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Higiene e Resistência do Organismo

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A EPIDEMIA DE DANÇA 
DE ESTRASBURGO DE 1518 
E OUTROS SURTOS BIZARROS 
{ Páginas 8 a 13 }
{ 2 }
PUB
{ 3 }
L
avar as mãos com frequên-
cia, manter o distancia-
mento social, mudar de 
roupa e de calçado à chega-
da a casa, utilizar máscara 
em locais fechados, usar luvas em cer-
tas circunstâncias. 
São estas, no essencial, as recomen-
dações à população para evitar o contá-
gio pelo novo coronavírus. Recomen-
dações sensatas. Que toda a gente 
deverá respeitar. 
E até há quem diga que muitas destas 
normas deveriam respeitar-se em to-
das as circunstâncias, ou seja, fora do 
período de pandemia, pois são regras 
básicas de higiene. 
Ora, julgo que um dos perigos desta 
pandemia da covid-19 é exatamente 
esse: criar um clima de medo nas po-
pulações que as leve a adotar regras 
que só se justificam em períodos de 
exceção. 
Mais: que podem tornar-se perigosas 
em períodos de normalidade. 
 
Conheci uma pessoa que tinha especiais cuidados de higiene. Quando chegava a casa mudava 
de roupa. Lavava o rosto e desinfetava 
as mãos com álcool. Fazia-o meticulo-
samente, sem nenhuma falha. Um dia, 
ainda relativamente nova, com pouco 
mais de 60 anos, foi fazer uma opera-
ção simples. A intervenção correu bem, 
só que, nos dias seguintes, começaram 
os problemas. E ao fim de uma semana 
faleceu. Causa: septicemia, isto é, infe-
ção generalizada. 
Aquela pessoa vivia numa redoma. 
Protegia-se em excesso. Não se expu-
nha a bactérias nem a vírus. E assim o 
seu organismo foi perdendo as defe-
sas. O seu sistema imunológico foi 
enfraquecendo. Os seus anticorpos 
para fazer frente a agressões exterio-
res ficaram reduzidos ao mínimo. E 
assim, um ataque ao qual outra pes-
soa resistiria com facilidade foi sufi-
ciente para a abater. 
 
Todos nós já vivemos experiên-cias afins — embora natural-mente sem as mesmas conse-
quências. Quando vamos a países 
africanos como Marrocos, Egito, Cabo 
Verde, Angola ou Moçambique, com 
enorme facilidade apanhamos uma 
gastroenterite. E porquê? Porque o nos-
so organismo não tem defesas contra 
certos bichinhos que lá são vulgares. 
Recordo uma viagem ao Egito com a 
minha mulher e o meu filho mais novo, 
em que a meio do percurso ambos fica-
ram prostrados, mal dos intestinos e 
cheios de febre. E aparentemente tí-
nhamos todos comido o mesmo. Mas 
havia uma diferença: uma salada fresca 
comida num barco de cruzeiro. Eles vi-
ram as saladas com ótimo aspeto e 
nunca pensaram que podia estar ali o 
perigo. E estava mesmo! 
 
Mas as populações daqueles países comem as mesmas saladas ou piores, bebem 
água da torneira, fazem trinta por 
uma linha e não adoecem. Porquê? 
Porque os seus organismos criaram 
anticorpos para resistir às bactérias e 
aos vírus que por lá circulam. Os 
seus organismos estão habituados 
àqueles ataques. Os nossos é que, vi-
vendo em sociedades com outros 
padrões de higiene, não estão prepa-
rados para os combater. 
Com o coronavírus passa-se o mes-
mo: os humanos estavam desarmados 
perante ele. Os sistemas imunológicos 
desconheciam-no, não tinham meios 
para lhe dar luta. E isso só será conse-
guido a pouco e pouco: quando os in-
fetados – com ou sem sintomas – 
atingirem os 60 ou 70% da população 
de cada país. 
Aí, as sociedades estarão preparadas 
para enfrentar o vírus com normalida-
de, independentemente da vacina. Até 
lá, estarão a ganhar resistências. 
 
De qualquer forma, quando este período agudo da pandemia passar, devemos voltar aos 
nossos hábitos de higiene. Não deve-
mos fechar-nos numa redoma esterili-
zada. O excesso de higiene pode ser tão 
ou mais perigoso do que a falta de hi-
giene. Devemos expor o organismo ao 
exterior. Porque isso, em vez de nos 
tornar mais fracos, faz-nos mais fortes, 
menos vulneráveis, mais resistentes às 
doenças. Caso contrário, os nossos cor-
pos irão perdendo gradualmente auto-
defesas. 
‘O que não mata engorda’ – dizia-se 
antigamente. 
As agressões de vírus e bactérias, 
quando não matam, fortalecem o or-
ganismo. 
Afinal, é esse o princípio das vacinas. 
Um dia, este coronavírus será igual a 
uma gripe vulgar – porque o nosso sis-
tema de defesa já terá criado meios para 
o derrotar. 
Só que, nessa altura, aparecerá pro-
vavelmente outro vírus a que não está-
vamos habituados… 
{ B.I. } VIVER PARA CONTAR 
A higiene perfeita
JOSÉ ANTÓNIO SARAIVA 
jas@sol.pt{ }
Quando o período agudo da pandemia passar, devemos voltar 
aos nossos hábitos de higiene. Não devemos fechar-nos numa redoma esterilizada. 
O excesso de higiene pode ser tão ou mais perigoso do que a falta de higiene
D
re
am
st
im
e
{ 4 }
Adolf Hitler 
O infame fim da besta!
dolf gostava de almoçar pontualmente: 
às 13h00, na companhia das suas 
secretárias Traudle Junge e Gerda 
Christian. Era tão fanático em questões 
de alimentação que também não 
dispensava a dietista, Fräulein Manziarly. Nenhuma 
delas sabia que nesse dia 30 de abril de 1945 fariam 
a última refeição com a besta que destruíra a 
Europa. Adolf sabia, claro! Já tinha preparado tudo 
para fugir como cobarde que era às consequências 
irremediáveis que planeara ao milímetro. 
A artilharia soviética massacrava o edifício do 
Reich, logo ali ao lado do bunker do canalha. Adolf 
quis saber quanto tempo seria possível resistir até à 
chegada do inimigo. O Brigadenführer das SS, 
Mohnke, foi o mais direto que pôde: «Talvez mais 
um dia...» 
AFONSO DE MELO 
afonso.melo@sol.pt{ }
Hitler suicidou-se há 75 anos, no dia 30 de abril, exatamente 
dez dias depois de ter festejado com champanhe o seu 
56.º aniversário. Cobardemente, abandonou o seu povo 
e os seus soldados, mesmo que tenha sido anunciada 
uma morte digna, em combate. Morreu como o canalha que era.
A
{ B.I. } EFEMÉRIDE
Notícias desencontradas 
mas que abalaram 
o mundo há exatamente 
75 anos
{ 5 }
Hitler chamou Martin Bormann, o seu secretário-
oficial, e explicou-lhe o que iria acontecer em 
seguida: suicidar-se-ia com um tiro nessa 
mesma tarde. Eva Braun, a sua amante de 
sempre, faria o mesmo. Depois, os corpos de 
ambos deveriam ser incinerados. Responsável 
pela operação: Sturmbannführer Otto Günsche. A 
ordem era inequívoca: os cadáveres deveriam 
ficar de tal forma irreconhecíveis que não 
pudessem ser exibidos em público, tal como 
acontecera na carnificina da Piazzola Loreto com 
o féretro de Benito Mussolini, apenas dois dias 
antes. O motorista de Hitler, Erich Kempka, tinha 
a missão de juntar gasolina suficiente para 
queimar os dois defuntos. 
