura, podendo até mesmo pular a fase da representação pictográfica, por entender que desenho não é escrita. Em outras situações, as crianças podem usar apenas uma letra para registrar infor- mações diferentes, como por exemplo: A para sapato, A para porta, e, assim, suces- sivamente, a mesma letra para nomes de objetos diferentes. Isso acontece quando a criança ainda não compreende a função instrumental da escrita, usando a mesma letra como “marca” não-diferenciada. Esse percurso demonstrado por Luria é mais fácil de ser observado em crianças que pertencem a grupos culturais não-escola- rizados (zona rural, periferias das grandes cidades, pais analfabetos, por exemplo). Nas zonas urbanas as crianças possuem mais acesso aos conhecimentos de leitura e escrita no âmbito familiar ou nas escolas infantis/creches-escolas, além de estarem constantemente estimuladas pelos meios de comunicação, outdoors, faixas, letrei- ros, rótulos, propagandas, entre outros ve- ículos. As crianças do meio urbano entram muito cedo na escola e estão em perma- nente contato com computadores, filmes, televisão, entre outros estímulos visuais e sonoros. As crianças que se desenvolvem num meio onde a presença da língua escrita é marcante avançam rapidamente na alfa- betização. A evolução da escrita infan- til na concepção de Emília Ferreiro A psicopedagoga argentina Emilia Fer- reiro e seus colaboradores também reali- zaram estudos na tentativa de entender como se dá o processo de aquisição da lín- gua escrita pela criança. Para Emilia Ferreiro, a aprendizagem da língua escrita é a construção de um siste- ma de representação. A aprendizagem, nesse enfoque, converte-se na apropria- ção de um novo objeto de conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem conceitual. Para ela, “alfabetizar é construir conheci- mento”. Do ponto de vista da escrita, suas pes- quisas indicam que cada sujeito, nesse pro- cesso, parece refazer o caminho percorrido pela humanidade, qual seja: Pictográfica - forma de escrita mais antiga que permitia representar só os ob- jetos que podiam ser desenhados: dese- nho do próprio objeto para representar a palavra solicitada. Ideográfica - consistia- no uso de um simples sinal ou marca para representar uma palavra ou conceito: uso de símbolos diferentes para representar palavras dife- rentes. Logo-gráfica - escrita constituída por desenhos, referentes ao nome dos objetos e não ao objeto em si. 24 25 Assim como as primeiras civilizações faziam inscrições na pedra e a “escrita” re- presentava o próprio objeto, para Emilia Ferreiro a criança associa o significante ao significado. É o que a criança nos mostra na fase ICÔNICA, num primeiro momento da gênese. A criança acha que escrever é de- senhar o objeto, as pessoas, as coisas. Um grande passo de cada sujeito leitor e escri- tor no processo de apropriação do código escrito da língua materna dá-se quando surge a necessidade de diferenciar escrita de desenho e do próprio objeto, o que ocor- re na fase pré-silábica e exige muito esfor- ço da criança, muito pensar, relacionar e recriar. Para a criança, pessoas, animais e coisas grandes precisam ser nomeados por palavras grandes; é o que chamamos de re- alismo nominal. Um outro grande momento nessa gêne- se é aquele em que a criança descobre que a escrita não está relacionada ao próprio objeto, nem ao nome desse objeto, mas à fala. Tendo, aqui, já descoberto grande parte do segredo, a criança tenta desco- brir como isso funciona e é nessemomen- to que constrói a hipótese silábica - para cada emissão de voz, coloca uma marca no papel. A criança percebe, então, a fonéti- ca. Avançando nessa hipótese, a criança passa por um período de transição: ora es- creve silabicamente, ora alfabeticamente, caracterizando, assim, a hipótese silábi- co-alfabética. Emilia Ferreiro explica que a criança avança de um patamar a outro, não abandonando a hipótese anterior, mas englobando e fazendo construções con- vergentes com avanço. A criança se apro- pria de mais um segredo do código quando descobre a relação entre fonema e grafe- ma. Ela escreve e lê, quando compreende as leis de composição interna do sistema de escrita e sua língua materna. Nesse mo- mento ela formula a hipótese alfabética. Isso tudo começa quando a escrita se torna objeto de atenção da criança tendo em vista o seu ambiente cultural, quando começa a interagir com a língua escrita nos livros, revistas, jornais, quando tenta com- preender o mundo e vai se valendo do jogo simbólico para interpretar, operando com significantes e significados. Considerando a língua escrita um sistema de representa- ção da língua falada, ela a constitui como um tipo de objeto-substituto, em que um significante (sinal gráfico) corresponde a outro significante (som da fala), não de forma biunívoca, e ambos referentes a um significado (pensamento elaborado). Esse processo irá se construindo pelos cami- nhos da formação do símbolo (imitação, jogo simbólico, desenho), caminhos esses que se identificam com o lúdico, a brinca- deira, o jogo. Os estudos de Emilia Ferreiro demons- tram que as crianças constroem hipóteses a respeito da escrita e da leitura do mesmo modo como se tornaram falantes de sua língua materna, podendo, portanto, se tor- narem leitoras e produtoras de texto. As crianças se questionam sobre os “riscos”, os “sinais”, as “marcas” com as quais intera- gem e formulam hipóteses, colocam à pro- va essas hipóteses, reconstroem-nas al- cançando patamares superiores cada vez mais próximos da escrita convencional. Nas pesquisas e observações de crianças nas classes de alfabetização, podemos verifi- car que primeiro elas formulam hipóteses de leitura, quais sejam: com poucas letras não se pode ler nenhuma palavra; letras ou sílabas repetidas não formam palavras; o que está escrito abaixo de uma gravura (imagem ou desenho) é o nome dessa ima- 24 25 gem. Essas hipóteses de leitura vão avan- çando, na dependência das intervenções do ambiente. A criança percorre um longo caminho que vai da indiferenciação texto e imagem, passando pela etiquetagem ou hipótese do nome, até a tentativa de con- ciliar sua hipótese com os indicadores, isto é, os signos já conhecidos. Nas interações com a leitura de diferentes portadores de texto, a criança vai formulando novas hi- póteses: a princípio, não concebe leitura sem voz - para ler tem de falar. Portadores de texto não têm relação com o texto - em qualquer portador lê-se qualquer texto, desde que esse seja passível de leitura oral. Gradativamente, a criança avança nas suas hipóteses e chega a conceber a lei- tura oral como leitura, e compreende e aceita que os diversos portadores de texto contêm textos próprios e diferentes. Nes- sa construção, a criança passa por etapas importantes consideradas muitas vezes “erradas” do ponto de vista convencional, mas “certas” para ela, porque são lógicas e, sobretudo, necessárias - “erros construti- vos”. Em relação à linguagem, a criança torna- -se falante de sua língua materna, porque observa, atentamente, o que se fala à sua volta e, nessa observação, estabelece re- lações, busca regularidades, faz generali- zações, recria sua linguagem. Piaget demonstra bem que as estrutu- ras da inteligência se desenvolvem na inte- ração do sujeito com o meio e que o sujeito é o construtor do seu conhecimento. Ao re- lacionarmos os estudos de Vygotsky, Pia- get e Emilia Ferreiro, podemos considerar a questão da escrita e da leitura nas clas- ses de alfabetização, na educação infan- til ou nas classes iniciais do primeiro ciclo do Ensino Fundamental como um fator de aprendizagem e de constituição da criança não apenas no aspecto cognitivo, mas no afetivo, social e cultural. A criança começa a questionar acerca da escrita desde que interage com objetos de leitura pela primeira vez, a partir de suas interações com o mundo e, principalmen- te, desde suas primeiras construções re- presentativas a partir do lúdico. 26 2726 UNIDADE 4 - O conhecimento Matemático, Histórico, Geografico, Artístico e o Letramento O presente texto oferece continuidade às reflexões realizadas sobre o processo de alfabetização. Assim, na busca por uma educação que privilegie o letramento de crianças desde sua entrada na instituição educativa, propõe uma análise sobre o pa- pel que a matemática exerce nesse pro- cesso, os estudos sobre a história, o meio físico, social e cultural e a importância das artes cênicas na alfabetização. Interdisciplinaridade nas classes de al- fabetização da educação infantil e nas classes iniciais do ensino fundamental significa, trabalhar as diversas áreas do conhecimento de forma globalizada como instrumentos para aprender a ler e escre- ver e como meio de levar o aluno à com- preensão do mundo que o rodeia, facili- tando-lhe situar-se nos diversos espaços - geográfico, histórico, científico e artístico e, principalmente, desenvolvendo nele a inteligência adaptativa. Não é nosso objetivo estabelecer um currículo ideal para as classes de alfabeti- zação, mas oferecer informações básicas aos educadores e estimulá-los para que cada um crie o seu currículo e planeje suas atividades tendo em vista a realidade coti- diana e a sociedade em que se encontram inseridos. Matemática e o processo de letramento No campo da Língua, bem como no da Matemática, as crianças precisam ser esti- muladas por professores e familiares para que possam dominar estratégias espontâ- neas e para