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A Constituinte Burguesa Qu’est-ce que le Tiers État? www.lumenjuris.com.br EDITORES João de Almeida João Luiz da Silva Almeida Conselho Editorial Adriano Pilatti Alexandre Freitas Câmara Alexandre Morais da Rosa Aury Lopes Jr. Cezar Roberto Bitencourt Cristiano Chaves de Farias Carlos eduardo Adriano Japiassú Cláudio Carneiro Cristiano Rodrigues Daniel Sarmento elpídio Donizetti emerson Garcia Fauzi Hassan Choukr Felippe Borring Rocha Firly Nascimento Filho Frederico Price Grechi Geraldo L. M. Prado Gustavo Sénéchal de Goffredo Helena elias Pinto Jean Carlos Fernandes João Carlos Souto João Marcelo de Lima Assafim José dos Santos Carvalho Filho Lúcio Antônio Chamon Junior Luigi Bonizzato Luis Carlos Alcoforado Manoel Messias Peixinho Marcellus Polastri Lima Marco Aurélio Bezerra de Melo Marcos Chut Marcos Juruena Villela Souto Mônica Gusmão Nelson Rosenvald Nilo Batista Paulo de Bessa Antunes Paulo Rangel Ricardo Lodi Ribeiro Rodrigo Klippel Salo de Carvalho Sérgio André Rocha Sidney Guerra Conselho Consultivo Álvaro Mayrink da Costa Amilton Bueno de Carvalho Andreya Mendes de Almeida Scherer Navarro Antonio Carlos Martins Soares Artur de Brito Gueiros Souza Caio de Oliveira Lima Cesar Flores Firly Nascimento Filho Flávia Lages de Castro Francisco de Assis M. Tavares Gisele Cittadino Humberto Dalla Bernardina de Pinho João Theotonio Mendes de Almeida Jr. Ricardo Máximo Gomes Ferraz Sergio Demoro Hamilton Társis Nametala Sarlo Jorge Victor Gameiro Drummond Rio de Janeiro Centro – Rua da Assembléia, 10 Loja G/H CEP 20011-000 – Centro Rio de Janeiro - RJ Tel. (21) 2531-2199 Fax 2242-1148 Barra – Avenida das Américas, 4200 Loja e Universidade estácio de Sá Campus Tom Jobim – CEP 22630-011 Barra da Tijuca – Rio de Janeiro - RJ Tel. (21) 2432-2548 / 3150-1980 São Paulo Rua Correia Vasques, 48 – CEP: 04038-010 Vila Clementino - São Paulo - SP Telefax (11) 5908-0240 / 5081-7772 Brasília SCLS quadra, 402 bloco D - Loja 09 CEP 70236-540 - Asa Sul - Brasília - DF Tel. (61)3225-8569 Minas Gerais Rua Araguari, 359 - sala 53 CEP 30190-110 – Barro Preto Belo Horizonte - MG Tel. (31) 3292-6371 Bahia Rua Dr. José Peroba, 349 – Sls 505/506 CEP 41770-235 - Costa Azul Salvador - BA - Tel. (71) 3341-3646 Rio Grande do Sul Rua Padre Chagas, 66 - loja 06 Moinhos de Vento - Porto Alegre - RS CEP 90570-080 – Tel. (51) 3211-0700 Espírito Santo Rua Constante Sodré, 322 – Térreo CEP: 29055-420 – Santa Lúcia Vitória - ES. Tel.: (27) 3235-8628 / 3225-1659 EMMANUEL JOSEPH SIEYèS Prèjus (1748) – Paris (1836) A Constituinte Burguesa Qu’est-ce que le Tiers État? 5a edição Organização e Introdução Aurélio Wander Bastos Prefácio José Ribas Vieira Tradução Norma Azevedo EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro 2009 Copyright © Lumen Juris/Aurélio Wander Bastos PRODUÇÃO EDITORIAL Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei no 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei no 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil Nota Explicativa À decisão da editora Lumen Juris de traduzir e publicar esta obra sobrepôs-se correspondência de Fortaleza, assinada pelo Professor Dimas Macedo. Posteriormente, solicitamos ao Professor José Ribas vieira a apreciação técnica do texto francês original, bem como do texto espanhol, que serviram de base a esta tradução, realizada por Norma Azeredo. A preparação dos textos e a respectiva adaptação de linguagem, quando necessárias, bem como as notas, os fragmentos introdutórios à história da França, a cronologia da Revolução francesa e a organização geral da obra ficaram sob a responsabilidade do Professor Aurélio Wander Bastos. Para melhor compreensão do texto de Sieyès, a localização de sua obra e de seu pensamento, o Professor Aurélio Wander Bastos elaborou uma introdução analítica das principais vertentes de suas proposições e, o Professor José Ribas vieira, um prefácio histórico e comparativo. A par da utilidade didática desta obra, até agora inexplicavelmente inédita no Brasil, ela deve ser vista nas suas circunstâncias históricas, no quadro revolucionário francês do século Xviii. O livro é uma excelente consolidação de informações sobre a transição institucional e um repositório de experiências imprescindíveis para todos que pretendam estudar ou dirigir mudanças políticas. No Brasil, são pouquíssimas as informações sobre a obra Qu’est-ce que le Tiers État?, elaborada por emmanuel Joseph Sieyès. Nós encontraremos, naturalmente, em língua francesa, um farto material a respeito deste assunto. Destaca-se entre estes a edição crítica organizada por Roberto Zapperi,1 onde há valiosos dados sobre as edições francesas do trabalho mais renomado de Sieyès. Com base nos dados a respeito do processo de publicação desta obra, indicados no prefácio desta edição brasileira, podemos, desde já, informar que a brochura foi elaborada durante os meses de novembro e dezembro de 1788 e publicada sem o nome de seu autor no início de janeiro de 1789. Sieyès apressou-se em editar Qu’est-ce que le Tiers État? pressionado pelos dramáticos momentos da França pré-revolucionária e desejoso de participar desses acontecimentos. Certo de que se tratava de um esboço a ser posteriormente aperfeiçoado, embora tenha alcançado uma repercussão política surpreendente, este trabalho não deixou de frustrar Sieyès na sua ambição de tomar-se um importante escritor político. Para superar esta frustração, este pensador e ativista francês dedicará toda a sua vida à tarefa angustiante de revê-la. Após esta nota explicativa esboçando a trajetória desta importante obra, cabe observar, também, que adotamos para a presente edição brasileira o títuloA Constituinte Burguesa, uma forma viável de se estimular discussões sobre o verdadeiro quadro histórico que levou à incipiente teoria política e jurídica sobre o Poder Constituinte formulada por Sieyès. Os Editores ——————————— 1 Emmanuel Sieyès, Qu’est-ce que le Tiers État?, edição organizada por Roberto Zapperi, Genebra: Librairie Droz, 1970. Para Compreensão de Sieyès Notas e Fragmentos sobre a História da França Feudal Nos antigos domínios do império Romano, dos reinos fundados pelos bárbaros, o mais forte foi o Franco. Iniciou a sua expansão com a conquista das últimas possessões romanas na Gália por Clovis (481-511), que inaugurou a dinastia merovíngea. Percebendo o poderio da igreja nas antigas áreas do império Romano, converteu-se ao cristianismo e incentivou o regime de grandes propriedades (feudos), controladas por príncipes milicianos, ou pelo alto clero, apoiados no trabalho servil. Em meados do século VIII, expandiu-se na Gália o poderio da família nobre dos carolíngeos, que instauraram uma nova dinastia (715/987), cujo maior expoente foi Carlos Magno (768/814). A partir de meados do século X, o império iniciou sua decadência e desmembrou-se nos reinos da itália, da Francônia ou Franco-oriental (Germânia) e Franco-ocidental (França). O poder dos senhores feudais (condados e ducados) aumentou significativamente, o que permitiu ao senhor de Paris e Orleans (Hugo) sobrepor-se aos remanescentes carolíngeos e inaugurar uma nova dinastia (987): a dos capetos. É neste período que mais visivelmente se pode identificar socialmente o regime feudal. Os capetos reinavam sem poder central, o que permitiu o crescimento desarmônico de condados,ducados e da igreja. Paralelamente, iniciou-se o processo de expansão comercial e urbana, especialmente a partir do século XII, após as cruzadas incentivadas pelo Papa urbano II (Clermont, França, 1095) e as usurpações de pequena monta do rei capeto Felipe i (1066/1108). Felipe II (1180/1223), na política de usurpações, obteve resultados mais positivos e anexou a Normandia e Anjou, vencendo, inclusive, o rei inglês João Sem Terra e seus aliados germânicos (Flandres, 1214). Mais tarde, anexando Tolosa, obteve saída para o Mediterrâneo permitindo o crescimento de cidades e ducados setentrionais. Luís IX (1226/1270), neto e sucessor do rei capeto Felipe ii, promoveu uma importante reforma judiciária, que debilitou as atribuições judiciais dos senhores feudais (abolindo o Juízo de Deus) e fortaleceu o poder real, obtendo o apoio de cavaleiros menores, do clero paroquial e dos camponeses. Anos depois, Felipe iv, o Belo (1285/1314), da mesma dinastia, consagrouse, historicamente, por dois significativos feitos: cerceou as preocupações expansionistas e autonomistas da igreja e submeteu o papado (Bonifácio VIII) ao domínio francês (cativeiro), retirando-o de Roma e instalando-o em Avinhão (1308/1378). Antes, em 1302, criou os estados Gerais, composto de representantes do clero, dos nobres (que de certa forma já se reuniam a chamado do rei para tratar de questões importantes) e dos comuns (mercadores citadinos que haviam adquirido bastante força e dispunham de vultosos recursos financeiros), denominados de Terceiro estado ou estado plano. Em 1328, os senhores feudais interromperam a dinastia dos capetos e levaram ao trono um parente daqueles: Felipe de valois, inaugurando-se nova dinastia. Logo depois (1337), iniciou- se a Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França, que se prolongou, com interrupções, até 1442. A essencial razão dos combates era a posse da rica região industrial de Flandres, no norte da França, mas de discutível domínio francês. As sucessivas derrotas dos franceses (especialmente em Crecy e Poitiers), inicialmente, comandados pelos