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1943: O ANO E O JOGO QUE DEFINIRAM A RIVALIDADE ENTRE FC BARCELONA E REAL MADRID CF Ana Carolina Vebber Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM-Sul Graduanda em Relações Internacionais Resumo Este artigo analisa como nasceu a rivalidade entre dois dos maiores times de futebol do mundo, Barcelona e Real Madrid. A criação de ambos os clubes e os contextos sociais mais marcantes não somente do ano de 1943, mas também como este ano influenciou várias manobras de compra e venda de jogadores, que auxiliaram ao Real Madrid ser reconhecido como time da ditadura de Franco e o Barcelona como vítima. Neste contexto, este artigo pretende explicar e demonstrar com alguns exemplos como a rivalidade entre os times ultrapassa as quatro linhas de um campo de futebol e marca a sociedade. Palavras-chave: Barcelona; Real Madrid; nacionalismo; Catalunha; ditadura franquista. Abstract This article analyses how the rivalry between two of the greatest football teams of the world was born, Barcelona and Real Madrid. The creation of both clubs and the most scarring social contexts not only from the year of 1943, but also how this year influenced several buying and selling player maneuvers that helped Real Madrid to be known as Francos dictatorship’s team and Barcelona as its victim. In this context, this article intends to explain and demonstrate with a few examples how the rivalry between the both teams surpasses the football field lines and brands society. Key-words: Barcelona; Real Madrid; nationalism; Catalonia; Franco’s dictatorship. Graduanda do curso de Relações Internacionais Orientador: Prof. Dr. Cristian Salaini Email: anacvebber@gmail.com 2 Introdução “Some people think football is a matter of life and death. I assure you, it’s much more important than that”, Bill Shankly. O futebol, desde a sua criação na Inglaterra, sempre foi uma forma de expressão, de entretenimento, mas também como forma de controle. Na Espanha não foi diferente (AMAZARRAY, 2011). Durante os anos da ditadura franquista, o campo de futebol transformava-se também em uma briga por direitos, e foi em uma destas batalhas, no ano de 1943, que a maior rivalidade futebolística do mundo atual, segundo o ex-técnico do Barcelona, o inglês Bobby Robson, surgiu. Um time não existiria sem o outro, como diria Sid Lowe em seu livro sobre a rivalidade, e como confirmou o atual presidente do Real Madrid, Florentino Pérez, com a seguinte frase: “se o Barcelona não existisse, o Real Madrid o teria inventado”. Com jogos sempre de alta qualidade dentro de campo com grande repercussão política do lado de fora, Barcelona e Real Madrid se destacam e demonstram como se tornaram tão dominantes no futebol mundial. DiStéfano, Cruyff, Guardiola, Mourinho, Messi, Cristiano Ronaldo, são apenas alguns dos nomes que deixaram marcas nas partidas, nos sentimentalismos. Alguns apenas em matéria de futebol, enquanto outros deixando a relação capital-periferia ainda mais tórrida. O presente artigo dissertará sobre esta rivalidade entre dois dos times de futebol mais famosos, milionários e vitoriosos do mundo, FC Barcelona e Real Madrid CF. O foco será explicar como e porque o ano de 1943 foi tão marcante nessa rivalidade, principalmente sob a ótica do confronto entre os times ocorrido neste mesmo ano. Confronto este que definiu o Real Madrid como time da ditadura franquista e o Barcelona como vítima, lutando contra a repressão sofrida por parte do governo então vigente. Os estigmas deste jogo são vistos até hoje, principalmente pelo lado culé1, como será explanado posteriormente, e usados como forma de aumentar ainda mais a rivalidade atualmente. A partir de dados qualitativos coletados através de pesquisa bibliográfica, utilizando-se de autores como Foer, Lowe e Amazzarray, e informações obtidas dos sites oficiais de Barcelona e Real Madrid, o objetivo deste artigo é de mostrar como