poderem ampliá-las e usá-las de maneira consistente. O aprendizado da Matemática está mui- to ligado à aquisição e ao desenvolvimento de habilidades linguísticas. O número e o espaço são construções que dependem da interação com os outros e com o ambiente. Muitas atividades aproximam as crian- ças da Matemática: a distribuição dos ma- teriais, o reconhecimento dos objetos que pertencem a cada criança, a contagem de objetos, o arrumar e brincar com blocos, jogos de adivinhar palavras, loterias, domi- nós, baralho, músicas e brincadeiras. Os pais e professores devem fazer com que as crianças questionem suas respos- tas, que realizem confrontações. Quando se cria, nas salas de aula, um clima de co- operação, as crianças podem adotar pers- pectivas diferentes e modificar pontos de vista. Lembremos que a numeração permite comunicar o pensamento através de sig- nos e que, à medida que as crianças pos- sam operar com o material, poderão fazer a mesma coisa com suas representações. O jogo, o trabalho e o desenvolvimento de projetos nas oficinas ou no cantinho da Matemática oferecem boas oportunida- des para estimular, observar e fortalecer as brincadeiras infantis, levando-as a ma- nipular, relacionar, antecipar, encontrar equivalências, simetrias e desenvolver ra- ciocínios. A aprendizagem dos conhecimentos matemáticos é obtida - assim como os da Língua por imersão em situações lúdicas e desafiadoras. Dessa forma, são adquiridos 26 2727 os conceitos referentes ao número e ao espaço e vão sendo fortalecidos os dife- rentes procedimentos: discriminar, anali- sar, generalizar, reunir, resolver, verbalizar, representar etc. Na Matemática, o vocabulário é especí- fico. Na Língua, existem palavras com vá- rios significados.Por exemplo, conta: soma de dinheiro; algoritmo; peça de colar; terço etc. A criança vive, em seu ambiente, rodea- da de pessoas e objetos que podem ser to- cados, mexidos, organizados, e ela própria pode orientar-se em relação a eles. Dentro desse meio de interação a criança começa a agrupar os objetos, a distinguir a unidade da pluralidade, a comparar, em suas brinca- deiras, se tem mais figurinhas que seu ami- go, se há mais ou menos copos para beber suco do que crianças, se eles são suficien- tes ou não. Dessas experiências, ingressa no mundo das quantidades descontínuas ou discre- tas as coleções de objetos que se apresen- tam separadas em unidades que podem ser contadas, como as contas de um colar, os biscoitos para a merenda etc. Nesse contato com material concreto, observará que existem alguns objetos que são mais compridos do que outros, mais al- tos ou maiores, mais pesados. Observará que seu próprio corpo é diferente do de sua irmã, de seu colega, de seu primo. Assim começa a manejar quantidades contínuas. Essas quantidades não podem ser conta- das da mesma maneira que as coleções de objetos, pois constituem uma unidade em si mesma. Este é o caso dos líquidos como a água e o leite, dos sólidos como a areia e a ter- ra ou também do tempo e, da distância. No entanto, as quantidades contínuas podem ser expressadas através de um número, pois se dividem em unidades de medida, suscetíveis de serem contadas. Ex.: 3 me- tros de tecido, 2 xícaras de leite, 6 horas, 1 colher de óleo etc. Esse processo recebe o nome de medir e é uma construção social. Assim, o número surge pela necessidade de quantificar as quantidades contínuas e descontínuas que se encontram no espaço que nos rodeia, proporcionando-nos uma melhor compreensão da realidade, tanto física como social. A criança que chega às classes de alfa- betização, seja na Educação Infantil ou no Ensino Fundamental, já entrou em contato com os números e, em muitos casos, utili- zá-los para resolver problemas cotidianos simples. Além de terem sido adquiridos em seu ambiente familiar e em suas brincadeiras, esses conhecimentos numéricos também são provenientes da variada informação que recebe por intermédio dos meios de comunicação social (televisão, jornal, re- vista). A partir das competências iniciais trazi- das pelas crianças é que podemos elaborar estratégias para desenvolvê-las e poten- cializá-las por meio de situações-problema que lhes dêem significado. Devemos ter presentes os conhecimen- tos que a criança já desenvolveu precoce- mente para continuar trabalhando sobre eles, fortalecendo e tornando mais com- plexo o processo. Assim, ela estará prepa- rada para construir o saber matemático. O número é construído a partir de ati- vidades de contagem e medição. Tais ati- 28 29 vidades surgem pela imitação de outros e como efeito do ensino explícito. O acesso ao número, a conservação, a seriação e a classificação são processos que se desenvolvem de forma simultânea