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FACULDADE DE DIREITO DE VITÓRIA CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO LEONARDO DALVI ALVARENGA CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM ESTUDO DA EFICÁCIA INVERTIDA DO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER VITÓRIA 2010 LEONARDO DALVI ALVARENGA CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM ESTUDO DA EFICÁCIA INVERTIDA DO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Vitória – FDV, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Profº Wilton Bisi Leonel VITÓRIA 2010 LEONARDO DALVI ALVARENGA CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM ESTUDO DA EFICÁCIA INVERTIDA DO COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito da Faculdade de Direito de Vitória – FDV, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito. Aprovado em ___ de dezembro de 2010. COMISSÃO EXAMINADORA ____________________________________ Profº Wilton Bisi Leonel Faculdade de Direito de Vitória Orientador ____________________________________ Profº Faculdade de Direito de Vitória Dedico o presente trabalho àquelas pessoas que me apoiaram e me incentivaram, sobretudo aos meus pais. AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, aos meus pais, Jose Antonio e Elizete, por serem as minhas principais fontes de inspiração, de onde retirei valores como humildade, honestidade, justiça, disciplina e sinceridade. A eles serei eternamente grato pela oportunidade que me deram de estudar e, principalmente, pelo apoio incondicional que sempre recebi. Agradeço ainda por sempre permanecerem ao meu lado nos momentos de dificuldade e fraqueza, me mostrando que muitas vezes esses momentos são facilmente contornáveis quando não me deixo levar pelo desespero. Agradeço por todo o amor e carinho que me deram e por confiarem em mim e em minhas escolhas. As palavras, especialmente nesse caso, são muito restritas para demonstrar a gratidão que tenho por tudo o que me fizeram esses meus dois exemplos de vida. Agradeço à minha irmã, Luisa, cuja espontaneidade sempre me diverte. É uma pessoa que está sempre presente e se sacrifica sempre que possível para fazer minhas vontades. Um agradecimento especial pelas caronas. Obrigado pela felicidade contagiante que me faz rir em dias de prova. Agradeço, ainda, à minha namorada, Dayana, que, apesar da distância física limitando nossos encontros, sempre se manteve muito mais próxima do que a maioria das pessoas. Muito obrigado por me aturar em todos os momentos de ansiedade, tristeza e indignação, me ensinando com seus conselhos e me acalmando com toda a atenção despendida. Sou especialmente grato por todo o amor que me dá e por ter subitamente aparecido em minha vida. Agradeço ainda por toda a felicidade que me proporciona e por todos os nossos momentos na Ilha da Magia. “És” mais bela do que todas as praias de Santa Catarina. Agradeço aos meus amigos, que sempre me divertiram e estiveram presentes em cada momento da graduação. Sem eles, passar por todas as dificuldades da vida seria muito mais penoso. Muito obrigado por estarem ao meu lado e me proporcionarem momentos ímpares de descontração e felicidade. Um agradecimento especial ao Thomas, ao Marcelo, à Rovena, à Lorena, ao Joaquim, à Suellen, à Ludmilla, ao Attila e à Vanessa, por me mostrarem o verdadeiro valor de uma amizade. Agradeço, por fim, ao meu orientador, Wilton Bisi Leonel, por todo o conhecimento que me foi passado, pelo apoio que me foi dado, pelo crédito em mim depositado e pelo desconforto que me causou ao mostrar algumas incoerências da realidade, essencial para a produção deste trabalho. “Só se pode chegar a uma ruptura da relação de cumplicidade que as vítimas da dominação simbólica têm com os dominantes com uma transformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os dominados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes”. Pierre Bourdieu RESUMO Busca analisar qual tem sido o desempenho do Poder Judiciário na repressão aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. O método utilizado para a coleta dos dados foi o de amostragem aleatória. A amostragem se consiste em cento e cinquenta e dois boletins de ocorrência registrados entre janeiro de 2008 e janeiro de 2009, o que corresponde a dez por cento de todos os boletins de ocorrência registrados no período. Em primeiro lugar, foram selecionadas as amostras na DEAM de Vitória/ES. A partir disso, procurou-se acompanhar as fases pelas quais passaram esses boletins de ocorrência, ou seja, se viraram inquéritos policiais, denúncias ou sentenças, quando fosse o caso. Em um segundo momento, na Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Vitória/ES, foram separadas todas as sentenças com julgamento de mérito (terminativas de mérito, condenatórias e absolutórias) proferidas no ano de 2009, a fim de fazer uma análise qualitativa dessas decisões, considerando a quantidade de pena aplicada e a forma de aplicação da mesma. Assim, concluiu-se que o desempenho do Poder Judiciário no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher deixa muito a desejar, pois o sistema penal segue uma estrutura de valores dominantes que visam tão-somente a criminalização de uma parcela da população menos favorecida. O sistema penal, portanto, funciona como um subsistema do sistema capitalista e patriarcal/androcêntrico, o qual visa à manutenção dessas ideologias. Palavras-chave: Criminologia Crítica Feminista. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Processo de criminalização. LISTA DE ABEVIATURAS E SIGLAS a.C. – antes de Cristo AGENDE – Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento art. – artigo B.O. – Boletim de Ocorrência CAVVID – Centro de Atendimento às Vítimas de Violência e Discriminação CEJIL – Centro pela Justiça e o Direito Internacional CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação Cf. – Confrontar CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria CLADEM – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher CNJ – Conselho Nacional de Justiça CP – Código Penal CPC – Código de Processo Civil CPP – Código de Processo Penal d.C. – depois de Cristo DEAM – Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher DECCM – Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher Depen – Departamento Penitenciário Nacional DF – Distrito Federal DJ – Diário da Justiça DJe – Diário da Justiça Eletrônico DML – Departamento Médico Legal DPE – Defensoria Pública Estadual ed. - edição ES – Espírito Santo HC – Habeas Corpus IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística IML – Instituto Médico Legal InfoPen – Sistema Integrado de Informações Penitenciárias IPÊ – Instituto para a Promoção da Equidade JECRIM – Juizado Especial Criminal LEP – Lei de Execuções Penais LMP – Lei Maria da Penha MG – Minas Gerais Min. – Ministro(a) MP – Ministério Público OEA – Organização dos Estados Americanos OMS – Organização Mundial de Saúde ONG – Organização Não Governamental p. – página PL – Projeto de Lei PLC – Projeto de Lei Complementar REsp – Recurso Especial SEMCID – Secretaria Municipal de Cidadania e Direitos Humanos SPM – SecretariaEspecial de Políticas para as Mulheres STF – Supremo Tribunal Federal TCO – Termo Circunstanciado de Ocorrência TJ – Tribunal de Justiça SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12 1 CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA .................. 18 1.1 O PARADIGMA ETIOLÓGICO E A ESCOLA POSITIVA ................................. 18 1.2 O PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL (LABELING APPROACH) ................. 21 1.3 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA ............................................................................ 24 1.4 O PATRIARCALISMO E O FEMINISMO ......................................................... 36 1.5 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA ........................................................ 47 2 A CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER ................................................................................................................... 56 2.1 ANÁLISE JURÍDICO-DOGMÁTICA DA LEI MARIA DA PENHA ..................... 56 2.2 ANÁLISE DO VALOR SIMBÓLICO DA LEI MARIA DA PENHA ..................... 77 3 A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER ................................................................................................................... 83 3.1 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO PROCESSO FORMAL DE CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA ........................................................................ 83 3.2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO PROCESSO CONCRETO DE CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA ........................................................................ 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 101 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 103 APÊNDICE A – Fluxograma do processo formal de criminalização secundária da violência doméstica e familiar contra a mulher iniciado na DEAM ............. 113 APÊNDICE B – Fluxograma do processo formal de criminalização secundária da violência doméstica e familiar contra a mulher na Vara Especializada em Violência Doméstica contra a Mulher .................................................................. 