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1 FONTES DO DIREITO A expressão fontes do Direito possui dois sentidos: origem histórica ou diferentes maneiras de realização do Direito. Aqui, no sentido que ora interessa, analisamos o aspecto de fonte criadora do Direito. No início da evolução social, mormente antes de surgir a escrita, residia nos costumes a principal fonte. A tradição oral desempenha papel importante no estabelecimento de condutas, como ainda ocorre hoje com as sociedades primitivas. Posteriormente, a lei ganha foros de fonte principal. Sob esses dois aspectos, decorrem os dois principais sistemas atuais: o sistema do direito costumeiro do Common Law e o sistema romano- germânico, que é o nosso, dos quais nos ocuparemos mais detidamente a seguir. É certo que o sistema do Common Law atualmente já não é um direito essencialmente costumeiro, mas de precedentes jurisprudenciais, como veremos, embora os costumes tenham sido sua base no início. Voltaremos ao tema ao tratarmos dos sistemas jurídicos (Cap. 5). A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei no 12.376, de 30-12-2010) (Decreto-lei no 4.657, de 4-9-1942), (Cap. 8 desta obra), assim recém-nomeada, pois nunca foi simplesmente uma introdução ao Código Civil, mas a todo o ordenamento jurídico brasileiro, apresenta em seu art. 4o, como fontes de Direito: a lei, a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito. Continua em vigor mesmo perante o Código Civil de 2002 e com ele se harmoniza perfeitamente. Miguel Reale (1973:164) entende por fonte do Direito, no aspecto que nos interessa, “os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia”. Há, destarte, necessidade de um poder que dê validade a essas fontes como normas. Cumpre examinar de quais fontes brota o Direito. É necessário distinguir as fontes diretas, ou seja, as que de per si possuem força suficiente para gerar a regra jurídica, as quais podem ser denominadas, segundo a doutrina tradicional, fontes imediatas ou primárias. Ao lado dessas, há as denominadas fontes mediatas ou secundárias, as que não têm a força das primeiras, mas esclarecem os espíritos dos aplicadores da lei e servem de precioso substrato para a compreensão e aplicação global do Direito. Como fontes primárias ou formais, a maioria da doutrina estatui a lei e o costume. Como fontes mediatas ou secundárias devem ser citadas, sem unanimidade entre os juristas, a doutrina, a jurisprudência, a analogia, os princípios gerais de Direito e a equidade. Entendendo-se, contudo, a fonte formal do Direito como modo de expressão do Direito Positivo, só a lei e o costume podem assim ser considerados. Os outros institutos gravitam em torno da noção de estratégias para a aplicação do Direito. É importante fixar de plano que no universo jurídico atual, como já apontamos, coexistem duas grandes famílias jurídicas ou sistemas. O sistema denominado romano-germânico, em que tem cabal proeminência a lei escrita, e o sistema do Common Law, dos países de língua inglesa ou de colonização inglesa, em geral, que é um sistema, basicamente, de direito não escrito, vazado em normas costumeiras e precedentes. Note, ainda, que, embora nosso ordenamento de leis seja escrito, legalmente se reconhecem outras fontes, como vimos no citado art. 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei no 12.376, de 30-12-2010). 2 2.1 LEI No tocante à etimologia da palavra lei, há duas explicações técnicas: ou a palavra é originária do verbo legere = ler; ou decorre do verbo ligare, e é de notar que legere também significa eleger, escolher. Daí se inferir que se chama lei por se tratar da escolha de determinada norma, regra, dentro de um conjunto. Todo doutrinador apresenta um conceito próprio de lei, mas não podemos fugir a seus caracteres estáveis e permanentes em qualquer definição que elaborarmos. Primeiramente, temos de afastar da denominação lei as leis naturais. Aqui, importa a regra jurídica, como lei do “dever ser”. “Nesse âmbito, podemos conceituar lei como uma regra geral de direito, abstrata e permanente, dotada de sanção, expressa pela vontade de uma autoridade competente, de cunho obrigatório e de forma escrita.” É necessário o estudo de cada um desses característicos: A lei é uma regra geral, não se dirige a um caso particular, mas a um número indeterminado de indivíduos. É dirigida a todos os casos que se colocam em sua tipicidade. Contudo, o domínio de alcance da lei pode ser maior ou menor, sem que isso descaracterize a generalidade. O comando que emana de um poder dirigido a uma única pessoa não pode ser caracterizado, de acordo com o que aqui foi afirmado, como lei propriamente dita. Dessa generalidade da lei decorrem dois outros caracteres também importantes, uma vez que a lei é uma regra abstrata e permanente. É regra abstrata porque regula uma situação jurídica abstrata. O legislador tem em mira condutas sociais futuras a serem alcançadas pela lei. Ela será aplicada a todas as situações concretas que se subsumirem em sua descrição. No dizer de Brethe de La Gressaye e Laborde Lacoste (1947:198), reside aí, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza da lei. É a força porque facilita o preordenamento das condutas sociais, simplificando o trabalho do juiz que, em sua atividade mais simples, aplicará a lei ao caso concreto que lhe é apresentado. Todavia, por outro lado, a lei não apresenta flexibilidade por si própria, nem sempre se aplicará adequadamente ao caso concreto, uma vez que as situações fáticas são infinitas e o comando da lei é abstrato. Isso faz, com frequência, o juiz agir rigorosamente dentro da chamada “letra da lei”, arriscando-se a praticar uma injustiça (summus ius, summa iniuria), ou