reis valois João II, o Bom, e depois pelo rei Carlos, combinadas com o descontentamento da burguesia e as sublevações populares (Jacquerie), levaram este rei a convocar os estados Gerais, transferindo-lhe virtualmente o poder administrativo, o que pouco durou. O desgoverno levou a nobreza atemorizada a apoiar e fortalecer o rei Carlos e os que lhe sucederam até a invasão de Paris pelos ingleses, após a vitória de Azincourt (1415). Henrique V (da Inglaterra) proclamou-se rei da França, com apoio do Duque de Borgonha, e garantiu o cerco trágico da cidade de Orleans. Sem maiores sucessos (as escaramuças de Joana D’Arc se ampliaram) e ante a deserção do Duque de Borgonha (que assinou tratado de paz com o rei de França), os ingleses perderam o seu poderio e abandonaram os domínios conquistados. O fim da Guerra dos Cem Anos consolidou o poder real da dinastia de valois com Carlos VII (1422/1461), que organizou um exército permanente e decretou o imposto da talha para sua manutenção. Os estados Gerais perderam a sua importância, inclusive o poder de autoconvocar-se (grande ordenação), adquirido no início da guerra. Luís XI (1461/1483), conhecido como aranha universal, sucedeu a Carlos VII, enfraquecido em guerras com os senhores feudais, especialmente com Carlos, o Temerário (Duque de Borgonha), que, finalmente, vencido, perdeu os seus domínios. Esta vitória sobre o Duque de Borgonha caracteriza o início da formação do estado nacional francês. Os borgúndios, provençais, bretões e gascões passaram a se denominar franceses, como os francos ocidentais e os povos setentrionais. O idioma francês foi se tornando comum a todo o país. Muitas regiões isoladas, domínios feudais e cidades, uniram-se num território único, com cerca de quinze milhões de habitantes (nove-décimos no campo). Na França, o maior estado da Europa à época, desenvolvia-se a indústria têxtil do linho, lã e seda, bem como de rendas, tapetes, vidros e porcelana. A imprensa estava sendo incrementada em Lyon e Paris. No apogeu, a unificada monarquia francesa começou a descarregar seus primeiros golpes para proporcionar ocupação e lucro à sua nobreza, especialmente sobre a rica, desunida e débil Itália. Destacaram-se nestes combates Francisco I (1515/1547), que acabou por ser derrotado por Carlos V, rei da Espanha (Pávia, 1525), a quem procurou minar, inclusive buscando o apoio dos protestantes. Governou por éditos e não convocou uma só vez os estados Gerais, transferindo o poder a seu filho Henrique II, que, em 1559, perdeu definitivamente a Itália (paz de Chateau-Cambresis). As campanhas na Itália e as alianças com os protestantes tiveram, todavia, visíveis efeitos na conformação história francesa do século XVI: a influência do renascimento italiano e do protestantismo, que, na Alemanha, desenvolveu-se com a pregação reformista de Martim Lutero (1483/1546). Paralelamente a estes fatores, especialmente ao segundo, cresceu o aparelho burocrático do reino unificado francês. A burguesia, fugindo de sua situação, começou a comprar cargos administrativos, a viver de arrendamentos e da usura, o que arrefeceu o crescimento industrial e comercial. O governo começou a ampliar drasticamente a cobrança de impostos e, ao mesmo tempo, arrendá-los a ricos burgueses. A partir de 1534, o movimento protestante começou a crescer na França, especialmente o calvinismo (Calvino, 1509/1564), pedindo a aniquilação da idolatria católica e a confiscação das terras da igreja (facção dos huguenotes). Após a morte do valois Henrique II, quando reinava seu filho mais velho Francisco ii, tomaram de fato o poder os duques de Guise, proprietários de enormes riquezas em terras senhoriais eclesiásticas, tenazes defensores do catolicismo, que perseguiram ferozmente os huguenotes. Os huguenotes, comandados pelos Bourbons, parentes da decadente dinastia dos valois, especialmente o rei de Navarro (situado nos Pireneus), iniciaram severa oposição que, por algum tempo, foi equilibrada pela regente Catarina de Médicis, mãe de Carlos IX (menor, segundo filho de Henrique II e irmão do também falecido Francisco II). Sucederam-se combates contínuos com a Inglaterra: os príncipes alemães apoiando os huguenotes e Felipe ii, da Espanha, os Guise católicos. Em 1572, quando da Noite de São Bartolomeu (23/24 de agosto), os católicos, apoiados pela burguesia parisiense, resolveram acabar com os huguenotes, exatamente quando Henrique de Navarra se casaria com Margarida, irmã de Carlos IX. Apesar dos desastrosos resultados, os huguenotes sublevaram- se com o apoio da nobreza e das cidades do sul da França contra a regente Catarina de Médicis e o rei Carlos IX, que veio a falecer em 1574. Ocupado o poder por seu irmão Henrique III de valois, sem autoridade e competência administrativa, não se impediu a expansão no incipiente estado francês de um verdadeiro poder paralelo: o estado huguenote com administração, exércitos, finanças e tribunais. Este estado incipiente, comandado por Henrique de Navarra, que não era valois, mas Bourbon, com a morte de Henrique III, seu cunhado (com quem chegou a se aliar para combater os Guise), tornou-se o legítimo sucessor do trono francês. Este fato não só é significativo, mas de crucial importância na história francesa, pois ascende ao trono francês, não apenas uma nova dinastia, mas uma dinastia com vínculos religiosos com os huguenotes e sem ligações diretas de linhagem, até aquele fato, com os Francos, os Capetos e os valois.Com a morte de Henrique III de valois (assassinado pelo monge Jacques Clément, 1589), tratou o novo rei Henrique IV de Bourbon de articular as condições necessárias para o pleno exercício de seu reinado, procurando, preliminarmente, ampliar as pensões e dignidades dos senhores católicos. Todavia, ele encontrou forte resistência nos católicos parisienses, apoiados pelos católicos espanhóis. Calculista e pertinaz, tendo como objetivo a ocupação definitiva do poder e não a expansão ou a consagração de postulados religiosos, converteu-se ao catolicismo, quando fez a célebre afirmativa que, para sempre, passou a caracterizar a sucumbência das idéias ao utilitário pragmatismo do poder: Paris bem vale uma missa. Paralelamente, Henrique IV promulgou o Édito de Nantes, que resguardou a liberdade religiosa para os calvinistas. O império floresceu: a indústria, o comércio e a agricultura foram incentivados e acumularam-se as reservas de ouro. Em 1610, todavia, Henrique IV foi assassinado pela resistência católica e o seu sucessor, Luís XIII de Bourbon, para sobreviver aos conflitos intestinos, ampliou a política de concessões aos antigos senhores eclesiásticos e aos nobres, levando novamente os cofres do estado ao esvaziamento. Em 1614, empobrecido o estado, Luís XIII convoca sem sucesso os estados Gerais que, mais uma vez, puseram em evidência as hostilidades entre o clero, a nobreza e os comuns. Luís XIII, dissolvidos os estados Gerais, passou a governar, a partir de 1624, com o decisivo apoio do Cardeal Richelieu (1585/1642). Inaugurou-se o longo período do absolutismo francês, continuado, a partir de 1643, por Luís XIV (1638/1715) e pelo astuto Mazarino (1602/1661). O absolutismo só foi destruído pela Revolução Francesa, no quadro e nas condições que Sieyès analisa neste seu livro originariamente denominado Qu’est-ce que le Tiers État? Aurélio Wander Bastos Prefácio Acreditamos que a edição da obra de Sieyès, Qu’est-ce que le Tiers État?, em nosso país, se justifica por inúmeras razões. Entre estas, podemos mencionar que o pensamento de Sieyès traz importantes subsídios para o debate ora iniciado no Brasil a respeito de nosso processo constituinte. Ao longo desta apresentação, procuraremos demonstrar como Sieyès contribuiu, por exemplo, para a elaboração de uma teoria caracterizando a noção de Poder Constituinte. Não devemos, também, esquecer o fato de Sieyès ser citado muitas vezes em obras de Direito Constitucional no Brasil, mas, na verdade, ele é um autor pouco conhecido e lido entre nós. Dessa forma, a presente edição brasileira de Qu’est-ce que le Tiers État? vem suprir uma lacuna existente na bibliografia, principalmente dos nossos cursos de Direito, quer em nível de Graduação ou de Pós-Graduação. É de ser ressaltado, ainda, que, através da leitura dos trabalhos de Sieyès, é possível termos uma dimensão mais exata da própria Revolução Francesa. 