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Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 1 RESPONSABILIDADE CIVIL ETIMOLOGIA (Ciência que investiga a origem, étimo, das palavras procurando determinar as causas e circunstâncias de seu processo evolutivo). Responsabilidade é um substantivo feminino com origem no latim e que demonstra a qualidade do que é responsável, ou obrigação de responder por atos próprios ou alheios, ou por uma coisa confiada. A palavra responsabilidade tem sua origem na palavra latina responsus, particípio passado do verbo respondere, que significa "responder, prometer em troca", i.e, no sentido filosófico, comprometer-se em responder pelas próprias ações e pelas consequências que decorrem de tais ações. Desta forma, uma pessoa que seja considerada responsável por uma situação ou por alguma coisa, terá que responder se alguma coisa corre de forma desastrosa. A origem do termo se encontra na obra The Federalist, uma recolha de artigos escritos por Alexander Hamilton, John Jay e James Madison, publicada em 1788, onde o termo foi usado pela primeira vez para indicar que o governo dos Estados Unidos é responsável pelas próprias ações em face do povo que lhe delegou seus poderes. Na filosofia de Aristóteles o conceito de responsabilidade implica aquele de liberdade e livre arbítrio, no sentido de que cada um pode ser considerado responsável pelas suas ações se essas foram efetivadas com base em uma livre escolha sem condicionamentos decorrentes de leis físicas, psíquicas ou socioeconômicas. Civil é um adjetivo que provém do substantivo latino civis (cidadão), significando tudo aquilo que concerne aos cidadãos. Direito civil é um ramo do Direito que trata do conjunto de normas reguladoras dos direitos e obrigações de ordem privada concernente às pessoas, aos seus direitos e obrigações, aos bens e às suas relações. Responsabilidade civil é o dever de reparar os danos provocados numa situação onde determinada pessoa sofre prejuízos jurídicos como consequência de atos ilícitos praticados por outrem. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 2 PRECEDENTE HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL Encontramos no direito romano a Lex Aquilia (plebiscito provavelmente do século III a.C.) que, certamente, foi o alicerce para o desenvolvimento da atual responsabilidade civil baseada na culpa. É a Lex Aquilia que nos traz um princípio geral que regula a reparação do dano, mas adverte José de Aguiar Dias que, "embora se reconheça que não contivesse ainda uma regra de conjunto, nos moldes do direito moderno, era, sem dúvida, o germe da jurisprudência clássica com relação à injúria"1. A Lex Aquilia se dividia em três capítulos. No primeiro, havia a regulamentação dos casos de morte de escravos e de quadrúpedes que pastam em rebanho; o segundo, o dano causado por um credor menor ao credor principal, que conseguia a quitação de sua dívida em prejuízo do credor principal; o terceiro, que é o que nos interessa, tratava do damnum iniuria datum, que compreendia o dano por ferimento causado aos escravos e animais do primeiro capítulo e a destruição ou deterioração de coisas corpóreas. Este terceiro capítulo é a parte mais importante da lei, pois, foi através dela que os jurisconsultos e pretores construíram a verdadeira doutrina romana da responsabilidade extracontratual. "O damnum injuria datum consistia na destruição ou deterioração da coisa alheia por fato ativo que tivesse atingido a coisa corpore corpori illatum (produzir ao corpo com o corpo = dano físico), sem direito ou escusa legal (injúria)". Em princípio, só o dono lesado tinha direito à reparação; com o tempo, adaptando-se à necessária evolução da matéria, foi concedida tanto aos possuidores diretos como aos indiretos e também a certos detentores. [Exerce a posse indireta o proprietário da coisa, o qual, apesar de possuir o domínio do bem, concede ao possuidor direto o direito de possuí-la temporariamente. É o caso do locador, proprietário do imóvel que, ao alugá-lo, transfere a posse direta da coisa ao locatário.] 1 Iniuria em latim significa ofensa, injustiça. O significado jurídico da palavra, no direito romano, é a violação de um direito, ato ilícito. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 3 Esta lei introduziu o elemento subjetivo da culpa, sendo necessária a caracterização da intenção da pessoa querer causar lesão à outra, excluindo-se o objetivismo do direito primitivo, "... expurgando-se do direito a ideia de pena, para substituí-la pela de reparação do dano sofrido". ATO ILÍCITO E RESPONSABILIDADE CIVIL 1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS E CONCEITUAIS Quando estudamos o fato jurídico2, vimos que, segundo a melhor doutrina, o ato jurídico3 (em sentido amplo) é toda ação humana lícita, positiva ou negativa, apta a criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações. Entretanto, por vezes, pode a pessoa atuar contrariamente ao direito, violando as normas jurídicas e causando prejuízo a outrem. Neste último caso, estaremos diante de uma categoria própria, denominada ato ilícito, conceito difundido pelo Código Civil alemão, consistente no comportamento humano voluntário, contrário ao direito, e causador de prejuízo de ordem material ou moral. SÉRGIO CAVALIERI FILHO4, com precisão, define-o como sendo “o ato voluntário e consciente do ser humano, que transgride um dever jurídico”. Do exposto, poderemos extrair os seguintes elementos componentes do ato ilícito: a) ação humana (positiva ou negativa); 2 Reale, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva 2002. Afirma o mestre paulista que “fato jurídico é todo e qualquer fato que, na vida social, venha a corresponder ao modelo de comportamento ou de organização configurado por uma ou mais normas de direito”. 3 Ibidem. Explica, ainda, Miguel Reale que, às vezes, “o fato não é mero acontecimento natural, mas, ao contrário, algo que se prende à deliberação volitiva do homem, à qual a norma jurídica confere consequências de direito, tais como as de constituir, modificar ou extinguir uma “relação jurídica”, ou mais amplamente, uma ‘situação jurídica’. Eis que teremos, nesses casos, os atos jurídicos. 4 Cavalieri Filho, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo, 2000, p. 22. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 4 b) contrariedade ao direito ou ilicitude (violação de dever jurídico preexistente); c) prejuízo (material ou moral). “A iliceidade de conduta está no procedimento contrário ao dever preexistente”, adverte CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA. E arremata: “Sempre que alguém falta ao dever a que é adstrito, comete um ilícito, e como os deveres, qualquer que seja a sua causa imediata, na realidade são sempre impostos pelos preceitos jurídicos, o ato ilícito importa na violação do ordenamento jurídico”5. 2. DA INEXISTÊNCIA DE DIFERENÇA ONTOLÓGICA6 ENTRE ILÍCITO CIVIL E PENAL A noção de ato ilícito não interessa apenas ao Direito Civil, mas toca a todos os outros ramos do Direito. Aliás, reputamos inteiramente írrita a discussão infindável a respeito dos critérios diferenciadores dos ilícitos civil e penal. De fato, na responsabilidade civil, o agente que cometeu o ilícito tem a obrigação de reparar o dano patrimonial ou moral causado, buscando restaurar o status quo ante, obrigação esta que, se não for mais possível, é convertida no pagamento de uma indenização (na possibilidade de avaliação pecuniária do dano) ou de uma compensação (na hipótese de não se poder estimarpatrimonialmente este dano), enquanto, pela responsabilidade penal ou criminal, deve o agente sofrer a aplicação de uma cominação legal, que pode ser privativa de liberdade (ex.: prisão), restritiva de direitos (ex.: perda da carta de habilitação de motorista) ou mesmo pecuniária (ex.: multa). Nas palavras de CARLOS ALBERTO BITTAR, “a reparação representa meio indireto de devolver-se o equilíbrio às relações privadas, obrigando- se o responsável a agir, ou a dispor de seu patrimônio para a satisfação 5 Silva Pereira, Caio Mário da . Instituições de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2001, v. 1, p. 416. 6 Ontológico significa “refere-se ao sujeito em si mesmo” Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 5 dos direitos do prejudicado. Já a pena corresponde à submissão pessoal e física do agente, para restauração da normalidade social violada com o delito”, pois o “princípio que governa toda essa matéria é o do alterum non laedere (não lesar a outrem) ou neminem laedere (não lesar ninguém) — um dos princípios gerais do direito — consoante o qual a ninguém se deve lesar, cujos efeitos em concreto se espraiam pelos dois citados planos, em função do interesse maior violado (de pessoa, ou de pessoas, de um lado; da sociedade ou da coletividade, de outro) e conforme a técnica própria dos ramos do Direito que a regem, a saber: a) Direito Civil (para as violações privadas) e b) o Direito Penal (para a repressão pública)”7. [Ulpiano, D. 1.1.10pr.: “Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere” – “Os preceitos do direito são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu.”] É preciso, contudo, que fique claro que ambos os casos (responsabilidade civil e responsabilidade criminal) decorrem de um fato juridicamente qualificado como ilícito ou, em outras palavras, como não desejado pelo direito, pois praticado em ofensa à ordem jurídica, violando direito subjetivo. Desta forma, conforme aponta WLADIMIR VALLER, baseado em NÉLSON HUNGRIA, a “ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico. Em seus aspectos fundamentais há uma perfeita coincidência entre o ilícito civil e o ilícito penal, pois ambos constituem uma violação da ordem jurídica, acarretando, em consequência, um estado de desequilíbrio social. Mas, enquanto o ilícito penal acarreta uma violação da ordem jurídica, quer por sua gravidade ou intensidade, a única sanção adequada é a imposição da pena, no ilícito 7 Bittar, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil — Teoria & Prática. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 3. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 6 civil, por ser menor a extensão da perturbação social, são suficientes as sanções civis (indenização, restituição in specie, anulação do ato, execução forçada, etc.). A diferença entre o ilícito civil e o ilícito penal é, assim, tão somente, de grau ou de quantidade”8. A diferença não está, portanto, na constituição essencial de um ou outro, mas, sim, no grau mais ou menos severo de resposta do próprio ordenamento jurídico violado. Apenas a natureza do interesse tutelado e a força da sanção imposta em face do descumprimento da norma dirão se estamos diante de um ilícito civil ou penal. Figuremos um exemplo simples. Um sujeito, guiando o seu veículo imprudentemente, ultrapassa o sinal vermelho e atropela um pedestre, causando-lhe grave lesão física. O mesmo comportamento humano positivo, com acentuada carga de ilicitude, violou normas de três ordens: administrativa, civil e penal. Para cada uma, o ordenamento jurídico, considerando a natureza dos interesses atingidos (organização do tráfego, patrimônio e integridade física), previu mecanismos sancionatórios diferenciados: multa administrativa (Direito Administrativo), pagamento de indenização à vítima (Direito Civil) e privação da liberdade (Direito Penal). Ora, diante de tal hipótese, conclui-se facilmente estarmos diante de apenas um comportamento humano, cujo espectro de ilicitude, por força da natureza dos interesses atingidos e das sanções impostas, tingiu-se de três diferentes matizes (administrativo, penal e civil). O ato ilícito é uno, e não deve ser cindido na sua essência, senão quando se estuda a consequência dos seus efeitos nocivos, à luz dos diversos ramos do Direito. Outra não é a conclusão a que chega CAIO MÁRIO, ao discorrer sobre a diferença entre o ilícito civil e o ilícito penal: 8 Valler, Wladimir. A Reparação do Dano Moral no Direito Brasileiro. Campinas-SP: E. V. Editora, 1995, p. 17. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 7 “Nesta análise cabe toda espécie de ilícito, seja civil, seja criminal. Não se aponta, em verdade, uma diferença ontológica entre um e outro. Há em ambos o mesmo fundamento ético: a infração de um dever preexistente e a imputação do resultado à consciência do agente. Assinala-se, porém, uma diversificação que se reflete no tratamento deste, quer em função da natureza do bem jurídico ofendido, quer em razão dos efeitos do ato. Para o direito penal, o delito é um fator de desequilíbrio social, que justifica a repressão como meio de restabelecimento; para o direito civil o ilícito é um atentado contra o interesse privado de outrem, e a reparação do dano sofrido é a forma indireta de restauração do equilíbrio rompido”9. Posto isso, iniciaremos a análise do tema em nosso Direito Positivo. 3. TRATAMENTO NO CÓDIGO CIVIL DE 1916 E NO NOVO CÓDIGO CIVIL O estudo do ato ilícito une-se umbilicalmente, como já se anteviu, ao problema da responsabilidade, tema dos mais apaixonantes em todo o Direito. Segundo ZANOBINI, o termo “responsabilidade”, em sentido lato, presta-se a “indicar a situação toda especial daquele que, por qualquer título, deva arcar com as consequências de um fato danoso”10. A responsabilidade jurídica, por seu turno, pode ser definida como sendo a consequência imediata da infração de um dever normativo preexistente, causador de lesão ao interesse jurídico que se pretendia tutelar. No que se refere à responsabilidade civil, o prejuízo decorrente da violação normativa é essencialmente patrimonial, impondo-se ao agente 9 Silva Pereira, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1992, v. I, p. 452-3. 10 Zanobini, cit. por Rui Stoco, Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 90. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 8 causador do dano a obrigação de indenizar, desde que se observem os seguintes pressupostos: a) ação humana (positiva ou negativa); b) dano (material ou moral); c) nexo de causalidade (entre o agente e o prejuízo); d) imputabilidade (este último elemento é pressuposto somente da obrigação de indenizar, e não da responsabilidade civil, que a transcende, como veremos no tomo próprio). Embora este não seja o momento próprio para desenvolvermos a matéria, vale a pena registrar que o elemento subjetivo (dolo ou culpa) não é mais um postulado inquestionável e um elemento indispensável para a caracterização da responsabilidade civil. Com o desenvolvimento da teoria do risco, incrementada pelo avanço tecnológico do século XX, a responsabilidade