Apesar da derrota incondicional e do opróbrio a 
que se via sujeito, Adolf quis manter uma última 
imagem de disciplina germânica para com aqueles 
que enfiara no seu covil ignavo até não haver saída. 
Envergando o habitual dólman e as calças pretas 
com botas até ao joelho, juntou o grupelho que o 
suportara até ao fim. Eva Braun estava ao seu lado, 
CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P 
Hitler morto em 
combate. Uma mentira 
digna de Goebbels que 
morreu no bunker com a 
sua mulher e seis filhos
{ 6 }
{ B.I. } EFEMÉRIDE
de vestido azul. Adolf estendeu a mão aos 
presentes: as suas secretárias, Joseph Goebbels, o 
Gauleiter de Berlim e seu Ministro da 
Propaganda, a mulher deste, Magda, e aos 
generais Burgdorf e Krebs. Depois enfiou-se no 
seu gabinete. 
Os seis filhos dos Goebbels - Helga, Hilde, Hellmut, 
Holde, Hedda e Heide, com idades entre os quatro e 
os doze anos, todos batizados com nomes iniciados 
por H, de Hitler - continuavam a correr 
ingenuamente pelos corredores do bunker. A mãe, 
uma adoradora fanática de Hitler, não tardaria a 
assassiná-los a todos com cápsulas de cianeto, 
antes de seguir o mesmo caminho. 
Eva Braun juntou-se a Adolf às 15h30. Tinham 
casado 40 horas antes. Não sesabe ao certo o que 
pretenderia Hitler com todos estes aprontos 
protocolares. Que a sua morte ficasse registada ao 
pormenor da História da Humanidade? A História 
da Humanidade tinha outras ideias para ele. 
Conceder-lhe uma divisão especial na grande fossa 
da ignomínia. 
 
UM CHEIRO A AMÊNDOA... 
Heinz Linge, o serviçal de Adolf, estava junto à 
porta do gabinete do Führer quando ouviu o 
barulho de um tiro. Passavam cinco minutos das 
três e meia da tarde. Lado a lado com Bormann, 
entraram no compartimento. Sentiram o cheiro 
intenso a amêndoa próprio do cianeto. Otto 
Günsche seguiu-os. Foi ele que reparou primeiro 
nos dois corpos sem vida estendidos no sofá. Eva, 
com as pernas encolhidas, parecia querer afastar-
se de Adolf. Da têmpora direita de Hitler escorria 
um fio de sangue. A sua pistola preferida, uma 
Walther PPK 7.65, estava caída a seus pés. A cabeça 
do animal tombara sobre a pequena mesa de apoio, 
na sua frente, e o sangue começava a pingar para o 
chão e a encharcar a carpete. Fräulein Braun não 
revelava qualquer tipo de escoriações. A morte 
devera-se simplesmente à cápsula de ácido 
prússico que havia ingerido. 
Gunsche tomou a decisão de reportar ao resto dos 
habitantes do bunker que Adolf estava morto. Em 
seguida, e obedecendo ás últimas ordens do 
A encenação que 
rodeou o suicídio 
do Führer 
foi digna de um 
filme barato 
e parolo
{ 7 }
Führer, os dois corpos foram retirados pelas 
escadas de serviço do edifício e levados para os 
jardins da chancelaria do Reich. 
Hitler estava finalmente morto, embora o mundo 
ainda não pudesse partilhar essa inequívoca 
alegria. Mas havia a missão ainda por cumprir de o 
fazer desaparecer da face da Terra o mais 
rapidamente possível. 
Os corpos de Adolf e Eva foram dispostos lado a 
lado, num toque amoroso que deveria ter sido 
dispensável de tão ridículo. Eva à direita do marido. 
A área era plana e o solo arenoso, como convinha 
ao processo. A cena macabra que se seguiu foi 
chefiada por Goebbels, pomposamente designado 
novo chanceler do Reich que deveria ter durado 
mil anos. Duzentos litros de gasolina foram 
despejados sobre o casal. Linge improvisou uma 
tocha à base de fósforos e papel. Bormann ficou 
responsável por atear o fogo àquela pira patética. O 
pequeno cortejo fúnebre gritou pela última vez a 
saudação nojenta: «Heil Hitler!» Estenderam o 
braço no cumprimento derradeiro. 
Agora era cada um por si. Krebs, que tinha sido 
adido militar em Moscovo, foi enviado por 
Goebbles e Bormann ao encontro do marechal 
Zhukov, chefe das tropas soviéticas, na 
tentativa de negociar uma rendição. A resposta 
foi curta: «Niet!» 
A Wehrmacht e o povo alemão só foram 
informados da morte de Hitler sete horas depois 
deste se ter baleado na cabeça. A mentira foi 
propagada com o descaramento próprio dos 
miseráveis: caíra no seu posto da Chancelaria do 
Reich lutando até ao seu último sopro de vida 
contra o bolchevismo. O almirante Dönitiz foi 
suficientemente vil para afirmar que se tratara uma 
morte heroica e que a sua queda fora digna dos 
mais elevados defensores da capital do Reich. Valeu 
um pingo de decência no meio de tanta encenação 
ordinária. O general Helmuth Weidling, 
comandante das Forças Armadas de Berlim, 
ordenou às suas tropas que cessassem os combates 
através de um telegrama que punha a nu a torpeza 
que se desenrolara: «A 30 de abril de 1945, o Führer 
pôs fim à sua própria vida e, por conseguinte, 
abandonou os que lhe haviam jurado fidelidade. De 
acordo com o alto-comando das tropas soviéticas, 
ordeno-vos consequentemente que parem de 
combater com efeitos imediatos». 
As versões seguintes em relação ao estado em que 
ficaram as carcaças de Adolf e Eva são dispersas e 
até contraditórias. O Hauptsturmführer Ewald 
Lindloff teve ordens para regressar ao local e 
sepultar o que restasse de ambos. Basicamente, 
limitou-se a juntar os restos de Hitler e da amante a 
um monte de numerosos despojos por identificar 
que tinham sido retirados do hospital que 
funcionava por debaixo da Nova Chancelaria do 
Reich. Uma rebaldaria de ossos e pedaços de carne 
calcinados atirados para as crateras entretanto 
abertas pelas bombas soviéticas que tinham 
devastado as redondezas do bunker. 
Os russos surgiram no local no dia 2 de maio. 
Iniciaram uma busca febril pelos restos mortais de 
Adolf e Eva. Era uma questão de honra. Mais ainda: 
era uma forma de evitar o renascimento do 
endeusamento de Hitler. Nove dias mais tarde, o 
adjunto do dentista do Führer, Fritz Echtmann 
declarou que estava em condições de identificar 
parte de um osso do maxilar e duas pontes 
dentárias de Adolph. As relíquias foram 
imediatamente enviadas para Moscovo e guardadas 
numa caixa de charutos, segundo o historiador 
inglês Ian Kershaw. Em 1946, escreveu Kershaw, 
descobriu-se parte de um crânio com um orifício 
de bala que se presumiu ser do Führer e que foi, 
igualmente enviado para Moscovo. Nada mais. 
