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Criminologia Crítica Feminista e Violência Contra a Mulher: um estudo da eficácia invertida do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher

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FACULDADE DE DIREITO DE VITÓRIA 
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO 
 
 
 
LEONARDO DALVI ALVARENGA 
 
 
 
CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA E VIOLÊNCIA 
CONTRA A MULHER: UM ESTUDO DA EFICÁCIA 
INVERTIDA DO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E 
FAMILIAR CONTRA A MULHER 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
VITÓRIA 
2010 
 
 
LEONARDO DALVI ALVARENGA 
 
 
 
 
 
 
 
 
CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA E VIOLÊNCIA 
CONTRA A MULHER: UM ESTUDO DA EFICÁCIA 
INVERTIDA DO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E 
FAMILIAR CONTRA A MULHER 
 
 
Trabalho de Conclusão de Curso 
apresentado ao Curso de Graduação 
em Direito da Faculdade de Direito de 
Vitória – FDV, como requisito para 
obtenção do título de Bacharel em 
Direito. 
Orientador: Profº Wilton Bisi Leonel 
 
 
 
 
 
 
 
 
VITÓRIA 
2010 
 
 
LEONARDO DALVI ALVARENGA 
 
 
 
 
CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA E VIOLÊNCIA 
CONTRA A MULHER: UM ESTUDO DA EFICÁCIA 
INVERTIDA DO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E 
FAMILIAR CONTRA A MULHER 
 
 
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da 
Faculdade de Direito de Vitória – FDV, como requisito para obtenção do título de 
Bacharel em Direito. 
 
Aprovado em ___ de dezembro de 2010. 
 
 
 
COMISSÃO EXAMINADORA 
 
 
____________________________________ 
Profº Wilton Bisi Leonel 
Faculdade de Direito de Vitória 
Orientador 
 
 
____________________________________ 
Profº 
Faculdade de Direito de Vitória 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico o presente trabalho àquelas pessoas que me apoiaram 
e me incentivaram, sobretudo aos meus pais. 
 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Agradeço, primeiramente, aos meus pais, Jose Antonio e Elizete, por serem as 
minhas principais fontes de inspiração, de onde retirei valores como humildade, 
honestidade, justiça, disciplina e sinceridade. A eles serei eternamente grato pela 
oportunidade que me deram de estudar e, principalmente, pelo apoio incondicional 
que sempre recebi. Agradeço ainda por sempre permanecerem ao meu lado nos 
momentos de dificuldade e fraqueza, me mostrando que muitas vezes esses 
momentos são facilmente contornáveis quando não me deixo levar pelo desespero. 
Agradeço por todo o amor e carinho que me deram e por confiarem em mim e em 
minhas escolhas. As palavras, especialmente nesse caso, são muito restritas para 
demonstrar a gratidão que tenho por tudo o que me fizeram esses meus dois 
exemplos de vida. 
 
Agradeço à minha irmã, Luisa, cuja espontaneidade sempre me diverte. É uma 
pessoa que está sempre presente e se sacrifica sempre que possível para fazer 
minhas vontades. Um agradecimento especial pelas caronas. Obrigado pela 
felicidade contagiante que me faz rir em dias de prova. 
 
Agradeço, ainda, à minha namorada, Dayana, que, apesar da distância física 
limitando nossos encontros, sempre se manteve muito mais próxima do que a 
maioria das pessoas. Muito obrigado por me aturar em todos os momentos de 
ansiedade, tristeza e indignação, me ensinando com seus conselhos e me 
acalmando com toda a atenção despendida. Sou especialmente grato por todo o 
amor que me dá e por ter subitamente aparecido em minha vida. Agradeço ainda por 
toda a felicidade que me proporciona e por todos os nossos momentos na Ilha da 
Magia. “És” mais bela do que todas as praias de Santa Catarina. 
 
Agradeço aos meus amigos, que sempre me divertiram e estiveram presentes em 
cada momento da graduação. Sem eles, passar por todas as dificuldades da vida 
seria muito mais penoso. Muito obrigado por estarem ao meu lado e me 
proporcionarem momentos ímpares de descontração e felicidade. Um 
agradecimento especial ao Thomas, ao Marcelo, à Rovena, à Lorena, ao Joaquim, à 
 
 
Suellen, à Ludmilla, ao Attila e à Vanessa, por me mostrarem o verdadeiro valor de 
uma amizade. 
 
Agradeço, por fim, ao meu orientador, Wilton Bisi Leonel, por todo o conhecimento 
que me foi passado, pelo apoio que me foi dado, pelo crédito em mim depositado e 
pelo desconforto que me causou ao mostrar algumas incoerências da realidade, 
essencial para a produção deste trabalho. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Só se pode chegar a uma ruptura da relação de cumplicidade 
que as vítimas da dominação simbólica têm com os 
dominantes com uma transformação radical das condições 
sociais de produção das tendências que levam os dominados a 
adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio 
ponto de vista dos dominantes”. 
 
Pierre Bourdieu 
 
 
 
RESUMO 
 
Busca analisar qual tem sido o desempenho do Poder Judiciário na repressão aos 
crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. O método utilizado para a 
coleta dos dados foi o de amostragem aleatória. A amostragem se consiste em 
cento e cinquenta e dois boletins de ocorrência registrados entre janeiro de 2008 e 
janeiro de 2009, o que corresponde a dez por cento de todos os boletins de 
ocorrência registrados no período. Em primeiro lugar, foram selecionadas as 
amostras na DEAM de Vitória/ES. A partir disso, procurou-se acompanhar as fases 
pelas quais passaram esses boletins de ocorrência, ou seja, se viraram inquéritos 
policiais, denúncias ou sentenças, quando fosse o caso. Em um segundo momento, 
na Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da 
Comarca de Vitória/ES, foram separadas todas as sentenças com julgamento de 
mérito (terminativas de mérito, condenatórias e absolutórias) proferidas no ano de 
2009, a fim de fazer uma análise qualitativa dessas decisões, considerando a 
quantidade de pena aplicada e a forma de aplicação da mesma. Assim, concluiu-se 
que o desempenho do Poder Judiciário no combate à violência doméstica e familiar 
contra a mulher deixa muito a desejar, pois o sistema penal segue uma estrutura de 
valores dominantes que visam tão-somente a criminalização de uma parcela da 
população menos favorecida. O sistema penal, portanto, funciona como um 
subsistema do sistema capitalista e patriarcal/androcêntrico, o qual visa à 
manutenção dessas ideologias. 
 
Palavras-chave: Criminologia Crítica Feminista. Violência doméstica e familiar 
contra a mulher. Processo de criminalização. 
 
 
 
LISTA DE ABEVIATURAS E SIGLAS 
 
a.C. – antes de Cristo 
AGENDE – Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento 
art. – artigo 
B.O. – Boletim de Ocorrência 
CAVVID – Centro de Atendimento às Vítimas de Violência e Discriminação 
CEJIL – Centro pela Justiça e o Direito Internacional 
CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação 
Cf. – Confrontar 
CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria 
CLADEM – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da 
Mulher 
CNJ – Conselho Nacional de Justiça 
CP – Código Penal 
CPC – Código de Processo Civil 
CPP – Código de Processo Penal 
d.C. – depois de Cristo 
DEAM – Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher 
DECCM – Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher 
Depen – Departamento Penitenciário Nacional 
DF – Distrito Federal 
DJ – Diário da Justiça 
DJe – Diário da Justiça Eletrônico 
DML – Departamento Médico Legal 
DPE – Defensoria Pública Estadual 
ed. - edição 
ES – Espírito Santo 
HC – Habeas Corpus 
IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística 
IML – Instituto Médico Legal 
InfoPen – Sistema Integrado de Informações Penitenciárias 
IPÊ – Instituto para a Promoção da Equidade 
 
 
JECRIM – Juizado Especial Criminal 
LEP – Lei de Execuções Penais 
LMP – Lei Maria da Penha 
MG – Minas Gerais 
Min. – Ministro(a) 
MP – Ministério Público 
OEA – Organização dos Estados Americanos 
OMS – Organização Mundial de Saúde 
ONG – Organização Não Governamental 
p. – página 
PL – Projeto de Lei 
PLC – Projeto de Lei Complementar 
REsp – Recurso Especial 
SEMCID – Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos 
SPM – SecretariaEspecial de Políticas para as Mulheres 
STF – Supremo Tribunal Federal 
TCO – Termo Circunstanciado de Ocorrência 
TJ – Tribunal de Justiça 
 
 
 
SUMÁRIO 
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12 
 
1 CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA .................. 18 
1.1 O PARADIGMA ETIOLÓGICO E A ESCOLA POSITIVA ................................. 18 
1.2 O PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL (LABELING APPROACH) ................. 21 
1.3 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA ............................................................................ 24 
1.4 O PATRIARCALISMO E O FEMINISMO ......................................................... 36 
1.5 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA ........................................................ 47 
 
2 A CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A 
MULHER ................................................................................................................... 56 
2.1 ANÁLISE JURÍDICO-DOGMÁTICA DA LEI MARIA DA PENHA ..................... 56 
2.2 ANÁLISE DO VALOR SIMBÓLICO DA LEI MARIA DA PENHA ..................... 77 
 
3 A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A 
MULHER ................................................................................................................... 83 
3.1 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO PROCESSO FORMAL DE 
CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA ........................................................................ 83 
3.2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO PROCESSO CONCRETO DE 
CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA ........................................................................ 89 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 101 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 103 
 
APÊNDICE A – Fluxograma do processo formal de criminalização secundária 
da violência doméstica e familiar contra a mulher iniciado na DEAM ............. 113 
 
 
APÊNDICE B – Fluxograma do processo formal de criminalização secundária 
da violência doméstica e familiar contra a mulher na Vara Especializada em 
Violência Doméstica contra a Mulher .................................................................. 114 
APÊNDICE C – Fluxograma do procedimento do CAVVID em situações de 
violência doméstica e familiar contra a mulher .................................................. 115 
 
ANEXO A – Notícia: Lei Maria da Penha entra em vigor nesta sexta-feira ....... 116 
ANEXO B – Cartaz de campanha da Lei Maria da Penha ................................... 120 
ANEXO C – Projeto de Lei n° 4559/2004 e exposição de motivos ..................... 121 
ANEXO D – Notícia: Para juiz, proteção à mulher é “diabólica” ....................... 138 
 
12 
 
INTRODUÇÃO 
 
 
Com o advento do Estado Social Democrático de Direito, em virtude da promulgação 
da Constituição Federal de 1988, muitos temas relacionados aos direitos humanos 
vieram à tona e ganharam lugar na pauta de discussões em várias áreas do saber 
humano. Esse afloramento de debates aconteceu devido a uma ânsia social que 
visava à mudança dos ideais de um Estado ditatorial para os de um Estado 
democrático, alicerçados na observância de direitos fundamentais inerentes a todos 
os seres humanos. Os indivíduos passaram, portanto, em tese, a ter protegidos e 
resguardados todos aqueles direitos que promovem a sua dignidade enquanto seres 
humanos. 
 