o 1 Nome característico aos torcedores do Barcelona 3 ano de 1943 foi tão impactante para a rivalidade, os marcando de formas diferentes mas igualmente significativas. Surgimento do FC Barcelona e o sentimento catalão Dentre os dois clubes, o primeiro a ser criado foi o Barcelona, em 1899. Seu criador foi um suíço, Hans Gamper, que havia ido a Barcelona em 1898 a negócios, mas se viu residindo na cidade e abraçando a ideologia catalã, a ponto de alterar seu nome posteriormente de Hans para Joan, nome tipicamente catalão (FOER, 2004). Inicialmente formado por jovens estrangeiros, o Football Club Barcelona foi resultado do aumento da popularidade do futebol na Europa. Gamper foi também quem introduziu o conhecido azul-grená do time da Catalunha, segundo website do Barcelona, uma das teorias para a utilização destas cores é o fato de que Gamper havia previamente jogado no time do Basel, no seu país natal, que possui as mesmas cores. Quanto aos estádios, o Barcelona evoluiu muito neste quesito. O primeiro destes, o Carrer de la Indústria, locava apenas seis mil pessoas, nada em comparação ao seu estádio atual, o Camp Nou, com capacidade de quase 100 mil pessoas, o maior da Europa (FCBARCELONA.COM). Mas, antes do Camp Nou, existiu o Les Corts, erguido em 1922, fato que marcava a era de ouro do clube. Vários de seus jogadores mais emblemáticos jogaram neste estádio, inclusive Paulino Alcantara, máximo goleador do clube até ser ultrapassado esse ano, considerando jogos oficiais e amistosos, pelo argentino Lionel Messi (ESPN, 2014). Um dos períodos mais difíceis na história do clube foi a ditadura instaurada por Primo de Rivera, de 1923 a 1930. A língua catalã foi proibida na esfera pública, assim como a Senyera, bandeira da Catalunha, e o Barcelona, por seu papel de representante da sociedade daquela região, sofreu a mesma repressão (FOER, 2004). Além do mais, durante um jogo em 1925, os catalães vaiaram o hino nacional espanhol, o que fez com que Primo de Rivera fechasse o estádio por seis meses e “convidasse” Gamper a sair do país. A ditadura de Primo de Rivera tinha os mesmos moldes da ditadura franquista que viria posteriormente, mas não tinha um Estado totalitário lhe apoiando, o que fez com que fosse obrigado a renunciar em 1930, dando lugar a uma breve democracia, conhecida como Segunda República, que duraria somente até 1936, com o estourar da guerra civil. 4 A guerra civil espanhola durou três anos, entre 1936 e 1939. O conflito foi causado por uma variedade de tensões políticas entre direita e esquerda, religião e secularismo, centro e periferia, ricos e pobres. Começou com um golpe de estado em 18 de julho de 1936 por oficiais do exército e colaboradores civis de direita buscando derrubar a Frente Popular de esquerda da República, que estava no poder desde as eleições em fevereiro. Os acontecimentos ficaram conhecidos como Primavera Ameaçadora; a tensão política aumentou e a trama se acelerou. General Franco, que havia sido enviado para Gran Canaria, renunciou de início, sua covardia garantindo-lhe o apelido de Miss Ilhas Canárias 1936. Mas ele eventualmente se uniu a conspiração, se tornou o Caudillo, o equivalente espanhol de Duce ou Führer, liderou as tropas fascistas e estabeleceu a ditadura militar que dominou a Espanha até 1975. (LOWE, 2013, p. 25). Com a guerra civil, a Espanha ficou dividida em zonas republicanas, formada pela esquerda política e aqueles que defendiam uma Espanha democrática, e as zonas nacionalistas, composta pelos militares rebeldes e assistidos por Hitler e Mussolini (LOWE, 2013). Com a guerra, não apenas a cidade de Barcelona foi ferida, maso clube também. Josep Sunyol, então presidente do clube e republicano, estava em Madri e, na noite de 6 de agosto de 1936, deveria viajar para Valência. Viajou de carro durante à noite por ser considerado mais seguro. Logo após a saída de Madri, o carro em que estava foi parado e as pessoas dentro do veículo foram obrigadas a descer e oferecerem o comprimento obrigatório: “Viva a república!”