Restava a realidade indesmentível: Adolf Hitler 
tinha sido mais nauseabundo e repelente vivo do 
que em morto. J
A grande 
preocupação de 
Hitler era que 
não pudessem 
fazer com o seu 
cadáver o que 
tinham feito com 
o de Mussolini
O bunker de Adolph 
Hitler foi revolvido por 
todos os que chegaram 
após a sua morte. Mas 
poucas conclusões se 
tiraram do seu suicídio 
que não tenham sido 
retiradas dos 
testemunnhos
{ 8 }
Epidemia da 
dança de 1518 
Uma espécie 
de milagre do avesso
gora, a estranheza já não nos pede 
licença. Abandonou os seus modos 
discretos, e ganhou uma soturna altivez. 
Não fica ao lado, puxando a manga, 
pedindo uma moeda ou um minuto da 
nossa atenção, prometendo que nos fará pasmar. Já 
não está com os mendigos, mas somos nós que, com 
um ar um tanto siderado, diante dos seus paraísos (ou 
infernos) dispersos mastigando-se, buscamos os seus 
sacramentos. Nesta hora, estamos imensamente 
sugestionáveis, porque a realidade que dávamos por 
garantida fez as malas e desapareceu. Tudo o que nos 
deixou foi um bilhete num tom quase sardónico. 
Nesta hora, todas as garantias de nada nos servem. E 
a rotina nunca nos pareceu tão mesquinha, e, no 
entanto, o quotidiano (...essa máquina de lavar) 
parece estar avariado. Ou estamos sozinhos ou 
entregues a uma «organização menor da lepra em 
família» (Mário-Henrique Leiria). Isolados, entregues 
a tarefas frágeis, nas «pequenas fábricas do 
acontecer». Repomos os stocks da «esperança 
empacotada», cozinhamos, comemos, lavamos os 
pratos, e a sensação é de que estamos «todos na 
panela sem tempero hoje» (ainda do mesmo poema 
– ‘Aviso Urgente’ – de Mário-Henrique Leiria). 
Enquanto isso, sabemos que há vítimas nesta 
história, mas, para a maioria, não chegámos ainda a 
essa parte. 
Por agora, estamos como a cobaia, numa tragédia que 
está ainda longe de lhe parecer familiar, e, por isso, os 
sentidos estão de novo alerta. Se alguns se viram para 
a poesia, para histórias que colecionam cartão e 
reinterpretam as sobras e o lixo como memórias de 
uma época que nos abandonou há semanas e que, 
por momentos, nos parece arruinada, outros viram-
se para esses fluxos de informação que narcotizam e 
envenenam, inoculando-os com o vírus paranoico. É 
nessas esquinas que «a narrativa cai na prostituição», 
e vai atrás das obsessões e medos de cada um. Como 
referia o romancista turco Orhan Pamuk, Nobel da 
Literatura em 2006, que há quatro anos está 
embrenhado na escrita de um romance sobre o 
terceiro surto da peste bubónica que, em 1901, matou 
milhões de pessoas na Ásia, se a tendência dos 
Governos, no início de uma pandemia, é para 
entrarem em negação, diluindo os números das 
vítimas entre outras causas de morte, outra das 
tendências que sempre se verificam na resposta a 
estas invasões que exploram ao limite a nossa 
incredulidade é a tendência para, ao despertarem, as 
populações ficarem propensas a embarcar em todo o 
tipo de rumores e nas teorias mais absurdas. Mas 
Pamuk nota que, se este estupor diante das 
pandemias do passadoera causado pela repercussão 
de informações falsas e a impossibilidade de ter uma 
visão mais global do fenómeno, hoje uma pandemia 
atinge-nos como uma avalanche de informação, e o 
terror tanto pode alimentar-se de mentiras como de 
verdades. «À medida que vemos os pontinhos 
vermelhos nos mapas dos nossos países e do mundo 
a multiplicarem-se, damo-nos conta de que não há 
para onde fugir. Já nem precisamos da nossa 
imaginação para começarmos a recear o pior dos 
DIOGO VAZ PINTO 
diogo.pinto@sol.pt{ }
Há 500 anos, em Estrasburgo, mais do que a miséria 
e a fome, a ansiedade diante da perspectiva da morte 
sem qualquer redenção, e de uma eternidade 
de castigo, deu origem a uma das mais fascinantes 
epidemias da História. Olhando para o passado, somos 
lembrados de que a natureza humana foi sempre capaz 
de engendrar crenças tão devastadoras como as piores 
pestes. E neste período de incerteza, estão reunidas 
todas as condições para uma nova criação cheia 
de poder destrutivo.
A
{ B.I. } SURTO
{ 9 }
cenários. Vemos os vídeos das caravanas de carrinhas 
militares a transportarem os corpos dos pequenos 
povoados italianos para crematórios nas imediações 
como se estivéssemos a assistir à procissão do nosso 
próprio funeral». 
 
A HISTÓRIA COMO CONSOLO 
Agora que estão a ser ensaiadas as primeiras medidas 
de alívio no regime de quarentena, sempre sob a 
ameaça de uma nova vaga de contágio que possa 
reconduzir-nos ao confinamento, é importante 
pensar nos efeitos a longo prazo desta forma de 
suspensão da normalidade, e recordar epidemias 
psíquicas ou nervosas que foram desencadeadas por 
esta alvorada súbita que lançou o amanhã no reino das 
incertezas. Agora que «a ruminação se tornou a 
moeda em circulação nesta nova realidade», Pamuk, 
como tantos outros autores, incita-nos a tirar algumas 
lições de um tempo em que não havia jornais, rádio, 
televisão ou internet, em que a maioria iletrada estava 
à mercê da sua imaginação, dependendo desta para se 
guiar, para tentar lançar algum contorno a uma 
ameaça invisível, e cujos avisos que servia muitas 
vezes, estavam a um respiro da própria destruição e 
tormento que causava. «Esta fé na imaginação dava 
aos medos de cada pessoa uma voz individual, e 
imbuía-a de uma qualidade lírica – localizada, 
espiritual e mítica», diz-nos Pamuk. Neste momento, 
a quietação nas nossas ruas monta o palco para o 
desassossego das conjeturas e intrigas que a 
imaginação é capaz de levar à cena dentro de cada um 
de nós. Quer queiramos quer não, nos próximos 
meses e com a sucessão dos surtos do novo 
coronavírus, iremos mergulhar, divididos em grupos, 
e suspensos de «arneses oscilantes», nesta nova, 
complexa e desoladora realidade, a História serve-nos 
sempre de consolo, quanto mais não seja ao lembrar-
nos que, mesmo a sul do hemisfério de todas as 
nossas certezas, além de longas campanhas, sempre 
tivemos exploradores e assentadores de colónias. Seja 
Ao longo 
da História, 
a humanidade 
desencantou 
uma série 
de epidemias 
psíquicas 
ou nervosas
CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P 
{ 10 }
como for, para cada um de nós, enquanto esperamos 
que os especialistas nos façam chegar as legendas para 
esta nova realidade, como referiu a romancista norte-
americana num ensaio publicado pela The New 
Yorker, «ainda ninguém sabe como ou quando a 
pandemia de Covid-19 irá terminar». E isto quer dizer 
que fomos reconduzidos a esse território hoje 
desativado pela teologia católica, mas que permanece 
algures no terreno da imaginação: o limbo. E «o limbo 
é um sítio difícil onde buscar residência», como nota 
Russell, adiantando que é também difícil descrever 
esse lugar feito do que não se sabe a alguém que 
acabou de ali chegar. 