Nesse contexto, muitas foram as leis promulgadas com o intuito de regular e tornar 
efetivos esses direitos, dentre elas o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 
Federal n° 8.069/90), o Estatuto do Idoso (Lei Federal n° 10.741/2003) e a Lei Maria 
da Penha (Lei Federal n° 11.340/2006). Assim, acompanhando essa mudança de 
ideais, é de suma importância fazer referência ao movimento em prol da igualdade 
de oportunidades entre homens e mulheres. A Constituição Federal de 1988 veio 
também com esse propósito, o de igualar as condições das relações de gênero na 
vida em sociedade. 
 
A igualdade que se pretende não é meramente formal, mas material. Nessa linha, o 
objetivo não é tão-somente igualar direitos e deveres, mas criar normas adequadas 
às peculiaridades de cada gênero, tendo em vista que homens e mulheres não têm, 
de forma alguma, exatamente as mesmas necessidades e interesses a serem 
tutelados. Essa diferença de necessidades e interesses é que gera os diversos tipos 
de violência, quando uma das partes tenta satisfazer-se baseada na força. 
 
Assim, podemos afirmar que as violências doméstica e familiar são problemas os 
quais a humanidade atravessa desde os primórdios da cultura de formação da 
família e, em que pese não serem a mesma coisa e não estarem necessariamente 
13 
 
ligadas, ambas têm uma essência comum, qual seja a relação de proximidade do 
agressor para com a vítima. 
 
Merece menção o fato de que as maiores vítimas desse tipo de violência, 
atualmente, são as mulheres, e, ainda, de que não é recente a tendência do 
masculino de subjugar o feminino. O androcentrismo está intrinsecamente 
relacionado com um patriarcalismo que se percebe tanto nas relações sociais 
brasileiras quanto nas leis que são promulgadas pelo próprio Estado para regular as 
mesmas, em virtude de uma mentalidade historicamente construída e de complexo 
desfazimento. 
 
Por muito tempo, no Brasil, a violência doméstica e familiar contra a mulher foi 
tratada como um problema privado, o qual deveria ser resolvido “em casa”. 
Violências doméstica e familiar ainda são tabus e suas discussões só estão saindo 
agora da esfera privada para tornar-se pública. Há um grande número de mulheres 
que sofrem com a violência doméstica e familiar no Brasil; vide dados da OMS 
(Organização Mundial de Saúde) (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2005), os 
quais expressam que 29% das mulheres da zona urbana brasileira e 37% das 
mulheres da zona rural brasileira já sofreram algum tipo de violência física, sexual, 
ou ambas (esses dados se referem àquelas que alguma vez já tiveram um 
companheiro). 
 
Assim, a busca por uma mudança dessa situação se fez presente, com a 
promulgação da Lei Maria da Penha, na tentativa de minimizar esse tipo de 
violência, que não só tem causado consequências físicas à mulher, mas, 
principalmente, psicológicas. 
 
A Lei Maria da Penha foi promulgada diante de um grande clamor social por 
resposta a um caso específico que aconteceu com a farmacêutica aposentada Maria 
da Penha Maia Fernandes, no Ceará, que foi agredida, em 1983, pelo seu esposo 
Marco Antonio Heredia Viveros, deixando-a paraplégica, de forma irreversível. Não 
foi uma só agressão, mas reiteradas agressões, até mesmo após a sua volta do 
hospital para casa, já limitada em seus movimentos. 
 
14 
 
Anteriormente a essa lei, casos como esse eram resolvidos nos Juizados Especiais 
Criminais, sob a incidência da Lei dos Juizados Especiais (Lei Federal n° 9.099/95), 
que é tratada como um novo paradigma a ser seguido pelo sistema penal, com 
sanções alternativas, mais brandas e com um maior foco ressocializador, devido à 
suposta falência do sistema carcerário. 
 
A Lei Maria da Penha, desse modo, constitui um paradoxo inserido no sistema de 
políticas criminais, em virtude de ser uma lei mais severa dentro de um sistema cujo 
discurso é evitar ao máximo o uso do cárcere. Em outras palavras, é uma lei que 
anda na contramão do novo discurso de política criminal, tida como mais adequada 
ao sistema penal atual. 
 
Em que pese esse discurso descriminalizante e ressocializador, é muito arraigada 
na sociedade brasileira a crença de que a promulgação de uma lei mais severa é a 
solução para os problemas sociais, vide os casos da Lei de Crimes Hediondos (Lei 
Federal n° 8.072/90), da Lei Maria da Penha e da Lei Seca (Lei Federal n° 
11.705/2008), para citaralgumas. Essas leis foram promulgadas com o objetivo de 
minimizar ou resolver problemas sociais impondo maior austeridade no trato com os 
mesmos. 
 
Dentro desse contexto, a avaliação do desempenho do Poder Judiciário na 
aplicação da Lei Maria da Penha é um tema de relevância para o Direito, pois o 
fenômeno da violência doméstica e familiar está presente na vida de todos os 
indivíduos, ainda que de forma indireta, e precisa ser regulado de forma apropriada, 
sem a intervenção de fatores externos que precipitam o processo legislativo, 
promulgando uma lei sem um estudo mais aprofundado do assunto. 
 
Dentro dos limites políticos o tema também é de suma importância, por se tratar de 
uma crítica à orientação das políticas públicas que estão sendo implementadas sem 
o devido estudo prévio, o que acarreta em um resultado negativo para a gestão do 
corpo social. Quando se percebe que duas políticas criminais se chocam, presume-
se a ausência de critérios para a criação dessas leis, frutos de políticas divergentes, 
o que semeia a descrença da população na gestão pública. Desse modo, é 
15 
 
justificável, politicamente, o presente estudo dessa paradoxal sobreposição de 
políticas criminais. 
 
No âmbito econômico é proveitoso observar o gasto de verbas públicas com 
sistemas e institutos jurídicos ineficientes, o que vai contra o princípio constitucional 
da eficiência na Administração Pública. São gastos milhões de reais em criações de 
varas especializadas, treinamento policial e em construções de abrigos, sem que 
haja um retorno em prol da sociedade. Sabe-se que muitas dessas “novidades” 
implementadas pela Lei Maria da Penha ainda não foram totalmente colocadas em 
prática e, até mesmo, não foram assimiladas por quem tem a competência de criar e 
se utilizar desses instrumentos. Portanto, justifica-se, dessa forma, dentro da esfera 
econômica, um estudo mais detalhado dessa eficiência e da pertinência desses 
institutos. 
 
Finalmente, na esfera acadêmica, justifica-se o estudo do tema para que os 
trabalhos posteriores tenham uma opção a mais de embasamento teórico, uma vez 
que a informação é essencial para o desenvolvimento da ciência. Além disso, o que 
se vê no âmbito acadêmico são discussões predominantemente baseadas em dois 
discursos: o feminista (em prol da Lei Maria da Penha) e a crítica ao discurso 
feminista (a qual comporta estudos criminológicos americanos que simplificam 
demais as causas desse tipo de violência). Nesse ponto, a justificativa se dá pelo 
fato de o estudo a ser desenvolvido aqui propor uma crítica a ambos os discursos 
que predominam. 
 
Na verdade, entendemos que somente a criminalização primária (promulgação da 
Lei Maria da Penha) é insuficiente para conter a prática deste tipo de violência 
contra a mulher quando há uma criminalização secundária (incidência da punição) 
extremamente seletiva. 
 
Diante disso, este trabalho se propõe a analisar qual tem sido o desempenho do 
Poder Judiciário na repressão aos crimes de violência doméstica e familiar contra a 
mulher. Isso será feito sob o enfoque da Criminologia Crítica Feminista mediante a 
interpretação de dados pertinentes a essa temática, coletados na Vara 
Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de 
16 
 
Vitória/ES e na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Vitória/ES 
(DEAM). 
 
Primeiramente, foram selecionados aleatoriamente cento e cinquenta e dois boletins 
de ocorrência registrados entre os meses de janeiro de 2008 e janeiro de 2009 na 
DEAM de Vitória/ES, o que corresponde a dez por cento dos boletins de ocorrência 
registrados no período. 
 
No momento seguinte, foi analisado o desfecho, quando fosse o caso, de cada um 
desses boletins de ocorrência, ou seja, procuramos aferir se esses boletins de 
ocorrência viraram inquéritos policiais, denúncias e sentenças. Essa análise se 
limitou ao primeiro grau de jurisdição. 
 