. A questão foi que, quem os parou, foram integrantes da Falange, movimento fascista, que, com a vitória dos nacionalistas, viria a se tornar o único partido político na Espanha. Segundo um dos sargentos presentes no momento, Sunyol foi morto e o seu corpo largado, não sendo encontrado até os dias de hoje. Ficou conhecido como o presidente mártir (FCBARCELONA.COM). Nem a guerra civil e a morte do seu presidente fizeram com que o Barcelona não jogasse. Segundo informações do site oficial do clube, na temporada 1936-1937, o Barcelona jogou nove amistosos, dez jogos no Campeonato Catalão e catorze na Liga Mediterrânea. Em 1937, uma oferta de um empresário mexicano chegou à Barcelona. A proposta era de que o time jogasse uma série de amistosos no México. Como Ángel Mur, então fisioterapeuta do time, disse: “fique em Barcelona e arrisque ser explodido ou vá em um tour de futebol pela América. Não era muito uma escolha, era?”. O tour durou mais que o inicialmente pretendido, devido a uma extensão, não somente de tempo, mas também de dinheiro que o clube recebeu (LOWE, 2013). O Barcelona tentou com que a viagem fosse apolítica, mas foram recepcionados como se fossem uma embaixada republicana, um representante da democracia que lutava contra os 5 nacionalistas de Franco. Franco enxergou do mesmo modo, e, assim acabada a guerra civil e consagrada a vitória das tropas nacionalistas, baniu do futebol todos os jogadores presentes na expedição ao México por dois anos. Após três anos de guerra, os nacionalistas marcharam sobre Barcelona, e dentre estes nacionalistas, estava Santiago Bernabéu, o maior presidente da história do maior rival, o Real Madrid (LOWE, 2013). Com o surgimento do regime franquista, a simples presença catalã foi extinguida, a língua proibida, livros queimados. Segundo a visão de um historiador nacionalista, a Catalunha estava presenciando um genocídio cultural (DOWLING, 2014). Com tais medidas, Franco desejava uma Espanha única e unida, mas o inverso ocorreu. Tal política fez com que a sociedade catalã encontrasse algo a qual podia segurar-se e construir uma identidade. Com essa perseguição, a única forma de manifestação restante e segura o suficiente, era o Barcelona. Segundo um dos atuais diretores do clube, “se o regime tivesse permitido o catalão como manifestação cultural, provavelmente teria encontrado uma evolução mais leve e talvez seria mais aceito pela sociedade catalã”. Militares ocupavam então altos cargos governamentais e também presidências em clubes de futebol da Espanha, inclusive o Barcelona, que em março de 1940 teve seu presidente substituído por Enrique Piñeyro de Queralt, auxiliar de General Moscardó, ministro de esporte do regime. No mesmo ano, o nome do Football Club Barcelona foi obrigado a ser traduzido do inglês para o castelhano, se tornando Barcelona Club de Fútbol (LOWE, 2013). Em 1942, o Barcelona ganhou a Copa del Generalísimo, atual Copa do Rei, contra o Atlético Bilbao, em Madri. Foi no ano seguinte, em 13 de junho de 1943, que um dos jogos mais emblemáticos da história aconteceu. Criação do Real Madrid CF Em 1900, os irmãos Padrós, catalães, ironicamente, reuniram um grupo de pessoas em Madri, que somente em 1902, passaria a ser oficialmente o Madrid Football Club. No mesmo ano, o clube organizou um torneio, a Copa do Rei, como celebração a maioridade do Rei Alfonso XIII (LOWE, 2013). Cinco clubes espanhóis inscreveram-se para participar, dentre estes, o Barcelona, ocasionando no primeiro jogo entre os dois principais clubes da Espanha. Até então, os adeptos ao futebol eram 6 somente pessoas abastadas, fato que sofreria grande mudança até a Guerra Civil em 1936. O primeiro título veio em 1905 na terceira edição da Copa do Rei, campeonato que ganharam mais três vezes nas três edições seguintes. Em 1920 o clube muda de nome e se torna o