 
UM FIO DANÇANTE 
QUE SÓ A MORTE CORTOU 
Não desistindo, para já, desse propósito, podemos 
recuar um pouco mais de 500 anos, e desentranhar 
um dos mais insólitos capítulos de entre esses 
acontecimentos que conferem à estranheza todos os 
meios e recursos para atirar com a razão de volta a 
um estado de quase hipnose, vagando em espanto 
entre formulações fantasiosas e meros efeitos de 
superstição. A 14 de julho de 1518, na cidade de 
Estrasburgo, uma mulher perdeu de todo o juízo. 
Desfê-lo em fanicos. Perdeu-o como tantas 
mulheres ao longo da História, não propriamente 
num surto de sandice, mas talvez mais por um 
excesso de razão. E perdeu-o de forma admirável, 
lendária. Na manhã desse dia, Frau Troffea deu uns 
passos para fora da sua casa, e como não havia saída, 
não havia fuga, pôs-se a dançar sobre a calçada. 
Deixou a residência como quem bate com a porta 
para estalar alguma aflição, e não precisou de 
qualquer acompanhamento musical para traduzir 
numa solitária valsa o seu desespero. Ainda que o 
marido tenha vindo atrás dela e lhe rogasse 
insistentemente que se deixasse de figuras, ela 
continuou ao longo de horas, como quem chama a 
graça para se libertar de alguma maldição, e logo o 
céu escureceu e com a noite esta mulher acabou 
finalmente por colapsar ficando o seu tumulto 
reduzido a uns tremores e espasmos de exaustão. 
Mas com o amanhecer lá estava ela tomada desse 
fulgor de aparição, com os pés inchados, magoados, 
pisados pela claridade que dançava com ela, e nem a 
sede ou a fome a impediam de se queimar naquela 
fogueira. No terceiro dia, aquele estranho transe 
criou a sua embaixada de rumores. Por toda a cidade 
começou a ouvir falar-se da louca que se tinha posto 
a dançar sozinha na rua, e de entre os vendedores 
ambulantes, os putos e os mendigos, peregrinos e 
padres, foi-se formando uma assistência, que 
facilmente imaginamos ora inquisitiva e perplexa ora 
divertida, entre o abanar de cabeça e o comentário 
jocoso diante desse tão descabido apontamento 
rítmico para uma música em falta. Frau Troffea 
persistiu ao longo de entre quatro a seis dias, 
dependendo dos diferentes relatos, até que as 
autoridades decidiram intervir, levando-a à força 
para uma carroça que a levou para Saverne, a uns 
bons quilómetros de distância, para que, na catedral 
dedicada a São Vito, pudesse recobrar da sua 
afecção. Acreditava-se que este santo protegia os 
possessos de um sentido da graça, fossem atores, 
comediantes, dançarinos. Era a ele que rogavam 
aqueles que eram afligidos pela epilepsia, por essas 
maldições que atingiam os espíritos que pareciam ter 
transbordado. Por esses tempos, contava-se que o 
santo estaria encolerizado com o ambiente de 
dissolução que reinava, em que não eram apenas os 
fiéis que tinham mais propensão pelos vícios que 
pelas virtudes, mas os próprios padres não se 
atrapalhavam ao serem vistos a sair dos lupanares. 
Mais do que temores, havia a expectativa de um 
ajuste de contas, de uma danação que estaria por vir. 
Circulavam estórias de pessoas acometidas por 
estranhas perturbações, almas que podiam ouvir os 
demónios disputando-as num leilão. Falava-se de 
pragas em que as vítimas perdiam o controlo dos 
seus corpos, e era àquele santo que eram devidas 
libações. Nos insultos, nas pragas que os habitantes 
de Estrasburgo trocavam, o culto de São Vito recaiu 
numa espécie de maldição que se desejava a quem 
quer que desse mostras de mau caráter. «Que Deus te 
entregue à fúria de São Vito», era uma frase que se 
cuspia sobre um inimigo. E havia uma tamanha 
desconfiança das próprias autoridades eclesiásticas, 
que muitos dos crentes acreditavam que, caso 
morressem estariam condenados, isto porque nem os 
seus batismos ou outros sacramentos tinham 
qualquer validade, uma vez que tudo parecia estar 
mergulhado num clima de profanidade. Esse 
pessimismo teria evoluído para uma forma de 
misticismo, o que tornava as pessoas suscetíveis à 
{ B.I. } SURTO
{ 11 }
ideia de que o juízo de São Vito acabaria por se abater 
sobre elas. 
Se as autoridades afastaram a mulher, pondo cobro 
àquele talismânico desacato, o certo é que houve 
testemunhas que ficaram de tal forma 
impressionadas que não deixaram que aquele ritual 
se perdesse, e entregaram-se aesse fervor, o que 
levou a que, no espaço de alguns dias, em vez de uma 
mulher solitária, mais de trinta pessoas estivessem 
ligadas nesse fio dançante, e algumas tomadas de um 
tal frémito que só a morte soube convencê-las a 
parar. Dançavam como se os seus corpos se fossem 
romper em mil pedaços. As paragens eram decididas 
pela exaustão, e logo que se recompunham 
retomavam o seu lugar naquele frenesim. Nas tantas 
descrições em documentos históricos – sejam 
crónicas locais, observações médicas ou os sermões 
com que os curas sempre se refortaleceram como 
pioneiros da propaganda –, os corpos surgem como 
vestes pesadas sobre o espírito, corpos que se despem 
ou descarnam, e em que o suor quase lhes lavava os 
traços do rosto. O que parecia uma celebração à 
distância, ao perto entrava em detalhes ominosos. Os 
olhos vidrados, perdidos numa distância impossível 
de situar. A dança era o próprio chicote. As roupas 
cobriam-se de sangue. Era um ritual em que o prazer 
maníaco estava em desfigurar-se. E, assim, os 
rumores cativaram todo um caldo de crenças 
envilecidas, com raízes no sobrenatural. Era preciso 
apaziguar a raiva divina, e com os dias a transformar-
se em semanas, já não eram dezenas mas centenas 
de pessoas a dançar. Mais de duzentas. E agora era a 
cidade inteira que parecia estar a resvalar para esse 
delírio frenético, sem que ninguém soubesse explicar 
exatamente as suas causas, ou como curá-lo. 
 
A FOME E O DIVINO 
Chegamos a este ponto e a narrativa, não fosse pelo 
aspeto verídico, tem um cheiro a descolado. É aquele 
ponto em que a realidade pesa mais do que qualquer 
explicação. E o leitor, sensível mas pragmático, pensa 
nesses cultos descocados em que o lobo se disfarça de 
pastor conduzindo o rebanho para o precipício da 
razão, tendo o cuidado de instruir as ovelhas a 
tosquiarem-se a si mesmas e deixarem a lã e os 
restantes bens ao seu cuidado. Nesses estados de 
transe, o corpo é um trapo a secar ao vento, 
aliviando-se do sangue negro que o mancha, da dor, 
da exaustão, do sentido de privação e abuso que a 
sociedade comete contra o indivíduo. Está explicado: 
é o ópio e tal. E, contudo, há uma margem de 
incerteza que persiste, um mistério que, mais de 
cinco séculos depois, continua a puxar-nos de volta 
para esse e outros surtos epidémicos difíceis de 
compreender, e que nos dizem que um vírus ou uma 
crença são igualmente capazes de nos puxar para 
uma dança à beira do abismo. De resto, o historiador 
John Waller, que em 2009 publicou a grande obra de 
referência sobre a epidemia da dança de 1518, ‘A 
Time to Dance, a Time to Die’, escolheu abrir o livro 
com uma citação de H.C. Erik Midelfort, de A History 
of Madness in Sixteen-Century Germany (1999), em 
que a prepotência com que encaramos o passado é 
alvo de um veemente aviso: «Todas as formas de 
demência do passado não devem ser tomadas como 
entidades petrificadas que podem ser colhidas dos 
seus nichos e colocadas debaixo dos nossos 
microscópios modernos. Elas parecem-se mais, 
talvez, com medusas que colapsam e secam ao serem 
removidas da água salgada onde nasceram.» 