1. O Pensamento de Sieyès Sabemos que, apesar de quase duzentos anos após o início deste processo revolucionário, sua historiografia não apresenta, ainda, um determinado consenso quanto a sua interpretação. Deste embate, sobressaem as discussões travadas entre François Furet2 e Albert Soboul.3 Neste quadro, destacam-se questões como: teria havido várias formas de processo revolucionário entre o período de 1789 a 1799, e, por conseqüência, a Revolução Francesa poderia ser reduzida, em um procedimento tão homogêneo, ao significar, apenas, um fenômeno político tipicamente burguês. Neste sentido, a presente edição trará possíveis reflexões para responder a estes questionamentos, como também, gostaríamos desde já, de um certo modo, polemizar com algumas das interpretações que reduzem o pensamento de Sieyès a um típico representante da burguesia francesa nascente por meio das soluções jurídicas apresentadas ao longo das mudanças revolucionárias de 1789. Esta redução simplista pode ser visualizada através da apresentação elaborada por Francisco Ayala para uma edição espanhola do Qu’estce que le Tiers État?.4 em conseqüência, com base em Ayala, seria acertado, compreender Sieyès como um mero pensador burguês? Assim, nessa apresentação, antes mesmo de esbo çar os traços biobibliográficos de Sieyès, gostaria de ponderar algumas reflexões a respeito dessa questão. Na verdade, o pensamento deste autor insere-se, Muito mais, numa tradição política de modernizar a sociedade francesa. Sieyès procurou atualizar para a realidade francesa as concepções liberais econômicas de Adam Smith a uma linha mercantilista esboçada, por exemplo, por Condillac. Neste raciocínio é a lição de Roberto Zapperi:5 Sieyès tinha interesse somente de direcionar à Teoria de Smith na medida em que esta pudesse harmonizar com o ensinamento de Condillac ao qual ele sempre esteve vinculado. Não é por acaso que Sieyès ao introduzir a brochura sobre o Terceiro estado com base numa análise da sociedade francesa, ele a apresentou como um conjunto laborioso, unido e compacto, da qual o único entrave era a contradição entre o trabalho e as funções públicas, sendo que os aristocratas tinham usurpado o exercício exclusive por estes últimos. Portanto, é de ser aferido que o pensamento de Sieyès produz, com base nesta análise de Zapperi, uma certa vertente para compreender o processo revolucionário de 1789. Ao lermos Qu’est-ce que le Tiers État?, podemos, como resultado, visualizar a existência, neste momento, de uma certa perspectiva econômica, social e política que desejava, como já afirmamos anteriormente, mais um encaminhamento de uma mudança meramente modernizante para a sociedade francesa do final do século XVIII. É importante, ainda, completar esta interpretação ao afirmar que, mais especificamente, em nível político, Sieyès elaborou todo um processo reflexivo significando um instrumento de limitação da estrutura representativa. Neste caminho, este autor francês coloca-se diametralmente em oposição ao pensamento de Rousseau. Zapperi observa com precisão que a proposta de representação política esboçada por Lodse ressurge no corpo desta obra de Sieyès. Cremos que a própria citação de Zapperi esclarece ainda mais esta interpretação:6 Ele acredita poder responder com um discurso de ataque a Rousseau ao sugerir uma versão de contraste de Lodse devidamente posta em dia no contexto não- mercantilista da liberdade econômica, que lhe parecia garantir resultados econômicos certos. Assim, pensamos não haver dúvida que, através do quadro teórico delineado por Sieyès, poderemos encontrar algumas respostas a respeito do processo historiográfico da Revolução Francesa. Após termos exposto estas justificativas para explicar a contemporaneidade da obra Qu’est- ce que le Tiers État?, pretendemos, a seguir, traçar os aspectos iniciais da vida de Sieyès. II. O início de Sua vida Sieyès, filho de um coletor de direitos reais, nasceu em 13 de maio de 1748, em Fréjurs-en- Provence. Entrou para a carreira eclesiástica como uma forma de encontrar uma melhor oportunidade de ascensão social dentro de uma família bastante numerosa e com parcos recursos financeiros. Dessa forma, o autor preparou-se para ser padre sem a mínima vocação, animado somente por uma ambição sem limites. Entretanto, através da correspondência com seu pai, podemos avaliar como esta carreira foi para Sieyès brutal e frustrante. Seus primeiros passos na estrutura eclesiástica ocorreram na região de Tréguier. Todavia, a serviço do bispo de Lubersac, ele sai de Tréguier para Chartres. Nessa caminhada, é de ser refletido que, finalmente, este ambicioso abade termina por se projetar na carreira eclesiástica. É na véspera da Revolução de 1789 que se pode compreender como o autoré um homem afortunado, pelos seguintes motivos: gozando das boas graças dos altos prelados e membro de uma loja maçônica, participante de clubes e salões à moda de Paris. Enfim, é na qualidade de vigário-geral da diocese de Chartres que ele participa da Assembléia Provincial de Orléans ao abrir os seus debates em 6 de setembro de 1787. Devemos fazer uma pausa nestes primeiros traços biográficos para observar que, segundo Zapperi, a sua formação intelectual era bem limitada em termos de preparo teórico. É nessas condições que Sieyès atuará no processo revolucionário a partir de 1789, ao contribuir para a campanha eleitoral da convocação dos estados Gerais, além da obra ora traduzida, com mais três opúsculos: Essai sus les Privilèges, Vues sur les Moyens d’exécution dont les Représentants de la France Pourront Disposer en 1789 e Delibérations à Prendre dans les Assemblées. III. Sieyès e o Processo Revolucionário de 1789 Para entendermos porque Sieyès elaborou esses opúsculos, devemos lembrar o fato de, neste momento, a França viver uma profunda crise econômica e social. É diante deste quadro que Luís XVI, seguindo conselhos de seu Ministro Necher, decide convocar os estados Gerais (em 1o de maio de 1789) para discutirem a reforma da tributação francesa. Assim, o aumento da taxação tributária seria um recurso último com que o Poder Real teria de suprir o déficit orçamentário. Em razão dos direitos assegurados ao clero e à nobreza nos estados Gerais é que podemos perceber o caráter minoritário destinado ao denominado Terceiro estado. Em face desta realidade, o processo revolucionário de 1789 será deflagrado a partir de um conflito entre o Terceiro estado e as duas ordens privilegiadas. Contudo, isto não significa, ainda, uma ruptura total destes setores sociais. Assim, os grandes senhores liberais unem-se à alta burguesia para formarem o “Partido Nacional Patriota” e o seu “Comitê dos Trinta”, figurando entre os seus fundadores os marqueses de LaFayette e de Condorcet, Talleyrand, Mirabeau e o nosso abade Sieyès. Cabe sublinhar que o pensamento de Sieyès se explicita tendo em vista o ato de convocatória dos estados Gerais de julho de 1788, autorizando aos franceses apresentarem suas idéias sobre a reforma de estado. Neste procedimento, foram editados quarenta mil cahiers de doleances; entre estes, os quatro opúsculos já mencionados por nós, elaborados por Sieyès. É dentro desta numerosa publicação de idéias que sobressai o mais famoso de todos: Qu’est-ce que le Tiers État? esta obra é editada em fevereiro de 1789, consubstanciando a proposta da igualdade de direitos do Terceiro estado em relação a duas ordens privilegiadas: o clero e a nobreza. Logo após a instalação dos estados Gerais, o conflito apresenta-se entre o clero e a nobreza em relação ao Terceiro estado. Nesta perspectiva, em 17 de junho de 1789, tomando como base, principalmente, os representantes do Terceiro estado, estes declaram a sua legitimidade de se instituírem em Assembléia Nacional com ou sem a presença das duas ordens privilegiadas. Prevalece a noção contida na obra de ilegitimidade da hegemonia do clero e da nobreza ao representarem apenas duzentos mil indivíduos. Dentro desta perspectiva, a Assembléia Nacional assume o compromisso de elaborar uma constituição para a sociedade francesa. Entretanto, um último obstáculo restava para a instituição desta nova ordem jurídica: a existência de uma estrutura social segmentada em privilégios fiscais. Na noite histórica de 4 de agosto de 1789, a Assembléia Nacional decreta a igualdade fiscal ao abolir todos os direitos de tributos feudais. É neste momento que é fácil depreender a posição de Sieyès, pois caracteriza toda a sua visão política modernizadora bem limitada ao se opor à abolição dos direitos fiscais eclesiásticos. Segue-se, ainda, outro documento básico da Revolução Francesa que foi a Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão, promulgada em 26 de agosto de 1789. Diante do fato de Luís XVI se recusar à sanção destes decretos, prevalece, mais uma vez, a tese de Sieyès de que à Nação cabe uma autoridade anterior de estabelecer a ordem jurídica. Em conseqüência, tal proposição traduz-se na idéia de um Poder Constituinte originário por parte da nação. E nós encontraremos esta concepção revolucionária para a época de forma explícita na obra Qu’est-ce que le Tiers État? A redação definitiva da carta constitucional da primeira fase revolucionária de 1789 completa-se com a sua promulgação, em 3 de setembro de 1791. Nela está contida, na sua plenitude, a idéia de nação delineada por Sieyès. Ao contrário de Rousseau, com sua proposta democrática mais plena de soberania (soberania popular), na qual a representação é uti singuli, Sieyès postula um processo representativo restrito. Assim, ele esboça, diante do perigo das classes populares conquistarem a igualdade eleitoral, a distinção entre cidadania ativa e passiva. Isto é, mesmo aqueles que, ao se enquadrarem no nível da cidadania passiva, estariam representados pelos cidadãos ativos porque estes corporificam uma idéia de totalidade através da nação. É o que reza o artigo 7o da Seção III, CapítuloI, Título III, da Constituição de 1791: Os representantes eleitos nos departamentos não serão representantes de um departamento particular senão da nação inteira. Portanto, a noção deste “corpo nacional” substitui com muito mais sabedoria a concepção de contrato do século XVII, pois esse é firmado por todos, sem distinção entre despossuídos (cidadania passiva) ou não. Abre-se o caminho para uma abstração formal através do conceito de nação, na qual todos estariam representados sem diferenciação de qualquer nível. Mas não devemos esquecer que a categoria “nação” fundada por Sieyès com sua falsa totalidade encobre, em conseqüência, qualquer