114 APÊNDICE C – Fluxograma do procedimento do CAVVID em situações de violência doméstica e familiar contra a mulher .................................................. 115 ANEXO A – Notícia: Lei Maria da Penha entra em vigor nesta sexta-feira ....... 116 ANEXO B – Cartaz de campanha da Lei Maria da Penha ................................... 120 ANEXO C – Projeto de Lei n° 4559/2004 e exposição de motivos ..................... 121 ANEXO D – Notícia: Para juiz, proteção à mulher é “diabólica” ....................... 138 12 INTRODUÇÃO Com o advento do Estado Social Democrático de Direito, em virtude da promulgação da Constituição Federal de 1988, muitos temas relacionados aos direitos humanos vieram à tona e ganharam lugar na pauta de discussões em várias áreas do saber humano. Esse afloramento de debates aconteceu devido a uma ânsia social que visava à mudança dos ideais de um Estado ditatorial para os de um Estado democrático, alicerçados na observância de direitos fundamentais inerentes a todos os seres humanos. Os indivíduos passaram, portanto, em tese, a ter protegidos e resguardados todos aqueles direitos que promovem a sua dignidade enquanto seres humanos. Nesse contexto, muitas foram as leis promulgadas com o intuito de regular e tornar efetivos esses direitos, dentre elas o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n° 8.069/90), o Estatuto do Idoso (Lei Federal n° 10.741/2003) e a Lei Maria da Penha (Lei Federal n° 11.340/2006). Assim, acompanhando essa mudança de ideais, é de suma importância fazer referência ao movimento em prol da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. A Constituição Federal de 1988 veio também com esse propósito, o de igualar as condições das relações de gênero na vida em sociedade. A igualdade que se pretende não é meramente formal, mas material. Nessa linha, o objetivo não é tão-somente igualar direitos e deveres, mas criar normas adequadas às peculiaridades de cada gênero, tendo em vista que homens e mulheres não têm, de forma alguma, exatamente as mesmas necessidades e interesses a serem tutelados. Essa diferença de necessidades e interesses é que gera os diversos tipos de violência, quando uma das partes tenta satisfazer-se baseada na força. Assim, podemos afirmar que as violências doméstica e familiar são problemas os quais a humanidade atravessa desde os primórdios da cultura de formação da família e, em que pese não serem a mesma coisa e não estarem necessariamente 13 ligadas, ambas têm uma essência comum, qual seja a relação de proximidade do agressor para com a vítima. Merece menção o fato de que as maiores vítimas desse tipo de violência, atualmente, são as mulheres, e, ainda, de que não é recente a tendência do masculino de subjugar o feminino. O androcentrismo está intrinsecamente relacionado com um patriarcalismo que se percebe tanto nas relações sociais brasileiras quanto nas leis que são promulgadas pelo próprio Estado para regular as mesmas, em virtude de uma mentalidade historicamente construída e de complexo desfazimento. Por muito tempo, no Brasil, a violência doméstica e familiar contra a mulher foi tratada como um problema privado, o qual deveria ser resolvido “em casa”. Violências doméstica e familiar ainda são tabus e suas discussões só estão saindo agora da esfera privada para tornar-se pública. Há um grande número de mulheres que sofrem com a violência doméstica e familiar no Brasil; vide dados da OMS (Organização Mundial de Saúde) (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2005), os quais expressam que 29% das mulheres da zona urbana brasileira e 37% das mulheres da zona rural brasileira já sofreram algum tipo de violência física, sexual, ou ambas (esses dados se referem àquelas que alguma vez já tiveram um companheiro). Assim, a busca por uma mudança dessa situação se fez presente, com a promulgação da Lei Maria da Penha, na tentativa de minimizar esse tipo de violência, que não só tem causado consequências físicas à mulher, mas, principalmente, psicológicas. A Lei Maria da Penha foi promulgada diante de um grande clamor social por resposta a um caso específico que aconteceu com a farmacêutica aposentada Maria da Penha Maia Fernandes, no Ceará, que foi agredida, em 1983, pelo seu esposo Marco Antonio Heredia Viveros, deixando-a paraplégica, de forma irreversível. Não foi uma só agressão, mas reiteradas agressões, até mesmo após a sua volta do hospital para casa, já limitada em seus movimentos. 14 Anteriormente a essa lei, casos como esse eram resolvidos nos Juizados Especiais Criminais, sob a incidência da Lei dos Juizados Especiais (Lei Federal n° 9.099/95), que é tratada como um novo paradigma a ser seguido pelo sistema penal, com sanções alternativas, mais brandas e com um maior foco ressocializador, devido à suposta falência do sistema carcerário. A Lei Maria da Penha, desse modo, constitui um paradoxo inserido no sistema de políticas criminais, em virtude de ser uma lei mais severa dentro de um sistema cujo discurso é evitar ao máximo o uso do cárcere. Em outras palavras, é uma lei que anda na contramão do novo discurso de política criminal, tida como mais adequada ao sistema penal atual. Em que pese esse discurso descriminalizante e ressocializador, é muito arraigada na sociedade brasileira a crença de que a promulgação de uma lei mais severa é a solução para os problemas sociais, vide os casos da Lei de Crimes Hediondos (Lei Federal n° 8.072/90), da Lei Maria da Penha e da Lei Seca (Lei Federal n° 11.705/2008), para citaralgumas. Essas leis foram promulgadas com o objetivo de minimizar ou resolver problemas sociais impondo maior austeridade no trato com os mesmos. Dentro desse contexto, a avaliação do desempenho do Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha é um tema de relevância para o Direito, pois o fenômeno da violência doméstica e familiar está presente na vida de todos os indivíduos, ainda que de forma indireta, e precisa ser regulado de forma apropriada, sem a intervenção de fatores externos que precipitam o processo legislativo, promulgando uma lei sem um estudo mais aprofundado do assunto. Dentro dos limites políticos o tema também é de suma importância, por se tratar de uma crítica à orientação das políticas públicas que estão sendo implementadas sem o devido estudo prévio, o que acarreta em um resultado negativo para a gestão do corpo social. Quando se percebe que duas políticas criminais se chocam, presume- se a ausência de critérios para a criação dessas leis, frutos de políticas divergentes, o que semeia a descrença da população na gestão pública. Desse modo, é 15 justificável, politicamente, o presente estudo dessa paradoxal sobreposição de políticas criminais. No âmbito econômico é proveitoso observar o gasto de verbas públicas com sistemas e institutos jurídicos ineficientes, o que vai contra o princípio constitucional da eficiência na Administração Pública. São gastos milhões de reais em criações de varas especializadas, treinamento policial e em construções de abrigos, sem que haja um retorno em prol da sociedade. Sabe-se que muitas dessas “novidades” implementadas pela Lei Maria da Penha ainda não foram totalmente colocadas em prática e, até mesmo, não foram assimiladas por quem tem a competência de criar e se utilizar desses instrumentos. Portanto, justifica-se, dessa forma, dentro da esfera econômica, um estudo mais detalhado dessa eficiência e da pertinência desses institutos. Finalmente, na esfera acadêmica, justifica-se o estudo do tema para que os trabalhos posteriores tenham uma opção a mais de embasamento teórico, uma vez que a informação é essencial para o desenvolvimento da ciência. Além disso, o que se vê no âmbito acadêmico são discussões predominantemente baseadas em dois discursos: o feminista (em prol da Lei Maria da Penha) e a crítica ao discurso feminista (a qual comporta estudos criminológicos americanos que simplificam demais as causas desse tipo de violência). Nesse ponto, a justificativa se dá pelo fato de o estudo a ser desenvolvido aqui propor uma crítica a ambos os discursos que predominam. Na verdade, entendemos que somente a criminalização primária (promulgação da Lei Maria da Penha) é insuficiente para conter a prática deste tipo de violência contra a mulher quando há uma criminalização secundária (incidência da punição) extremamente seletiva. Diante disso, este trabalho se propõe a analisar qual tem sido o desempenho do Poder Judiciário na repressão aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso será feito sob o enfoque da Criminologia Crítica Feminista mediante a interpretação de dados pertinentes a essa temática, coletados na Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de 16 Vitória/ES e na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Vitória/ES (DEAM). Primeiramente, foram selecionados aleatoriamente cento e cinquenta e dois boletins de ocorrência registrados entre os meses de janeiro de 2008 e janeiro de 2009 na DEAM de Vitória/ES, o que corresponde a dez por cento dos boletins de ocorrência registrados no período. No momento seguinte, foi analisado o desfecho, quando fosse o caso, de cada um desses boletins de ocorrência, ou seja, procuramos aferir se esses boletins de ocorrência viraram inquéritos policiais, denúncias e sentenças. Essa análise se limitou ao primeiro grau de jurisdição. Após isso, foi feita uma análise qualitativa das sentenças com julgamento de mérito (terminativas de mérito, condenatórias e absolutórias) proferidas durante o ano de 2009 na Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Vitória/ES, considerando a quantidade de pena aplicada e a forma de aplicação da mesma. A partir dessas análises quantitativa e qualitativa, foi possível perceber que o desempenho do Poder Judiciário na repressão dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher deixa muito a desejar, em virtude do excesso de filtragens que ocorrem durante todo o processo de criminalização secundária desses crimes. Trata-se, na verdade, de uma eficácia invertida, na medida em que favorece as classes dominantes da sociedade. O capítulo 1 é destinado a explicar a estrutura de valores envolvida por trás desse processo de criminalização, bem como analisar a forma pela qual esses valores influenciam no trato do sistema penal com a violência doméstica e familiar contra a mulher. O capítulo 2 se presta a analisar a Lei Maria da Penha em um viés jurídico- dogmático, além de demonstrar todo o valor simbólico envolvido em sua promulgação e aplicação. 