Após isso, foi feita uma análise qualitativa das sentenças com julgamento de mérito 
(terminativas de mérito, condenatórias e absolutórias) proferidas durante o ano de 
2009 na Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da 
Comarca de Vitória/ES, considerando a quantidade de pena aplicada e a forma de 
aplicação da mesma. 
 
A partir dessas análises quantitativa e qualitativa, foi possível perceber que o 
desempenho do Poder Judiciário na repressão dos crimes de violência doméstica e 
familiar contra a mulher deixa muito a desejar, em virtude do excesso de filtragens 
que ocorrem durante todo o processo de criminalização secundária desses crimes. 
Trata-se, na verdade, de uma eficácia invertida, na medida em que favorece as 
classes dominantes da sociedade. 
 
O capítulo 1 é destinado a explicar a estrutura de valores envolvida por trás desse 
processo de criminalização, bem como analisar a forma pela qual esses valores 
influenciam no trato do sistema penal com a violência doméstica e familiar contra a 
mulher. 
 
O capítulo 2 se presta a analisar a Lei Maria da Penha em um viés jurídico-
dogmático, além de demonstrar todo o valor simbólico envolvido em sua 
promulgação e aplicação. 
17 
 
 
O capítulo 3, por sua vez, fecha o presente trabalho com uma análise do processo 
formal de criminalização secundária da Lei Maria da Penha, para, finalmente, 
podermos analisar o processo concreto de criminalização secundária e chegarmos à 
conclusão procurada. 
 
Após todas essas considerações, precisamos ter em mente que esse estudo parte 
do pressuposto de que, atualmente, a ideia predominante que norteia o estudo da 
criminalidade está alicerçada em cinco premissas principais relacionadas à ideia de 
crime: a de que o crime é um mal que deve ser combatido; a de que o crime é um 
fenômeno anormal, praticado por uma minoria desviante que contraria os valores 
comuns a toda a sociedade; a de que o Estado, por ser a representação da 
sociedade, sempre reage de forma legítima sobre os indivíduos que praticam crimes; 
a de que o Estado promove a reação penal de forma igual contra todos os indivíduos 
que praticam crimes; e a de que o crime é consequência de causas determinadas.1 
 
Segundo estas premissas, o delito é um fenômeno deletério, contrário aos valores 
sociais comuns, praticado por uma minoria da sociedade por causas determinadas, 
e punido pelo Estado com equidade e de forma legítima. Essas causas 
determinadas que levam à prática do delito, de acordo com a criminologia 
tradicional, podem decorrer de fatores antropológicos (ou biológicos), físicos ou 
sociais, os quais incidem sobre o seu objeto de estudo, que é o homem criminoso, 
influenciando as suas características e as suas motivações para cometer 
determinado “desvio de conduta”. À conta disso, é possível vislumbrar uma grande, 
e cada vez maior, influência do chamado paradigma etiológico no trato com a 
criminalidade contemporânea.2 
 
 
1 Esses princípios formam a chamada “ideologia da defesa social”, a qual rege o funcionamento do 
sistema penal liberal. Cf. COSTA, 2005, p. 102; BARATTA, 2002, p. 42. 
2 Cf. ANDRADE, 2003, p. 33. 
18 
 
1 CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA 
 
 
1.1 O PARADIGMA ETIOLÓGICO E A ESCOLA POSITIVA 
 
 
O paradigma etiológico começou a nortear os estudos criminológicos a partir do 
século XIX, quando as pesquisas sobre a criminalidade deixaram para trás a ideia 
do delito como objeto a ser estudado, para focar no sujeito criminoso. O delito era o 
centro dos estudos da chamada escola liberal clássica, que o concebia como uma 
violação do pacto social sobre o qual se sustentava o Estado.3 Além disso, tal escola 
defendia que esta violação acontecia pela livre vontade de cada indivíduo e que, 
portanto, todos eram igualmente propensos a delinquir. Sobre a escola liberal 
clássica, Alessandro Baratta (2002, p. 31) afirma que a mesmanão considerava o delinqüente como um ser diferente dos outros, não partia 
da hipótese de um rígido determinismo, sobre a base do qual a ciência 
tivesse por tarefa uma pesquisa etiológica sobre a criminalidade, e se 
detinha principalmente sobre o delito, entendido como conceito jurídico, isto 
é, como violação do direito e, também, daquele pacto social que estava, 
segundo a filosofia política do liberalismo clássico, na base do Estado e do 
direito. 
 
A denominação “escola clássica”, na verdade, foi criada pelos positivistas, 
pejorativamente, para designar uma linha de pensamento que consideravam 
ultrapassada.4 O mais ilustre representante dessa escola foi, certamente, Cesare 
Beccaria, o qual questionava a crueldade das penas aplicadas em seu tempo 
(meados do século XVIII). Beccaria (2004, p. 19) afirmava que os homens, 
 
fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda 
parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava 
inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais 
segurança. 
 
 
3 O pacto social, dentro do contexto apresentado, é um elemento de várias teorias modernas, criadas 
entre os séculos XVI e XVIII, que juntas formam o que se chama de “contratualismo”. Os principais 
autores contratualistas da época foram Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e 
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Apesar de todas as diferenças entre essas teorias, há uma 
ideia em comum: os membros de uma sociedade se organizam mediante um acordo, visando à 
proteção de princípios básicos para a vida em comunidade. Cf. MARCONDES, 1998, p. 196-201. 
4 Cf. BITENCOURT, 2007, p. 50. 
19 
 
e que “a reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o 
fundamento do direito de punir” (BECCARIA, 2004, p. 19). 
 
A escola liberal clássica teve início com o advento do Iluminismo, no começo do 
século XVIII, mas acabou perdendo força no século XIX, em virtude da ciência de 
caráter positivista que surgia como principal fundamento do paradigma etiológico de 
estudo da criminalidade. De acordo com Newton Fernandes e Valter Fernandes 
(2002, p. 80), “o Direito Penal abandonou o terreno da abstração em que se colocara 
ao tempo da chamada Escola Clássica, passando para o concretismo das 
verificações objetivas sobre o delito e, fundamentalmente, sobre o criminoso”. 
 
Neste contexto, vamos nos remeter à escola positiva italiana, mais especificamente 
à Antropologia Criminal de Cesare Lombroso e à Sociologia Criminal de Enrico Ferri. 
 
Lombroso, médico psiquiatra italiano, nascido em 1835, fez investigações 
antropológicas em prisões, utilizando-se de método próprio das ciências naturais 
(observações empíricas), no intuito de descobrir quais eram as características de um 
criminoso nato.5 Em seu livro O Homem Delinquente, afirma que pretende estudar a 
biologia e a psicologia “destes homens que concentram no organismo humano 
tantas anomalias, como nos crimes tanta constância nas reincidências” 
(LOMBROSO, 2007, p. 30). Além dos estigmas físicos, Lombroso também citou em 
seu estudo estigmas psíquicos que caracterizariam o delinquente.6 Seu objetivo era 
poder identificar aqueles indivíduos que são mais propensos à prática de delitos a 
partir de características biológicas e psíquicas de cada um. 
 
Lombroso considerava, por exemplo, que as tatuagens ou cicatrizes eram 
características dos delinquentes. Afirmava que “o lugar da tatuagem, e sobretudo o 
número, são de grande importância antropológica, porque provam a vaidade 
instintiva que é característica no criminoso” (LOMBROSO, 2007, p. 35), e que a 
 
5 Apesar de a expressão “criminoso nato” ser muito utilizada para designar a doutrina de Lombroso, 
quem efetivamente a criou e utilizou nesse sentido foi Enrico Ferri (FERNANDES; FERNANDES, 
2002, p. 91). 
6 Alguns dos estigmas físicos eram: fartas sobrancelhas; molares muito salientes; orelhas grandes e 
deformadas; dessimetria corporal; e particularidades da forma da calota craniana e da face. Alguns 
dos sinais psíquicos eram: crueldade; aversão ao trabalho; instabilidade; tendência a superstições; 
precocidade sexual; e sensibilidade dolorosa diminuída (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 81). 
20 
 
frequência das cicatrizes na cabeça e nos braços é “outro sinal que pode tornar-se 
precioso ao médico legista por distinguir um malandro e um ladrão de um homem 
honesto e pacífico cidadão” (LOMBROSO, 2007, p. 45). 
 
Deste estudo, Lombroso retirou também sua tese do atavismo, segundo a qual o 
homem criminoso se assemelhava ao homem primitivo, ao selvagem, pois também 
apresentava características físicas e psíquicas não mais presentes em seus 
ascendentes imediatos. Entretanto, sua doutrina não mais se sustentou após os 
estudos que o sucederam, conforme afirmam Newton Fernandes e Valter Fernandes 
(2002), em especial quando confrontados aos de Baer (Der Verbrecher in 
anthropologischer Bezichung, 1893) e de Bleuler (Der Geborene Verbrecher, 1896). 
 
As experiências de Lombroso influenciaram sobremaneira o pensamento de Enrico 
Ferri, o qual, em sua obra Sociologia Criminal, considerava determinantes para a 
formação do homem criminoso as causas físicas (clima, umidade, ambiente telúrico 
em geral) e as causas sociais (mesológicas), além das causas biológicas 
apresentadas por Lombroso. 
 
Diante disso, os indivíduos que estivessem expostos a determinadas condições 
sociais e físicas consideradas preponderantes na delinquência, ou apresentassem 
alguma característica biológica típica de delinquentes, eram considerados tendentes 
para o crime. Daí se depreende que, para a escola positiva, os indivíduos que 
praticavam crimes eram diferentes dos indivíduos tidos como “normais”. 
 