possibilidade de conflito. Agora, devemos voltar àquelas questões propostas por nós no início deste trabalho, ao apontar como esse autor francês distancia-se da visão liberal econômica de Adam Smith. Enquanto este propõe que as soluções dos conflitos sociais encontram-se na livre concorrência de mercado, Sieyès estrutura a sua perspectiva jurídico-política de caráter unitário de nação. Além desses aspectos, devemos deixar em aberto a seguinte questão: afinal, o que é nação? Ressaltada esta contribuição de Sieyès para a primeira fase do período revolucionário pós- 1789, é necessário dar continuidade ao histórico sobre este autor, relacionando-se com os fatos marcantes ocorridos neste período. Nesse sentido, em 3 de setembro de 1791, a Assembléia Constituinte completa os seus trabalhos e é eleita uma Assembléia Legislativa. Entretanto, o momento histórico que se segue é de uma profunda radicalização política, culminando, na noite de 9 e 10 de agosto de 1792, com uma comuna insurgente de Paris. Tal processo ocasiona combates violentos, acarretando a dissolução da Assembléia, a instalação da Convenção e o término da monarquia. V. Período de “Terror” A Convenção permanece constituída de 21 de setembro de 1792 a 26 de outubro de 1795. Ao contrário da Constituição de 1791, este período logra decretar uma igualdade jurídica plena e o avanço para certos patamares de uma democracia social e direta. Durante esta época conturbada, Sieyès manteve-se em uma posição eclipsada e discreta. Eleito para a Convenção pelo Departamento de Sarthe, votou pela morte de Luís XVI. V. Fase Conservadora Os denominados setores burgueses reassumem o controle do processo revolucionário através do golpe de 9 Termidor (27 de julho de 1794). Tal quadro restabelece-se, juridicamente, apesar das divisões entre monarquistas constitucionais e termidorianosrepublicanos, através da Constituição de 5 Frutidor, ano III (22 de agosto de 1795). Nesta Constituição, restringiram-se o princípio da igualdade (reduzida esta à seguinte noção: a igualdade consiste que a lei é igual para todos) e a noção de cidadania. Quanto ao Poder Legislativo, foi dividido em um Conselho dos Quinhentos e em um Conselho de Anciãos. O executivo foi entregue a um Diretório de cinco membros designados pelo Conselho de Anciãos. Para o primeiro Diretório, entre os indicados estava Sieyès, que recusou o posto, pois não perdoava aos termidorianos uma elaboração constitucional que debilitava a autoridade de estado. Por esta razão, ele se mantém à margem do processo político, mas em uma posição de conspirar contra ele. O autor por nós estudado arguía, contra a Constituição do ano III, que ela estimulava o conflito entre os poderes e uma total ineficácia administrativa. A sua postura conspirativa culmina ao assumir o Diretório em 21 Prairal (9 de junho), apesar de estar contrário a este regime. Embora julgue necessária a revisão constitucional, Sieyès optou pelo Golpe de estado. Isto ocorre com o primeiro 18 Brumário (9 de novembro de 1799), quando Napoleão Bonaparte assume o controle militar de Paris. Sob a pressão do exército, os Conselhos foram subordinados a duas comissões que votaram a substituição do Diretório por três cônsules. As comissões e os cônsules tinham como função elaborar a nova carta constitucional. Os cônsules foram RogerDucos, Bonaparte e Sieyès. Mais uma vez, a influência deste pensador francês transparece na Constituição de 22 Primário, ano VIII (13 de dezembro de 1799). Com a instituição desta ordem jurídica e com o início do período napoleônico, podemos afirmar que o momento revolucionário de 1789 havia encerrado o seu ciclo de mudança. A construção da base de uma nova sociedade completa-se com a promulgação do Código Napoleônico de 1804. Apesar de sua enorme contribuição para a Constituição de 1799, Sieyès é afastado do Consulado. É destinada a ele a posição de presidente do Senado. Com este cargo de pouco prestígio, o autor de Qu’est-ce que le Tiers État? torna-se opositor de Bonaparte. Com a restauração de 1814/1815, por ter sido regicida, é obrigado a refugiar-se em Bruxelas. Volta a Paris após a Revolução de Julho de 1830, falecendo em 20 de junho de 1836. VI. Conclusão Estamos certos de que a leitura desta obra, editada pela editora Lumen Juris, trará algumas reflexões aos questionamentos levantados por nós no início desta apresentação. Pois, na verdade, Sieyès não pode ser reduzido, apenas, a um mero representante da burguesia francesa. Neste sentido, apesar das limitações de seu preparo teórico, desejamos, a título conclusivo, reafirmar que Sieyès insere-se em uma tradição política francesa de objetivar a construção de uma ordem jurídica e social estável. Tal tradição aproxima-se do pensamento de Montesquieu e abre o caminho para a elaboração teórica de Benjamim Constant no período de Restauração. José Ribas vieira Professor-Adjunto do Departamento de Ciência Política da universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da PUC/RJ ————————— 2 Vide François Furet e Denis Richet, La Revolution Française. Vervier (Bélgica): Nouvelles Éditions Marabaut, 1979. 3 Vide Albert Soboul, história da Revolução Francesa. 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar 1974. 4 Sieyès. Que es el Tercer estado? Madrid: Aquilar S. S. de Ediciones, 1973. Vide a introdução de Francisco Ayala, pp. XI-XX. 5 Introdução elaborada por Roberto Zapperi à obra Qu’est-ce que le Tiers État?. Genebra: Droz, 1970, p. 19. A tradução deste trecho de Zapperi foi elaborada pelo autor deste prefácio. 6 Sieyès (introdução de Zapperi), ob. cit., p. 50. A tradução do trecho de Zapperi foi realizada pelo autor deste prefácio. Introdução Esta obra, Qu’est-ce que le Tiers État?, de autoria de Emmanuel Joseph Sieyès (1748/1836), que está sendo publicado com o título de A Constituinte Burguesa, corresponde e se confunde com um dos mais significativos momentos da história moderna: a Revolução Francesa. O livro não antecede à Revolução nem ao menos lhe sucede: sua dinâmica é a dinâmica da própria Revolução. A linguagem convulsiva e paradoxal deste eminente político francês é a expressão nítida das contradições e das esperanças que tumultuam e turvam a própria mudança. Para compreendermos o livro dentro do seu quadro político é necessário que se entenda que ele é a tradução explícita da esperança revolucionária nas suas contradições. Nesta obra, a linguagem e o discurso do autor exprimem o seu esforço para superar limitações provocadas pelos atropelos da Revolução. Por isto, não pode ser estudada e compreendida senão inserida nas contradições de seu próprio tempo. Este é um livro de época: no presente (hoje), é a proposta futura vista do seu próprio passado. As suas lições são lições depuradas pela experiência revolucionária: a esperança que a história destilou. Qu’est-ce que le Tiers État? é uma obra perfeita mente inserida no quadro político francês da época, mas de compreensão técnica difícil. Quem sabe, esta segunda razão explique o seu ineditismo em língua portuguesa. Neste sentido, para se conhecer o pensamento deste revolucionário, preliminarmente, é necessário que se conheça o seu tempo histórico — o período pré-revolucionário, a Revolução Francesa e a ascensão bonapartista. Em segundo lugar, deve-se pressupor que o casuísmo exemplificativo de sua narração é a referência empírica, e não o indicador teórico, que nos permite desenvolver abstrações retrospectivas sobre o que foi a sua preocupação prospectiva. Esta obra de Sieyès, conseqüentemente, exige um aprendizado preliminar: para compreendê-lo e retirar do seu texto a experiência da época é imprescindível aprender a abstrair-se sobre o próprio passado, colocar-se no passado como se fosse o futuro. Este exercício metodológico não é simples; ao contrário, é bastante complexo: abstrair-se sobre o passado implica necessariamente em raciocinar com os parâmetros que o próprio passado impõe, sem se circunscrever aos seus próprios limites. A regra para se compreender a exata dimensão do passado é observá-lo com seus próprios olhos, com seu quadro de valores e suas dúvidas, mas ter, também, sempre claro que as suas lições, especialmente as políticas, somente servem como lições na compreensão crítica de sua época e de seu desenvolvimento. A conceitualística sociológica, política e jurídica do tempo de Sieyès nem sempre se identificam com a conceitualística de nosso tempo. Esta é uma das razões que exigem do leitor um certo reducionismo, vamos chamar, terminológico, para não falarmos metodológico. Os conceitos de classe, ordem e estado na linguagem de nosso tempo têm uma dimensão distintiva bastante nítida, mas, à época, elas se confundiam, muito embora possamos nelas identificar nítidas conexões. O que socialmente se denominava ordem, politicamente se denominava estado, e a figura classe nunca se atribuía à ordem dos privilegiados ou ao primeiro e segundo estado (o clero ou a nobreza), mas ao Terceiro estado. Da mesma forma, não se deve confundir ou fazer explícita associação entre burguesia e Terceiro estado, assim como os estados Gerais não eram propriamente um parlamento, mas, em tese, um Conselho Consultivo do rei. Neste Conselho assentavam-se desproporcionalmente procuradores do clero, dos nobres e da classe laboriosa — os homens das cidades, os comerciantes enriquecidos, os fabricantes da indústria incipiente e do campesinato — que politicamente eram denominadosTerceiro Estado. Da mesma forma, como no