17 O capítulo 3, por sua vez, fecha o presente trabalho com uma análise do processo formal de criminalização secundária da Lei Maria da Penha, para, finalmente, podermos analisar o processo concreto de criminalização secundária e chegarmos à conclusão procurada. Após todas essas considerações, precisamos ter em mente que esse estudo parte do pressuposto de que, atualmente, a ideia predominante que norteia o estudo da criminalidade está alicerçada em cinco premissas principais relacionadas à ideia de crime: a de que o crime é um mal que deve ser combatido; a de que o crime é um fenômeno anormal, praticado por uma minoria desviante que contraria os valores comuns a toda a sociedade; a de que o Estado, por ser a representação da sociedade, sempre reage de forma legítima sobre os indivíduos que praticam crimes; a de que o Estado promove a reação penal de forma igual contra todos os indivíduos que praticam crimes; e a de que o crime é consequência de causas determinadas.1 Segundo estas premissas, o delito é um fenômeno deletério, contrário aos valores sociais comuns, praticado por uma minoria da sociedade por causas determinadas, e punido pelo Estado com equidade e de forma legítima. Essas causas determinadas que levam à prática do delito, de acordo com a criminologia tradicional, podem decorrer de fatores antropológicos (ou biológicos), físicos ou sociais, os quais incidem sobre o seu objeto de estudo, que é o homem criminoso, influenciando as suas características e as suas motivações para cometer determinado “desvio de conduta”. À conta disso, é possível vislumbrar uma grande, e cada vez maior, influência do chamado paradigma etiológico no trato com a criminalidade contemporânea.2 1 Esses princípios formam a chamada “ideologia da defesa social”, a qual rege o funcionamento do sistema penal liberal. Cf. COSTA, 2005, p. 102; BARATTA, 2002, p. 42. 2 Cf. ANDRADE, 2003, p. 33. 18 1 CRIMINOLOGIA CRÍTICA E CRIMINOLOGIA CRÍTICA FEMINISTA 1.1 O PARADIGMA ETIOLÓGICO E A ESCOLA POSITIVA O paradigma etiológico começou a nortear os estudos criminológicos a partir do século XIX, quando as pesquisas sobre a criminalidade deixaram para trás a ideia do delito como objeto a ser estudado, para focar no sujeito criminoso. O delito era o centro dos estudos da chamada escola liberal clássica, que o concebia como uma violação do pacto social sobre o qual se sustentava o Estado.3 Além disso, tal escola defendia que esta violação acontecia pela livre vontade de cada indivíduo e que, portanto, todos eram igualmente propensos a delinquir. Sobre a escola liberal clássica, Alessandro Baratta (2002, p. 31) afirma que a mesmanão considerava o delinqüente como um ser diferente dos outros, não partia da hipótese de um rígido determinismo, sobre a base do qual a ciência tivesse por tarefa uma pesquisa etiológica sobre a criminalidade, e se detinha principalmente sobre o delito, entendido como conceito jurídico, isto é, como violação do direito e, também, daquele pacto social que estava, segundo a filosofia política do liberalismo clássico, na base do Estado e do direito. A denominação “escola clássica”, na verdade, foi criada pelos positivistas, pejorativamente, para designar uma linha de pensamento que consideravam ultrapassada.4 O mais ilustre representante dessa escola foi, certamente, Cesare Beccaria, o qual questionava a crueldade das penas aplicadas em seu tempo (meados do século XVIII). Beccaria (2004, p. 19) afirmava que os homens, fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança. 3 O pacto social, dentro do contexto apresentado, é um elemento de várias teorias modernas, criadas entre os séculos XVI e XVIII, que juntas formam o que se chama de “contratualismo”. Os principais autores contratualistas da época foram Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Apesar de todas as diferenças entre essas teorias, há uma ideia em comum: os membros de uma sociedade se organizam mediante um acordo, visando à proteção de princípios básicos para a vida em comunidade. Cf. MARCONDES, 1998, p. 196-201. 4 Cf. BITENCOURT, 2007, p. 50. 19 e que “a reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir” (BECCARIA, 2004, p. 19). A escola liberal clássica teve início com o advento do Iluminismo, no começo do século XVIII, mas acabou perdendo força no século XIX, em virtude da ciência de caráter positivista que surgia como principal fundamento do paradigma etiológico de estudo da criminalidade. De acordo com Newton Fernandes e Valter Fernandes (2002, p. 80), “o Direito Penal abandonou o terreno da abstração em que se colocara ao tempo da chamada Escola Clássica, passando para o concretismo das verificações objetivas sobre o delito e, fundamentalmente, sobre o criminoso”. Neste contexto, vamos nos remeter à escola positiva italiana, mais especificamente à Antropologia Criminal de Cesare Lombroso e à Sociologia Criminal de Enrico Ferri. Lombroso, médico psiquiatra italiano, nascido em 1835, fez investigações antropológicas em prisões, utilizando-se de método próprio das ciências naturais (observações empíricas), no intuito de descobrir quais eram as características de um criminoso nato.5 Em seu livro O Homem Delinquente, afirma que pretende estudar a biologia e a psicologia “destes homens que concentram no organismo humano tantas anomalias, como nos crimes tanta constância nas reincidências” (LOMBROSO, 2007, p. 30). Além dos estigmas físicos, Lombroso também citou em seu estudo estigmas psíquicos que caracterizariam o delinquente.6 Seu objetivo era poder identificar aqueles indivíduos que são mais propensos à prática de delitos a partir de características biológicas e psíquicas de cada um. Lombroso considerava, por exemplo, que as tatuagens ou cicatrizes eram características dos delinquentes. Afirmava que “o lugar da tatuagem, e sobretudo o número, são de grande importância antropológica, porque provam a vaidade instintiva que é característica no criminoso” (LOMBROSO, 2007, p. 35), e que a 5 Apesar de a expressão “criminoso nato” ser muito utilizada para designar a doutrina de Lombroso, quem efetivamente a criou e utilizou nesse sentido foi Enrico Ferri (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 91). 6 Alguns dos estigmas físicos eram: fartas sobrancelhas; molares muito salientes; orelhas grandes e deformadas; dessimetria corporal; e particularidades da forma da calota craniana e da face. Alguns dos sinais psíquicos eram: crueldade; aversão ao trabalho; instabilidade; tendência a superstições; precocidade sexual; e sensibilidade dolorosa diminuída (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 81). 20 frequência das cicatrizes na cabeça e nos braços é “outro sinal que pode tornar-se precioso ao médico legista por distinguir um malandro e um ladrão de um homem honesto e pacífico cidadão” (LOMBROSO, 2007, p. 45). Deste estudo, Lombroso retirou também sua tese do atavismo, segundo a qual o homem criminoso se assemelhava ao homem primitivo, ao selvagem, pois também apresentava características físicas e psíquicas não mais presentes em seus ascendentes imediatos. Entretanto, sua doutrina não mais se sustentou após os estudos que o sucederam, conforme afirmam Newton Fernandes e Valter Fernandes (2002), em especial quando confrontados aos de Baer (Der Verbrecher in anthropologischer Bezichung, 1893) e de Bleuler (Der Geborene Verbrecher, 1896). As experiências de Lombroso influenciaram sobremaneira o pensamento de Enrico Ferri, o qual, em sua obra Sociologia Criminal, considerava determinantes para a formação do homem criminoso as causas físicas (clima, umidade, ambiente telúrico em geral) e as causas sociais (mesológicas), além das causas biológicas apresentadas por Lombroso. Diante disso, os indivíduos que estivessem expostos a determinadas condições sociais e físicas consideradas preponderantes na delinquência, ou apresentassem alguma característica biológica típica de delinquentes, eram considerados tendentes para o crime. Daí se depreende que, para a escola positiva, os indivíduos que praticavam crimes eram diferentes dos indivíduos tidos como “normais”. Assim, a escola positiva, representando o paradigma etiológico, formou as bases da Criminologia tradicional, que tem como características o fato de que o crime é um fenômeno anormal e natural de toda sociedade constituída, além de ser um mal praticado por uma minoria de pessoas que apresentam tendência para delinquir em virtude de causas determinadas. Essa linha criminológica supõe, portanto, uma noção ontológica da criminalidade: o crime existe pelo fato de existirem indivíduos predispostos, por determinadas condições, a praticá-lo. Além disso, também parte do pressuposto de que exista uma uniformidade da moral, ou seja, uma moral universal, a qual deve ser obedecida por todos. O indivíduo que não segue as regras morais universais é um indivíduo “doente”, que precisa de um tratamento. 