No período em que a epidemia da dança eclodiu, 
havia um sentimento de suspeita generalizado, uma Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), 
disse ter presenciado um surto semelhante em 1564, 
e deixou disso retrato (em cima)
Depois 
da primeira 
vítima, uma 
mulher, mais 
de trinta pessoas 
entregaram-se 
com fervor 
ao macabro 
espetáculo
CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P 
{ 12 }
{ B.I. } SURTO
desconfiança das instituições, a começar pelo clero, 
bastante permeável a todo o tipo de indiscrições 
morais, luxos, opulência, e o contágio da hipocrisia 
em que a linguagem, os apelos, as virtudes 
propaladas, tudo respira um ar de falsidade. Havia 
fome, e depois havia esses discursos que nos 
atravessam com a sensação de miséria profunda que 
caracteriza o abandono do espírito, da ideia da 
divindade como última consequência de busca da 
verdade. O exemplo da pobreza de Cristo era 
esfregado na cara dos crentes, isto quando famílias 
inteiras sucumbiam. E depois da morte, ainda tinham 
de recear pelas suas almas, quando os responsáveis 
por dar às pessoas os sacramentos não passavam de 
uns porcos. Que castigo não seria se depois de uma 
vida miserável ainda fossem condenados ao inferno 
por esses «condutores de noite aprisionada». 
 
A SANGRIA E UM RITUAL MALDITO 
Mas esta história não acaba assim. A epidemia da 
dança trouxe uma espécie de reviravolta. O conselho 
da cidade assumiu a responsabilidade de encontrar 
uma cura para a maldição. Afinal, Frau Troffea havia 
recuperado depois de ser levada para as montanhas. 
Inicialmente, viraram-se para os médicos, que, por 
esses dias, eram pouco mais do que uma ordem 
xamânica, com a vantagem de ter muitos associados, 
beneficiando, portanto, de muitas observações mas, 
também, sujeita a embarcar nos seus próprios delírios 
epocais. A opinião dos médicos da região era de que 
tudo não passava de «sangue excessivamente 
quente». Nestes casos a prática mandava que fosse 
prescrita a sangria dos pacientes, mas, talvez por 
questões logísticas, deverá ter parecido que a forma 
mais fácil de lidar com o problema seria incentivar a 
continuação da dança até que, por efeito de 
exsudação, a coisa fosse ao lugar. Para o efeito, o 
conselho pagou a carpinteiros e curtidores para que 
erguessem palcos temporários nos salões da sua 
guilda, além de plataformas junto ao mercado e à 
vista de toda a gente. Ali, os amaldiçoados dançarinos 
foram até encorajados a prosseguir o seu demente 
exercício, e para ajudar à recuperação, dezenas de 
músicos foram pagos para tocarem tamborins e 
pandeiretas, violinos, flautas... Para lhes dar ânimo, 
foram até contratados dançarinos para dar alguma 
cor e harmonia aquela estranha forma de carnificina. 
A esperança das autoridades era criar as melhores 
condições para que aquele ritual maldito se esgotasse 
e diluísse numa cerimónia menos desoladora. Mas o 
plano saiu gorado. Pior do que isso agravou ainda 
mais as coisas. Mais inclinadas para embalar na 
explicação sobrenatural do que na pobre teoria clínica 
dos médicos locais, o público caiu naquela espécie de 
pavoroso encantamento. Também eles queriam 
esquivar-se à fúria de São Vito, sacrificando-se. 
Quem muito peca invariavelmente entra pela morte 
com pele de galinha. Às tantas eram quatrocentas as 
pessoas a dançar em simultâneo nos palcos 
distribuídos pela cidade. A conversa do sangue 
quente já não pegava. E o clero que, até ali, se tinha 
mantido um tanto à margem, tomando a doença 
como uma abominação, viu alguns padres saírem da 
formação para prestar auxílio aos afligidos. Em vez de 
desconsiderarem os seus delírios, convenceram-nos 
a calçar uns sapatos vermelhos que haviam sido 
Chegaram a ser 
quatrocentas 
pessoas 
a dançar em 
simultâneo 
nos palcos 
improvisados 
pelas 
autoridades
Em cima, uma representação da histeria 
em massa de um autor desconhecido. 
Ao lado: gravura de Henricus Hondius 
(1597-1651) a partir do esboço de Pieter 
Brueghel, o Velho
{ 13 }
benzidos e a seguirem-nos numa peregrinação até 
Saverne e ao mosteiro dedicado a São Vito. Não era 
uma tarefa simples subir as montanhas num grupo 
de centenas, muitos seriamente desgastados ao fim 
de semanas de exercício intenso. Foi organizado um 
extravagante ritual, como uma serpente avançando 
por entre uma nuvem de incenso, com as velas como 
escamas a luzirem ao longe. E esta marcha solene não 
apenas deu rédeas às pessoas sobre os seus 
movimentos como sobre o desespero que as tomara. 
Mas também os padres, empunhando relíquias e 
imagens religiosas, se deixaram reconverter à fé que 
pregavam e, assim, a epidemia serviu para devolver a 
Igreja às pessoas. 
A epidemia da dança de Estrasburgo durou mais de 
um mês, em dias de calor tórrido, entre meados de 
julho e finais de agosto ou início de setembro. No seu 
auge, morriam de exaustão ou enfarte, cerca de 15 
pessoas por dia. O balanço final demortos não se 
conhece, mas basta somar as mortes diárias durante 
o mês de Agosto para chegarmos às centenas. 
Também nós já começámos a endereçar ao vírus 
algumas orações. Não é que o vírus seja uma 
manifestação divina, um castigo que se abateu sobre 
quem dança violentamente, num ritmo cada vez 
mais acelerado, e que há muito ignora todo o 
compasso musical, tendo-se incompatibilizado com 
qualquer harmonia superior que desvele os 
compassos da unidade da criação. Não é que 
acreditemos em milagres, simplesmente, a 
humanidade que nos resta não consegue deixar de se 
horrorizar com o crime da nossa época, o crime 
contra as gerações mais novas, as gerações futuras. 
Este crime de termos embalado numa forma de 
«niilismo que tragou a realidade inteira, 
transformando a natureza num cadáver e 
aniquilando o presente» (Claudio Magris). Não é que 
o vírus não seja um flagelo, um desastre sem sentido. 
É que a humanidade não sabe fazer outra coisa, 
sobretudo em períodos de incerteza, do que organizar 
a realidade contando-se histórias, lendo os seus 
sinais, criando paralelos, à luz dos seus mitos e 
crenças. E o vírus veio sublinhar o que já sabíamos. A 
imensa ansiedade com que estávamos a viver fica a 
um passo do desespero absoluto. Depois disso, se não 
houver um vírus que nos faça parar, seremos nós a 
conceber um. Uma espécie de milagre do avesso. J
Epidemia de riso de Tanganica 
Na região da Tanganica, atual Tanzânia, em 1963, 
duas adolescentes de uma escola missionária 
desataram a rir descontroladamente. Os colegas 
foram contagiados e de repente dois terços da 
escola estava a desfazer-se em gargalhadas. 