então o juiz tenta dar um matiz diferente à norma que se lhe apresente para adequá-la ao caso em julgamento. As duas posições do magistrado, aí, são filosóficas. Seu estudo foge ao objetivo deste livro, se bem que o registro da problemática, já de plano, deve ser feito. Quando tratamos da questão da interpretação, retornaremos ao tema. A lei tem também o caráter de permanência. Mesmo nas chamadas leis temporárias (examinadas a seguir), existe o sentido de a lei reger todos os casos aplicáveis indefinidamente, até ser revogada, ou seja, até deixar de ser obrigatória. Melhor dizendo, os efeitos da aplicação da lei são permanentes. A lei deve emanar de um poder competente. A estrutura do Estado dirá qual o poder competente para expressar determinada lei. Havendo separação de poderes, como em nossa Constituição, em regra geral, cabe ao Poder Legislativo promulgar leis; contudo, o Poder Executivo tem o poder de editá-las em determinadas matérias, e até mesmo o Poder Judiciário, sob determinadas circunstâncias. A sanção, como elemento constrangedor, obriga o indivíduo a fazer o que a lei determina, de modo direto ou indireto. No Direito Repressivo, a sanção é sempre direta. O Código Penal obriga a não matar e impõe uma pena a quem praticar crime de homicídio. Já no Direito Privado, a sanção atuará, em geral, de forma indireta: se para um contrato for 3 exigida a presença de duas testemunhas, sua ausência poderá acarretar a anulação do contrato, se for esse o interesse de uma das partes. E é por meio da sanção, elemento constritivo para o cumprimento, que a lei torna-se consequentemente obrigatória, pois de nada adiantaria a obrigatoriedade se não houvesse uma reprimenda para seu não cumprimento. No que tange à força obrigatória da lei, é da tradição dizê-la como decorrente dos princípios de justiça e do poder do legislador. A matéria referente à obrigatoriedade da lei, contudo, pertence a outras ciências jurídicas. A lei é apresentada por uma fórmula escrita, em geral, imperativa e categórica. Como já expusemos, reside na escrita a diferençabásica de nosso sistema com relação ao direito costumeiro. Toda essa matéria representada pelo estudo das fontes será mais detidamente examinada em nossa obra Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. Tomando o Código Civil, vemos que a obra é dividida em Partes Geral e Especial, livros, títulos, capítulos, seções, artigos etc. Essa divisão visa dar melhor compreensão à lei, que terá mais ou menos divisões, de acordo com sua complexidade, facilitando assim a localização da matéria e as citações. 2.1.1 Classificação das Leis Quanto à origem legislativa de onde promanam, as leis são federais, estaduais e municipais. No Estado federativo, existe uma hierarquia de leis: no conflito entre elas, na ordem enunciada, têm preferência as leis federais às estaduais e estas às municipais. Quanto à duração, as leis são temporárias e permanentes. As leis temporárias, exceção no ordenamento jurídico, já nascem com um tempo determinado de vigência. Geralmente, surgem para atender a uma situação circunstancial ou de emergência. As leis permanentes são editadas para vigorar por tempo indeterminado, deixando de ter vigência apenas mediante outro ato legislativo que as revogue. Já as leis temporárias deixam automaticamente de ter eficácia, ou cessada a situação para qual foram criadas, ou com o implemento da condição, ou com o advento do termo nelas expresso, ou em lei posterior. Quanto à amplitude ou ao alcance, as leis são gerais, especiais, excepcionais e singulares. Gerais são as leis que disciplinam um número indeterminado de pessoas e atingem uma gama de situações genéricas. O Código Civil brasileiro é exemplo de lei geral. São consideradas especiais as leis que regulam matérias com critérios particulares, diversos das leis gerais. Exemplo disso é a Lei do Inquilinato (Lei no 8.245, de 18-10- 1991), que cuida diferentemente do Código Civil a respeito da locação de imóveis. São consideradas leis excepcionais, no dizer de Orlando Gomes (1983:53), as que “regulam, por modo contrário ao estabelecido na lei geral, fatos ou relações jurídicas que, por sua natureza, estariam compreendidos nela”. Os atos institucionais suprimiram muitas das garantias constitucionais e são exemplos típicos de leis excepcionais. Não devemos confundir, porém, a lei especial, em que o legislador tem por bem regular diferentemente um conjunto de relações jurídicas, com a lei excepcional, pois esta contraria, geralmente, todo um sistema preestabelecido. A denominada lei singular só pode ser assim rotulada para compreensão didática. Vimos que a lei tem o caráter de generalidade. Um decreto que nomeia ou demite um funcionário público é um ato legislativo, mas só impropriamente pode ser chamado lei. Segundo sua força obrigatória, as leis são cogentes e dispositivas. São cogentes as normas que se impõem por si mesmas, ficando excluído qualquer arbítrio individual. São aplicadas ainda que pessoas eventualmente beneficiadas não desejassem 4 delas valer-se. Era exemplo de norma cogente o princípio da imutabilidade de bens no casamento no Código de 1916, princípio que se alterou no atual Código, bem como a regra que impunha presença de cinco testemunhas no testamento também no Código de 1916. No Código de 2002 o número de testemunhas exigido para esse ato é menor. É cada vez maior o âmbito de atuação de normas cogentes, pois a todo o momento o Estado intervém na relação de particulares. O fenômeno da constante publicização do Direito Privado será ainda referido nesta obra. Nas leis cogentes, as partes não podem dispor diferentemente. Atuam as normas cogentes com proeminência nas relações de direito de família. As