Assim, a escola positiva, representando o paradigma etiológico, formou as bases da 
Criminologia tradicional, que tem como características o fato de que o crime é um 
fenômeno anormal e natural de toda sociedade constituída, além de ser um mal 
praticado por uma minoria de pessoas que apresentam tendência para delinquir em 
virtude de causas determinadas. Essa linha criminológica supõe, portanto, uma 
noção ontológica da criminalidade: o crime existe pelo fato de existirem indivíduos 
predispostos, por determinadas condições, a praticá-lo. Além disso, também parte 
do pressuposto de que exista uma uniformidade da moral, ou seja, uma moral 
universal, a qual deve ser obedecida por todos. O indivíduo que não segue as regras 
morais universais é um indivíduo “doente”, que precisa de um tratamento. 
21 
 
 
Essas características foram modernizadas com novas correntes, mas são 
consideradas até os dias atuais pela Criminologia tradicional para fundamentar todo 
o sistema de justiça criminal. 
 
No entanto, a partir da década de 60, uma nova forma de pensar o crime começou a 
surgir, deslocando a investigação das causas do crime para os processos sociais de 
criminalização. Este é o chamado paradigma da reação social, sob o qual teve 
origem a teoria do etiquetamento social (labeling approach). 
 
 
1.2 O PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL (LABELING APPROACH) 
 
 
A teoria do labeling approach teve sua origem fundada em duas correntes da 
sociologia fenomenológica americana, quais sejam a do “interacionismo simbólico” e 
da “etnometodologia”. Os estudiosos do interacionismo simbólico, segundo 
Alessandro Baratta (2002, p. 87), entendiam a realidade social como “uma infinidade 
de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação 
confere um significado que se afasta das situações concretas e continua a estender-
se através da linguagem”, enquanto que os da etnometodologia entendiam que “a 
sociedade não é uma realidade que se possa conhecer sobre o plano objetivo, mas 
o produto de uma ‘construção social’, obtida graças a um processo de definição e detipificação por parte de indivíduos e de grupos diversos” (BARATTA, 2002, p. 87). 
 
A partir destas correntes, o labeling approach explica que a criminalidade não é 
ontológica, como se depreende do paradigma etiológico, mas é o produto de uma 
construção social arquitetada sobre determinados valores e normas 
institucionalmente definidas e difundidas pelas interações concretas intersubjetivas. 
Assim, podemos afirmar que uma conduta não é, por si só, criminosa, mas 
socialmente criminalizada com base em um conjunto de valores. 
 
22 
 
Ademais, são dois os momentos pelos quais passa o processo de criminalização: o 
da definição legal de crime (a conduta definida institucionalmente como crime) e o 
da seleção estigmatizante (o status de criminoso atribuído a determinado indivíduo, 
entre todos aqueles que infringem as normas penais sancionadas, difundido pelas 
interações concretas intersubjetivas). Neste mesmo diapasão, Vera Regina Pereira 
de Andrade (2003, p. 41) explica que, 
 
uma conduta não é criminal “em si” (qualidade negativa ou nocividade 
inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua 
personalidade ou influências de seu meio ambiente. A criminalidade se 
revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos 
mediante um duplo processo: a “definição” legal de crime, que atribui à 
conduta o caráter criminal, e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza um 
autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas. 
 
Do primeiro momento se retira, portanto, o conceito de criminalização primária, que 
se refere ao mecanismo de produção das normas no intuito de regular determinadas 
condutas consideradas desviantes; ou seja, é a criação do corpo normativo que 
deve ser respeitado sob pena de sanção contra aquele que se portar de forma 
oposta. Já do segundo momento, se retira a criminalização secundária, a qual diz 
respeito à aplicação dessas normas; em outras palavras, ela define quem são os 
indivíduos sobre os quais incidirá determinada norma e quando incidirá. 
 
Em relação ao processo de definição da criminalidade, este se dá em dois âmbitos. 
Primeiramente, existem os processos de definição do senso comum, que são 
produzidos em instâncias não-oficiais. Esses processos ocorrem segundo a 
interpretação de certo comportamento, que acaba se difundindo socialmente, de 
forma a se afastar das situações concretas e a se tornar uma norma moral abstrata. 
A partir disso, a mesma norma pode ser transformada em jurídica pelas instâncias 
oficiais, criminalizando a conduta. Em virtude da criminalização, começam os 
processos de definição oficiais, ou seja, produzidos em instâncias oficiais. Não se 
trata de processos excludentes, eles se completam ao mesmo tempo em que 
coexistem. John Itsuro Kitsuse (apud BARATTA, 2002, p. 94) explica esse fenômeno 
definindo o desvio, que é, para ele, 
 
um processo no curso do qual alguns indivíduos, pertencentes a algum 
grupo, comunidade e sociedade a) interpretam um comportamento como 
desviante, b) definem uma pessoa, cujo comportamento corresponda a esta 
23 
 
interpretação, como fazendo parte de uma certa categoria de desviantes, c) 
põem em ação um tratamento apropriado em face desta pessoa. 
 
Desta forma, o que se apreende do conceito de Kitsuse é que a reação acerca do 
comportamento de determinado indivíduo é provocada pela interpretação que outros 
indivíduos fazem do mesmo comportamento. 
 
Assim, o comportamento passa a ser percebido como o oposto do comportamento 
considerado “normal”, e essa interpretação se perpetua, tanto nas instâncias oficiais 
como nas não-oficiais. 
 
A interpretação feita pelas instâncias oficiais, e também pelo senso comum, no 
sentido de reprimir determinadas condutas não são determinadas somente pela 
violação da norma penal. Alessandro Baratta (2002, p. 107, grifo do autor), seguindo 
a crítica de Fritz Sack à definição “legal” de criminalidade, afirma que “a 
criminalidade, como realidade social, não é uma entidade preconstituída em relação 
à atividade dos juízes, mas uma qualidade atribuída por estes últimos a 
determinados indivíduos”. 
 
Esta atribuição acaba “rotulando” o indivíduo como criminoso. As consequências 
desse etiquetamento perante a sociedade são perversas, pois o indivíduo que viola 
a lei não é visto como um indivíduo “normal”. 
 
Entretanto, não são todos os indivíduos que sofrem essa rotulação. De acordo com 
Howard Becker (apud ANDRADE, 2003, p. 42), um dado ato, para ser considerado 
desviante, “depende em parte da natureza do ato (ou seja, se quebranta ou não 
alguma regra), e em parte do que outras pessoas fazem a respeito”. 
 
Em virtude disso, podemos entender o porquê de indivíduos diferentes praticarem a 
mesma conduta e um ser rotulado como criminoso e o outro não. Trata-se de uma 
questão axiológica, ou seja, dos valores intrínsecos aos indivíduos e às instituições 
que reagem à conduta considerada desviante. 
 
O labeling approach não entra no mérito de informar que valores são esses e por 
isso não é suficiente para explicar de forma completa o fenômeno da criminalidade. 
24 
 
Contudo, a sua contribuição para o estudo criminológico é de enorme valia, pois 
significou uma ruptura tanto metodológica quanto epistemológica em relação à 
Criminologia tradicional.7 
 
Nesse sentido, ocorre o surgimento da Criminologia Crítica, influenciada pela teoria 
materialista histórico-dialética marxista, suprindo essa lacuna axiológica na 
explicação da criminalidade. 
 
 
1.3 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA 
 
 
Karl Marx e Friedrich Engels (2009, p. 67, grifo do autor) afirmavam que “as ideias 
da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a 
classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu 
poder espiritual dominante”. A Criminologia Crítica se volta a esse pensamento para 
explicar, primeiramente, o porquê de o paradigma etiológico sobreviver às críticas 
quanto ao funcionamento do sistema penal. Entendemos aqui que tal paradigma se 
trata de uma ideia dominante, imposta pela classe dominante para a satisfação de 
seus interesses. Essa ideia dominante é tida como certa, quase uma verdade 
universal, a qual Marx chamava de ideologia. 
 
A ideologia no pensamento marxiano é um mascaramento da realidade, e é o 
principal instrumento de dominação da classe dominante. Segundo Marx e Engels 
(2009, p. 69, grifo do autor), 
 
cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela é 
obrigada, precisamente para realizar o seu propósito, a apresentar o seu 
interesse como o interesse universal de todos os membros da sociedade, 
ou seja, na expressão ideal [ideell]: a dar às suas ideias a forma da 
universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente 
válidas. 
 
Nesse sentido, podemos afirmar que a classe dominante na atual conjuntura 
mundial é a capitalista, detentora dos meios de produção social e também do capital. 
 
7 Cf. ANDRADE, 2003, p. 45; SANTOS, 2005. 
25 
 
Marx e Engels (2001, p. 23) diziam que “a história de toda sociedade até nossos 
dias é a história da luta de classes”. Essa é uma luta constante, que abarca não só o 
sistema econômico, mas influencia a sociedade como um todo. 
 
Tendo isso em vista, a Criminologia Crítica se baseia em dois pilares essenciais para 
a definição da criminalidade: nas contradições resultantes das relações sociais de 
produção capitalista e na teoria do etiquetamento (labeling approach). Isso significa 
uma mudança de objeto e, consequentemente, de método adotado nas pesquisas 
criminológicas, a partir de uma abordagem materialista histórico-dialética.8 Para a 
Criminologia Crítica, o labeling approach peca por explicar a relação de poder no 
processo de seleção penal sem lidar com as relações sociais de produção 
capitalista. Nesse sentido, Juarez Cirinodos Santos (2005, p. 1, grifo do autor) 
esclarece que 
 
a Criminologia crítica é construída pela mudança do objeto de estudo e do 
método de estudo do objeto: o objeto é deslocado da criminalidade, como 
dado ontológico, para a criminalização, como realidade construída, 
mostrando o crime como qualidade atribuída a comportamentos ou pessoas 
pelo sistema de justiça criminal [...]; o estudo do objeto não emprega o 
método etiológico das determinações causais de objetos naturais 
empregado pela Criminologia tradicional, mas um duplo método adaptado à 
natureza de objetos sociais: o método interacionista de construção social do 
crime e da criminalidade, responsável pela mudança de foco do indivíduo 
para o sistema de justiça criminal, e o método dialético que insere a 
construção social do crime e da criminalidade no contexto da contradição 
capital/trabalho assalariado, que define as instituições básicas das 
sociedades capitalistas. 
 