nosso tempo — esta uma outra lição interessante de Sieyès —, as ordens não deviam ser compreendidas isoladamente, especialmente na sua representação política: os estados Gerais. Elas entre si se permeavam. Assim como havia o clero enobrecido, tínhamos a nobreza eclesiástica. Também não é menos verdade afirmar que o Terceiro estado estava, ele próprio, permeado pela presença de deputa dos originários do clero paroquial ou da baixa nobreza, assim como entre si se confundiam nos estados Gerais o clero e a nobreza (os notáveis). Não se foge apenas de uma afirmação, que é a verdade da própria revolução: o Terceiro estado não perpassava as ordens privilegiadas (os notáveis). Todavia, é necessário que se reconheça a outra verdade: muitos dos que formulavam as propostas políticas do Terceiro estado eram originários do clero ou até da nobreza. Aliás, Sieyès dedica a estes pensadores políticos parte significativa de sua obra: aqueles que pensam a política de eliminação da opressão não são os próprios oprimidos, perdidos na ignorância de seus direitos, mas os privilegiados que tomam consciência do absurdo da usurpação. Esta é a razão pela qual, para se entender esta obra, na dimensão de sua grandeza, há que se conhecer, necessariamente, o quadro histórico da Revolução Francesa e as teorias políticas que condicionaram a esperança e a ação revolucionária. Todavia, esta é a originalidade do trabalho de Sieyès: em si mesma a obra permite a percepção nítida desta conexão entre o pensamento e a ação revolucionária. Na dinâmica de suas contradições, Qu’est-ce que le Tiers État? é a exata radiografia da sociedade francesa da época. Sendo um livro produzido no exato momento em que o presente se tornava passado e o futuro ainda não se instalara, o passado permite ver, nas suas estruturas fatigadas, as combinações de todas as forças de sua resistência. Este dado nos permite afirmar que as formulações teóricas sobre o pensamento de Sieyès ou sobre a sua proposta de ação são basicamente deduções e não a sua própria exposição. A sua linguagem não é uniforme, ela apreende os fatos revolucionários no seu próprio movimento. Por estas razões, às vezes, o texto está escrito no particípio presente, outras no condicional e, em outras ainda, tem expressões e parágrafos no passado. A sociedade francesa não era, nem muito menos deixara de ser: a sociedade francesa viria a ser. Esta estrutura do texto não o empobrece, pelo contrário é a tradução literal da grandeza e da riqueza da mudança revolucionária. Esta obra nasce com a Revolução Francesa e se desenvolve com a prática política de Sieyès. É a partir desta prática, e não propriamente das teorias políticas da época, que ele despreza, mas necessárias para compreendê-lo, que ele propõe uma nova articulação do poder político. O seu livro demonstra, porém, não o conhecimento aguçado, mas a nítida influência de novas teorias econômicas combinadas com um significativo esforço para formular uma nova teoria sobre a representatividade política. O conhecimento para Sieyès não é importante na sua formulação pura, mas na dimensão de sua utilidade social e política. Preliminarmente, na sua formulação teórica, ele não eliminava do cenário político as classes tradicionais, mas propunha, especialmente, a redefinição do espaço político do Terceiro estado. O seu estudo, na verdade, não é clássico pela sua importância teórica, mas devido às suas formulações sobre a representatividade eleitoral. No entanto, é necessário reconhecer que as sugestões sobre a representatividade política estão condicionadas pelas circunstâncias históricas da Revolução Francesa e imersas na crise do pensamento político absolutista. Assim, se podemos afirmar que esta obra cresce e se desenvolve a partir da questão da convocação dos estados Gerais, como alternativa para viabilizar a reversão do quadro da pressão tributária, não absorve, apesar da sua preocupação com a representação eleitoral, as teorias políticas que historicamente pensaram a organização do estado moderno: Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755) e Rousseau (1712-1778). Sendo um ativista político e, quem sabe, por isto mesmo, Sieyès está muito mais preocupado com a pragmática eleitoral do que com as teorias sobre formas de organização de um novo estado. Para ele, o que importa é definir meios e alternativas eleitorais que transfiram o controle do poder das ordens privilegiadas — o clero e a nobreza (os notáveis) — para o Terceiro estado, ou o estado plano como também à época se denominou. É nesta linha de correlações que não podemos negar a influência do pensamento econômico burguês, especialmente Adam Smith (1723- 1790), sobre a sua teoria da representação eleitoral. Na França pré-revolucionária, o clero e a nobreza não pagavam qualquer tipo de imposto — privilégio que aviltava os contribuintes laboriosos. A transferência da responsabilidade econômica aliada aos benefícios políticos e a vileza inescrupulosa dos privilegiados vinham influenciando decisivamente na detonação da crise revolucionária e na desagregação social. Por duas vezes, o rei Luís XVI — na primeira (1774) assistido por Turgou (economista e Fiscal- Geral do Reino) e, na segunda (1787), por Necker (banqueiro genebrino e também Fiscal- Geral) — propôs, convocando os notáveis, suprimir privilégios e obrigar o clero e a nobreza a pagarem impostos. Em ambas as ocasiões os ministros foram levados à renúncia e o Conselho de Notáveis, insubmisso, insistindo em manter os privilégios e resistindo ao gravame tributário, dissolvido. Estes ministros, todavia, se não conseguiram romper o cerco dos privilegiados, provocaram a precipitação de forças socialmente contidas; incentivando uma política de liberação do comércio de cereais, abolição do trabalho gratuito dos camponeses na construção de estradas, supressão dos grêmios corporativos e a emancipação dos servos das fazendas reais. A combinação das demandas das novas forças populares com as exigências da burguesia enriquecida pelas atividades comerciais nas comunas (cidades) levou, em 1788, Luís XVI, como alternativa viável para superar a crise social e institucional, a convocar, novamente, os estados Gerais. Os estados Gerais, que não se reuniam desde 1614, foram instalados a 5 de maio de 1789, repondo no quadro da ação política, ao lado do clero e da nobreza, o Terceiro Estado. Todos os que, como notáveis, não faziam parte das ordens privilegiadas, pertenciam ao Terceiro estado. Todavia, se bem que mutuamente úteis, o Terceiro estado, em tese, representava duas nítidas vertentes sociais: de um lado, os camponeses (sua imensa maioria), os artesãos, os operários e os pobres das cidades; de outro, também desprovidos dos privilégios, os comerciantes, os banqueiros, os arrendatários e os proprietários de manufaturas. Se alguns de seus direitos civis estavam resguardados, porque o próprio reino necessitava que exercessem suas atividades econômicas, para que sobre elas tributasse, politicamente estavam humilhados. Assim, por exemplo, no início das sessões dos estados Gerais, costumeiramente, eram obrigados a receber o rei de joelhos e com a cabeça descoberta, ao contrário dos notáveis (representantes do clero e da nobreza) que, segundo o costume, quando o rei ocupava o trono, se levantavam e cobriam a cabeça. É neste quadro de forças sociais emergentes e submetidas pelas forças instituídas que este abade e deputado procurador desenvolveu o seu livro e sua ação. Sieyès, representante do Terceiro estado, homem plasmadona revolução, se confunde com o próprio processo revolucionário e não propriamente com o pensamento político burguês, que antecede ao processo revolucionário. Por isto, às vezes, se percebe na obra que ele corre atrás dos fatos, noutras, atropela os fatos e, ainda noutras, antecede aos fatos. O seu livro não nasce em terra firme, mas, como que aos solavancos, sobrevive no pântano. No pântano que era o próprio Terceiro estado dos economicamente usurpados, politicamente desprivilegiados e socialmente oprimidos. Nesta linha de observação é muito interessante notar que ele entende como oprimidos os usurpados de toda ordem — antigos nobres empobrecidos e mesmo os que se enriqueceram com a expansão mercantilista (comerciantes, banqueiros, manufatureiros etc.) — que, cerceados na sua cidadania, não desempenham papel político significante. A libertação da opressão para Sieyès tem uma dimensão exclusivamente política: livre não é o homem que juridicamente tem resguardados apenas seus direitos civis, mas aquele que, por força da lei, tem protegidos os seus legítimos direitos políticos. Qu’est-ce que le Tiers État?,dentre as obras de seu tempo, é a que fornece mais elementos diferenciativos do conceito de cidadania civil e cidadania política; aliás, uma distinção conceitual que o pensamento político e jurídico de nosso tempo não tem aprofundado. Sieyès o fez — como seria próprio fazê-lo em toda época de transição —, mostrando que é nos períodos revolucionários que a cidadania política alcança novos espaços e significados jurídicos que a cidadania civil, muitas vezes, não alcança e não traduz. É a diferença entre a cidadania civil e a cidadania política que fornece a exata dimensão da discriminação legal, entre os fatos sociais novos e a ordem jurídica estabelecida. Ele atacou com clareza esta situação, especialmente porque se apercebeu que não bastava à classe laboriosa — aqueles que a história denominou de burguesia — a