normas dispositivas impõem-se supletivamente às partes. Cabe aos interessados valerem-se delas ou não. Na ausência da vontade das partes, essas leis são chamadas a atuar, sendo então obrigatoriamente aplicadas pelo juiz. É no campo do Direito das Obrigações que essas normas têm maior âmbito de atuação. Como assevera Serpa Lopes (1962, v. 1:49), para editar tais leis o legislador inspira-se em duas ideias: “a primeira consiste em reproduzir a vontade presumida das partes, regulamentando a relação jurídica, como se os interessados a houvessem confeccionado, eles próprios; a segunda, considerando antes de tudo as tradições, os costumes, os hábitos de interesse geral, como no caso em que se estabelece um determinado regime de bens no casamento, na ausência de pacto antenupcial”. Como já dissemos, cada vez mais se reduz o campo das leis dispositivas. Nem sempre é fácil, à primeira vista, distinguir uma norma cogente de uma norma dispositiva. Impõe-se, em cada caso, examinar a finalidade da lei e a intenção do legislador, dentro do conjunto da situação jurídica enfocada, pois raramente o legislador é expresso no atinente a uma disposição cogente. Geralmente, se se tratar da tutela de interesses gerais, garantias de liberdades ou proteção da família, por exemplo, a norma será cogente. Quando o interesse é meramente individual, a norma é dispositiva. Paralelamente ao tema de normas cogentes, é importante lembrar o conceito de ordem pública. As leis de ordem pública são normas a que, em regra, o Estado dá maior relevo, dada sua natureza especial de tutela jurídica e finalidade social. São princípios de Direito Privado que atuam na tutela do interesse coletivo. Seus efeitos e sua conceituação muito se aproximam das normas cogentes, não havendo razão para não aproximarmos os dois institutos. A dificuldade maior reside no conceito exato de “ordem pública”, que extravasa o campo do Direito Privado sendo motivo de divergência por parte de muitos autores. A melhor solução a ser apresentada nesta introdução é equipararmos as normas cogentes, impositivas ou absolutas, às leis de ordem pública, como faz Maria Helena Diniz (1982, v. 1:28). Serpa Lopes (1962, v. 1:56) diverge dessa equiparação sem, porém, apresentar os fundamentos dessa discrepância. Quando o legislador valora determinada conduta de molde a entender que o particular não pode dela se afastar, passa a tutelar interesses fundamentais, diretamente ligados ao bem comum. As dificuldades de conceituar ordem pública, acentuadas por Colin e Capitant (1934:10), são matéria para outros campos da Ciência Jurídica. Quanto à sanção, as leis podem ser perfeitas, mais que perfeitas, menos que perfeitas e imperfeitas. Perfeitas são aquelas cuja infringência importa em sanção de nulidade, ou possibilidade de anulação do ato praticado. Exemplo dessa modalidade é a disposição que exige cinco testemunhas, no Código de 1916, para a feitura do testamento: desobedecido o princípio legal, o testamento é nulo. Doutra parte, o ato praticado com dolo (art. 145 do Código Civil) fica sujeito à anulação, dependendo da iniciativa da parte interessada. 5 Mais que perfeitas são as normas cuja violação dá margem a duas sanções, a nulidade do ato praticado, com possibilidade de restabelecimento do ato anterior assim como uma pena ao transgressor. A disposição do art. 1.521, VI, do Código, estabelece que não podem casar as pessoas casadas. A transgressão desse dispositivo faz com que se decrete a nulidade do casamento (art. 1.548, II, do Código Civil), sem prejuízo de punição penal ao infrator (art. 235 do Código Penal, crime de bigamia). São menos que perfeitas as leis que trazem sanção incompleta ou inadequada. O ato vale, mas com sanção parcial, como é a hipótese da viúva ou viúvo que contrai novo matrimônio, tendo prole do consórcio anterior, não fazendo inventário do cônjuge falecido. O novo casamento será válido, mas perderá a mulher o usufruto dos bens dos filhos menores, além de se casar obrigatoriamente no regime de separação de bens (art. 1.641, I, do Código Civil). São leis imperfeitas as que prescrevem uma conduta sem impor sanção. Não existe nulidade para o ato, nem qualquer punição. Exemplodessa espécie é a que determina prazo de dois meses, a contar da abertura da sucessão, para o início do processo do inventário (art. 611 do CPC de 2015). Não obstante isso, leis estaduais cominaram multa pela desobediência do prazo ou perda de incentivo fiscal e foram admitidas pela jurisprudência, o que não desnatura o exemplo (ver Súmula 542 do Supremo Tribunal Federal). Outro exemplo é o das dívidas prescritas e de jogo (obrigações naturais). Essas dívidas devem ser pagas, porém o ordenamento não concede meio jurídico de obrigar o pagamento (art. 814 do Código Civil). Como toda obrigação natural, seu pagamento é bom e perfeito e não pode ser repetido (requerida a devolução do que foi pago); no entanto, não tem o credor ação judicial para obter o cumprimento dessas obrigações. No conceito lato de lei, são incluídos também os decretos e regulamentos, os quais em sentido estrito não se amoldam à situação aqui enfocada. 