Real Madrid, após o rei lhe garantir o título de Real (ESPN, 2012). O homem que viria a se tornar o maior presidente do clube e que marcharia sobre Barcelona em 1939, foi também jogador do time principal Real Madrid por 12 anos. Santiago Bernabéu fez sua estreia em março de 1912 contra um time de expatriados ingleses, e quatro anos depois marcou um hat-trick contra o Barcelona (LOWE, 2013). Até então, mal sabia que se tornaria o maior presidente do clube, sendo homenageado com o estádio atual do time, com capacidade de mais de 80 mil torcedores. Mas antes do Real Madrid se tornar o time multimilionário de atualmente, existiu o Chamartín, o primeiro estádio construído pelo clube em 1923, com capacidade de 15 mil pessoas (REALMADRID.COM). Mesmo não conquistando nenhum título neste período, a década de 20 se tornou muito importante para o clube, devido à construção do novo estádio e a adição do termo “Real” ao nome oficial do time. O primeiro campeonato nacional espanhol foi organizado na temporada 1928- 1929, com o Real Madrid chegando em segundo lugar, atrás apenas do Barcelona. Poucos anos depois, o Real Madrid contrata o ex-goleiro do Barcelona, Ricardo Zamora (FIFA.COM). Contratado como o jogador mais caro do futebol espanhol até aquele ano, foi considerado após seus anos atuando no clube como o melhor goleiro espanhol da história, sendo que o prêmio de melhor goleiro do campeonato espanhol foi nomeado em sua homenagem, o Troféu Zamora. Foi com Zamora que o Real Madrid venceu a Liga de 1931-1932 invicto. O último título antes do início da guerra civil foi conquistado apenas um mês antes que a mesma estourasse. A final da Copa, vencida em cima do Barcelona, elevou Zamora a mito com uma defesa no último minuto, garantindo a vitória para o time de Madri (REALMADRID.COM). Assim como o Barcelona, o Real Madrid também elegeu um presidente que hoje não é lembrado por maior parte dos seus torcedores. Rafael Sánchez Guerra presidiu somente entre os anos de 1935 e 1936 (REALMADRID.COM). Filho de um monarquista, Sánchez Guerra na década de 1920 era considerado um monarquista conservador, mas após um flerte com o modo de governo Primo de Rivera mudou seu pensamento político fundando a Direita Liberal Republicana e definindo-se como de 7 centro (LOWE, 2013). Franco em 1935 lhe disse que não tinha intenção em realizar um golpe militar na Espanha, algo que alguns anos após Sánchez Guerra apenas comentou “palavras, palavras, palavras”. Com o fim da guerra civil em 1939, o regime franquista começa um ataque àqueles que se opuseram aos nacionalistas de qualquer modo, direta ou indiretamente, incluindo o já ex-presidente madridista e republicano Sánchez Guerra. Mesmo quase oitenta anos após o fim da guerra civil, o Real Madrid não comenta a sua história durante aqueles anos. No livro publicado no centenário do clube, um único parágrafo menciona os acontecimentos daqueles três anos, “a vida no clube foi paralisada” (LOWE, 2013). O primeiro presidente pós-guerra foi Antonio Santos Peralba, com o dever de reestruturar o clube devido às restrições políticas ditadas pelo regime de Franco, principalmente pois os principais jogadores haviam sido exilados. Sua presidência não resistiu aos episódios que seguiram o fatídico jogo de 1943, sendo obrigado a se retirar. A semifinal da Copa del Generalíssimo de 1943 Com a vitória dos nacionalistas de Franco na guerra civil, a Copa do Rei foi renomeada para Copa del Generalíssimo, tendo este nome até a morte do ditador em 1975. Na edição de 1942, o vencedorfoi o Barcelona, batendo o Athletic Bilbao em Madri (FCBARCELONA.COM). Durante a ditadura, todas as finais da Copa eram realizadas em Madri, exceto se o Generalíssimo não pudesse comparecer, desta maneira a final seria realocada para a cidade que ele estivesse (LOWE, 2013). No ano seguinte, o Barcelona voltaria a disputar a Copa, jogando na semifinal contra o Real Madrid. A ida, no estádio Les Corts