cidadania civil, mas especialmente era preciso conquistar a sua cidadania política, mutilada pela ordem dos privilegiados. Sieyès não admitia que a burguesia, como o pensamento sociológico marxista mais tarde veio a fazer, isoladamente, fosse o agente histórico das grandes mudanças no modo de produção feudal, mas os legítimos francos. O direito natural de exigir a mudança política e a ocupação do poder (do trono) não era propriamente, no seu pensamento, da burguesia, mas dos descendentes dos antigos conquistadores francos, usurpados nas suas propriedades e nos seus bens durante as sucessivas invasões e guerras de conquista em que se viram envolvidos com os descendentes dos vândalos e germânicos. Embora intua, não consegue desenvolver com clareza (este é um aspecto obscuro de sua obra) associações entre os nobres francos decadentes e a grande burguesia em ascensão, o que o condiciona, teoricamente, a fundamentar-se no legitimismo restaurador. O seu livro, visto no quadro pré-revolucionário francês, permite-nos, com mais nitidez, associar o seu saudosismo legitimista ora ao enfraquecimento dos francos nas sucessivas guerras pela posse da região de Flandres (Guerra dos Cem Anos), ora à conversão católica dos huguenotes e à consolidação absolutista dos Bourbons, afastando do poder real as linhas dinásticas tradicionalmente católicas: os francos, os capetos e os valois. Na verdade, a se considerar o pensamento de Sieyès no seu estrito sentido, não há como negar que a sua proposta revolucionária é restauradora, onde os usurpados, politicamente acuados no Terceiro estado, devem readquirir aquilo que perderam, pela força, de antigos conquistadores. Na sua tese, ele não contempla a burguesia como uma nova força histórica com novas propostas de organização política e jurídica, mas como o estado que, por força de circunstâncias históricas, encamou e resguardou a dignidade franca. A burguesia é portadora do Direito natural de restaurar os fundamentos de legitimidade do poder real, e não propriamente de instaurar o poder burguês. A tentativa de Sieyès de explicar a ascensão revolucionária de uma perspectiva restauradora não é, todavia, suficientemente profunda para prejudicar as suas formulações sobre a tomada legislativa do poder pelo Terceiro estado. Teoricamente, para o autor, o fundamento de legitimidade do poder não é exclusivamente o domínio econômico da classe laboriosa na sociedade, inclusive considerando que arca com as responsabilidades essenciais do reino, mas o seu Direito natural de governar. Não o Direito natural na sua dimensão teológica e estratificada, mas enquanto razão natural. Neste aspecto, a obra traduz a recuperação moderna do Direito natural, identificando na sua proposta a convergência do naturalisratio de Cícero com a raison écrite de Rousseau, permitindo uma exata distinção entre o legitimismo revelado e/ou costumeiro e o legitimismo racionalista como fundamento da legalidade. Enquanto legitimista, ele entende que a restauração (combinação da naturalisratio com a raison écrite) é a vitória dos usurpados sobre os usurpadores que reinam em função de privilégios. Enquanto racionalista, admite que o Direito à propriedade e à liberdade são direitos naturais e não podem ser privilégio, muito menos fundamento da ordem dos privilegiados. Assim, Sieyès admite que tradicionalmente nem sempre a ordem (situação) pessoal dos cidadãos (os privilégios) se sobrepôs à ordem (situação) real. Originariamente, as assembléias eram concebidas em função da ordem real e os cidadãos dela participavam em função da qualidade de sua propriedade. Foram a imobilidade do reino e a expansão da política de concessão de privilégios que sobrepuseram à ordem real a ordem pessoal, deslocando o fundamento do poder da propriedade para os privilégios de Corte. Conseqüentemente, a vida política não era determinada por aqueles que arcavam com as responsabilidades essenciais da sociedade, inclusive pagando os tributos que subsidiavam a realeza, mas pelas ordens privilegiadas. O Direito à propriedade é natural, para Sieyès, o que não é natural é o privilégio: a isenção tributária, por exemplo, dos notáveis. Tratava-se de restaurar o Direito natural dos proprietários organizarem o governo — aqueles que se responsabilizavam pela vida econômica da nação — e eliminar os privilégios que deformam e destroem a natureza do próprio homem. Existencialmente, para Sieyès, o homem privilegiado é o homem corrupto; sua recuperação moral só é possível através da recuperação da moralidade do poder político. Para ele, o privilégio calcifica a natureza livre do homem e torna-o subserviente e falso. O homem subserviente, na sua opinião, curva-se mediante as “falsas” promessas de seus próprios inimigos ávidos do poder. Aqueles que querem o poder, na sua opinião, mais querem os afagos dos que estão no poder do que pagar o preço de sua própria liberdade e, menos ainda, da liberdade dos desprivilegiados. Neste sentido, ele acredita que efetivamente não têm a propriedade os despossuídos de poder, que a resguarda e a legitima, apesar da responsabilidade social e tributária ser destes proprietários “presumíveis”. Só o exercício do poder, através de representação política própria, resguarda o exercício da liberdade e o Direito natural (naturalisratio) de proteção legal (raison écrite) à propriedade, como aliás, mais tarde (1804), dispôs o Código Civil de Napoleão (art. 544), de quem Sieyès, durante o governo do Consulado, foi íntimo colaborador: A propriedade é o direitomais ilimitado de usufruir e dispor dos objetos. Esta dissociação entre a propriedade e o poder, à época da Revolução francesa, como já observamos, e a naturalisratio de compatibilizar estes fatores, imprescindíveis à organização social, levou Sieyès a dedicar a maior parte deste livro à teoria da representatividade. Inicialmente, criticando os estados Gerais, como fórum legítimo de representação política e, posteriormente, propondo novas formas de representação que viabilizassem as expectativas dos comuns e esvaziassem os notáveis. As suas críticas aos estados Gerais estão basicamente dirigidas a seu anacronismo histórico, aos desvios de representação provocados pela sua composição e para sua incapacidade de recuperar os caminhos da nação francesa. Os estados Gerais não representam a nação; na sua opinião, excluídos o clero e nobreza, o Terceiro estado é a própria nação. O seu pressuposto da representação política é a representação da nação. Não há órgão de representação política se a nação não está representada. Os estados Gerais só existiam enquanto instrumento de dominação política, mas não eram a nação. Daí, a sua posição nitidamente revolucionária: era necessário que os comuns se constituíssem enquanto a própria nação, usurpada pelos privilegiados. Neste sentido, a obra deve ser analisada de dois prismas: o que seria a representatividade política da nação e, em segundo lugar, como os deputados deveriam se organizar para promulgar uma Constituição representativa. O pensamento de Sieyès, visto de hoje, parece acentuadamente conservador, mas, para a época, mesmo na sua proposta de recuperação legitimista do passado, foi significativamente revolucionário. Em primeiro lugar, ele acreditava que a referência eleitoral era a qualidade da propriedade e não a titulação ou os privilégios. Desta forma, o Terceiro estado, ou os comuns, poderia se tornar Câmara quantitativamente superior, pois os “deputados do povo” seriam necessariamente mais numerosos que os representantes do clero e da nobreza. Suplementando esta posição, defendia a tese de que o voto devia ser uno, por cabeça. Para ele, todo cidadão que reúna as condições determinadas para ser eleitor tem direito de se fazer representar, a sua representação não pode ser uma fração da representação de outro. Este direito é uno, todos o exercem por igual, assim como todos estão protegidos igualmente pela lei que ajudaram a fazer. A origem do poder é a vontade individual de associar-se: a força de cada um isoladamente é nula; é a união de todos que gera a nação. Na organização tradicional dos estados Gerais, o voto era por estado, o que colocava em situação sempre minoritária o Terceiro estado. Esta a razão da tese anterior e, como veremos, a causa principal de desagregação dos estados Gerais. Para Sieyès, como se observa, os fundamentos da representatividade estão muito nítidos: a propriedade, que deve ser oportunidade de todos, e a igualdade perante a lei, que todos ajudaram a fazer. Não cabia, é claro, no tempo histórico deste trabalho, questionar a teoria que, na época, fundamentava a substituição do poder político absolutista e feudal pelo poder político representativo da nação. Se politicamente a nação se confundia com o Terceiro estado, socialmente eram os cidadãos comuns, os burgueses, aqueles que viviam nas comunas e arcavam com o peso tributário do reino. No próprio Terceiro estado dos estados Gerais, há que se notar, porém, que os comuns estavam esvaziados. O Terceiro estado, na sucessão dos anos em que não se reuniu, foi inteiramente permeado por representantes originários de outras classes sociais ou comprometidos com objetivos estranhos aos seus próprios interesses. Entretanto, há que se reconhecer que as insuficiências do pensamento de Sieyès não estavam na identificação destas variantes, mas eram imanentes aos seus próprios limites, que não eram apenas limites históricos, mas limites de alcance metodológico. Se Sieyès