2.2 COSTUME Sem que possamos precisar exatamente a origem nem seus autores, o uso reiterado de uma conduta perfaz o costume. Forma-se ele paulatinamente, quase imperceptivelmente. Chega, porém, a determinado momento, em que aquela prática reiterada é tida por obrigatória. É difícil dar uma prova concreta de sua existência, é custoso buscar a gênese de sua elaboração e, na grande maioria das vezes, é difícil provar sua presença, mormente nos sistemas de direito escrito. Brota o costume da própria sociedade, da repetição de usos de determinada parcela do corpo social. Quando o uso se torna obrigatório, converte-se em costume. Seu papel de fonte criadora do Direito nas primitivas sociedades, como é óbvio, foi muito grande. Todos os grandes sistemas jurídicos da Antiguidade foram condensados de costumes. Note que nem todo uso é costume. O costume é um uso considerado juridicamente obrigatório. Para isso, são necessárias determinadas características. Exige-se que o costume seja geral, isto é, largamente disseminado no meio social, observado por um número grande de sujeitos. Não é necessário que toda a sociedade ou que todo o país observe o costume. Aliás, é raro que isso ocorra. Em geral, o costume é setorizado numa parcela da sociedade. É necessário que o costume tenha certo lapso de tempo, pois deve constituir-se em um hábito arraigado, bem estabelecido. Ademais, deve o costume ser constante, repetitivo na parcela da sociedade que o utiliza. 6 Para converter-se em fonte do Direito, dois requisitos são imprescindíveis ao costume: um de ordem objetiva (o uso, a exterioridade do instituto, o que é palpável e percebido pelos sentidos), outro de ordem subjetiva (ou seja, a consciência coletiva de que aquela prática é obrigatória). É este último aspecto que, na realidade, distingue o costume de outras práticas reiteradas, de ordem moral ou religiosa ou de simples hábitos sociais. Não se confunde o costume com as chamadas “cláusulas de estilo”, simples praxe ou repetição automática, inserida nos contratos. O fundamento jurídico do instituto é controvertido. Para uns, é a vontade tática do próprio legislador, para outros é a consciência popular. Parece, no entanto, ser a consciência da obrigatoriedade que dá força ao costume. Quando esse uso reiterado e consciente é aceito pelos tribunais, estará solidificada uma fonte do Direito. O uso, por si só, não pode ser conceituado como costume, embora atue como fonte subsidiária de interpretação dos atos e negócios jurídicos. O uso possui um espectro menor de atuação do que o costume. O uso reiterado de uma conduta ou atividade ganha status de costume. O uso transforma-se em costume quando a prática reiterada torna-se obrigatória na consciência social. Nem todo uso é costume; quando o uso torna- se obrigatório, converte-se em costume. É difícil dar prova concreta de sua existência, custoso buscar a gênese de sua elaboração e, na grande maioria das vezes, não é fácil provar sua presença, mormente nos sistemas de direito escrito. O uso traduz-se também por uma prática social reiterada. Não atinge o status de costume porque apresenta apenas o aspecto material, o corpus, faltando-lhe o aspecto subjetivo, o animus, a consciência da obrigatoriedade. Há, como se nota, uma tênue linha divisória, nem sempre bem perceptível, entre o uso e o costume. Pode também o legislador transformar em lei um costume, mas então o enfoque passa a ser diferente, pois, em última análise, já se estará perante uma lei e não mais diante de um costume. É pequena a influência do costume nos sistemas de direito escrito, mas não se pode subestimar sua influência, que tem crescido consideravelmente. A lei não tem o condão de ser a fonte única do direito. O costume, por vezes, torna-se instrumento precioso no preenchimento de lacunas no direito escrito. No direito contratual ou lei entre partes, o recurso ao costume das partes e do local onde foi celebrado o contrato será meio importante de sua interpretação. O Código Civil de 2002 acentua a utilização do costume como fonte subsidiária de interpretação em várias oportunidades (arts. 569, II, arts. 596, 599, 615, 965, I, art.1.297, § 1o), atribuindo ao juiz sua conceituação. Se levarmos em conta nosso sistema de direito escrito, apesar de na Teoria Geral do Direito o costume ser considerado fonte principal, segundo o art. 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (veja Cap. 8 desta obra), é ele fonte formal, mas fonte subsidiária, uma vez que o legislador dispõe que, na omissão da lei, o juiz decidirá de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de Direito. Portanto, temos lei para erigir o costume em fonte do Direito, ao contrário do que ocorre em outras legislações. Considerado fonte subsidiária, o costume deverá girar em torno da lei. Portanto, não pode o costume contrariar a lei, que só pode ser substituída por outra lei. Os costumes podem ser secundum legem, praeter legem e contra legem. O costume secundum legem já foi erigido em lei e, portanto, perdeu a característica de costume propriamente dito. O costume praeter legem é exatamente aquele referido no art. 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei no 12.376, de 30-12-2010), ou seja, o que serve para 7 preencher lacunas é um dos recursos de que se serve o juiz para sentenciar quando a lei for omissa. O costume contra legem é o que se opõe ao dispositivo de uma lei, denominando-se costume ab-rogatório; quando torna uma lei não utilizada, denomina-se desuso. Discute-se a possibilidade de admissão de costumes contra a lei. Há opiniões favoráveis pela afirmativa. Entretanto, deve prevalecer a opinião de que a lei é suprema, não se podendo reconhecer validade ao costume contrário à norma, pois no caso haveria instabilidade no sistema (cf. Pereira, 2000, v. 1:70, 71; Gomes, 1983:81; Monteiro, 2005, v. 1:20). Alguns autores veem no art. 5o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei no 12.376, de 30-12-2010) (Cap. 8 deste volume) uma válvula que permite ao juiz aplicar o costume contra a disposição da lei. Diz esse dispositivo: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” De qualquer modo, mesmo aqueles que admitem o costume ab-rogatório procedem sempre em caráter de exceção. O próprio Clóvis Beviláqua afirma que o costume aplicado nessa forma