A escola foi fechada. Em casa, os alunos ‘infetaram’ 
as suas famílias e vilas inteiras foram tomadas pela 
histeria. Os médicos registaram centenas de casos, 
com duração média de uma semana.
Epidemias bizarras
‘Koro’ de Singapura 
Koro é uma ‘maldição’ que envolve a retração 
do pénis, mamilos ou vulva. No caso da 
‘epidemia’ de 1967 em Singapura, o British 
Medical Journal relatou no ano seguinte que 
«uma súbita sensação de retração do pénis 
no abdómen» era a principal característica. Isto, 
a juntar-se à ideia de que «se não fosse feita 
alguma coisa, o pénis desapareceria no abdómen 
levando à morte», levou a que os contagiados 
tentassem impedir o encolhimento, 
 recorrendo a objetos como tenazes e elásticos.
Freiras a imitar animais 
As condições em que as freiras da França e da 
Alemanha viviam no confinamento dos conventos 
a partir do século XV parece tê-las tornado 
especialmente suscetíveis a surtos de histeria 
em massa. Um cronista, escrevendo em 1844, relata 
os rumores que lhe chegaram de um convento em 
França tomado por uma dessas ‘pragas’ que a Igreja 
associava a possessões demoníacas, e em que uma 
a uma as freiras eram tomadas por um furor que as 
levava à imitação de gatos. Houve relatos de outras 
situações com a imitação de cães e pássaros.
A epidemia 
de dança 
de Estrasburgo 
durou mais 
de um mês 
e chegou 
a matar 15 
pessoas por dia 
{ 14 }
{ B.I. } HISTÓRIA
total da polícia. A nobreza e a decência viajavam 
nas carruagens dos vencidos. 
Ngungunhane, ou Gungunhana, o Leão de Gaza 
tinha medo. Um medo terrível da morte. Estava 
convencido de que iria ser fuzilado em Lisboa. 
Suplicou pela vida. Pediu a António Enes, Ministro 
da Marinha e do Ultramar que o levasse à presença 
do Rei D. Carlos. Perguntou, angustiado: «Digam-
me o que querem de mim. Vou morrer? Para que 
lhes sirvo eu?» 
Aires de Ornelas, outro militar que se distinguiu 
nas campanhas de África, descreveu-o desta 
forma. «É um homem alto. E sem ter as magníficas 
feições que tenho notado em tantos seus, tem-nas, 
sem dúvidas, belas, testa ampla, olhos castanhos e 
inteligentes e um certo ar de grandeza e 
superioridade». 
Mdungazwe Ngungunyane Nxumalo, ou 
N’gungunhana, ou Gungunhana ou ainda Reinaldo 
Frederico Gungunhana cometera o crime 
imperdoável de herdar o reino de Gaza, esse 
território a sul de Moçambique, uma área costeira 
entre os rio Zambeze e Lourenço Marques, que se 
considerava independente desde que Soshangane, 
igualmente chamado de Minicusse, em 1828, o 
manteve separado dos zulus, integrando o reino de 
Tsonga, comerciando marfim com os portugueses 
que se tinham estabelecido na costa, de Lourenço 
Marques a Inhambane. Soshangane era zulu, foi 
muito próximo de Shaka Zulu, o guerreiro que 
criou um exército capaz de fazer tremer o império 
britânico, mas tinha uma etnia particular: jamine. 
Anunciou-se como Rei de Gaza e acabou por ter 
apenas três sucessores, Mawewe, Muzila e o seu 
filho Mundungazi, o Gungunhana, homem de 
todos os nomes. 
O Gungunhana era poderoso: reinava sobre mais de 
90 mil quilómetros quadrados e mais de milhão e 
meio de habitantes. Aos 34 anos tomou o lugar do 
pai e logo numa altura em que o território de 
Moçambique era extremamente cobiçado por 
ingleses e alemães que procuravam minar a 
presença portuguesa. Barros Gomes, Ministro dos 
Negócios estrangeiros, assinou com Otto von 
Bismark um pacto de delimitação das colónias dos 
dois países, Portugal avança com o projeto do Pacto 
Cor de Rosa e a Inglaterra apresenta o ultimatum a 
11 de janeiro de 1890. A situação é anárquica. 
Diplomaticamente, os portugueses procuram a 
aproximação aos vátuas, povos que falam as 
línguas angunes, e ao seu novo régula, o Leão de 
Gaza. As imposições britânicas são claras: retirada 
imediata e total das forças portuguesas da 
Niassalândia e da zona do atual Zimbabué, ocupada 
pelos macololos e pelos machonas. Entretanto 
elegem a região de Gaza e o porto de Lourenço 
Gungunhana
rotesco: parece ser esta a palavra que 
vem a calhar. Pelas ruas de Lisboa, 
desde o Arsenal até Monsanto, dava a 
sensação de que se repetia uma cena 
da velha Roma imperial. César segue 
na frente da comitiva, exibindo os seus exóticos 
prisioneiros como troféus. Os basbaques juntam-
se, de baba bovina ao canto da boca, admirando a 
grandeza dos seus heróis, desprezando a dignidade 
dos derrotados. Uma das imagens mais salientes da 
história colonial portuguesa não passou de uma 
pantomima grosseira. 
A tarde está no fim. Corre o dia 13 de março de 
1896. Seis carruagens abertas, escoltadas por 30 
praças de cavalaria, percorrem o traçado 
previamente definido ao longo da capital: as três 
primeiras exibem à populaça feroz dez mulheres de 
ar altivo, enfeites vistosos, altas, bonitas, 
carapinhas bem penteadas e, segundo um 
testemunho da época, mais castanhas do que 
pretas; a quarta é ocupada por Gó, o cozinheiro; a 
quinta transporta bagagens, sobretudo trouxas e 
esteiras para dormir; fechava a parada bacoca uma 
carruagem onde viajavam os ilustres capturados - 
Matibejane, Molungo, o Gungunhana e o seu filho 
Godide. Como selvagens, os que se juntavam para 
assistir a esta anacrónica procissão insultavam os 
prisioneiros e atiravam-lhes lixo sob a passividade 
AFONSO DE MELO 
afonso.melo@sol.pt{ }
À maneira dos desfiles da Roma Imperial, Lisboa 
foi palco de uma das mais reles exibições 
de prepotência. O régulo e o seu séquito foram 
exibidos como troféus de caça, do Arsenal à Cadeia 
de Monsanto, em carruagem abertas que provocaram 
o caos nas ruas entre curiosos e gente cheia de ódio 
que fez chover insultos do pior.
G
PRESO NO CIRCO, 
O LEÃO DE GAZA 
MORREU BÊBADO
{ 15 }
Marques para escoamento das matérias-primas do 
Transvaal. Cecil Rhodes, que não era conhecido 
pelos seus escrúpulos, tratou de comprar o 
Gungunhana com um milhares de espingardas e 
um subsídio anual em dinheiro em troca da 
exploração de minérios e acesso ao mar. 
O Leão de Gaza tem o peito cheio de vento. Pensa 
poder jogar as sua pedras no conflito diplomático 
que existe entre Lisboa e Londres. Mas Lisboa e 
Londres entendem-se sem que ele o saiba. Gaza é 
considerada território interior de Moçambique no 
acordo assinado em junho de 1891. O Gungunhana 
recebe uma intimação inesperada: deve assumir-se 
como súbdito português! Era humilhante. Buliu-lheprofundamente com o orgulho. 