em Barcelona, foi vencida pelo Barcelona por 3 a 0. A volta, no estádio Chamartín em Madri, foi vencida pelo Real Madrid por 11 a 1. Essa combinação de resultados marcou a história principalmente do Barcelona. Foi a partir deste jogo que o Real Madrid tornou-se conhecido por ser o time da ditadura de Franco e o Barcelona, vítima. O jogo de ida em Barcelona, segundo os madridistas, teve o resultado de 3 a 0 apenas devido ao árbitro, José Fombona, que, com medo, confirmou o primeiro gol culé, mesmo que no início da jogada houvesse uma falta. A imprensa esportiva espanhola atual tem “lados”, por exemplo, os jornais Marca e As, são madridistas, e 8 os jornais catalães Sport e Mundo Deportivo são culés. Em 1943, não era diferente, Teus, jornalista do jornal Ya e ex-goleiro do Real Madrid, descreveu Les Corts aquela noite como um “caldeirão fervente”. Em seu artigo escreveu Ah, se apenas o Chamartín ajudasse o Madrid no domingo como o “caldeirão fervente” do Les Corts ajudou o Barcelona na primeira metade! Nós não exigimos que o time da região seja recebido com nada menos que o mesmo apoio passional, forte e influente que o Barcelona teve... Quando isso será possível em Madri? (LOWE, 2013, p.69) A resposta para a pergunta de Teus é simples, uma semana depois. O Madrid considerou o que ocorreu em Les Corts como uma espécie de emboscada, dessa maneira, preparou também uma no jogo de volta. Apitos foram distribuídos para os aficionados que atenderam o jogo fazendo com que a atmosfera fosse extraordinária, segundo o ex-presidente do Real Madrid, Ramón Mendoza, que tinha apenas 16 anos quando foi aquela partida. Apesar de ser 1943, já parte final da Segunda Guerra Mundial e os Aliados estarem começando a retomar controle, Franco ainda era parceiro do Eixo. A repressão era enorme e o medo constante. O Barcelona foi ameaçado a partir do momento em que os jogadores saíram do hotel, na chegada ao estádio eram chamados de “vermelhos” e “separatistas”. Com meia hora de partida, perdendo por dois a zero, um jogador do Real Madrid faz uma falta considerada pelo Barcelona como desleal, e a partir deste momento, os jogadores culés deixaram o que aconteceu, acontecer. Ao final do primeiro tempo, o resultado era de oito a zero. A atmosfera era tão agitada, no intervalo os jogadores do Barcelona decidiram que não iriam voltar para o segundo tempo (LOWE, 2013). Foi então que segundo dois jogadores daquela semifinal, Calvet e Valle, que um coronel entrou no vestiário e disse “saiam ao campo ou daqui vão direto para a cadeia. Todos detidos.” Após a ameaça, decidiram voltar e o jogo terminou em onze a um (LAVANGUARDIA, 2000). Não se sabe exatamente quem era o homem que foi ao vestiário do Barcelona, alguns sugerem que foi um policial qualquer, um oficial da Guarda Civil, General Moscardó - o homem que efetivamente era ministro do esporte, ou até o diretor da segurança do Estado, José Finat y Escrivá – que havia cooperado com os nazistas, envolvido na agressão a um cantor gay espanhol, e coincidentemente, amigo de Santiago Bernabéu. Com 92 anos, Fernando Argila, é o único remanescente culé daquela semifinal. Goleiro reserva na ocasião, ainda lembra-se daquele dia, e disse que até então, não existia rivalidade entre 9 Barcelona e Real Madrid, mas que passou a existir após fatídica partida. Disse que a rivalidade não apenas se tornou esportiva, mas política, de poder e de poder econômico (LOWE, 2013). Não apenas o que foi dito por Argila é verdadeiro, como também todos os fatores foram aumentados potencialmente com o passar dos anos. Após a temporada 1942-1943, ambos os presidentes dos clubes resignaram de seus cargos, Antonio Peralba, do Real Madrid, foi obrigado a sair do clube, e Piñeyro, do Barcelona, saiu em protesto a semifinal. A rivalidade pós-1943 Com a saída do presidente Piñeyro, Josep Antoni de Albert tomou seu lugar, mas ficou com o cargo por pouco mais de um mês, sendo substituído por