Dentro desta ótica, o sistema penal é entendido como um subsistema do 
capitalismo, ou seja, um instrumento de classe inserido em uma luta de classes. 
Além disso, o direito penal não é entendido como um sistema estático de normas, 
 
mas como sistema dinâmico de funções, no qual se podem distinguir três 
mecanismos analisáveis separadamente: o mecanismo da produção das 
normas (criminalização primária), o mecanismo da aplicação das normas, 
isto é, o processo penal, compreendendo a ação dos órgãos de 
investigação e culminando com o juízo (criminalização secundária) e, enfim, 
o mecanismo da execução da pena ou das medidas de segurança 
(BARATTA, 2002, p. 161). 
 
 
8 Cf. ANDRADE, 2003, p. 45; COSTA, 2005, p. 90; BARATTA, 2002, p. 161. 
26 
 
Trazendo este pensamento para a realidade brasileira, o que se pode ver é uma 
criminalização primária exercida pelos órgãos legislativos e uma criminalização 
secundária exercida pela instância policial, Ministério Público e juízes. Mais além, 
existe aquela denominada por alguns autores de criminalização terciária, a qual 
ocorre durante a execução da pena pelas instâncias oficiais e depois dela pelas 
instâncias não-oficiais. 
 
Dentro desse contexto, são premissas da teoria da Criminologia Crítica: a existência 
de indivíduos que detêm o controle dos meios de produção capitalistas e, em razão 
disso, do próprio sistema capitalista; e a existência de indivíduos que se prestam 
tão-somente a servir esse sistema vendendo a sua força de trabalho em troca de 
salário. Como consequência dessa relação, existe uma contradição entre a 
igualdade formal proposta pela norma em abstrato e a desigualdade substancial 
entre os indivíduos. Esta desigualdade substancial tem origem nessa relação 
desigual de produção do sistema capitalista e, de acordo com Alessandro Baratta 
(2002), se manifesta em relação às chances de os indivíduos serem definidos e 
controlados como desviantes. 
 
Em outras palavras, a distribuição do poder de definição de quem é considerado 
criminoso e a do poder de reação aos atos que tal indivíduo pratica é desigual em 
virtude da desigualdade social advinda do sistema capitalista. Essa definição e essa 
reação devem acontecer de acordo com os interesses da classe dominante, sendo 
esta a classe capitalista. Isso contradiz o que afirma a criminologia liberal tradicional, 
a qual apregoa “que o comportamento delinqüente tem sua origem exclusiva no 
próprio indivíduo, estando totalmente dissociado de causas sociais” (GUIMARÃES, 
2006, p. 355). 
 
Em relação aos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, é possível afirmar que os 
mesmos não são selecionados considerando a sua importância para a sociedade, 
mas sim a sua importância para a classe dominante. Os comportamentos lesivos 
aos interesses da classe dominante são aqueles escolhidos para serem alvos do 
direito penal, porém sob a aparência de serem lesivos ao interesse social como um 
todo. Alessandro Baratta (2002, p. 165) explica que as justificativas do direito penal 
na escolha dos bens jurídicos protegidos 
27 
 
 
são uma ideologia que cobre o fato de que o direito penal tende a privilegiar 
os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de 
criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos 
a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação 
capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, 
para formas de desvio típicas das classes subalternas. 
 
Isto explica, por exemplo, o porquê de, até dezembro de 2009, no Brasil, existirem 
64.815 pessoas cumprindo pena por furto, enquanto 431 pessoas cumpriam pena 
por peculato (BRASIL, 2010a). O crime de peculato é praticado por indivíduos típicos 
da classe dominante, enquanto o de furto é praticado por indivíduos típicos da 
classe subalterna. 
 
Inclusive, há também interpretações diferenciadas nos tribunais quanto ao 
julgamento de habeas corpus visando o trancamento de ação penal pelos dois 
crimes, quando suscitado o princípio da insignificância. 
 
Quanto ao crime de furto, o Supremo Tribunal Federal (STF), em acórdão proferido 
no HC 92.743-2/RS, indeferiu, por unanimidade, o trancamento de uma ação penal 
por crime de furto, no qual o autor subtraiu bens avaliados em R$ 100,90 (cem reais 
e noventa centavos), afirmando o seguinte: 
 
EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA 
INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REPARAÇÃO DO DANO. 
ATENUAÇÃO DA PENA. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO DISPOSTO 
NO ART. 34 DA LEI N. 9.249/95, VISANDO À EXTINÇÃO DA 
PUNIBILIDADE EM RELAÇÃO AOS CRIMES DESCRITOS NA LEI N. 
8.137/90. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. 1. A aplicação do princípio da 
insignificância há de ser criteriosa, cautelosa e casuística. Devem estar 
presentes em cada caso, cumulativamente, requisitos de ordem objetiva: 
ofensividade mínima da conduta do agente, ausência de periculosidade 
social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do 
agente e inexpressividade da lesão ao bem juridicamente tutelado. [...]. 2. A 
reparação do dano após a consumação do crime, ainda que antes do 
recebimento da denúncia, confere ao paciente somente a atenuação da 
pena; não a extinção da punibilidade. 3. [...]. Habeas corpus conhecido, 
em parte, e denegada a ordem nessa extensão. 
 
(HC 92743, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 
19/08/2008, DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC 14-11-2008 EMENT 
VOL-02341-02 PP-00326) (BRASIL, 2008, grifo nosso). 
 
28 
 
No caso em tela, houve a reparação do dano antes do oferecimento da denúncia 
pelo Ministério Público. Porém, o STF entendeu que tal reparação não enseja 
extinção de punibilidade do agente, mas tão-somente a atenuação da pena. 
 
Quanto ao crime de peculato, entretanto, o mesmo tribunal, em acórdão proferido no 
HC 92.634/PE, deferiu, por maioria de votos, o trancamento de uma ação penal por 
crime de peculato, no qual o autor subtraiu um bem avaliado em R$ 455,00 
(quatrocentos e cinquenta e cinco reais), fundamentando que: 
 
EMENTA: HABEAS CORPUS. PECULATO PRATICADO POR MILITAR. 
PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. CONSEQÜÊNCIAS 
DA AÇÃO PENAL. DESPROPORCIONALIDADE. 1. [...]. 2. Hipótese em 
que o paciente não devolveu à Unidade Militar um fogão avaliado em R$ 
455,00 (quatrocentos e cinqüenta e cinco) reais. Relevante, ademais, a 
particularidade de ter sido aconselhado, pelo seu Comandante, a ficar com 
o fogão como forma de ressarcimento de benfeitorias que fizera no imóvel 
funcional. Da mesma forma, é significativo o fato de o valor 
correspondente ao bem ter sido recolhido ao erário. 3. [...]. Ordem 
concedida. 
 
(HC 87478, Relator(a): Min. EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em 
29/08/2006, DJ 23-02-2007 PP-00025 EMENT VOL-02265-02 PP-00283) 
(BRASIL, 2006a, grifo nosso). 
 
Aqui, é possível vislumbrar também uma reparação pelo dano, o que fez o STF 
entender pela extinção de punibilidade do agente no crimede peculato, ao contrário 
da situação de furto antes analisada, ainda que o valor do bem subtraído no 
peculato fosse maior do que o dos subtraídos no furto. A utilização de um princípio 
como fundamento decisório de um caso concreto permite aos julgadores uma 
discricionariedade muito grande, legitimando julgamentos contraditórios. Nesse 
mesmo diapasão, Vanessa Maria Feletti (2008, p. 3116) afirma que o intérprete do 
direito, em casos que envolvam membros de estratos sociais mais altos da 
sociedade, “valer-se-á dos princípios para alcançar a absolvição, e assim o agente 
da conduta típica, antijurídica, culpável, com autoria e materialidade comprovadas 
sairá incólume de sua inusitada ‘captura nas teias do sistema penal’”. 
 
Desta forma, fica patente a incoerência da criminalização secundária. O processo de 
seleção se volta aos excluídos socialmente. Sobre isso, Alessandro Baratta (2002, p. 
165) afirma que “as maiores chances de ser selecionado para fazer parte da 
‘população criminosa’ aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da 
29 
 
escala social (subproletariado e grupos marginais)”. Além disso, explica que, antes 
de serem causas da criminalidade como afirma a criminologia tradicional, 
 
a posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, 
falta de qualificação profissional) e os defeitos de socialização familiar e 
escolar, as quais representam características dos indivíduos pertencentes 
aos níveis mais baixos, [...] revelam ser conotações sobre a base das quais 
o status de criminoso é atribuído (BARATTA, 2002, p. 165, grifo do autor). 
 
Inserido neste contexto, o direito penal funciona, portanto, como um mecanismo de 
reprodução da ideologia dominante e, consequentemente, como um instrumento de 
manutenção das desigualdades sociais. Alessandro Baratta (2002, p. 166, grifo do 
autor) afirma que, 
 
em primeiro lugar, a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, 
e especialmente o cárcere, é um momento superestrutural essencial para a 
manutenção da escala vertical da sociedade. Incidindo negativamente 
sobretudo no status social dos indivíduos pertencentes aos estratos sociais 
mais baixos, ela age de modo a impedir sua ascensão social. Em segundo 
lugar, e esta é uma das funções simbólicas da pena, a punição de certos 
comportamentos ilegais serve para cobrir um número mais amplo de 
comportamentos ilegais, que permanecem imunes ao processo de 
criminalização. 
 