 
A QUEDA! 
«U Ngungunhane! Uya Ngungunya e bafazi ne 
madoda!», gritavam os vátuas em honra do seu 
régulo. «Tu és o Gungunhana! Aterrorizarás as 
mulheres e os homens!» 
A presunção era exagerada. Gungunhana tornara-
se demasiado incomodativo para o Governo 
português e para a sua política colonial. Georges 
Liengme, médico missionário suíço, que viveu no 
Império de Gaza, analisou-o atentamente: «Toda a 
sua política é de tal modo falsa, absurda, cheia de 
duplicidade que se tornava difícil entender os seus 
verdadeiros sentimentos». O coronel Eduardo 
Augusto Rodrigues Galhardo não estava mais 
preocupado com as chicanas políticas do régulo. 
Comandava uma coluna de 700 homens que, no 
dia 11 de novembro de 1895, abre as primeiras 
hostilidades em Manjacaze, capital de Gaza, e a 
fuga dos locais é generalizada. A pilhagem é total. 
As palhotas são incendiadas. O Gungunhana treme. 
Refugia-se em Chaimite, a aldeia sagrada dos 
jamines. Mas é um homem condenado. António 
Enes ordena a sua captura ou a sua morte para que 
o receio de o ver reunir os povos ngúnis e seus 
aliados não volte a atormentar-lhe os sonhos. O 
major de cavalaria Joaquim Augusto Mouzinho de 
Albuquerque é o homem escolhido para a missão. 
Fulano vaidoso, dado a ligeiras libações alcoólicas, 
decide fomentar um espetáculo para a História. 
Parte em direção a Chaimite no dia de Natal. Leva 
consigo apenas dois tenentes, um médio, 49 praças 
portuguesas e 200 auxiliares africanos. A sua 
imaginação podia conceber os quadros 
napoleónicos que pintariam (e pintaram) para 
eternizar a sua façanha. 
O Gungunhana tinha decidido render-se e já 
informara o exército português da sua intenção, 
pelo que a teatralidade de Mouzinho foi 
francamente exagerada. Pelo caminho foi abordado 
por Godide, o primogénito de Gungunhana, 
sucessor do trono de Gaza. Era uma tentativa 
desesperada para que os portugueses não 
entrassem em Chaimite antes de o pai estar 
preparado para se render com o mínimo de 
dignidade. Trazia, para selar a súplica, 510 libras 
em ouro e 63 búfalos. Mouzinho de Albuquerque 
desprezou a oferta. No dia 28 estava às portas da 
aldeia. Ainda havia um foco grande de resistência. 
Conta a lenda que, ao nascer do sol do dia seguinte, 
infiltrou-se por uma fresta aberta na paliçada que 
rodeava o povoado e pela qual apenas podia passar 
um homem de cada vez. Os soldados seguiram-no 
e a surpresa foi avassaladora. 300 guerreiros fogem 
cada um para seu lado, o Gungunhana é feito refém 
com a sua família à porta da cabana onde estava 
refugiado, mas Albuquerque quer sangue para 
pintar o quadro. Manda fuzilar, sem julgamento, 
Mahune e Queto, respetivamente conselheiro e tio 
do imperador, considerando-os os instigadores da 
rebelião de Gaza contra os portugueses. Não lhe 
chega. Precisa ainda de mais dramatismo: manda 
que lhes tirem os corações dos peitos e os 
trespassem à espada. 
Às 10 horas da manhã, Chaimite estava arrasada. 
Mouzinho e o seu grupo arrastam consigo os 
prisioneiros até à lancha-canhoneira Capelo, 
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{ 16 }
{ B.I. } HISTÓRIA
Ainda assim foram expostos num palanque erguido 
frente ao palácio do governador e sujeitaram-se ao 
tribofe de mais de oito mil pessoas excitadas até à 
medula óssea. 
O Gungunhana e as suas gentes já estavam 
dispostos a suportar todas as aleivosias nesta 
exibição mazomba do poderio do grande império 
português que ainda cinco anos antes tinha 
rastejado de forma sabuja perante a que ficou 
conhecida como pérfida Albion. Mas seguia-se algo 
que, para eles, mexia com todos os tabus: a viagem 
para Lisboa. Os nobres ngunis estavam proibidos de 
atravessar o mar. E um naco do Índico e a maior 
parte do Atlântico abria-se na sua frente como um 
vácuo ameaçador. No dia 13 de janeiro foram 
embarcados à força no África com mais 284 
passageiros e 215 militares. Sofrem horrores, mas 
não é problema que incomode os seus algozes. O 
navio fundeia ao largo de Cascais no dia 12 de 
Março. Iria começar a pândega... 
Toda a gente queria ver, nem que fosse pelo 
canto do olho, o terrível Gungunhana. O África é 
rodeado por botes e barcos a remos apinhados de 
curiosos. Um grupo de jornalistas é autorizado a 
subir a bordo para observarem e escreverem 
sobre as feras aprisionadas que tinham vindo de 
Gaza. As condições que descrevem são de 
envergonhar reles piratas. Os 16 reféns estão 
confinados a um espaço minúsculo com dois 
patamares de beliches. Nas esteiras superiores, 
viajaram o régulo e as suas mulheres. Nos 
estacionada em Zimacaze, nas margens do rio 
Limpopo. O Leão de Gaza, temido por toda a 
África, insubmisso ao homem branco, começava a 
sua longa jornada para Lisboa. O episódio da sua 
captura transformou Mouzinho de Albuquerque 
numa das grandes personagens da história de 
Portugal. E ele soubera fazer muito para que tal 
acontecesse. 
 
UMA QUESTÃO DE MULHERES! 
Namatuco, Machacha, Patihina, Xisipe, Fussi, 
Muzamussi e Dabondi: eis os nomes das sete 
mulheres que o Gungunhana pôde escolher para 
saírem consigo de Chaimite. Godide, o filho, e dois 
tios, completam o grupo dos capturados. A marcha 
é acelerada. Os portugueses não demonstram 
qualquer tipo de sensibilidade para com os 
prisioneiros. Um simples atraso ou tropeção é 
castigado a pontapés ou a coronhadas. 
Chegados a Zimacaze, havia centenas de pessoas 
atraídas pela curiosidade de verem o rei deposto e 
humilhado. A Capelo navegou até à foz, parando 
pelo caminho, em Languene, para recolher o 
príncipe Matibejane de Zixaxa, e três das suas 
mulheres, alargando o leque de reféns. No dia 31 de 
dezembro, em Chai-Chai, todos foram transferidos 
para bordo do vapor Neves Ferreira que os 
transporta para Lourenço Marques pelo meio de 
uma tempestade. Também na capital moçambicana 
está preparada uma cena de circo, embora numa 
escala bem mais modesta do que a de Lisboa. 
Gungunhana: o terrível régulo 
assassino que foi pintado como 
um dos grandes inimigos 
do império português. 
Depois de preso, revelaram-se 
todas as suas infinitas fraquezas
Gungunhana e algumas das suas mulheres. 
Teve mais de 200 esposas. Acabou sozinho
{ 17 }
beliches inferiores aguentaram-se como 
puderam Godide, o príncipe Metibejane com as 
suas três mulheres, Pembane, Oxaca e Debeza, 
Molungo, tio de Gungunhana, e Gó, o cozinheiro. 