21 Essas características foram modernizadas com novas correntes, mas são consideradas até os dias atuais pela Criminologia tradicional para fundamentar todo o sistema de justiça criminal. No entanto, a partir da década de 60, uma nova forma de pensar o crime começou a surgir, deslocando a investigação das causas do crime para os processos sociais de criminalização. Este é o chamado paradigma da reação social, sob o qual teve origem a teoria do etiquetamento social (labeling approach). 1.2 O PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL (LABELING APPROACH) A teoria do labeling approach teve sua origem fundada em duas correntes da sociologia fenomenológica americana, quais sejam a do “interacionismo simbólico” e da “etnometodologia”. Os estudiosos do interacionismo simbólico, segundo Alessandro Baratta (2002, p. 87), entendiam a realidade social como “uma infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continua a estender- se através da linguagem”, enquanto que os da etnometodologia entendiam que “a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer sobre o plano objetivo, mas o produto de uma ‘construção social’, obtida graças a um processo de definição e detipificação por parte de indivíduos e de grupos diversos” (BARATTA, 2002, p. 87). A partir destas correntes, o labeling approach explica que a criminalidade não é ontológica, como se depreende do paradigma etiológico, mas é o produto de uma construção social arquitetada sobre determinados valores e normas institucionalmente definidas e difundidas pelas interações concretas intersubjetivas. Assim, podemos afirmar que uma conduta não é, por si só, criminosa, mas socialmente criminalizada com base em um conjunto de valores. 22 Ademais, são dois os momentos pelos quais passa o processo de criminalização: o da definição legal de crime (a conduta definida institucionalmente como crime) e o da seleção estigmatizante (o status de criminoso atribuído a determinado indivíduo, entre todos aqueles que infringem as normas penais sancionadas, difundido pelas interações concretas intersubjetivas). Neste mesmo diapasão, Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 41) explica que, uma conduta não é criminal “em si” (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências de seu meio ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a “definição” legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal, e a “seleção” que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas. Do primeiro momento se retira, portanto, o conceito de criminalização primária, que se refere ao mecanismo de produção das normas no intuito de regular determinadas condutas consideradas desviantes; ou seja, é a criação do corpo normativo que deve ser respeitado sob pena de sanção contra aquele que se portar de forma oposta. Já do segundo momento, se retira a criminalização secundária, a qual diz respeito à aplicação dessas normas; em outras palavras, ela define quem são os indivíduos sobre os quais incidirá determinada norma e quando incidirá. Em relação ao processo de definição da criminalidade, este se dá em dois âmbitos. Primeiramente, existem os processos de definição do senso comum, que são produzidos em instâncias não-oficiais. Esses processos ocorrem segundo a interpretação de certo comportamento, que acaba se difundindo socialmente, de forma a se afastar das situações concretas e a se tornar uma norma moral abstrata. A partir disso, a mesma norma pode ser transformada em jurídica pelas instâncias oficiais, criminalizando a conduta. Em virtude da criminalização, começam os processos de definição oficiais, ou seja, produzidos em instâncias oficiais. Não se trata de processos excludentes, eles se completam ao mesmo tempo em que coexistem. John Itsuro Kitsuse (apud BARATTA, 2002, p. 94) explica esse fenômeno definindo o desvio, que é, para ele, um processo no curso do qual alguns indivíduos, pertencentes a algum grupo, comunidade e sociedade a) interpretam um comportamento como desviante, b) definem uma pessoa, cujo comportamento corresponda a esta 23 interpretação, como fazendo parte de uma certa categoria de desviantes, c) põem em ação um tratamento apropriado em face desta pessoa. Desta forma, o que se apreende do conceito de Kitsuse é que a reação acerca do comportamento de determinado indivíduo é provocada pela interpretação que outros indivíduos fazem do mesmo comportamento. Assim, o comportamento passa a ser percebido como o oposto do comportamento considerado “normal”, e essa interpretação se perpetua, tanto nas instâncias oficiais como nas não-oficiais. A interpretação feita pelas instâncias oficiais, e também pelo senso comum, no sentido de reprimir determinadas condutas não são determinadas somente pela violação da norma penal. Alessandro Baratta (2002, p. 107, grifo do autor), seguindo a crítica de Fritz Sack à definição “legal” de criminalidade, afirma que “a criminalidade, como realidade social, não é uma entidade preconstituída em relação à atividade dos juízes, mas uma qualidade atribuída por estes últimos a determinados indivíduos”. Esta atribuição acaba “rotulando” o indivíduo como criminoso. As consequências desse etiquetamento perante a sociedade são perversas, pois o indivíduo que viola a lei não é visto como um indivíduo “normal”. Entretanto, não são todos os indivíduos que sofrem essa rotulação. De acordo com Howard Becker (apud ANDRADE, 2003, p. 42), um dado ato, para ser considerado desviante, “depende em parte da natureza do ato (ou seja, se quebranta ou não alguma regra), e em parte do que outras pessoas fazem a respeito”. Em virtude disso, podemos entender o porquê de indivíduos diferentes praticarem a mesma conduta e um ser rotulado como criminoso e o outro não. Trata-se de uma questão axiológica, ou seja, dos valores intrínsecos aos indivíduos e às instituições que reagem à conduta considerada desviante. O labeling approach não entra no mérito de informar que valores são esses e por isso não é suficiente para explicar de forma completa o fenômeno da criminalidade. 24 Contudo, a sua contribuição para o estudo criminológico é de enorme valia, pois significou uma ruptura tanto metodológica quanto epistemológica em relação à Criminologia tradicional.7 Nesse sentido, ocorre o surgimento da Criminologia Crítica, influenciada pela teoria materialista histórico-dialética marxista, suprindo essa lacuna axiológica na explicação da criminalidade. 1.3 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA Karl Marx e Friedrich Engels (2009, p. 67, grifo do autor) afirmavam que “as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante”. A Criminologia Crítica se volta a esse pensamento para explicar, primeiramente, o porquê de o paradigma etiológico sobreviver às críticas quanto ao funcionamento do sistema penal. Entendemos aqui que tal paradigma se trata de uma ideia dominante, imposta pela classe dominante para a satisfação de seus interesses. Essa ideia dominante é tida como certa, quase uma verdade universal, a qual Marx chamava de ideologia. A ideologia no pensamento marxiano é um mascaramento da realidade, e é o principal instrumento de dominação da classe dominante. Segundo Marx e Engels (2009, p. 69, grifo do autor), cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela é obrigada, precisamente para realizar o seu propósito, a apresentar o seu interesse como o interesse universal de todos os membros da sociedade, ou seja, na expressão ideal [ideell]: a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente válidas. Nesse sentido, podemos afirmar que a classe dominante na atual conjuntura mundial é a capitalista, detentora dos meios de produção social e também do capital. 7 Cf. ANDRADE, 2003, p. 45; SANTOS, 2005. 