Assim, a classe dominada permanece dominada. O controle social é uma forma de 
manter os estratos sociais mais baixos no mesmo lugar, tendo em vista que estes 
são uma importante massa de manobra nas mãos da classe dominante. Ademais, a 
punição exacerbada de determinados desvios fornece uma falsa ideia de que o 
sistema penal funciona bem e a todo vapor, quando, na verdade, está mascarando 
um número muito maior de desvios: são as chamadas cifras negras. 
 
De acordo com Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 13), o fenômeno da cifra negra 
“representa a diferença entre a aparência (conhecimento oficial) e a realidade 
(volume total) da criminalidade convencional, constituída por fatos criminosos não 
identificados, não denunciados ou não investigados”. Ou seja, é a criminalidade 
oculta, que não aparece nas estatísticas criminais. Esta cifra oculta tem direta 
relação não só com o fato de o sistema penal não conseguir fornecer uma resposta 
a todas as condutas criminalizadas, tendo em vista a enorme abrangência da 
criminalização primária e a incapacidade estrutural do sistema, mas também com a 
falta de interesse na investigação de determinados delitos (muitas vezes pela 
30 
 
pressão exercida por indivíduos que detêm um maior poder econômico). Nesse 
sentido, Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 51) explica que existe uma 
 
incapacidade estrutural de o sistema penal operacionalizar, através das 
agências policial e judicial, toda a programação da Lei penal, dada a 
magnitude da sua abrangência, pois está integralmente dedicado “a 
administrar uma reduzidíssima porcentagem das infrações, seguramente 
inferior a 10%”. 
 
Logicamente, essa reduzidíssima porcentagem administrada pelo sistema penal se 
refere, quase que totalmente, àqueles crimes praticados pelos estratos sociais mais 
baixos. Assim, a realidade que temos é a de que existe uma gama enorme de 
condutas desviantes praticadas que não entram nas estatísticas policiais; e as que 
entram quase sempre são aquelas que recaem sobre a classe menos favorecida. 
 
Ora, se todo o processo de criminalização funciona no intuito de manter as desiguais 
relações sociais de produção capitalista, também a pena imposta ao indivíduo dito 
criminoso deve caminhar no mesmo sentido. De acordo com Georg Rusche e Otto 
Kirchheimer (apud SANTOS, 2008, p. 61), “todo sistema de produção descobre 
punições que correspondem às suas relações produtivas”. 
 
É importante frisar que o regime disciplinar carcerário em seu modelo atual guarda 
uma enorme semelhança com o regime de trabalho na fábrica. O cárcere produz os 
sujeitos passivos da relação de produção capitalista, impondo o modelo disciplinar 
fabril. Tanto é assim que o condenado à pena privativa de liberdade no Brasil está 
obrigado a trabalhar, de acordo com o artigo 31 da Lei de Execuções Penais (Lei 
Federal n° 7.210/84) (BRASIL, 1984). 
 
Sobre o trabalho penal, Michel Foucault (1987) afirmava que o mesmo requalifica o 
ladrão em operário dócil, e que “é nesse ponto que intervém a utilidade de uma 
retribuição pelo trabalho penal; ela impõe ao detento a forma ‘moral’ do salário como 
condição de sua existência” (FOUCAULT, 1987, p. 204). Além disso, explica que o 
trabalho penal não é um lucro, nem a formação de uma habilidade útil, “mas a 
constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um 
esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção” 
31 
 
(FOUCAULT, 1987, p. 204). Convém reiterar que não só o trabalho se constitui 
como uma relação de poder, mas a disciplina como um todo. 
 
Com o propósito de ocultar essa realidade, a criminologia liberal tradicional sustenta 
que a pena privativa de liberdade possui três funções principais no Estado 
Democrático de Direito: a de retribuição; a de prevenção geral; e a de prevenção 
especial. Fernando Capez (2004, p. 339), em seu conceito de pena, afirma que a 
mesma tem a finalidade de “aplicar a retribuição punitiva ao delinqüente, promover a 
sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à 
coletividade”. A função retributiva se consiste em irrogar um mal proporcional ao 
delito praticado, ou seja, “retribuir” o mal causado. A função preventiva geral, por sua 
vez, pode ser dividida em duas espécies, quais sejam: a negativa e a positiva. A 
função preventiva geral positiva significa o restabelecimento da ordem social, de 
forma a re-legitimar o sistema penal e fazer com que o resto da sociedade deposite 
novamente sua confiança na justiça. Já a prevenção geral negativa é a ameaça 
penal sobre a prática de determinada conduta ilícita ou, em outras palavras, a 
intimidação exercida perante a sociedade com o fim de evitar a prática de 
comportamentos ilícitos semelhantes aos dos apenados por outros indivíduos. A 
função preventiva especial também possui duas vertentes, a positiva e a negativa. 
Em sua vertente negativa, a função preventiva especial é a premunição social em 
face do criminoso, evitando temporariamente o cometimento de outros crimes e 
novo abalo à ordem social. Já a função preventiva especial positiva (também 
chamada de função ressocializadora da pena) é a correção do condenado, isto é, a 
reabilitação do indivíduo para que o mesmo possa voltar ao convívio social sabendo 
que aquele tipo de conduta é inaceitável socialmente. Embora essas finalidades da 
pena existam para legitimar o monopólio estatal do poder punitivo, na realidadeelas 
não são atingidas. 
 
A função retributiva não ocorre, tendo em vista diversas condutas tidas como 
criminosas sendo praticadas reiteradamente sem que ocorra a prometida punição 
daquele que as praticou. A retribuição, deste modo, está condicionada às 
características pessoais do infrator ou ao modo como ele atua, como explica Carlos 
Alberto Gabriel Guimarães (2006). A cifra negra da criminalidade é uma realidade 
que prova o desvio da finalidade retributiva da pena. Desse modo, a punição não 
32 
 
pode funcionar como uma retribuição, pois não atinge todos os comportamentos 
delituosos no âmbito fático. Além disso, a teoria da retribuição como finalidade da 
pena “se baseia em concepções metafísicas, vinculadas à religião e à moral, 
incompatível, pois, com a neutralidade reclamada ao Estado Democrático” 
(GUIMARÃES, 2006, p. 146), ou seja, é uma espécie de vingança, uma crença 
coletiva sem valor científico. 
 
Também não se pode afirmar que é atingida a função preventiva geral da pena, em 
virtude da impossibilidade de comprovação empírica desta função, tanto em seu 
âmbito negativo quanto em seu âmbito positivo. Sobre a esfera positiva desta 
função, como é possível concluir que a pena restabelece a ordem social e a 
confiança na justiça? Como podemos fazer essa aferição? Se um indivíduo é 
apenado, qual é a parcela de confiança que devemos depositar na justiça e no 
sistema penal? A partir do momento em que se percebe uma maioria de indivíduos 
não apenados por consequência de uma seleção estigmatizante, é possível afirmar 
que a pena re-legitima o sistema penal? Não é possível afirmar isso. Para além da 
esfera positiva da função de prevenção geral, temos a negativa. Podemos 
considerar que a pena intimida a prática de novos crimes por parte de outros 
indivíduos da mesma sociedade? O fato de estar prevista uma pena para a prática 
determinada conduta leva os indivíduos a não delinquirem? A resposta é a mesma 
para a esfera negativa: não é possível afirmar empiricamente. Nesse mesmo 
diapasão, Claudio Alberto Gabriel Guimarães (2006, p. 337) conclui que 
 
não é possível afirmar-se racionalmente que a aplicação de uma sanção 
penal a quem quer que seja possa criar barreiras psicológicas nos outros 
membros da comunidade – como o quer a prevenção geral negativa –, 
assim como que reforçaria os laços de respeito ao ordenamento jurídico 
como um todo e ao ordenamento penal em particular, reafirmando os 
valores postos, fins positivos da prevenção. 
 
Quanto à função preventiva especial negativa, podemos fazer a mesma crítica feita 
à retribuição. Ela não abrange todos os comportamentos tidos como desviantes, de 
forma que só são neutralizados aqueles indivíduos que praticam as condutas 
selecionadas pelo sistema penal. Além disso, existe uma incompatibilidade entre a 
função neutralizadora da pena com a função ressocializadora, visto que retira o 
apenado de um convívio com seus familiares e com seus amigos. Nesse sentido, 
33 
 
Mezger (apud GUIMARÃES, 2006, p. 202) afirma que “não se pode negar que os 
fins da pena nem sempre se harmonizam. Podem, pelo menos, entrar mutuamente 
em conflito e então se fala de uma antinomia dos fins jurídico-penais”. Claudio 
Alberto Gabriel Guimarães (2006, p. 202) reforça que 
 
o fim neutralizador é totalmente incompatível com os fins ressocializadores 
da pena, assim, a busca pela incapacitação pelo maior tempo possível 
daquele que cometeu um delito é completamente antagônica à busca pela 
medida adequada da pena fundada na possibilidade de reinserção do 
delinqüente no meio social. 
 
Além do mais, esta neutralização temporária só serviria para expor o indivíduo às 
mazelas do cárcere e, consequentemente, para introjetar valores incondizentes com 
o convívio social, o que pode conduzí-lo à reincidência e ao fracasso da pena 
privativa de liberdade como solução ao problema da criminalidade. 
 
A maior crítica, no entanto, é a de que essa função só serve para combater as 
“consequências dos delitos e não as causas que levam ao cometimento das 
infrações” (GUIMARÃES, 2006, p. 195). 
 
Encerrando esta breve análise sobre as funções da pena, podemos afirmar que a 
função preventiva especial positiva também não é atingida, em virtude do próprio 
aprendizado na prisão. Além das péssimas condições físicas das cadeias, o preso 
ainda é forçado a absorver os valores próprios dos indivíduos que ali se encontram, 
ou seja, as cadeias são verdadeiramente “escolas do crime”. Segundo Juarez Cirino 
dos Santos (2005, p. 2, grifo do autor), 
 
a introdução do condenado na prisão inicia um duplo processo de 
transformação pessoal: um processo de desculturação progressiva, 
consistente no desaprendizado dos valores e normas próprios da 
convivência social; um processo de aculturação simultâneo, consistente no 
aprendizado forçado dos valores e normas próprios da vida na prisão. 
 