foi suficientemente hábil para desenvolver, inclusive, uma teoria da inelegibilidade, não o foi para perceber que a “classe laboriosa” não estava reduzida, como já mostramos, àqueles que detinham o controle da produção e pagavam impostos — os burgueses. O seu livro permite observar que ele intuiu, mas não desenvolveu teoricamente, que a classe laboriosa e produtiva se constituía também daqueles que efetivamente trabalhavam; embora não pagassem impostos, geravam a riqueza social. É por esta específica razão — associar contribuição tributária e elegibilidade, discriminando eleitoralmente aqueles que, embora trabalhassem, não fossem contribuintes — que este precursor do constitucionalismo político, especialmente do Direito eleitoral, não conseguiu absorver a teoria do voto universal (que vingou com a proclamação da Constituição Republicana Jacobina, de 1796). Embora o pensamento eleitoral de Sieyès, para a época, representasse um avanço significativo, na verdade, a sua teoria da elegibilidade é censitária (só votavam ou se elegiam aqueles que tivessem determinada renda e contribuíssem com determinados valores em tributos), como aliás foi semelhantemente aprovado na Constituição Monárquica de 1791, para a qual decisivamente ele contribuiu. Neste sentido, ele explicita, com clareza razoável, que não pode haver liberdade sem limites, e, conseqüentemente, embora muitos produzam, nem todos devem votar; da mesma forma, nem todos que podem votar podem se eleger. Assim, por exemplo, se a lei deve fixar uma idade limite para as pessoas representarem seus concidadãos, da mesma forma, na sua opinião, deve estabelecer que as mulheres não seriam, de forma alguma, elegíveis. Paralelamente, na sua opinião, devem ser excluídos da representação dos comuns todos os privilegiados (e não propriamente do primeiro e do segundo estado) acostumados por demais a dominar o povo, assim como ele põe em dúvida a autenticidade de representantes que sejam estrangeiros (não naturalizados) ou de empregados domésticos que tenham amo. Os mecanicismos analíticos de Sieyès e a vocação restauradora de sua teoria política, por isto mesmo eleitoralmente excludente, impediram-no, em primeiro lugar, de compreender a sociedade como um todo orgânico, num processo conjunto de mudança, não como uma soma de órgãos, de partes menores com movimentos próprios, como ele próprio definia. Da mesma forma, em segundo lugar, há que se reconhecer que as expectativas da sociedade francesa da época não eram de restaurar uma ordem usurpada, e permeada por grupos mercantis, industriais e financeiros fortalecidos, como acreditava Sieyès, mas de instaurar uma nova ordem que absorvesse os interesses sociais emergentes. Na sua opinião, é impossível compreender o mecanismo social se não se analisar a sociedade como uma máquina e considerar, separadamente, cada parte, juntando-as em espírito para se captar os acordes e ouvir a harmonia geral. Não entendesse ele que o império da razão exigia, apenas, restituição dos direitos usurpados, a sua obra teria ultrapassado o seu próprio tempo e, em vez de ser uma racionalização legitimista do Terceiro estado, seria mais que uma incipiente teoria política do estado moderno. Esta crítica que se faz a Sieyès se faz a todos os revolucionários franceses que, se tiveram a grandeza de fazer a revolução, não tiveram a lucidez, ou faltaramlhes os recursos políticos e teóricos necessários, se não para compreender, para consolidar institucionalmente a avalanche das vertentes populares que atropelaram o pragmatismo e conduziram à virada militarista e auto ritária de Napoleão Bonaparte. Aliás, a ascensão napoleônica nãosó se confunde com a afirmação de Sieyès na cena política executiva, inicialmente como membro do Diretório (1795) e, posteriormente, como articula dor do golpe (18 Brumário) dos Cônsules (1799), junta mente com Napoleão Bonaparte e Roger-Ducos, mas esta aliança militarista confirma uma de suas proposições políticas para se governar a nação francesa: precisamos ter a nossa própria nobreza, a nobreza dos francos redimidos e de seus soldados da libertação. Todavia, se podemos fazer algumas restrições de alcance à obra de Sieyès não há como desconhecer que ela é um excelente retrato de transição institucional e, como tal, uma lição política indispensável. As suas contradições e dificuldades na indicação de alternativas para a França, a sua insegurança ante a necessidade de se convocar os estados Gerais, com a requalificação da representação do Terceiro estado ou a convocação de uma Assembléia Nacional composta de comuns para reconstruir a nação, são, muito bem, os indicadores, não apenas de uma época, mas da transição. É neste quadro de insegurança e tergiversação que ele formula as suas principais linhas para a atuação política. Neste sentido, como anteriormente observamos, Sieyès reconhece que o pressuposto da organização social é uma constituição elaborada pela nação, instrumento imprescindível para a recuperação da identidade nacional, através de uma Assembléia Nacional composta de representantes eleitos numa combinação proporcional entre a população e os contribuintes fiscais. É bem verdade que, se no seu trabalho, fica claro que os elegíveis para a Assembléia Nacional são os proprietários contribuintes, não fica explícito quem são os votantes. A sua teoria de representação está restrita à discussão sobre os elegíveis (e sua capacidade de representação) e os inelegíveis, inibidos no exercício de seu direito pelos limites que se devem impor ao próprio direito. Como já observamos, a sua opinião diverge das modernas teorias eleitorais: todos aqueles que têm direito de voto (alistáveis) são elegíveis, salvo, é claro, as exceções de lei. Em função das formulações jurídicas da época, o que se presume é que sua proposta pretendia que todos os contribuintes fiscais fossem elegíveis para o Terceiro estado (e, conseqüentemente, votantes), mas, nem todos do povo, por não serem contribuintes, poderiam ser votantes. Esta postura, preliminarmente, justificava a inelegibilidade daqueles que, não sendo proprietários, e não possuindo rendas, apenas trabalhassem. Para ele, a prática da eqüidade — a mais importante de todas as que a lei deve estabelecer para a eleição dos representantes — é a eqüidade entre clero, nobres e Terceiro estado. Os fatos históricos, tal como se deram, mostram-nos que as eleições convocadas em 1788 para eleger os representantes do Terceiro estado aos estados Gerais não foram exatamente como Sieyès pretendeu, mas realizaram-se pelo sistema de dois graus (um grupo de cidadãos votavam nos eleitores e estes nos deputados procuradores) e somente poderiam ser eleitos os contribuintes de impostos com domicílio fixo. O Terceiro estado se fez representar, após estas eleições, nos estados Gerais, por banqueiros, grandes comerciantes, advogados, notários, curas de paróquias e, dentre tantos, pelo autor deste livro, o abade Sieyès. Todavia, as condições de representação foram significativamente diferentes. A bancarrota do erário público francês pré-revolucionário e a resistência dos privilegiados em abrir mão de seus benefícios tributários levaram o reino a se submeter a muitas das exigências do Terceiro estado, dentre elas a dupla representação, ou seja, o clero ocupou nos estados Gerais 300 cadeiras, a nobreza outras 300 e o Terceiro estado 600 cadeiras. O quadro representativo não era de todo dessemelhante à proposta de Sieyès, se bem que, na convocação e instalação dos estados Gerais, não ficou, de forma nenhuma, explícito se as votações seriam por cabeça ou por estado, o que veio a provocar, finalmente, a desagregação da estrutura política francesa. Aliás, há que se reconhecer que a omissão legal (lacuna) nas viradas históricas significativas é que permite o sucesso da compressão, no vácuo, pelas forças políticas mais incisivas: o Terceiro estado se proclama Assembléia Nacional (1789). A obra de Sieyès, no entanto, não é um tratado de Direito eleitoral, mas um estudo político onde mais nítidas estão as linhas teóricas de sua proposta de representatividade do que linhas de ação eleitoral. A sua teoria da representatividade é todavia suficiente para mostrar que, tivessem os estados Gerais sido convocados, mantendo a representação tradicional do Terceiro estado, teria se instalado em condições politicamente desfavoráveis e não teria alcançado o poder de negociação imprescindível, não só para alterar os rumos dos estados Gerais, como também para impor sua vontade revolucionária. O seu voto era menos qualificado do que o voto do clero e dos nobres, embora representasse uma população muito mais numerosa — seria inútil, seria apenas dar uma satisfação ao reino e não permitir que a nação se manifestasse e organizasse a sua Constituição, proclamava Sieyès. É neste quadro que ele se manifesta claramente a favor de um novo contrato social. O contrato social poderia não impedir uma classe de usurpar os direitos de outra, mas, pelos menos, fixaria os limites dos privilégios, impedindo que se transformassem em usurpação. Neste sentido, a sua vocação legitimista (tradicionalista) dispensa cópias e modelos estrangeiros; ele dispensa, inclusive, a experiência constitucional britânica. Todavia não deixa de reconhecer que é a experiência inglesa de garantir a liberdade individual, resguardada especialmente pelos Conselhos de Jurados, que deve ser o exemplo para as transformações das vontades individuais que aspiram à