25 Marx e Engels (2001, p. 23) diziam que “a história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes”. Essa é uma luta constante, que abarca não só o sistema econômico, mas influencia a sociedade como um todo. Tendo isso em vista, a Criminologia Crítica se baseia em dois pilares essenciais para a definição da criminalidade: nas contradições resultantes das relações sociais de produção capitalista e na teoria do etiquetamento (labeling approach). Isso significa uma mudança de objeto e, consequentemente, de método adotado nas pesquisas criminológicas, a partir de uma abordagem materialista histórico-dialética.8 Para a Criminologia Crítica, o labeling approach peca por explicar a relação de poder no processo de seleção penal sem lidar com as relações sociais de produção capitalista. Nesse sentido, Juarez Cirinodos Santos (2005, p. 1, grifo do autor) esclarece que a Criminologia crítica é construída pela mudança do objeto de estudo e do método de estudo do objeto: o objeto é deslocado da criminalidade, como dado ontológico, para a criminalização, como realidade construída, mostrando o crime como qualidade atribuída a comportamentos ou pessoas pelo sistema de justiça criminal [...]; o estudo do objeto não emprega o método etiológico das determinações causais de objetos naturais empregado pela Criminologia tradicional, mas um duplo método adaptado à natureza de objetos sociais: o método interacionista de construção social do crime e da criminalidade, responsável pela mudança de foco do indivíduo para o sistema de justiça criminal, e o método dialético que insere a construção social do crime e da criminalidade no contexto da contradição capital/trabalho assalariado, que define as instituições básicas das sociedades capitalistas. Dentro desta ótica, o sistema penal é entendido como um subsistema do capitalismo, ou seja, um instrumento de classe inserido em uma luta de classes. Além disso, o direito penal não é entendido como um sistema estático de normas, mas como sistema dinâmico de funções, no qual se podem distinguir três mecanismos analisáveis separadamente: o mecanismo da produção das normas (criminalização primária), o mecanismo da aplicação das normas, isto é, o processo penal, compreendendo a ação dos órgãos de investigação e culminando com o juízo (criminalização secundária) e, enfim, o mecanismo da execução da pena ou das medidas de segurança (BARATTA, 2002, p. 161). 8 Cf. ANDRADE, 2003, p. 45; COSTA, 2005, p. 90; BARATTA, 2002, p. 161. 26 Trazendo este pensamento para a realidade brasileira, o que se pode ver é uma criminalização primária exercida pelos órgãos legislativos e uma criminalização secundária exercida pela instância policial, Ministério Público e juízes. Mais além, existe aquela denominada por alguns autores de criminalização terciária, a qual ocorre durante a execução da pena pelas instâncias oficiais e depois dela pelas instâncias não-oficiais. Dentro desse contexto, são premissas da teoria da Criminologia Crítica: a existência de indivíduos que detêm o controle dos meios de produção capitalistas e, em razão disso, do próprio sistema capitalista; e a existência de indivíduos que se prestam tão-somente a servir esse sistema vendendo a sua força de trabalho em troca de salário. Como consequência dessa relação, existe uma contradição entre a igualdade formal proposta pela norma em abstrato e a desigualdade substancial entre os indivíduos. Esta desigualdade substancial tem origem nessa relação desigual de produção do sistema capitalista e, de acordo com Alessandro Baratta (2002), se manifesta em relação às chances de os indivíduos serem definidos e controlados como desviantes. Em outras palavras, a distribuição do poder de definição de quem é considerado criminoso e a do poder de reação aos atos que tal indivíduo pratica é desigual em virtude da desigualdade social advinda do sistema capitalista. Essa definição e essa reação devem acontecer de acordo com os interesses da classe dominante, sendo esta a classe capitalista. Isso contradiz o que afirma a criminologia liberal tradicional, a qual apregoa “que o comportamento delinqüente tem sua origem exclusiva no próprio indivíduo, estando totalmente dissociado de causas sociais” (GUIMARÃES, 2006, p. 355). Em relação aos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, é possível afirmar que os mesmos não são selecionados considerando a sua importância para a sociedade, mas sim a sua importância para a classe dominante. Os comportamentos lesivos aos interesses da classe dominante são aqueles escolhidos para serem alvos do direito penal, porém sob a aparência de serem lesivos ao interesse social como um todo. Alessandro Baratta (2002, p. 165) explica que as justificativas do direito penal na escolha dos bens jurídicos protegidos 27 são uma ideologia que cobre o fato de que o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas. Isto explica, por exemplo, o porquê de, até dezembro de 2009, no Brasil, existirem 64.815 pessoas cumprindo pena por furto, enquanto 431 pessoas cumpriam pena por peculato (BRASIL, 2010a). O crime de peculato é praticado por indivíduos típicos da classe dominante, enquanto o de furto é praticado por indivíduos típicos da classe subalterna. Inclusive, há também interpretações diferenciadas nos tribunais quanto ao julgamento de habeas corpus visando o trancamento de ação penal pelos dois crimes, quando suscitado o princípio da insignificância. Quanto ao crime de furto, o Supremo Tribunal Federal (STF), em acórdão proferido no HC 92.743-2/RS, indeferiu, por unanimidade, o trancamento de uma ação penal por crime de furto, no qual o autor subtraiu bens avaliados em R$ 100,90 (cem reais e noventa centavos), afirmando o seguinte: EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. REPARAÇÃO DO DANO. ATENUAÇÃO DA PENA. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO DISPOSTO NO ART. 34 DA LEI N. 9.249/95, VISANDO À EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE EM RELAÇÃO AOS CRIMES DESCRITOS NA LEI N. 8.137/90. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa, cautelosa e casuística. Devem estar presentes em cada caso, cumulativamente, requisitos de ordem objetiva: ofensividade mínima da conduta do agente, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente e inexpressividade da lesão ao bem juridicamente tutelado. [...]. 2. A reparação do dano após a consumação do crime, ainda que antes do recebimento da denúncia, confere ao paciente somente a atenuação da pena; não a extinção da punibilidade. 3. [...]. Habeas corpus conhecido, em parte, e denegada a ordem nessa extensão. (HC 92743, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 19/08/2008, DJe-216 DIVULG 13-11-2008 PUBLIC 14-11-2008 EMENT VOL-02341-02 PP-00326) (BRASIL, 2008, grifo nosso). 28 No caso em tela, houve a reparação do dano antes do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Porém, o STF entendeu que tal reparação não enseja extinção de punibilidade do agente, mas tão-somente a atenuação da pena. Quanto ao crime de peculato, entretanto, o mesmo tribunal, em acórdão proferido no HC 92.634/PE, deferiu, por maioria de votos, o trancamento de uma ação penal por crime de peculato, no qual o autor subtraiu um bem avaliado em R$ 455,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco reais), fundamentando que: EMENTA: HABEAS CORPUS. PECULATO PRATICADO POR MILITAR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. CONSEQÜÊNCIAS DA AÇÃO PENAL. DESPROPORCIONALIDADE. 1. [...]. 2. Hipótese em que o paciente não devolveu à Unidade Militar um fogão avaliado em R$ 455,00 (quatrocentos e cinqüenta e cinco) reais. Relevante, ademais, a particularidade de ter sido aconselhado, pelo seu Comandante, a ficar com o fogão como forma de ressarcimento de benfeitorias que fizera no imóvel funcional. Da mesma forma, é significativo o fato de o valor correspondente ao bem ter sido recolhido ao erário. 3. [...]. Ordem concedida. (HC 87478, Relator(a): Min. EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em 29/08/2006, DJ 23-02-2007 PP-00025 EMENT VOL-02265-02 PP-00283) (BRASIL, 2006a, grifo nosso). Aqui, é possível vislumbrar também uma reparação pelo dano, o que fez o STF entender pela extinção de punibilidade do agente no crimede peculato, ao contrário da situação de furto antes analisada, ainda que o valor do bem subtraído no peculato fosse maior do que o dos subtraídos no furto. A utilização de um princípio como fundamento decisório de um caso concreto permite aos julgadores uma discricionariedade muito grande, legitimando julgamentos contraditórios. Nesse mesmo diapasão, Vanessa Maria Feletti (2008, p. 3116) afirma que o intérprete do direito, em casos que envolvam membros de estratos sociais mais altos da sociedade, “valer-se-á dos princípios para alcançar a absolvição, e assim o agente da conduta típica, antijurídica, culpável, com autoria e materialidade comprovadas sairá incólume de sua inusitada ‘captura nas teias do sistema penal’”. Desta forma, fica patente a incoerência da criminalização secundária. O processo de seleção se volta aos excluídos socialmente. Sobre isso, Alessandro Baratta (2002, p. 165) afirma que “as maiores chances de ser selecionado para fazer parte da ‘população criminosa’ aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da 29 escala social (subproletariado e grupos marginais)”. Além disso, explica que, antes de serem causas da criminalidade como afirma a criminologia tradicional, a posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional) e os defeitos de socialização familiar e escolar, as quais representam características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, [...] revelam ser conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído (BARATTA, 2002, p. 165, grifo do autor). Inserido neste contexto, o direito penal funciona, portanto, como um mecanismo de reprodução da ideologia dominante e, consequentemente, como um instrumento de manutenção das desigualdades sociais. Alessandro Baratta (2002, p. 166, grifo do autor) afirma que, em primeiro lugar, a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e especialmente o cárcere, é um momento superestrutural essencial para a manutenção da escala vertical da sociedade. Incidindo negativamente sobretudo no status social dos indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais baixos, ela age de modo a impedir sua ascensão social. Em segundo lugar, e esta é uma das funções simbólicas