Ademais, ainda que o delinquente incorporasse na cadeia os valores de convívio na 
sociedade, ele não teria campo de trabalho, visto que saiu estigmatizado do cárcere, 
com o status de “ex-presidiário”. Assim, 
 
insistir com a ressocialização, enquanto forma de pôr o recluso em 
condições de converter-se em membro engajado nas normas sociais, em 
34 
 
condições de exercer um trabalho digno que possa prover a ele e sua 
família do mínimo necessário, em uma realidade na qual tal realidade é 
inexistente – não existe mais trabalho, muito menos para ex-presidiários –, 
no mínimo, pode-se afirmar, que se trata de uma forma insidiosa de controle 
social das classes despossuídas (GUIMARÃES, 2006, p. 250). 
 
Como consequência disso, o ex-presidiário, sem ter como sustentar a si e a sua 
família, reincide no crime. O próprio sistema penal cria as carreiras criminosas 
desses indivíduos, pois promove uma seleção estigmatizante de pessoas que não 
são interessantes ao sistema capitalista. Em outras palavras, os indivíduos pobres 
devem ser encarcerados e permanecer encarcerados (além de continuarem pobres), 
enquanto os ricos devem ser livres e assim permanecer (além de continuarem ricos). 
Nesse sentido, afirma Alessandro Baratta (2002, p. 167), 
 
antes de ser a resposta da sociedade honesta a uma minoria criminosa [...], 
o cárcere é, principalmente, o instrumento essencial para a criação de uma 
população criminosa, recrutada quase exclusivamente nas fileiras do 
proletariado, separada da sociedade e, com conseqüências não menos 
graves, da classe. 
 
Dentro desse contexto, o mercado de trabalho é o que define a política criminal, ou 
seja, a lei da oferta e da procura de trabalho é que vai definir o tipo de punição a ser 
adotada pelo Estado. Se existe um excedente de mão-de-obra no mercado de 
trabalho, a mesma deve ser tirada de circulação com penas capitais ou de privação 
perpétua de liberdade (dependendo da necessidade do mercado, podem ser 
privativas de liberdade não-perpétuas, mas com um tempo determinado por essa 
mesma necessidade). Porém, se existe uma insuficiência de mão-de-obra, a punição 
deve ser voltada ao trabalho forçado. De acordo com Juarez Cirino dos Santos 
(2008, p. 61, grifo do autor), 
 
a) se a força de trabalho é insuficiente para as necessidades do mercado, a 
punição assume a forma de trabalho forçado, com finalidades produtivas e 
preservativas da mão-de-obra; b) se a força de trabalho é excedente das 
necessidades de mercado, a punição assume a forma de penas corporais, 
com destruição ou extermínio da mão-de-obra: a abundância torna 
desnecessária a preservação. 
 
Exemplo disso é a política de tolerância zero adotada durante o mandato de 
Rudolph Giuliani, nos anos 90, como prefeito de Nova Iorque. Embasada na teoria 
da “vidraça quebrada” (broken windows theory), essa política tinha como objetivo 
uma intransigente ação policial sobre os delitos mais leves, a fim de prevenir a 
35 
 
prática dos delitos mais graves introjetando nas pessoas um senso delegalidade. 
Sob este pretexto, afirma Loïc Wacquant (2001, p. 28), Nova Iorque 
 
aumentou seu orçamento para a polícia em 40% para atingir 2,6 bilhões de 
dólares (ou seja, quatro vezes mais do que as verbas dos hospitais 
públicos, por exemplo), ostentando um verdadeiro exército de 12.000 
policiais para um efetivo total de mais de 46.000 empregados em 1999, dos 
quais 38.600 agentes uniformizados. Comparativamente, nesse período, os 
serviços sociais da cidade vêem suas verbas cortadas em um terço, 
perdendo 8.000 postos de trabalho para acabar com apenas 13.400 
funcionários. 
 
Acabar com a criminalidade era a justificativa declarada da política criminal de 
tolerância zero, mas a justificativa oculta era nada menos do que tirar de circulação 
o excedente de mão-de-obra no mercado de trabalho. 
 
Essas justificativas declaradas são veiculadas ativamente pela mídia, de forma a 
promover a continuidade dessa ilusão de funcionamento do sistema penal perante a 
sociedade. Sobre isso, Claudio Alberto Gabriel Guimarães (2006, p. 354) explica que 
 
em última instância, é a mídia que proporciona a continuidade operacional 
do sistema penal, significando isso que as funções reais desempenhadas 
de dominação e manutenção do poder, são substituídas no imaginário 
popular – através de uma veiculação massiva – pelas funções declaradas 
de defesa da sociedade. 
 
Assim, além de mostrar exaustivamente a ação punitiva sendo realizada, de modo a 
criar na sociedade uma consciência de que o sistema penal está cumprindo suas 
funções declaradas, a mídia também cria o estereótipo do criminoso. Com isso, as 
políticas criminais se embasam nesses estereótipos, agindo em locais 
predeterminados, como os bairros pobres, e a mídia mostra essas ações, reforçando 
esse estereótipo. É um círculo vicioso intencional. Dessa forma, Yasmin Maria 
Rodrigues Madeira da Costa (2005, p. 93) conclui que 
 
no Brasil, a política de segurança pública visa aos que correspondem ao 
estereótipo lombrosiano, controlando os permanentemente suspeitos, 
grupos considerados estrategicamente de alto risco pela elite, repetindo a 
ideologia da exclusão e não protegendo os direitos humanos fundamentais 
de todos os estratos sociais. Enquanto o olhar se dirige aos segmentos 
pobres da população, permanecem sob tranqüila obscuridade os crimes 
perpetrados pelas classes hegemônicas, em sua maioria muito mais 
danosos à população como um todo. 
 
36 
 
Em suma, podemos afirmar que o sistema penal se mantém como um instrumento 
de manutenção do sistema capitalista criando uma ilusão de eficácia operacional a 
partir de suas funções declaradas e especialmente veiculadas pela mídia, além de 
promover um processo estigmatizante de seleção criminal. 
 
Tendo tudo isso em vista, passaremos a expor outra vertente da Criminologia 
Crítica, a Criminologia Crítica Feminista, que teve suas bases nos movimentos 
feministas e desloca o seu enfoque das relações classistas para as relações de 
gênero. Assim, é conveniente contextualizar historicamente o patriarcalismo e os 
estudos feministas. 
 
 
1.4 O PATRIARCALISMO E O FEMINISMO 
 
 
O androcentrismo e o patriarcalismo são ideias dominantes em muitas épocas e em 
lugares diversos. Fustel de Coulanges, em sua obra A Cidade Antiga, fez um estudo 
sobre o mundo antigo greco-romano a partir de uma gama de fatores que se 
conectam, iniciando nas crenças antigas (expondo o culto dos mortos, o fogo 
sagrado e a religião doméstica), passando pelas relações familiares (baseadas 
nessa religião doméstica), até a cidade e as revoluções. 
 
A partir desse estudo da sociedade antiga, Fustel de Coulanges (2006) explica que 
no século V a.C. já existia um arranjo familiar patriarcal, o qual era formado por um 
pai, uma mãe, filhos e escravos. A autoridade máxima do lar era a religião 
doméstica, à qual deveriam se sujeitar todos os membros da família. O pai, ou pater 
familias, na lógica dessa crença, era aquele que exercia a maior autoridade dentre 
as pessoas inseridas no âmbito familiar; era por seu intermédio que a família e o 
culto se perpetuavam, uma vez que somente ele representava a cadeia dos 
descendentes. Nesse contexto, a mulher exercia um papel secundário. A mulher não 
era senhora de si própria, muito menos senhora do lar. Ela era considerada menor 
pelos direitos grego, romano e hindu. Nas palavras de Fustel de Coulanges (2006, p. 
94): 
37 
 
 
A religião não coloca a mulher em posição tão elevada. É verdade que toma 
parte nos atos religiosos, mas não como senhora do lar. A sua religião não 
lhe vem do nascimento; só foi nela iniciada por ocasião do casamento; 
aprendeu do marido a prece que pronuncia. Não representa os 
antepassados, pois não descende deles. Também não se tornará um deles; 
colocada no túmulo, jamais receberá culto especial. Na morte, como na 
vida, ela é considerada apenas uma parte integrante do seu esposo. 
 
É importante frisar que, antes de se casar, a mulher já se submetia à crença do lar 
de seu pai desde o nascimento, portanto passava sua vida inteira submetida a um 
homem: ou ao pai, ou ao marido. 
 
Por volta de mil anos depois, iniciou-se o período medieval, o qual teve a duração de 
mais ou menos mil anos (século V d.C. até século XV d.C.), como afirma o discurso 
historiográfico dominante. Durante esse período, a sociedade da Europa ocidental 
foi influenciada por uma enorme onda antifeminista, o que pode-se extrair das 
palavras da abadessa Hildegarda de Bingen9 (apud KLAPISCH-ZUBER, 2006, p. 
137), no século XII d.C., sobre as mulheres: 
 
Nós somos volúveis, contraditórias, desconfiadas, covardes e medrosas [...]. 
Na verdade, os homens são os chefes das mulheres e sem a autoridade 
deles raramente algo que fazemos chegam [sic] a um fim louvável. [...] A 
mulher é fraca, ela vê no homem o que pode lhe dar força, da mesma 
maneira que a lua recebe sua força do sol. É por isso que ela é submissa ao 
homem, e deve estar sempre pronta a servi-lo. 
 