civil subjetiva, fundamentada na ideia de culpa, tão defendida pelos irmãos MAZEAUD, cedeu lugar, paulatinamente, à responsabilidade civil objetiva. Hoje, ambas as formas de responsabilidade convivem, havendo sido esta, inclusive,a posição adotada pelo Novo Código Civil: “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (grifamos). De tudo que se disse, constatamos que o ato ilícito compõe a estrutura da responsabilidade civil. O Código de 1916, em seu art. 159, assim o definia: “Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 9 A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553”. Observe-se que esse dispositivo, além de estar calcado na ideia de culpa, traduzida nas expressões “omissão voluntária, negligência ou imprudência”, impôs o dever de indenizar como consequência pelo prejuízo causado a outrem. Não se preocupou, outrossim, o legislador de 1916, em reconhecer expressamente a reparabilidade do dano moral. Entretanto, por não haver estabelecido proibição nesse sentido, sempre foi possível interpretar teleologicamente a palavra “prejuízo”, para abranger a indenização pela dor psicológica sofrida. Tal interpretação foi reforçada com a Constituição Federal de 1988, que, em seu art. 5.º, V e X, consagrou expressamente a reparabilidade do dano moral, fulminando de morte os que ainda resistiam a tal hermenêutica. O Novo Código Civil, por sua vez, aprimorou sobremaneira esta regra legal, consoante decorre da leitura dos seus arts. 186 e 187: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (grifos nossos). 4. O ABUSO DE DIREITO Além de admitir, seguindo orientação constitucional, que o ato ilícito poderá produzir dano exclusivamente moral, o legislador, nos referidos arts. 186 e 187, cuidou também de prever, em norma expressa, a teoria do abuso de direito, apenas indiretamente reconhecida pelo Código de 1916. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 10 Esta teoria desenvolveu-se a partir do célebre caso de Clement Bayard, julgado por um tribunal francês, no início do século passado. O proprietário de um imóvel, sem razão justificável, construiu altas hastes pontiagudas para prejudicar o voo de aeronaves no terreno vizinho. Cuidava-se de nítido abuso do direito de propriedade. Analisando o art. 187 do CC-02, conclui-se não ser imprescindível, pois, para o reconhecimento da teoria do abuso de direito, que o agente tenha a intenção de prejudicar terceiro, bastando, segundo a dicção legal, que exceda manifestamente os limites impostos pela finalidade econômica ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Aliás, no apreciar a aplicação da teoria, deve o julgador recorrer à regra de ouro do art. 5.º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro: “Art. 5.º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Pronunciando-se a respeito do tema, pondera SILVIO RODRIGUES: “Acredito que a teoria atingiu seu pleno desenvolvimento com a concepção de Josserand, segundo a qual há abuso de direito quando ele não é exercido de acordo com a finalidade social para a qual foi conferido, pois, como diz este jurista, os direitos são conferidos aos homens para serem usados de uma forma que se acomode ao interesse coletivo, obedecendo à sua finalidade, segundo o espírito da instituição”11. Adotou-se, portanto, o critério finalístico para a identificação do abuso de direito. Apenas a título de exemplificação, podemos apontar algumas hipóteses de abuso de direito: no Direito Contratual, a negativa injustificada, causadora de prejuízo, de contratar, após o proponente nutrir a legítima expectativa da outra parte; no Direito das Coisas, o uso 11 Rodrigues, Silvio. Direito Civil — Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 314. Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 11 abusivo do direito da propriedade, desrespeitando a política de defesa do meio ambiente; no Direito de Família, a exacerbação do poder correcional dos pais em relação aos filhos; no Direito do Trabalho, o exercício abusivo do direito de greve; no Direito Processual do Trabalho, a sanção cominada nos arts. 731 e 732 da CLT, aplicável especialmente ao reclamante, que não comparece por duas vezes à audiência designada, deixando arquivar (extinguir o processo sem julgamento do mérito) a reclamação, sempre que percebe a presença do reclamado, para tentar forçar uma revelia deste, no dia em que o mesmo esteja impedido de comparecer. Em conclusão, transcrevemos a precisa observação feita por SÍLVIO VENOSA, de referência à expressa consagração da teoria do abuso de direito no Novo Código Civil brasileiro: “O Projeto, de forma elegante e concisa, prescinde da noção de culpa, no art. 187, para adotar o critério objetivo-finalístico. É válida, portanto, a afirmação apresentada de que o critério de culpa é acidental e não essencial para a configuração do abuso. Adota ainda o Projeto, ao assim estabelecer, a corrente majoritária em nosso meio”. 5. CAUSAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE O exercício regular do direito, a legítima defesa e o estado de necessidade são causas excludentes de ilicitude, previstas em nosso direito positivo. Nesse sentido, dispõe o art. 188 do Novo Código Civil, que mantém, com poucas modificações, diretriz já constante no Código de 1916 (art. 160): “Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I — os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II — a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 12 absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo”. Compare-se esse artigo com a previsão legal do Código de 1916: “Art. 160. Não constituem atos ilícitos: I — os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II — a deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente (arts. 1.519 e 1.520). Parágrafo único. Neste último caso, o ato será legítimo, somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo”. Dentro da noção de exercício regular de um direito enquadra-se, por óbvias razões, o estrito cumprimento do dever legal. A legítima defesa (art. 188, I, primeira parte, do CC-02; art. 160, I, do CC-16) pressupõe a reação proporcional a uma injusta agressão, atual ou iminente, utilizando-se moderadamente os meios de defesa postos à disposição do ofendido. A desnecessidade ou imoderação dos meios de repulsa poderá caracterizar o excesso, proibido pelo direito. Vale lembrar que, se o agente, exercendo a sua lídima prerrogativade defesa, atinge terceiro inocente, terá de indenizá-lo, cabendo-lhe, outrossim, ação regressiva contra o verdadeiro agressor. Nesse sentido, confiram-se os arts. 929 e 930 do CC-02: “Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram. Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 13 dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado. Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I)”. O estado de necessidade (art. 188, II, do CC-02; art. 160, II, do CC-16), por sua vez, consiste na situação de agressão a um direito alheio, de valor jurídico igual ou inferior àquele que se pretende proteger, para remover perigo iminente, quando as circunstâncias do fato não autorizarem outra forma de atuação. Perceba-se que o parágrafo único do referido artigo de lei, similar à regra contida no art. 160 do CC-16, prevê que o estado de necessidade “somente será considerado legítimo quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo”. Diferentemente do que ocorre na legítima defesa, o agente não reage a uma situação injusta, mas atua para subtrair um direito seu ou de outrem de uma situação de perigo concreto. É o caso do sujeito que desvia o carro de um bebê, para não atropelá- lo, e atinge o muro da casa, causando danos materiais. Atuou, neste caso, em estado de necessidade. Se o terceiro atingido não for o causador da situação de perigo, poderá exigir indenização do agente que houvera atuado em estado de necessidade, cabendo a este ação regressiva contra o verdadeiro culpado (o pai do bebê que, à luz do art. 933 do CC-02, responderá objetivamente pelo dano causado). Finalmente, cumpre-nos advertir que, em situações excepcionais, os atos lícitos poderão impor a obrigação de indenizar. É o caso da passagem forçada, prevista no art. 1.285 do Novo Código Civil: “Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso à via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, Direito Civil III – Teoria Geral dos Contratos Profa Myriam Benarrós Clementoni Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, 2012. 14 constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário”. Note-se que, neste caso, a obrigação de indenizar decorre de um ato perfeitamente lícito: o próprio direito de passagem, previsto no referido artigo de lei. Ainda no campo dos Direitos Reais, também ocorre a obrigação de indenizar em decorrência de um ato lícito na hipótese prevista no art. 1.313 do CC-02 (similar, posto não idêntica, à prevista no art. 587 do CC- 16): “Art. 1.313. O proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para: I — dele temporariamente usar, quando indispensável à reparação, construção, reconstrução ou limpeza de sua casa ou do muro divisório; II — apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente. § 1.º O disposto neste artigo aplica-se aos casos de limpeza ou reparação de esgotos, goteiras, aparelhos higiênicos, poços e nascentes e ao aparo de cerca viva. § 2.º Na hipótese do inciso II, uma vez entregues as coisas buscadas pelo vizinho, poderá ser impedida a sua entrada no imóvel. § 3.º Se do exercício do direito assegurado neste artigo provier dano, terá o prejudicado direito a ressarcimento” (grifamos). Excepcionalmente, portanto, a responsabilidade civil poderá decorrer de um comportamento humano admitido pelo direito.
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