da pena, a punição de certos comportamentos ilegais serve para cobrir um número mais amplo de comportamentos ilegais, que permanecem imunes ao processo de criminalização. Assim, a classe dominada permanece dominada. O controle social é uma forma de manter os estratos sociais mais baixos no mesmo lugar, tendo em vista que estes são uma importante massa de manobra nas mãos da classe dominante. Ademais, a punição exacerbada de determinados desvios fornece uma falsa ideia de que o sistema penal funciona bem e a todo vapor, quando, na verdade, está mascarando um número muito maior de desvios: são as chamadas cifras negras. De acordo com Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 13), o fenômeno da cifra negra “representa a diferença entre a aparência (conhecimento oficial) e a realidade (volume total) da criminalidade convencional, constituída por fatos criminosos não identificados, não denunciados ou não investigados”. Ou seja, é a criminalidade oculta, que não aparece nas estatísticas criminais. Esta cifra oculta tem direta relação não só com o fato de o sistema penal não conseguir fornecer uma resposta a todas as condutas criminalizadas, tendo em vista a enorme abrangência da criminalização primária e a incapacidade estrutural do sistema, mas também com a falta de interesse na investigação de determinados delitos (muitas vezes pela 30 pressão exercida por indivíduos que detêm um maior poder econômico). Nesse sentido, Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 51) explica que existe uma incapacidade estrutural de o sistema penal operacionalizar, através das agências policial e judicial, toda a programação da Lei penal, dada a magnitude da sua abrangência, pois está integralmente dedicado “a administrar uma reduzidíssima porcentagem das infrações, seguramente inferior a 10%”. Logicamente, essa reduzidíssima porcentagem administrada pelo sistema penal se refere, quase que totalmente, àqueles crimes praticados pelos estratos sociais mais baixos. Assim, a realidade que temos é a de que existe uma gama enorme de condutas desviantes praticadas que não entram nas estatísticas policiais; e as que entram quase sempre são aquelas que recaem sobre a classe menos favorecida. Ora, se todo o processo de criminalização funciona no intuito de manter as desiguais relações sociais de produção capitalista, também a pena imposta ao indivíduo dito criminoso deve caminhar no mesmo sentido. De acordo com Georg Rusche e Otto Kirchheimer (apud SANTOS, 2008, p. 61), “todo sistema de produção descobre punições que correspondem às suas relações produtivas”. É importante frisar que o regime disciplinar carcerário em seu modelo atual guarda uma enorme semelhança com o regime de trabalho na fábrica. O cárcere produz os sujeitos passivos da relação de produção capitalista, impondo o modelo disciplinar fabril. Tanto é assim que o condenado à pena privativa de liberdade no Brasil está obrigado a trabalhar, de acordo com o artigo 31 da Lei de Execuções Penais (Lei Federal n° 7.210/84) (BRASIL, 1984). Sobre o trabalho penal, Michel Foucault (1987) afirmava que o mesmo requalifica o ladrão em operário dócil, e que “é nesse ponto que intervém a utilidade de uma retribuição pelo trabalho penal; ela impõe ao detento a forma ‘moral’ do salário como condição de sua existência” (FOUCAULT, 1987, p. 204). Além disso, explica que o trabalho penal não é um lucro, nem a formação de uma habilidade útil, “mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção” 31 (FOUCAULT, 1987, p. 204). Convém reiterar que não só o trabalho se constitui como uma relação de poder, mas a disciplina como um todo. Com o propósito de ocultar essa realidade, a criminologia liberal tradicional sustenta que a pena privativa de liberdade possui três funções principais no Estado Democrático de Direito: a de retribuição; a de prevenção geral; e a de prevenção especial. Fernando Capez (2004, p. 339), em seu conceito de pena, afirma que a mesma tem a finalidade de “aplicar a retribuição punitiva ao delinqüente, promover a sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à coletividade”. A função retributiva se consiste em irrogar um mal proporcional ao delito praticado, ou seja, “retribuir” o mal causado. A função preventiva geral, por sua vez, pode ser dividida em duas espécies, quais sejam: a negativa e a positiva. A função preventiva geral positiva significa o restabelecimento da ordem social, de forma a re-legitimar o sistema penal e fazer com que o resto da sociedade deposite novamente sua confiança na justiça. Já a prevenção geral negativa é a ameaça penal sobre a prática de determinada conduta ilícita ou, em outras palavras, a intimidação exercida perante a sociedade com o fim de evitar a prática de comportamentos ilícitos semelhantes aos dos apenados por outros indivíduos. A função preventiva especial também possui duas vertentes, a positiva e a negativa. Em sua vertente negativa, a função preventiva especial é a premunição social em face do criminoso, evitando temporariamente o cometimento de outros crimes e novo abalo à ordem social. Já a função preventiva especial positiva (também chamada de função ressocializadora da pena) é a correção do condenado, isto é, a reabilitação do indivíduo para que o mesmo possa voltar ao convívio social sabendo que aquele tipo de conduta é inaceitável socialmente. Embora essas finalidades da pena existam para legitimar o monopólio estatal do poder punitivo, na realidadeelas não são atingidas. A função retributiva não ocorre, tendo em vista diversas condutas tidas como criminosas sendo praticadas reiteradamente sem que ocorra a prometida punição daquele que as praticou. A retribuição, deste modo, está condicionada às características pessoais do infrator ou ao modo como ele atua, como explica Carlos Alberto Gabriel Guimarães (2006). A cifra negra da criminalidade é uma realidade que prova o desvio da finalidade retributiva da pena. Desse modo, a punição não 32 pode funcionar como uma retribuição, pois não atinge todos os comportamentos delituosos no âmbito fático. Além disso, a teoria da retribuição como finalidade da pena “se baseia em concepções metafísicas, vinculadas à religião e à moral, incompatível, pois, com a neutralidade reclamada ao Estado Democrático” (GUIMARÃES, 2006, p. 146), ou seja, é uma espécie de vingança, uma crença coletiva sem valor científico. Também não se pode afirmar que é atingida a função preventiva geral da pena, em virtude da impossibilidade de comprovação empírica desta função, tanto em seu âmbito negativo quanto em seu âmbito positivo. Sobre a esfera positiva desta função, como é possível concluir que a pena restabelece a ordem social e a confiança na justiça? Como podemos fazer essa aferição? Se um indivíduo é apenado, qual é a parcela de confiança que devemos depositar na justiça e no sistema penal? A partir do momento em que se percebe uma maioria de indivíduos não apenados por consequência de uma seleção estigmatizante, é possível afirmar que a pena re-legitima o sistema penal? Não é possível afirmar isso. Para além da esfera positiva da função de prevenção geral, temos a negativa. Podemos considerar que a pena intimida a prática de novos crimes por parte de outros indivíduos da mesma sociedade? O fato de estar prevista uma pena para a prática determinada conduta leva os indivíduos a não delinquirem? A resposta é a mesma para a esfera negativa: não é possível afirmar empiricamente. Nesse mesmo diapasão, Claudio Alberto Gabriel Guimarães (2006, p. 337) conclui que não é possível afirmar-se racionalmente que a aplicação de uma sanção penal a quem quer que seja possa criar barreiras psicológicas nos outros membros da comunidade – como o quer a prevenção geral negativa –, assim como que reforçaria os laços de respeito ao ordenamento jurídico como um todo e ao ordenamento penal em particular, reafirmando os valores postos, fins positivos da prevenção. Quanto à função preventiva especial negativa, podemos fazer a mesma crítica feita à retribuição. Ela não abrange todos os comportamentos tidos como desviantes, de forma que só são neutralizados aqueles indivíduos que praticam as condutas selecionadas pelo sistema penal. Além disso, existe uma incompatibilidade entre a função neutralizadora da pena com a função ressocializadora, visto que retira o apenado de um convívio com seus familiares e com seus amigos. Nesse sentido, 33 Mezger (apud GUIMARÃES, 2006, p. 202) afirma que “não se pode negar que os fins da pena nem sempre se harmonizam. Podem, pelo menos, entrar mutuamente em conflito e então se fala de uma antinomia dos fins jurídico-penais”. Claudio Alberto Gabriel Guimarães (2006, p. 202) reforça que o fim neutralizador é totalmente incompatível com os fins ressocializadores da pena, assim, a busca pela incapacitação pelo maior tempo possível daquele que cometeu um delito é completamente antagônica à busca pela medida adequada da pena fundada na possibilidade de reinserção do delinqüente no meio social. Além do mais, esta neutralização temporária só serviria para expor o indivíduo às mazelas do cárcere e, consequentemente, para introjetar valores incondizentes com o convívio social, o que pode conduzí-lo à reincidência e ao fracasso da pena privativa de liberdade como solução ao problema da criminalidade. A maior crítica, no entanto, é a de que essa função só serve para combater as “consequências dos delitos e