liberdade. Apesar das dificuldades iniciais da obra, o autor timidamente procura mostrar que a pura, simples e tradicional convocação dos estados Gerais não permitirá o reencontro da nação consigo mesma. Somente uma Constituição promulgada pelos representantes da maioria da nação é que permitirá que a França revolucionária reencontre sua identidade nacional. Neste sentido, como se os tempos fossem os mesmos, e a história se deparasse sempre ante impasses semelhantes. Sieyès acredita que só uma Assembléia Nacional, enquanto expressão representativa da própria nação, é uma assembléia constituinte. A este nível são interessantes três aspectos de seu pensamento: em primeiro lugar, ele admite que uma Assembléia Nacional Constituinte deve ser convocada pelo Poder executivo; em segundo lugar, que os membros dos estados Gerais (a Assembléia Ordinária) não devem ter poderes constituintes e, em terceiro lugar, é contra a participação de representantes corporativos na Assembléia Nacional Constituinte. Sem nos esquecermos que a obra de Sieyès foi escrita em 1788, muito embora por várias vezes por ele próprio republicada e atualizada, como que procurando apressadamente que ela acompanhasse os fatos revolucionários, as suas observações sobre os impasses da transição revolucionária francesa não estão muito longe dos impasses do nosso tempo e de nossa história. Ao contrário do que se espera de um trabalho clássico, esta obra é clássica, não pela sua forma, mas pelo seu conteúdo, pelo que substantivamente propõe. Como toda obra revolucionária este livro “inacabado” é o símbolo de que as revoluções não se acabam, mudam o seu curso, como tudo que exprime as expectativas da própria vida. O curso da obra de Sieyès nos permite, todavia, entender que ele acredita que o poder executivo deva convocar a Assembléia Nacionalpor duas razões bastante simples: em primeiro lugar, porque não consegue fugir do princípio de que exercício do poder é um Direito natural do príncipe e, em segundo lugar, porque acredita que o príncipe, mais que os particulares, está em condições de prevenir os cidadãos e afastar os obstáculos que poderiam se opor aos interesses gerais. Na sua opinião, o rei, por ser o primeiro cidadão, não tem competência para eliminar a velha Constituição, mas o tem para decidir sobre a convocação dos povos para organizar nova Constituição. O pressuposto jurídico do pensamento político do autor é o Direito natural do príncipe e, para ele, o mal não é a monarquia, mas a aristocracia. Ele entende que o poder do príncipe deixa de ser legítimo na medida em que o seu Direito natural de governar se distancia do Direito natural dos povos se organizarem conforme seus interesses gerais. A legitimidade do poder do príncipe é proporcional à sua capacidade de exprimir o interesse da nação. A nação não deve nada à legalidade constituída. Por ser a realidade (real) o poder real, deve propor outra legalidade, sempre que ela se afastar do que for realmente legítimo. Tanto é fato que a Constituição francesa de 1789, proclamada pelo Terceiro estado, originariamente transformado em Assembléia Nacional, é monárquica. Todavia, destes postulados, essenciais à reordenação nacional, a contribuição mais importante de Sieyès, que resvala até os nossos dias, são as suas observações sobre o poder constituinte. Muito embora, como anteriormente mostramos, o início de sua obra não indique uma nítida opção pela convocação de uma Assembléia Nacional alternativa aos estados Gerais, as dificuldades que ele próprio apresenta, para que os comuns alcancem uma situação de paridade com o clero e com os nobres, convencem-no que, a única forma de se restaurar a legitimidade usurpada, é a convocação de uma assembléia com poderes para a alteração da ordem privilegiada. Para ele, o poder constituído (o Terceiro estado) não pode mudar os limites de sua própria delegação e, conseqüentemente, só o poder constituinte, pode mudar os limites da ordem anterior. A Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte. Nenhuma espécie de poder delegado pode mudar as condições de sua delegação. A distinção entre poder legislativo e poder constituinte é uma das primeiras conquistas da Revolução Francesa, mas também, está em Sieyès, como uma das importantes contribuições ao constitucionalismo moderno e contemporâneo. Para viabilizar a sua pressuposição teórica, Sieyès propõe uma distinção conceitual entre lei fundamental e leis fundadas. A primeira seria a Constituição, a expressão do Direito natural e fundamento legítimo da nação, competência exclusiva de delegados constituintes. É lei fundamental porque os órgãos que as executam devem preservá-las e não alterá-las. As segundas, as leis fundadas, seriam o direito posto, competência dos delegados ordinários. Na linha exclusiva de seu raciocínio as leis fundadas seriam, dentre outras, aquelas que fixam as condições de elegibilidade, inclusive para a Assembléia Constituinte. Na sua opinião, o governo atua segundo as leis fundadas — o direito positivo —, mas as leis fundadas só existem a partir da lei fundamental. Conseqüentemente, o que se verifica é que Sieyès acredita que em determinados momentos o direito positivo (raison écrite) em que se apóiam os governantes pode divergir de expectativas jusnaturalistas (naturalisratio) da nação. A contradição entre os fundamentos da nação e os apoios do governo só pode ser superada pelo poder constituinte — a Assembléia Nacional — que, no seu mais amplo significado, é originário: pode criar uma nova ordem constitucional. No que se refere à composição da Assembléia Nacional Constituinte, que deve organizar uma nova Constituição, Sieyès acredita que dela não devem participar representantes corporativos. Até aquele momento histórico era comum as representações legislativas terem composição corporativa, na verdade expressões da atrofia entre o estado e a própria sociedade. Na sua opinião, este tipo de representação degenera em aristocracia, que é o fundamento da corrupção política. No fundo, estas observações antiaristocráticas do autor revelam sua opinião contrária à participação dos notáveis, e mesmo dos representantes gremiais (comum entre os artesãos da época), na Assembléia Nacional, enquanto Assembléia Constituinte do novo contrato social. Para ele, somente a Assembléia Constituinte, onde os representantes comparecem desprovidos de seus privilégios, tem as condições necessárias para fixar os novos limites da convivência social. Como anteriormente afirmamos, o contrato social não impede que as classes tenham direitos especiais, mas impede que uma classe usurpe direitos, transformando-os em privilégios. A propriedade é um direito natural, mas não pode ser uma vantagem de privilegiados, assim como, para evitar os desastres sociais, as constituições devem estar atentas para o fato de que não há falta maior do que a falta de poder. A obra, na sua parte final, desenvolve-se a partir dos debates fundamentais identificáveis nas proposições das sessões iniciais dos estados Gerais. Estas sessões foram dominadas por uma contradição de todo inconciliáveis: os notáveis queriam sessões separadas e as votações por estado, o que lhes assegurava dois votos, e o Terceiro estado queria sessões conjuntas e votação nominal, por cabeça (tese de Sieyès), o que lhe garantiria a metade dos votos sem contar as presumíveis adesões. Este impasse e as dificuldades para superá-lo provocaram a desagregação dos estados Gerais e, conseqüentemente, a eclosão dos fatos revolucionários. A partir de 12 de junho de 1789, ampliaram-se as adesões à proposição de reunirem-se os três estados conjuntamente: inicialmente os sacerdotes paroquiais e, depois, quase todos os representantes do clero. A 17 de junho de 1789, por proposta do abade Sieyès, o Terceiro estado se declarou Assembléia Nacional, representante da Nação e, mais ainda, aboliu o direito de veto às suas decisões. Luís XVI, na expectativa de suspender as resoluções da autoproclamada Assembléia Nacional, conclamou os deputados a se reunirem por estado e a suspenderem as reuniões conjuntas sob pena de dissolução dos estados Gerais. A determinante conclamação, Mirabeau respondeu: Comecemos os debates. Os debates da Assembléia Nacional continuaram com a subseqüente adesão de muitos notáveis, paralelamente, todavia, sob a pressão da explosão insurrecional popular. Em 9 de julho de 1789 a Assembléia Nacional, constrangida pelo impacto da insurreição popular, declarou-se Assembléia Constituinte. Como sempre acontece com as grandes revoluções, no ímpeto da vitória, as expectativas de seus dirigentes originários são ultrapassadas, para, somente depois, caírem na prostração do próprio poder. As propostas alternativas de Sieyès foram atropeladas pelo substancioso estandarte político da Declaração de Direitos do homem e do Cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte em 26 de agosto de 1789: os homens nascem livres e iguais em direitos; todos são iguais perante a lei; todos os cidadãos têm direito à liberdade, à propriedade e à segurança; a propriedade é um direito inviolável e sagrado; todos os cidadãos têm o direito de resistência à opressão. Finalmente, se as teorias da representação política de Sieyès, e seus mecanismos de assimilação eleitoral, não foram suficientes para absorver e acompanhar as demandas insurrecionais de 1789, não é menos verdade que elas subsidiaram e fundamentaram a Constituição
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