seria inconveniente por tirar do aparelho jurídico a supremacia da lei e a certeza das prescrições legais, mas conclui: “Todavia, se o legislador for imprevidente em desenvolver a legislação nacional de harmonia com as transformações econômicas, intelectuais e morais operadas no país, casos excepcionais haverá em que, apesar da declaração peremptória da ineficácia ab- rogatória do costume, este prevaleça contra legem, porque a desídia ou a incapacidade do poder legislativo determinou um regresso parcialda sociedade da época, em que o costume exercia, em sua plenitude, a função de revelar o direito, e porque as forças vivas da nação se divorciam, nesse caso, das normas estabelecidas na lei escrita” (Beviláqua, 1980:39). Maria Helena Diniz (1981:179), em sua obra As lacunas no direito, menciona caso jurisprudencial de São Paulo em que se julgou com o costume contra legem, justamente pelos fundamentos apresentados por Clóvis. Entre nós, a maior repercussão dos costumes é no Direito Comercial, em que se apresentam como fonte suplementar de maior aplicação que no Direito Civil. No estágio atual de nosso direito, porém, o papel do costume é restrito, mormente devido à inelutável expansão legislativa, à pletora de leis, que limita a força criadora dos costumes. 2.3 DOUTRINA A doutrina é o trabalho dos juristas, dos estudiosos do Direito dentro dos campos técnico, científico e filosófico. Há discussão a respeito de considerá-la ou não fonte do Direito. Indubitavelmente no passado, antes de nossa codificação ou nos primórdios dela, as decisões dos juízes e tribunais recorriam aos ensinamentos dos mestres. Hoje, a doutrina não é tão utilizada ou não é tão citada pelos pretórios, mas não resta a menor dúvida de que na doutrina o Direito inspira-se, ora aclarando textos, ora sugerindo reformas, ora importando institutos e aclimatizando-os a nossas necessidades fáticas. Os estudos dos juristas estão sempre ventilando a jurisprudência e, portanto, a aplicação do Direito. É fora de dúvida que o trabalho doutrinário é fonte subsidiária de Direito. Muitos dos temas estudados no curso de Direito Civil e depois erigidos como princípios legais são obra de monumentais trabalhos doutrinários, como, por exemplo, a modificação de tratamento dos companheiros na união estável; dos filhos adotivos e 8 adulterinos; a indenização por danos morais; os novos rumos da responsabilidade civil em geral etc. O valor da obra jurídica baseia-se no fato de não se limitar a repetir conceitos estratificados no sistema, mas de buscar novas soluções, avaliar as soluções do direito comparado, criticar a injustiça e lacunas de nosso sistema legislativo, enfim, preparar o espírito do legislador para as reformas que se fizerem necessárias e dar alento ao julgador para partir para voos mais elevados, não os deixando relegados a meros escravos aplicadores da lei ou seguidores de conceitos ultrapassados pela era de desenvolvimento tecnológico e social ciclópico em que vivemos. A doutrina, portanto, do escrito ou manual mais singelo à da mais profunda monografia, traz sempre um novo sopro à aplicação do Direito. É a chamada autoridade moral da doutrina. Somente por intermédio da obra de estudiosos temos acesso a uma visão sistemática do Direito. A simples leitura dos textos legais, por si só, parece um corpo sem alma, por vezes complexo e inatingível. Como lembra Orlando Gomes (1983:64), a influência da doutrina é percebida em três sentidos fundamentais: “(1o) pelo ensino ministrado nas Faculdades de Direito; (2o) sobre o legislador; (3o) sobre o juiz. Pelo ensino, formam-se os magistrados e advogados, que se preparam para o exercício dessas profissões pelo conhecimento dos conceitos e teorias indispensáveis à compreensão dos sistemas de direito positivo. Inegável, por outro lado, a influência da obra dos jurisconsultos sobre os legisladores, que, não raro, vão buscar, no ensinamento dos doutores, os elementos para legiferar. E, por fim, notável a sua projeção na jurisprudência, não só porque proporciona fundamentos aos julgados, como porque, através da crítica doutrinária, se modifica frequentemente a orientação dos tribunais.” É pela doutrina que se forjam o vocabulário e os conceitos jurídicos, importantíssimos para a exata compreensão da ciência. Importante notar que as obras dos juristas latinos caracterizam-se, em sua grande maioria, por um dogmatismo praticamente desvinculado da jurisprudência, embora essa tendência tenha diminuído em anos mais recentes. E é exatamente esse dogmatismo que influencia a aplicação do Direito pelos tribunais, tornando a doutrina importante fonte subsidiária. A obra doutrinária que simplesmente se curva perante a jurisprudência majoritária é sectária, não inovadora, não cumprindo seu importante papel revitalizador do Direito. 2.4 JURISPRUDÊNCIA Modernamente, é aplicado o nome jurisprudência ao conjunto de decisões dos tribunais, ou uma série de decisões similares sobre uma mesma matéria. Trata-se de substantivo coletivo. A jurisprudência nunca é constituída de um único julgado, mas de uma pluralidade de decisões. O termo jurisprudência, no Direito antigo, significava a sabedoria dos prudentes, os sábios do direito. Significava a ciência do Direito, e ainda hoje pode ser empregada nesse sentido, mas fora do campo que tratamos. A jurisprudência, como um conjunto de decisões, forma-se mediante o trabalho diuturno dos tribunais. É o próprio direito ao vivo, cabendo-lhe o importante papel de preencher lacunas do ordenamento nos casos concretos. Os julgados, como princípio, não têm força vinculativa. Não pode ser considerada a jurisprudência como uma fonte primária do Direito. Contudo, é inelutável que um conjunto de decisões sobre