escolha do governo espanhol por Josep Vendrell, um coronel amigo de Franco (FCBARCELONA.COM). Na capital espanhola o mesmo processo de substituição de presidentes ocorria, e, em setembro, o Real Madrid requisitou à Federação Espanhola de Futebol que um novo presidente lhe fosse nomeado, dessa maneira, Santiago Bernabéu chega a presidência do que se tornaria o maior clube do mundo, e ele o seu maior presidente (REALMADRID.COM). Quatro meses após a semifinal, uma paz forçada entre os times foi ensaiada com a chamada Copa da Paz. Os times desta vez foram bem recebidos nas cidades, os jogadores receberam presentes dos presidentes, visitaram locais históricos em ambas as cidades. Desta vez, o Barcelona saiu vitorioso (LOWE, 2013). No ano de 1953, um outro tipo de desavença ocorreu entre os clubes, a contratação de um jogador. Alfredo DiStéfano, argentino, ex-jogador do River Plate e do Millonarios da Colômbia. Segundo Emilio Butragueño, ex-jogador do Real Madrid e atualmente diretor no estádio Santiago Bernabéu, define que a história do Real Madrid começa com DiStéfano. O Real Madrid contratou DiStéfano, mas o Barcelona também. Mesmo jogando para o Millonarios, os direitos de DiStéfano ainda eram do River Plate. O Barcelona acordou com o River, e o Real Madrid acordou com o Millonarios (LOWE, 2013). O Barcelona acusa o Real Madrid de se utilizar de Franco para “roubá-lo”, para o Barcelona, além do 11-1, esta foi outra prova de que o regime apoiava o Real Madrid e roubava o time culé. Após inúmeras idas e vindas, o governo entrou no negócio e propôs que os direitos fossem divididos, entretanto o Barcelona 10 não aceitou e renunciou aos seus direitos. Oficialmente do Real Madrid, DiStéfano venceu as primeiras cinco edições da que atualmente é chamada Liga dos Campeões, campeonato criado pelo próprio Real Madrid que envolvia os campeões nacionais dos países europeus. Venceu também oito campeonatos espanhóis, uma Copa, e foi o Pichichi, goleador do futebol espanhol, por 5 anos (REALMADRID.COM). DiStéfano foi para o Real Madrid o que Johan Cruyff viria a ser para o Barcelona. Logo que o Barcelona demonstrou interesse por Cruyff, em 1973, o Real Madrid o compra de seu time, o Ajax. O próprio Cruyff disse “a razão de eu ter ido para o Barcelona foi que o Ajax me vendeu para o Real Madrid. Eu decido.” (LOWE, 2013). Somente após a sua transferência que ficaria ciente do papel político que ambos os clubes representavam na Espanha, assim, abraçou a causa catalã, tanto que entre os anos de 2009 e 2013 foi treinador da seleção da Catalunha. Jogador que marcou a seleção holandesa com o “Carrossel” na Copa do Mundo de 1974 e seu estilo característico, o futebol total, uma revolução no futebol. Rexach, catalão que jogou com Cruyff no Barcelona, disse que a mudança na mentalidade do time foi brutal, agora, com Cruyff, tinha um método, uma ideia por trás do modo de jogar. Após se aposentar, retornou ao Barcelona como técnico em 1988 permanecendo no cargo até 1996. Como técnico foi campeão da primeira Liga dos Campeões do Barcelona em 1992, com o time que ficou conhecido mundialmente como Dream Team, e tendo Josep Guardiola, que se tornaria um dos maiores ídolos do clube juntamente com o próprio Cruyff, no elenco (FCBARCELONA.COM). Na temporada 2010-2011, com Josep Guardiola como técnico do Barcelona e José Mourinho como técnico do Real Madrid, Barcelona e Real Madrid se enfrentaram quatro vezes em dezoitodias, duas vezes pelas semifinais da Champions League, uma vez valendo pelo Campeonato Espanhol e também pela final da Copa do Rei. O que, quando o assunto é o futebol jogado, poderia ser uma maravilha, na verdade foi uma guerra, dentro do campo e fora. Mourinho, técnico do Real Madrid desde 2010, provocava em todas as suas entrevistas coletivas ao Barcelona, e também em tom pessoal a Guardiola. Guardiola, perfeccionista e calmo, somente respondeu a Mourinho no jogo de volta da Champions