e paralela, podendo produzir-se defasa- gens entre um e outro. A correspondência Biunívoca e o uso de coleções de amostragem são procedimen- tos comuns na infância. É através dos pro- blemas que, em primeiro lugar, as crianças constroem o significado do conceito de nú- mero. Devemos considerar que o conceito de número traz implícitos dois aspec- tos: A cardinalidade refere-se à quanti- dade de elementos de uma coleção. A ordinalidade determina a posição de um elemento em uma série. O processo de contar aparece preco- cemente, pois as crianças interessam-se muito pelos números. Geralmente por transmissão social, as crianças sabem recitar números, às vezes até números bastante grandes, embora isso não implique que os usem para contar de maneira apropriada. Elas progridem na construção do concei- to de número através da ação de contar e da percepção visual-global das pequenas coleções, particularmente aquelas que possuem de um a quatro ou cinco elemen- tos. É um processo muito complexo que começa pela recitação dos números na ordem da série e passa por diferentes mo- mentos que vão desde a simples recitação até a verdadeira contagem. Na contagem, a criança repete ou omite os elementos a serem contados, devido à ausência de uma ordem mental ou a uma má sincronização entre o que ela recita e a correspondência com o objeto contado. Também pode acontecer que, utilizando os nomes dos números numa ordem “es- tável”, estabeleça uma correspondência termo a termo entre eles e cada elemento nomeado. Nesse caso pode parecer que es- teja contando bem, mas o último elemento nomeado não adquire o valor de todos os elementos da coleção. Quando a criança assim procede, o número é utilizado como etiqueta numérica. Dessa forma, se perguntarmos a uma criança, após contar uma coleção de 5 elementos, quantos elementos há, ela responde “um, dois, três, quatro, cinco”. Quando o último elemento é nomeado, sig- nificando a quantidade total de elemen- tos da coleção sem que ela precise contar novamente, podemos dizer que a criança obteve a síntese entre a cardinalidade e a ordinalidade. Todo processo será influenciado pelo campo numérico de cada criança em parti- cular. Nas coleções com menos de cinco ob- jetos, as crianças de 5 anos não só identi- ficam a quantidade (número perceptivo) mas também resolvem situações de acres- centar e tirar por procedimentos de cálcu- lo. O número e seus usos Vejamos algumas situações: Comunicar quantidades: são situa- ções frequentes que acontecem quando as crianças pedem duas balas ou um envelo- 28 29 pe de figurinhas, ou quando contam à mãe quantas crianças virão ao seu aniversário. Memória da quantidade: formar uma quantidade equivalente a outra. Ex.: Se pedirmos que as crianças tragam tan- tas colherinhas quantos pratos houverem na mesa, algumas delas contam, usam o número para evocar a quantidade em sua ausência. Outros poderão comportar-se de maneira diferente, como ir buscar as co- lherinhas sem ter observado a quantidade de pratos, ou representar as quantidades com o dedo, usando-os como uma coleção de mostra. Memória da posição: entre outros casos, é utilizada em jogos nos quais deve- -se avançar ou recuar sobre uma pista: se o jogo pára, o número servirá para recordar a posição. Essa mesma função é desem- penhada quando ressaltamos a ordem de chegada dos jogadores. Em situações de cálculo, que impli- cam ações de acrescentar, tirar ou repartir, as crianças utilizam dois tipos de procedi- mentos: contar e calcular. Exemplo: Se guardarmos 4 bolinhas num vidro e, depois, acrescentarmos mais 3, e lhes perguntarmos quantas bolinhas há agora no vidro, é possível observar as seguintes formas de resolução: Contar – a criança conta todas as bo- linhas a partir de um, isto é, torna a contar tudo. Sobrecontar – parte do número que designa a quantidade inicial e a partir daí conta a quantidade acrescentada. Calcular – a criança reconhece a ope- ração que lhe permite resolver o problema e utiliza o resultado que já foi memorizado. A criança também poderia usar o cálculo mental. Assim, são reconhecidos dois campos numéricos sobre os quais a criança pode atuar: o campo dos números pequenos, no qual pode calcular, e um campo muito mais amplo, no qual opera contando. Na educação inicial, este último pode abranger até o número 30, pois são núme- ros que se apresentam no cotidiano, como número de alunos da turma, quantidade de dias do calendário. Os professores devem levar em conta as competências individu- ais. Na escolha de atividades, deve-se levar em conta que existem contextos nos quais um aspecto do número prevalece sobre o outro. Isso é o que ocorre no calendário,
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