uma matéria, no mesmo sentido, influa na mente do julgador que tende a julgar de igual maneira. Entretanto, não devemos olvidar que o juiz julga de 9 acordo com a lei e não pode fazê-lo, em geral, contra a lei, além do que o julgado só tem efeito entre as partes envolvidas no processo. Outro aspecto importante é que a jurisprudência orienta o legislador, quando procura dar coloração diversa à interpretação de uma norma, ou quando preenche uma lacuna. A jurisprudência não está mencionada diretamente na lei como fonte, mas sua importância como tal, ainda que subsidiária, é inarredável. Trata-se de fonte informativa. As leis envelhecem, perdem a atualidade e distanciam-se dos fatos sociais para as quais foram editadas. Cumpre à jurisprudência atualizar o entendimento da lei, dando-lhe uma interpretação dinâmica que atenda às necessidades do momento do julgamento e cujo teor possa ser absorvido pela sociedade à qual se destina. Por isso, afirma-se que a jurisprudência é dinâmica. O juiz deve ser um arguto pesquisador das necessidades sociais, julgando como um homem de seu tempo, não se prendendo a ditames do passado e não tentando adivinhar o futuro. Aí se coloca toda a grandeza do papel da jurisprudência. Embora não caiba aos tribunais ditar normas, opera-se paulatinamente no país um deslocamento da visão judicial, com a expedição de súmulas de jurisprudência dos Tribunais, em especial do precursor que foi o Supremo Tribunal Federal. A invocação da súmula, um enunciado que resume uma tendência sobre determinada matéria, decidida contínua e reiteradamente pelo Tribunal, acaba sendo verdadeira fonte formal. Cientificamente, não pode ser assim considerada, mas, na prática, as súmulas do Supremo Tribunal Federal se, por um lado, tiveram o condão de dar certeza a determinada forma de decidir, por outro lado, colocam em choque a verdadeira finalidade dos julgados dos tribunais que não podem estratificar suas formas de julgar. Para evitar o entrave mencionado, que não devem o doutrinador e muito menos o juiz e o advogado se acomodar perante um enunciado de súmula, se os fatos sociais demonstrarem que, como as leis, aquela forma de decidir já não atende mais às necessidades sociais. Sob esse prisma, coloca-se a maior crítica para os que defendem a denominada súmula vinculante. Com base no forte argumento de desafogar a pletora de feitos nos tribunais, postula-se que os casos repetitivos e idênticos recebam uma súmula que obrigatoriamente deve ser seguida pelos julgadores de instância inferior, autorizando-se assim o julgamento coletivo de inúmeros processos. Se, por um lado,a súmula vinculante permite o julgamento rápido e simultâneo de centenas de processos, por outro, corre-se o risco de petrificar o poder criativo dos tribunais, principalmente dos juízes de primeira instância, primeiros receptáculos das modificações sociais. A matéria esteve muito tempo em discussão e por fim foi aprovada pela Emenda Constitucional no 45 que ousadamente, após tantos anos de tentativas, se propôs a reestruturar o Poder Judiciário. Pelo seu art. 2o, “o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria constitucional, aprovar súmulas que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”. No § 1o desse dispositivo está descrito que a súmula vinculante “terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”. As súmulas já existentes do STF somente terão efeito vinculante se confirmadas por dois terços de seus integrantes (art. 8o da citada Emenda Constitucional). 10 Sem dúvida, sente-se constante necessidade de agilizar os julgamentos; contudo, a instituição de súmulas vinculantes não pode ir ao ponto de estabelecer um permanente amordaçamento do poder criativo dos julgados. É necessário que o STF esteja sempre sensível aos reclamos sociais e altere prontamente a orientação sumulada quando mudanças forem necessárias. Agora que o instituto está definitivamente implantado, não pode ser visto como uma muleta para corrigir um Judiciário permanentemente claudicante, mas como um meio eficaz de aplicação e interpretação do Direito. Muito ainda discutirão os doutos sobre a eficácia e conveniência da súmula vinculante, contudo, costumamos acentuar que as leis em si não são boas ou más: bons ou maus são aqueles que as aplicam. Mais criticável que a nova súmula é a forma de provimento dos cargos de Ministros do Supremo Federal, com influência política direta do Executivo, situação que não se ousa alterar. Aplicada com critério jurídico, moral e social, a súmula vinculante poderá resolver e estabilizar questões tormentosas. Se aplicada com critérios e interesses essencialmente políticos, suas consequências poderão ser traumáticas. O curso da História ditará certamente os novos caminhos. Há vários repertórios de jurisprudência publicados no país com cunho oficial. Citemos, para exemplificar, as tradicionais Revista dos Tribunais e a Revista Forense. Tantos outros estão presentes hoje na internet. Afora essas, que procuram selecionar mensalmente os julgados dignos de nota nos vários campos do Direito, há muitas outras, tais como as publicações oficiais dos tribunais, como a Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, além das publicações oficiais dos Tribunais dos Estados e mais as revistas setorizadas de acordo com cada campo jurídico. Toda essa jurisprudência está atualmente informatizada, pelas editoras e pelos tribunais do país, dispensando-se, na maioria das vezes, a outrora cansativa consulta a repertórios impressos, bastando o acesso à rede de computadores. Essa informação é importante para aquele que se inicia no trato das primeiras linhas jurídicas, pois não há estudo do Direito, não há doutrinador completo, não há advogado