não as causas que levam ao cometimento das infrações” (GUIMARÃES, 2006, p. 195). Encerrando esta breve análise sobre as funções da pena, podemos afirmar que a função preventiva especial positiva também não é atingida, em virtude do próprio aprendizado na prisão. Além das péssimas condições físicas das cadeias, o preso ainda é forçado a absorver os valores próprios dos indivíduos que ali se encontram, ou seja, as cadeias são verdadeiramente “escolas do crime”. Segundo Juarez Cirino dos Santos (2005, p. 2, grifo do autor), a introdução do condenado na prisão inicia um duplo processo de transformação pessoal: um processo de desculturação progressiva, consistente no desaprendizado dos valores e normas próprios da convivência social; um processo de aculturação simultâneo, consistente no aprendizado forçado dos valores e normas próprios da vida na prisão. Ademais, ainda que o delinquente incorporasse na cadeia os valores de convívio na sociedade, ele não teria campo de trabalho, visto que saiu estigmatizado do cárcere, com o status de “ex-presidiário”. Assim, insistir com a ressocialização, enquanto forma de pôr o recluso em condições de converter-se em membro engajado nas normas sociais, em 34 condições de exercer um trabalho digno que possa prover a ele e sua família do mínimo necessário, em uma realidade na qual tal realidade é inexistente – não existe mais trabalho, muito menos para ex-presidiários –, no mínimo, pode-se afirmar, que se trata de uma forma insidiosa de controle social das classes despossuídas (GUIMARÃES, 2006, p. 250). Como consequência disso, o ex-presidiário, sem ter como sustentar a si e a sua família, reincide no crime. O próprio sistema penal cria as carreiras criminosas desses indivíduos, pois promove uma seleção estigmatizante de pessoas que não são interessantes ao sistema capitalista. Em outras palavras, os indivíduos pobres devem ser encarcerados e permanecer encarcerados (além de continuarem pobres), enquanto os ricos devem ser livres e assim permanecer (além de continuarem ricos). Nesse sentido, afirma Alessandro Baratta (2002, p. 167), antes de ser a resposta da sociedade honesta a uma minoria criminosa [...], o cárcere é, principalmente, o instrumento essencial para a criação de uma população criminosa, recrutada quase exclusivamente nas fileiras do proletariado, separada da sociedade e, com conseqüências não menos graves, da classe. Dentro desse contexto, o mercado de trabalho é o que define a política criminal, ou seja, a lei da oferta e da procura de trabalho é que vai definir o tipo de punição a ser adotada pelo Estado. Se existe um excedente de mão-de-obra no mercado de trabalho, a mesma deve ser tirada de circulação com penas capitais ou de privação perpétua de liberdade (dependendo da necessidade do mercado, podem ser privativas de liberdade não-perpétuas, mas com um tempo determinado por essa mesma necessidade). Porém, se existe uma insuficiência de mão-de-obra, a punição deve ser voltada ao trabalho forçado. De acordo com Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 61, grifo do autor), a) se a força de trabalho é insuficiente para as necessidades do mercado, a punição assume a forma de trabalho forçado, com finalidades produtivas e preservativas da mão-de-obra; b) se a força de trabalho é excedente das necessidades de mercado, a punição assume a forma de penas corporais, com destruição ou extermínio da mão-de-obra: a abundância torna desnecessária a preservação. Exemplo disso é a política de tolerância zero adotada durante o mandato de Rudolph Giuliani, nos anos 90, como prefeito de Nova Iorque. Embasada na teoria da “vidraça quebrada” (broken windows theory), essa política tinha como objetivo uma intransigente ação policial sobre os delitos mais leves, a fim de prevenir a 35 prática dos delitos mais graves introjetando nas pessoas um senso delegalidade. Sob este pretexto, afirma Loïc Wacquant (2001, p. 28), Nova Iorque aumentou seu orçamento para a polícia em 40% para atingir 2,6 bilhões de dólares (ou seja, quatro vezes mais do que as verbas dos hospitais públicos, por exemplo), ostentando um verdadeiro exército de 12.000 policiais para um efetivo total de mais de 46.000 empregados em 1999, dos quais 38.600 agentes uniformizados. Comparativamente, nesse período, os serviços sociais da cidade vêem suas verbas cortadas em um terço, perdendo 8.000 postos de trabalho para acabar com apenas 13.400 funcionários. Acabar com a criminalidade era a justificativa declarada da política criminal de tolerância zero, mas a justificativa oculta era nada menos do que tirar de circulação o excedente de mão-de-obra no mercado de trabalho. Essas justificativas declaradas são veiculadas ativamente pela mídia, de forma a promover a continuidade dessa ilusão de funcionamento do sistema penal perante a sociedade. Sobre isso, Claudio Alberto Gabriel Guimarães (2006, p. 354) explica que em última instância, é a mídia que proporciona a continuidade operacional do sistema penal, significando isso que as funções reais desempenhadas de dominação e manutenção do poder, são substituídas no imaginário popular – através de uma veiculação massiva – pelas funções declaradas de defesa da sociedade. Assim, além de mostrar exaustivamente a ação punitiva sendo realizada, de modo a criar na sociedade uma consciência de que o sistema penal está cumprindo suas funções declaradas, a mídia também cria o estereótipo do criminoso. Com isso, as políticas criminais se embasam nesses estereótipos, agindo em locais predeterminados, como os bairros pobres, e a mídia mostra essas ações, reforçando esse estereótipo. É um círculo vicioso intencional. Dessa forma, Yasmin Maria Rodrigues Madeira da Costa (2005, p. 93) conclui que no Brasil, a política de segurança pública visa aos que correspondem ao estereótipo lombrosiano, controlando os permanentemente suspeitos, grupos considerados estrategicamente de alto risco pela elite, repetindo a ideologia da exclusão e não protegendo os direitos humanos fundamentais de todos os estratos sociais. Enquanto o olhar se dirige aos segmentos pobres da população, permanecem sob tranqüila obscuridade os crimes perpetrados pelas classes hegemônicas, em sua maioria muito mais danosos à população como um todo. 36 Em suma, podemos afirmar que o sistema penal se mantém como um instrumento de manutenção do sistema capitalista criando uma ilusão de eficácia operacional a partir de suas funções declaradas e especialmente veiculadas pela mídia, além de promover um processo estigmatizante de seleção criminal. Tendo tudo isso em vista, passaremos a expor outra vertente da Criminologia Crítica, a Criminologia Crítica Feminista, que teve suas bases nos movimentos feministas e desloca o seu enfoque das relações classistas para as relações de gênero. Assim, é conveniente contextualizar historicamente o patriarcalismo e os estudos feministas. 1.4 O PATRIARCALISMO E O FEMINISMO O androcentrismo e o patriarcalismo são ideias dominantes em muitas épocas e em lugares diversos. Fustel de Coulanges, em sua obra A Cidade Antiga, fez um estudo sobre o mundo antigo greco-romano a partir de uma gama de fatores que se conectam, iniciando nas crenças antigas (expondo o culto dos mortos, o fogo sagrado e a religião doméstica), passando pelas relações familiares (baseadas nessa religião doméstica), até a cidade e as revoluções. A partir desse estudo da sociedade antiga, Fustel de Coulanges (2006) explica que no século V a.C. já existia um arranjo familiar patriarcal, o qual era formado por um pai, uma mãe, filhos e escravos. A autoridade máxima do lar era a religião doméstica, à qual deveriam se sujeitar todos os membros da família. O pai, ou pater familias, na lógica dessa crença, era aquele que exercia a maior autoridade dentre as pessoas inseridas no âmbito familiar; era por seu intermédio que a família e o culto se perpetuavam, uma vez que somente ele representava a cadeia dos descendentes. Nesse contexto, a mulher exercia um papel secundário. A mulher não era senhora de si própria, muito menos senhora do lar. Ela era considerada menor pelos direitos grego, romano e hindu. Nas palavras de Fustel de Coulanges (2006, p. 94): 37 A religião não coloca a mulher em posição tão elevada. É verdade que toma parte nos atos religiosos, mas não como senhora do lar. A sua religião não lhe vem do nascimento; só foi nela iniciada por ocasião do casamento; aprendeu do marido a prece que pronuncia. Não representa os antepassados, pois não descende deles. Também não se tornará um deles; colocada no túmulo, jamais receberá culto especial. Na morte, como na vida, ela é considerada apenas uma parte integrante do seu esposo. É importante frisar que, antes de se casar, a mulher já se submetia à crença do lar de seu pai desde o nascimento, portanto passava sua vida inteira submetida a um homem: ou ao pai, ou ao marido. Por volta de mil anos depois, iniciou-se o período medieval, o qual teve a duração de mais ou menos mil anos (século V d.C. até século XV d.C.), como afirma o discurso historiográfico dominante. Durante esse período, a sociedade da Europa ocidental foi influenciada por uma enorme onda antifeminista, o que pode-se extrair das palavras da abadessa Hildegarda de Bingen9 (apud KLAPISCH-ZUBER, 2006, p. 137), no século XII d.C., sobre as mulheres: Nós somos volúveis, contraditórias, desconfiadas, covardes e medrosas [...]