Cabe ressaltar que esse movimento antifeminista também é consequência da 
expansão e da afirmação da Igreja Católica como instituição dominante na Europa, 
cuja doutrina colocava a mulher em posição de subordinação ao homem. As ideias 
da sociedade europeia e a doutrina pregada pelo catolicismo andaram juntas 
durante um bom tempo, de forma a introjetar na cultura dos europeus, 
principalmente na Europa Central, essa mentalidade androcêntrica. 
 
Em fins da idade média, os inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger 
escreveram uma obra, em 1484, intitulada Malleus Maleficarum, traduzida para o 
português como O Martelo das Feiticeiras, na qual afirmavam que as mulheres eram 
 
9 Do alemão, Hildegard von Bingen. 
38 
 
mais propensas às superstições diabólicas em virtude de serem “mais fracas na 
mente e no corpo” (KRAMER; SPRENGER, 2005, p. 116). Afirmam ainda que 
 
houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido criada a partir 
de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por 
assim dizer, contrária à retidão do homem. [...] em virtude dessa falha, a 
mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente (KRAMER; 
SPRENGER, 2005, p. 116). 
 
A referência à costela é retirada da crença católica na história de Adão e Eva. Essa 
mentalidade levou muitas mulheres às fogueiras da Inquisição. Sobre esta época, 
Michael Baigent e Richard Leigh (2001) afirmam que a Igreja Católica Apostólica 
Romana teria queimado, no mínimo, 30 mil bruxas durante um período de 150 anos, 
e que “a campanha contra a bruxaria forneceu-lhe mandado para uma cruzada em 
escala total contra as mulheres, contra tudo que era feminino” (BAIGENT; LEIGH, 
2001, p. 137). 
 
Daí vislumbra-se, portanto, as raízes de um androcentrismo que influenciou a 
mentalidade patriarcal da sociedade brasileira, pois a colonização portuguesa trouxe 
consigo essas ideias que ainda eramdominantes na Europa do século XVI d.C.. 
 
Desde a chegada dos portugueses ao Brasil, as leis vigentes no país sempre 
tiveram um caráter androcêntrico. Nesse sentido, também o sistema penal sempre 
foi androcêntrico, na medida em que, historicamente, as mulheres eram, e 
continuam sendo, guardando as devidas proporções, tratadas como indivíduos 
incapazes e submissos, que deveriam viver na sombra de um homem, executando 
somente as atividades pertinentes ao âmbito privado. 
 
É nesse contexto que, em 1603, entraram em vigor, promulgadas sob o reinado de 
D. Felipe II de Portugal, as Ordenações Filipinas, as quais tratavam, em seu Livro V, 
de normas penais. Este era o ordenamento vigente também no Brasil, considerando 
que o país era colônia portuguesa. 
 
Naquela época, era permitido, por exemplo, que o marido matasse sua mulher se a 
encontrasse em situação de adultério, bem como também poderia matar o homem 
adúltero. Um exercício de autotutela totalmente legalizado, mas que também era 
39 
 
condicionado à condição social tanto do marido quanto do homem adúltero. De 
acordo com o Título XXXVIII das Ordenações Filipinas: 
 
Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá 
matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero 
fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, 
quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua 
mulher em adultério, não morrerá por isso mas será degredado para África 
com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, 
segundo a pessoa que matar, não passando de três anos. 1. E não somente 
poderá o marido matar sua mulher e o adúltero que achar com ela em 
adultério; e entendendo assim provar, e provando depois o adultério por 
prova lícita e bastante conforme a direito, será livre sem pena alguma, salvo 
nos casos sobreditos, onde serão punidos segundo acima dito é 
(PORTUGAL apud LAVORENTI, 2009, p. 180). 
 
Vide o caso, citado por Sérgio Buarque de Holanda (1995), de Bernardo Vieira de 
Melo, o qual suspeitou que a nora tivesse praticado adultério e, mediante um 
conselho de família, a condenou à morte. Tal sentença foi executada sem a menor 
intervenção da Justiça. 
 
Sobre o ambiente doméstico no Brasil do século XVIII d.C., Sérgio Buarque de 
Holanda (1995, p. 81) afirma que “o grupo familiar mantém-se imune de qualquer 
restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio 
superior que procure perturbá-lo ou oprimí-lo”. E continua: “Nesse ambiente, o pátrio 
poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania” (HOLANDA, 
1995, p. 82). 
 
Gilberto Freyre (1997), em sua obra Casa-Grande e Senzala, chama a atenção para 
o patriarcalismo na sociedade colonial brasileira, que tem sua base em um binômio 
“sadismo-masoquismo”, no qual os “sádicos” colonizadores portugueses dominavam 
as negras e índias “masoquistas”. Esse “sadismo” se propagava tanto no intercurso 
sexual entre o conquistador europeu e a mulher negra ou índia, quanto nas 
atividades sociais do indivíduo, como no “gosto de mandar dar surra” e “de mandar 
arrancar dente de negro ladrão” (FREYRE, 1997, p. 51). Destaca-se, então, as 
palavras de Freyre (1997, p. 51): 
 
Resultado da ação persistente desse sadismo, de conquistador sobre 
conquistado, de senhor sobre escravo, parece-nos o fato, ligado 
naturalmente à circunstância econômica da nossa formação patriarcal, da 
40 
 
mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou do abuso do 
homem; criatura reprimida sexual e socialmente dentro da sombra do pai ou 
do marido. 
 
Sobre o arranjo familiar patriarcalista brasileiro, Caio Prado Júnior (2000, p. 287) 
afirma que 
 
o clã patriarcal, na forma em que se apresenta, é algo de específico da 
nossa organização. É do regime econômico que ele brota, deste grande 
domínio que absorve a maior parcela da produção e da riqueza coloniais. 
Em torno daqueles que a possuem e senhoreiam, o proprietário e sua 
família, vem agrupar-se a população [...]. 
 
Essa relação entre o patriarcalismo e o androcentrismo fica patente na medida em 
que se percebe o império das monarquias hereditárias na Europa e no Brasil, na 
chamada Idade Moderna, que para fins acadêmicos insere-se entre os séculos XV 
d.C. e XVIII d.C., a qual teve influência marcante na primeira Constituição brasileira. 
A Constituição Imperial de 1824, em seus arts. 116 e 117, dispunha o seguinte: 
 
Art. 116. O Senhor D. Pedro I, por Unanime Acclamação dos Povos, actual 
Imperador Constittucional, e Defensor Perpetuo, Imperará sempre no Brazil. 
 
Art. 117. Sua Descendencia legitima succederá no Throno, Segundo a 
ordem regular do primogenitura, e representação, preferindo sempre a linha 
anterior ás posteriores; na mesma linha, o gráo mais proximo ao mais 
remoto; no mesmo gráo, o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo, a 
pessoa mais velha á mais moça (BRASIL, 1824).10 
 
Tem-se presente, no artigo 117, a preferência pelo sexo masculino em detrimento do 
sexo feminino já no século XIX d.C., no Brasil, no tocante à sucessão do trono do 
império. Até a Constituição Republicana de 1934, as mulheres não tinham nem seus 
direitos políticos assegurados. 
 
Em 1830 foi sancionado o Código Criminal do Império, o qual tinha como 
fundamentos a justiça e a equidade, conforme expresso no art. 179, §18, da 
Constituição Imperial de 1824. Porém, justiça e equidade não existiam quando a 
mulher era vítima de cópula carnal mediante violência, pois o Código fazia distinção 
entre as penas aplicáveis quando a vítima era mulher honesta e quando não era. 
Conforme o art. 222 do Código Criminal do Império: 
 
 
10 Em conformidade com a grafia da época. 
41 
 
Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaças, com qualquer mulher 
honesta. Penas – de prisão por três a doze annos, e de dotar a offendida. 
[...] Se a violentada for prostituta. Penas de prisão por um mez a dous 
annos (BRASIL apud LAVORENTI, 2009, p. 182).11 
 
Além disso, o art. 225 do mesmo código afirmava que o casamento com a ofendida 
excluía a punibilidade do crime. Segundo o art. 225 do Código Criminal do Império: 
“Não haverão as penas dos três artigos antecedentes os réos que se casarem com 
as offendidas” (BRASIL apud LAVORENTI, 2009, p. 182).12 
 
Da mesma maneira, em 1890, regrou o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil 
quanto ao crime de estupro. Porém, tal codificação se distingue por uma norma que 
trata da responsabilidade criminal, a qual estipulava que “não eram criminosos os 
que se achavam em estado de completa privação de sentido e de inteligência no ato 
de cometer o crime” (LAVORENTI, 2009, p. 185). Isso poderia justificar uma 
agressão contra a mulher em adultério, na medida em que se entendia que a 
privação da razão poderia surgir da traição (LAVORENTI, 2009). 
 
O Código Penal de 1940, vigente até os dias atuais, trouxe essa mesma 
mentalidade que tratava distintamente mulher honesta e desonesta. Wilson 
Lavorenti (2009, p. 190) afirma que, nesse contexto, “honestidade não é uma 
qualidade que se aplique ao homem, que a tem sempre de forma presumida e inata, 
no sistema legal adotado”. Nessa época, a pureza sexual da mulher era elemento 
intrínseco à honra do homem, ou seja, a violação da castidade da mulher coloca o 
homem em situação de desonra. Isso justificou a chamada legítima defesa da honra 
como estratégia de defesa para aqueles maridos que agrediam ou matavam suas 
mulheres considerando-as infiéis. O acolhimento dessa tese de defesa encontra seu 
lugar até mesmo após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, como se 
vê, por exemplo, no julgamento da Segunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça 
do Mato Grosso do Sul que, em 25 de março de 1998, negou provimento ao recurso 
do Ministério Público, o qual alegou ser a tese da legítima defesa da honra 
manifestamente

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