solerte ou juiz competente que possa prescindir de uma atualização contínua com os julgados dos tribunais, mormente no tocante ao campo jurídico em que se especializar. Ademais, é essencial que o professor, na sala de aula, não se limite a expor os dogmas do Direito, mas que vincule esses ensinamentos ao direito vivo, a ilustrações de casos práticos, decididos pelos tribunais. Nas últimas décadas torna-se patente o papel cada vez mais importante da jurisprudência como fonte, nos países de tradição romana como o nosso, essencialmente de lei escrita. Por outro lado, nos países do Common Law, o papel da lei escrita vem paulatinamente ganhando força. Trata-se do resultado do constante intercâmbio econômico e jurídico entre as várias nações e, sem dúvida, decorrência lógica da união dos países europeus. No novo sistema, contudo, não há que se transformar a sua aplicação em um ordenamento casuístico. A preponderância deve ser da lei, sempre amparada pela doutrina. O “case study”, os precedentes judiciais pertencem ao direito anglo-saxão. 2.5 ANALOGIA O ideal seria o ordenamento jurídico preencher todos os acontecimentos da sociedade. Não é, como vimos, o que ocorre. O juiz não pode, em hipótese alguma, deixar de proferir decisão nas causas que lhe são apresentadas. Na falta de lei que regule a matéria, recorre às fontes subsidiárias, entre as quais podemos colocar a analogia. Na realidade, a analogia não constitui propriamente uma técnica de interpretação, como a princípio possa parecer, mas verdadeira fonte do 11 Direito, ainda que subsidiária e assim tida pelo legislador no art. 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei no 12.376, de 30-12-2010) (Cap. 8 desta obra). Trata-se de um processo de raciocínio lógico pelo qual o juiz estende um preceito legal a casos não diretamente compreendidos na descrição legal. O juiz pesquisa a vontade da lei, para transportá-la aos casos que a letra do texto não havia compreendido. Para que esse processo tenha cabimento, é necessária a omissão no ordenamento. A analogia pode operar de duas formas: analogia legal e analogia jurídica. Na analogia legal, o aplicador do Direito busca uma norma que se aplique a casos semelhantes. Como no caso do leasing, ou arrendamento mercantil, que é uma locação com opção de compra da coisa locada, no final do contrato. Na hipótese de omissão do texto legal, o intérprete poderia valer-se dos princípios da compra e venda e da locação para dar solução ao problema. O intérprete procura institutos que têm semelhança com a situação sob enfoque. Não logrando o intérprete um texto semelhante para aplicar ao caso sob exame, ou então sendo os textos semelhantes insuficientes, recorre a um raciocínio mais profundo e complexo. Tenta extrair do pensamento dominante em um conjunto de normas uma conclusão particular para o caso em exame. Essa é chamada analogia jurídica. A analogia é um processo de semelhança, mas, especialmente a analogia jurídica, requer cuidado maior do intérprete e conhecimento profundo da ciência a que se dedica. Para o uso da analogia, é necessário que haja lacuna na lei e semelhança com a relação não imaginada pelo legislador. A seguir, no derradeiro passo do raciocínio, o intérprete procura uma razão de identidade entre a norma encontrada, ou o conjunto de normas, e o caso contemplado.1 A utilização da técnica analógica para o preenchimento de lacunas presta grandes serviços, mas só pode ser utilizada com eficiência quando o aplicador não foge à ratio legis aplicada, quando então daria amplitude perigosa ao princípio, arriscando-se a julgar contra a lei. 2.6 PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO Conceituar princípios gerais de direito é uma tarefa árdua que se perde em um sem- número de teorias de ordem filosófica, incompatíveis com os propósitos do presente livro. O legislador, enfim, coloca os princípios gerais de direito como fonte subsidiária, no decantado art. 4o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei no 12.376, de 30-12-2010). Por esses princípios, o intérprete investiga o pensamento mais alto da cultura jurídica universal,buscando uma orientação geral do pensamento jurídico. Cada autor, dentro de várias correntes, procura dar sua própria explicação sobre o tema. É tarefa inútil, por ser impossível, definir o que sejam esses princípios. São regras oriundas da abstração lógica do que constitui o substrato comum do Direito. Por ser um instrumento tão amplo e de tamanha profundidade, sua utilização é difícil por parte do julgador, pois requer traquejo com conceitos abstratos e concretos do Direito e alto nível cultural. Para citar algumas correntes, ora os autores propendem para identificá-los com o Direito Natural, ora com princípios de equidade, ora com princípios fundamentais da organização social e política do Estado. De plano, podemos enfatizar sua reconhecida importância pelo próprio legislador não só como fonte, isto é, normas inspiradoras para a aplicação do Direito, mas também como fonte inspiradora da atividade legislativa e administrativa do Estado. 