. Na verdade, os homens são os chefes das mulheres e sem a autoridade deles raramente algo que fazemos chegam [sic] a um fim louvável. [...] A mulher é fraca, ela vê no homem o que pode lhe dar força, da mesma maneira que a lua recebe sua força do sol. É por isso que ela é submissa ao homem, e deve estar sempre pronta a servi-lo. Cabe ressaltar que esse movimento antifeminista também é consequência da expansão e da afirmação da Igreja Católica como instituição dominante na Europa, cuja doutrina colocava a mulher em posição de subordinação ao homem. As ideias da sociedade europeia e a doutrina pregada pelo catolicismo andaram juntas durante um bom tempo, de forma a introjetar na cultura dos europeus, principalmente na Europa Central, essa mentalidade androcêntrica. Em fins da idade média, os inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger escreveram uma obra, em 1484, intitulada Malleus Maleficarum, traduzida para o português como O Martelo das Feiticeiras, na qual afirmavam que as mulheres eram 9 Do alemão, Hildegard von Bingen. 38 mais propensas às superstições diabólicas em virtude de serem “mais fracas na mente e no corpo” (KRAMER; SPRENGER, 2005, p. 116). Afirmam ainda que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer, contrária à retidão do homem. [...] em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente (KRAMER; SPRENGER, 2005, p. 116). A referência à costela é retirada da crença católica na história de Adão e Eva. Essa mentalidade levou muitas mulheres às fogueiras da Inquisição. Sobre esta época, Michael Baigent e Richard Leigh (2001) afirmam que a Igreja Católica Apostólica Romana teria queimado, no mínimo, 30 mil bruxas durante um período de 150 anos, e que “a campanha contra a bruxaria forneceu-lhe mandado para uma cruzada em escala total contra as mulheres, contra tudo que era feminino” (BAIGENT; LEIGH, 2001, p. 137). Daí vislumbra-se, portanto, as raízes de um androcentrismo que influenciou a mentalidade patriarcal da sociedade brasileira, pois a colonização portuguesa trouxe consigo essas ideias que ainda eramdominantes na Europa do século XVI d.C.. Desde a chegada dos portugueses ao Brasil, as leis vigentes no país sempre tiveram um caráter androcêntrico. Nesse sentido, também o sistema penal sempre foi androcêntrico, na medida em que, historicamente, as mulheres eram, e continuam sendo, guardando as devidas proporções, tratadas como indivíduos incapazes e submissos, que deveriam viver na sombra de um homem, executando somente as atividades pertinentes ao âmbito privado. É nesse contexto que, em 1603, entraram em vigor, promulgadas sob o reinado de D. Felipe II de Portugal, as Ordenações Filipinas, as quais tratavam, em seu Livro V, de normas penais. Este era o ordenamento vigente também no Brasil, considerando que o país era colônia portuguesa. Naquela época, era permitido, por exemplo, que o marido matasse sua mulher se a encontrasse em situação de adultério, bem como também poderia matar o homem adúltero. Um exercício de autotutela totalmente legalizado, mas que também era 39 condicionado à condição social tanto do marido quanto do homem adúltero. De acordo com o Título XXXVIII das Ordenações Filipinas: Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não passando de três anos. 1. E não somente poderá o marido matar sua mulher e o adúltero que achar com ela em adultério; e entendendo assim provar, e provando depois o adultério por prova lícita e bastante conforme a direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão punidos segundo acima dito é (PORTUGAL apud LAVORENTI, 2009, p. 180). Vide o caso, citado por Sérgio Buarque de Holanda (1995), de Bernardo Vieira de Melo, o qual suspeitou que a nora tivesse praticado adultério e, mediante um conselho de família, a condenou à morte. Tal sentença foi executada sem a menor intervenção da Justiça. Sobre o ambiente doméstico no Brasil do século XVIII d.C., Sérgio Buarque de Holanda (1995, p. 81) afirma que “o grupo familiar mantém-se imune de qualquer restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio superior que procure perturbá-lo ou oprimí-lo”. E continua: “Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania” (HOLANDA, 1995, p. 82). Gilberto Freyre (1997), em sua obra Casa-Grande e Senzala, chama a atenção para o patriarcalismo na sociedade colonial brasileira, que tem sua base em um binômio “sadismo-masoquismo”, no qual os “sádicos” colonizadores portugueses dominavam as negras e índias “masoquistas”. Esse “sadismo” se propagava tanto no intercurso sexual entre o conquistador europeu e a mulher negra ou índia, quanto nas atividades sociais do indivíduo, como no “gosto de mandar dar surra” e “de mandar arrancar dente de negro ladrão” (FREYRE, 1997, p. 51). Destaca-se, então, as palavras de Freyre (1997, p. 51): Resultado da ação persistente desse sadismo, de conquistador sobre conquistado, de senhor sobre escravo, parece-nos o fato, ligado naturalmente à circunstância econômica da nossa formação patriarcal, da 40 mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou do abuso do homem; criatura reprimida sexual e socialmente dentro da sombra do pai ou do marido. Sobre o arranjo familiar patriarcalista brasileiro, Caio Prado Júnior (2000, p. 287) afirma que o clã patriarcal, na forma em que se apresenta, é algo de específico da nossa organização. É do regime econômico que ele brota, deste grande domínio que absorve a maior parcela da produção e da riqueza coloniais. Em torno daqueles que a possuem e senhoreiam, o proprietário e sua família, vem agrupar-se a população [...]. Essa relação entre o patriarcalismo e o androcentrismo fica patente na medida em que se percebe o império das monarquias hereditárias na Europa e no Brasil, na chamada Idade Moderna, que para fins acadêmicos insere-se entre os séculos XV d.C. e XVIII d.C., a qual teve influência marcante na primeira Constituição brasileira. A Constituição Imperial de 1824, em seus arts. 116 e 117, dispunha o seguinte: Art. 116. O Senhor D. Pedro I, por Unanime Acclamação dos Povos, actual Imperador Constittucional, e Defensor Perpetuo, Imperará sempre no Brazil. Art. 117. Sua Descendencia legitima succederá no Throno, Segundo a ordem regular do primogenitura, e representação, preferindo sempre a linha anterior ás posteriores; na mesma linha, o gráo mais proximo ao mais remoto; no mesmo gráo, o sexo masculino ao feminino; no mesmo sexo, a pessoa mais velha á mais moça (BRASIL, 1824).10 Tem-se presente, no artigo 117, a preferência pelo sexo masculino em detrimento do sexo feminino já no século XIX d.C., no Brasil, no tocante à sucessão do trono do império. Até a Constituição Republicana de 1934, as mulheres não tinham nem seus direitos políticos assegurados. Em 1830 foi sancionado o Código Criminal do Império, o qual tinha como fundamentos a justiça e a equidade, conforme expresso no art. 179, §18, da Constituição Imperial de 1824. Porém, justiça e equidade não existiam quando a mulher era vítima de cópula carnal mediante violência, pois o Código fazia distinção entre as penas aplicáveis quando a vítima era mulher honesta e quando não era. Conforme o art. 222 do Código Criminal do Império: 10 Em conformidade com a grafia da época. 41 Ter cópula carnal por meio de violência ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas – de prisão por três a doze annos, e de dotar a offendida. [...] Se a violentada for prostituta. Penas de prisão por um mez a dous annos (BRASIL apud LAVORENTI, 2009, p. 182).11 Além disso, o art. 225 do mesmo código afirmava que o casamento com a ofendida excluía a punibilidade do crime. Segundo o art. 225 do Código Criminal do Império: “Não haverão as penas dos três artigos antecedentes os réos que se casarem com as offendidas” (BRASIL apud LAVORENTI, 2009, p. 182).12 Da mesma maneira, em 1890, regrou o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil quanto ao crime de estupro. Porém, tal codificação se distingue por uma norma que trata da responsabilidade criminal, a qual estipulava que “não eram criminosos os que se achavam em estado de completa privação de sentido e de inteligência no ato de cometer o crime” (LAVORENTI, 2009, p. 185). Isso poderia justificar uma agressão contra a mulher em adultério, na medida em que se entendia que a privação da razão poderia surgir da traição (LAVORENTI, 2009). O Código Penal de 1940, vigente até os dias atuais, trouxe essa mesma mentalidade que tratava distintamente mulher honesta e desonesta. Wilson Lavorenti (2009, p. 190) afirma que, nesse contexto, “honestidade não é uma qualidade que se aplique ao homem, que a tem sempre de forma presumida e inata, no sistema legal adotado”. Nessa época, a pureza sexual da mulher era elemento intrínseco à honra do homem, ou seja, a violação da castidade da mulher coloca o homem em situação de desonra. Isso justificou a chamada legítima defesa da honra como estratégia de defesa para aqueles maridos que agrediam ou matavam suas mulheres considerando-as infiéis. O acolhimento dessa tese de defesa encontra seu lugar até mesmo após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, como se vê, por exemplo, no julgamento da Segunda Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul que, em 25 de março de 1998, negou provimento ao recurso do Ministério Público, o qual alegou ser a tese da legítima defesa da honra manifestamente
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