League. “Fora do campo ele é o vencedor. Ele ganhou durante o ano todo, a temporada toda e no futuro. Ele pode ter a sua Champions League pessoal extra-campo. [...] Na sala de conferência ele é chefe, o mestre. Eu não quero competir com ele por um momento.” (EXPRESS, 2011) 11 Mesmo com o Real Madrid sendo campeão da Copa do Rei, o Barcelona foi campeão espanhol daquele ano e, mais importante, foi campeão da Champions League vencendo o Real Madrid nas semifinais. Apesar de a temporada 2010-2011 ter sido umas das mais ideologicamente carregadas devido a inúmeros fatores, como, Guardiola x Mourinho, Cristiano Ronaldo x Messi, entre outros, acredita-se que o clássico ocorrido em 7 de outubro de 2012 veio a ser o mais politicamente tenso desde a morte do General Franco em 1975. Com a crise europeia em 2010, o desejo de independência da Catalunha voltou a crescer. No Dia Nacional da Catalunha – ou Diada, comemorado no dia 11 de setembro, mais de 1,5 milhão de pessoas foram às ruas protestar em favor da independência catalã, entre estas pessoas estava o então presidente do Barcelona, Sandro Rosell (FOLHA, 2012). Quase cem mil pessoas compareceram aquela partida e formaram um mosaico com a imagem da Senyera, e, no minuto 17:14 gritaram “In, inde, independência”, o minuto em referência a data que a Catalunha voltou a ser domínio espanhol em 1714 (DOWLING, 2014). O técnico do Barcelona já não era mais Guardiola, mas seu assistente, Tito Vilanova, enquanto Mourinho continuava em Madri. O jogo terminou em dois a dois, os gols sendo marcados pelas estrelas de ambos os times, Messi marcando os dois do Barcelona e Cristiano Ronaldo para o Real Madrid. Considerações finais A partir das análises realizadas foi possível explicar como que a rivalidade entre dois dos maiores clubes de futebol do mundo nasceu. A rivalidade entre Real Madrid e Barcelona ultrapassa o limite do campo e invade a esfera social e política espanhola, sendo capaz de tomar conta de noticiários nas semanas que antecedem um jogo. O nacionalismo catalão, eclodido em 1714 com anexação da Catalunha ao território espanhol, achou no Barcelona a perfeita embaixada, ou como, disse Sir Bobby Robson, ex-técnico, “a Catalunha é uma nação sem Estado e o Barça é o seu exército”. Foi no estádio do Barcelona que os catalães gritavam contra a ditadura de General Franco. Por sua vez, o Real Madrid, ironicamente criado por irmãos catalães, após o jogo de 1943 ficou conhecido como time da ditadura, mesmo que alguns anos antes, um de seus ex-presidentes, Rafael Sanchez Guerra, fosse terminantemente 12 contra a mesma. Este estigma permanecesse até os dias atuais, inclusive o ex-técnico do Manchester United, Sir Alex Ferguson já chamou o Real Madrid de time da ditadura. Segundo Amazarray (2011), “o futebol serve como substituto para conflitos e terreno para rivalidades acirradas, em vez de pegar armas, o povo torce, vibra e se emociona com jogos”. A rivalidade entre Real Madrid e Barcelona comprova esta frase. Os estádios tornam-se arenas de espetáculos futebolísticos em que os torcedores projetam toda a sua raiva, toda o seu sentimento nacionalista, no caso do Barcelona, no que é um dos maiores, melhores e mais emocionantes duelos já vistos. …So please, be tolerant of those who describe a sporting moment as their best ever. We do not lack imagination, nor have we had sad and barren lives; it is just that real life is paler, duller, and contains less potential for unexpected delirium. Nick Hornby Referências AMAZARRAY, Igor Chagas. Futebol: o esporte como ferramenta política, seu papel diplomático e o prestígio internacional. Trabalho de conclusão de curso (Graduação) – Relações Internacionais, UFRGS, Porto Alegre, 2011. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/40288/000827664.pdf?sequence= 1> DOWNING, Andrew. Catalonia since the spanish civil war: reconstructing the nation. 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