12 João Franzen de Lima (1977, v. 1:35) propõe o critério já coimado por Clóvis Beviláqua, invocando os famosos brocardos de Ulpiano ao expor os iuris praecepta, que podem resumir toda uma filosofia, em um plano global do Direito: honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere. Viver honestamente, não lesar a ninguém e dar a cada um aquilo que é seu. A invocação desses princípios pelo julgador, na lacuna da lei, ou mesmo em sua interpretação, constitui um ideal da mais alta justiça. Propendemos para a opinião de que existe um valor coercitivo nesses elevados princípios. Não podemos dizer, contudo, que a enunciação desses princípios possa ser exaustiva. Mesmo os autores que entendem que tais elementos decorrem do Direito Natural, o que também é uma realidade, compreendem que o Direito Natural apenas auxilia na compreensão do instituto, mas não esgota a matéria. Rubens Limongi França (1971:201), em alentada monografia, apresenta várias conclusões, mas acaba por aceitar a ideia de fundamentar os princípios no Direito Natural e de explicitá-los, ad exemplum, pelos preceitos jurídicos enumerados, fazendo acrescentar outros brocardos romanos, particularizados a determinadas situações. Conclui, no entanto, o monografista, nessa sua obra, que, uma vez que o aplicador do direito atinja a compreensão de um desses princípios, esse trabalho orienta-lhe a ideia suprema do justo. 2.7 EQUIDADE Equidade é uma forma de manifestação de justiça que tem o condão de atenuar a rudeza de uma regra jurídica. Como informam Stolze Gagliano e Pamplona Filho, a equidade, na concepção aristotélica, é a “justiça do caso concreto” (2002:25). Na realidade, o conceito de equidade não se afasta do conteúdo do próprio Direito, pois, enquanto o Direito regula a sociedade com normas gerais do justo e equitativo, a equidade procura adaptar essas normas a um caso concreto. São frequentes as situações com que se defronta o juiz ao ter de aplicar uma lei, oportunidade em que percebe que, no caso concreto, se afasta da noção do que é justo. O trabalho de aplicação por equidade é de exatamente aparar as arestas na aplicação da lei para que uma injustiça não seja cometida. A equidade é um labor de abrandamento da norma jurídica no caso concreto. Tratamos aqui da equidade na aplicação do Direito e em sua interpretação, se bem que o legislador não pode olvidar seus princípios, em que a equidade necessariamente deve ser utilizada para que a lei surja no sentido da justiça. A equidade é não só abrandamento de uma norma em um caso concreto, como também sentimento que brota do âmago do julgador. Como seu conceito é filosófico, dá margem a várias concepções. O Código Civil brasileiro de 1916 não se referiu diretamente à equidade, que não é propriamente uma fonte de direito, mas um recurso, por vezes deveras necessário, para que não ocorra o que Cícero já denominava summum ius, summa iniuria, isto é, que a aplicação cega da lei leve a uma iniquidade. Nosso Código Civil de 1916 não ignorava, no entanto, a equidade, pois a ela se referia no art. 1.040, IV, permitindo que se autorizem os árbitros, no compromisso (juízo arbitral), a decidirem por “equidade”; no art. 1.456, a ela também se referia ao tratar da interpretação de aspecto de contrato de seguro. Aliás, é da tradição do instituto da arbitragem que as partes possam autorizar os árbitros a decidir por equidade, como consta de nossa atual lei sobre a matéria (art. 11, II, da Lei no9.307/96). Entenda-se, porém, que a equidade é antes de mais nada uma posição filosófica a que cada aplicador do direito 13 dará uma valoração própria, mas com a mesma finalidade de abrandamento da norma. Indubitavelmente, há muito de subjetivismo do intérprete em sua utilização. Vale a pena lembrar, contudo, que, se a equidade não é mencionada como forma direta de julgamento no Código de 2002, este estatuto menciona em mais de uma oportunidade a fixação da indenização de forma equitativa, o que implica um raciocínio por equidade por parte do magistrado. A esse respeito diga-se que, no sistema de 1916, o valor do prejuízo, na responsabilidade civil, sempre foi tido como o valor a ser indenizado. Essa regra geral é exposta no caput do art. 944: “A indenização mede-se pela extensão do dano.” No entanto, o parágrafo único desse dispositivo aduz: “Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.” Nesta última hipótese, em síntese, aplicará o juiz a equidade. No mesmo diapasão é colocada a indenização carreada ao incapaz, conforme o art. 928, matéria à qual retornaremos no estudo da responsabilidade civil. No Código de Processo Civil de 2015 pode ser lembrada a hipótese prevista no art. 85, § 8o, quanto à fixação de honorários de advogado nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, nas em que não houver condenação, “em que se delega ao prudente arbítrio do julgador a estipulação do quantum debeatur”, como recordam Stolze Gagliano e Pamplona Filho (2002:26). Esses autores também recordam que nos procedimentos de jurisdição voluntária o juiz não é obrigado a observar critério da legalidade estrita, podendo adotar, em cada caso, a solução que reputar mais conveniente ou oportuna (assim dizia o art. 1.109 do CPC de 1973). Apesar de essa regra não ser repetida no estatuto processual atual, nada obsta que seja aplicada quando necessário. Os procedimentos de jurisdição voluntária não guardam a rigidez do processo contencioso e podem ser conduzidos com leveza, desde que atingida a sua finalidade e preservados os direitos dos interessados. Na realidade, sintetiza-se que a equidade se traduz na busca constante e permanente do julgador da melhor interpretação legal e da melhor decisão para o caso concreto. Trata- se, como se vê, de um raciocínio que busca a adequação da norma ao caso concreto. Em momento algum, porém, salvo quando expressamente autorizado pela lei, pode o julgador decidir exclusivamente pelo critério do justo e do equânime, abandonando o texto legal, sob o risco de converter-se em legislador. ______________ 1 Não devemos confundir o método analógico com a interpretação extensiva, mero método de interpretação. Ver LOPES, Miguel Maria de Serpa (1962, v. 1:179). (VENOSA 9-25) VENOSA, Sílvio Salvo. Direito Civil - Vol. 1 - Parte Geral, 18ª edição. Atlas, 12/2017. VitalBook file.
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