O cheiro era insuportável. No Diário de Notícias, 
uma reportagem descrevia o seguinte: «Quando 
entramos nos alojamentos estavam todos os 
pretos deitados e o Gungunhana, que ocupava 
uma extremidade da tarimba, tinha o rosto 
coberto. Alguém lhe descobriu a cara e o preto 
despertou, olhando para todos com olhos 
desconfiados. Pouco depois, como os jornalistas e 
outras pessoas admitidas a bordo eram cada vez 
em maior número e o espaço faltasse, foi 
ordenado que subisse a pretalhada para a tolda, 
onde se faria a sua exibição». O nome do escriba 
tem direito ao prémio dos birbantes: o 
anonimato. 
Toda a história da captura de Gungunhana, o 
Imperador de Gaza, ensinada com tanto enlevo e 
empenho nos tempos tão distantes da minha 
Escola Primária, fica marcada por uma torpeza e 
uma indignidade que deviam envergonhar-nos 
quanto povo perante a forma praticamente 
esclavagista como o régulo e o seu séquito foram 
tratados. Com o tempo, algum pudor cobriu os 
acontecimentos com um diáfano manto de 
comedimento e o estilo napoleónico de Mouzinho 
de Albuquerque já não é propriamente fascinante 
para estas novas gerações. Recordo-me das 
imagens de Albuquerque à garupa do seu cavalo e 
da figura gorda e meio abandalhada do 
Gungunhana e de pensar para comigo que o Leão 
de Gaza não tinham um ar mais feroz do que os 
leões pindéricos do Circo Areola Paramés. 
Atirados para as casamatas do Forte de Monsanto, os 
africanos enregelavam ao ponto de o Gungunhana 
ter sofrido uma pleurisia. Godide, que falava bem 
português, assumiu o papel de tradutor, mas os 
carrascos não estavam para grandes conversas. Do 
lado de fora dos muros do forte,havia arraiais 
populares, rulotes de comes e bebes, gente sempre 
a ir e a vir na esperança de um vislumbre dos 
terríveis guerreiros que o herói Mouzinho de 
Albuquerque obrigara a vergar a cerviz. O ridículo 
atingiu o ponto de se venderem postais do 
Gungunhana, de uma fábrica da Pampulha lançar 
uma Bolachas Gungunhana e abrir, no Areeiro, um 
Casa de Petiscos Gungunhana. 
O rei D. Carlos estava metido numa camisa de onze 
varas. Mouzinho de Albuquerque foi perdendo, a 
pouco e pouco, a aura mágica que o rodeava, à 
medida que mais pormenores do assalto a Chaimite 
se foram sabendo. Soares de Andrea, oficial da 
Armada, comandante da canhoneira Capelo, 
escreveu um relatório assassino chamado ‘A 
Marinha de Guerra na Campanha de Lourenço 
Marques e Contra o Gungunhana’, no qual 
desmentia muitas das afirmações de Albuquerque e 
o acusava mesmo de ter cometido crimes militares. 
Já instalados nos Açores, num 
estilo europeizado. Da esquerda 
para a direita: Gungunhana, 
Godide, Zichacha e Molungo
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{ 18 }
{ B.I. } HISTÓRIA
A feira popular espontânea de Monsanto também 
não contribuía em nada para a decência e 
respeitabilidade da cidade de Lisboa. O arraial 
permanente, os coros de insultos aos prisioneiros, a 
lixeira a céu aberto em que os terrenos em redor se 
tornavam diariamente, ajudaram à decisão 
governamental de 22 de junho: embarcar o 
Gungunhana e o seu séquito no Zambeze, navio de 
grande porte, e enviá-los para o degredo na Ilha 
Terceira, nos Açores. 
Mas isso estava longe de resolver outro tipo de 
questões, sobretudo as que a igreja levantava 
incessantemente. Em Gaza, gozando da total 
liberdade de régulo, Gungunhana tomou para si 
mais de 200 esposas, 40 delas instaladas na corte, 
as restantes espalhadas pelas aldeias vizinhas. 
Agora via-se impedido de levar consigo para os 
Açores as sete que trouxera para a Metrópole. As 
autoridades portuguesas não estavam dispostas a 
aturar o grande escândalo da poligamia. 
Quando, no dia 22 de junho de 1896, um grupo de 
militares surgiu em Monsanto, de surpresa, para 
levar os prisioneiros para bordo do Zambeze, 
Gungunhana convenceu-se de que iria ser 
executado. Engano total: enfiaram-no num fato 
novo encomendado para a ocasião, mas tão 
apertado que não tardou em rasgar as calças de 
brim. Só então percebeu que todas as mulheres e o 
cozinheiro Gó não sairiam com ele. O histerismo 
apoderou-se delas, mas em vão. Teriam de 
suportar a cadeia por mais uns dia. A 6 de julho foi 
a sua vez de partirem, neste caso para São Tomé. O 
jornal O Paiz publicou sobre a separação: «Afinal 
parece que as pretas do Gungunhana e Zixaxa já 
não vão para Angola, como se havia propalado. 
Agora diz-se que o governo tenciona mandá-las 
para São Tomé. Ora a verdade é que essas pobre 
negras nunca deviam ter vindo para Lisboa, nem 
elas nem os prisioneiros de guerra. As pretas 
podiam muito bem ter ficado em Moçambique e o 
ex-rei de Gaza e os seus companheiros podiam ter 
ido logo para Angola ou para os Açores. A Lisboa é 
que não havia necessidade nenhuma de os terem 
Os portugueses instalados 
em Moçambique levavam 
uma vida tranquila e requintada. 
Não estavam dispostos a que 
alguém pusesse isso em causa
A grande revolta dos soldados de 
Shaka Zulu fez tremer o império 
britânico e temer que outros 
reinos idênticos surgissem para 
combater o colonialismo 
A rendição do Gungunhana 
ganhou força de mito na tentativa 
de se fazer esquecer 
a humilhação do ultimato 
inglês de cinco anos antes. 
Era a prova provada da força 
colonial portuguesa
{ 19 }
Mouzinho de Albuquerque ganhou uma aura napoleónica e as suas imagens 
enchiam os livros de História. O tempo trouxe à superfície uma realidade 
não completamente correspondente à que nos ensinavam na escola
trazido. Mas o governo queria dar espetáculo e 
explorar com os pobres negros o patriotismo do 
povo, e por isso os mandou vir». 
De novo no Arsenal, para outra viagem através do 
mar, algo que lhe causava um pavor indescritível, o 
Gungunhana tombou num estado de inanição que 
foi preciso carregá-lo em ombros para o barco. 
Atingira o ponto mais baixo da sua condição 
humana. Após o chorrilho de humilhações, de 
iniquidades e de tratamentos infames a que fora 
sujeito, separarem-no das mulheres foi como se, de 
alguma forma, o tivesse matado por dentro. Jacinto 
Cândido da Silva, entretanto constituído Ministro da 
Marinha e Ultramar, deu-lhe a possibilidade de, 
perante as leis da santa madre igreja, escolher uma 
das mulheres para o acompanhar no exílio 
açoriano. O Leão de Gaza foi capaz de um último 
gesto de nobreza: «Não posso optar por uma de 
entre todas estas mulheres que amo». 
Por seu lado, a santa madre igreja tratou de fechar 
os olhos à prática semanal de arejar as tardes dos 
reféns em Angra do Heroísmo à conta das visitas a 
umas messalinas de bordel pagas para o efeito. 
Instalado no Forte de São João Baptista, na 
península do Monte Brasil, Gungunhana definhou 
na década que se seguiu. Com 46 anos, perdera 
tudo o que restava de compostura. O jornal regional 
A União, descreveu-o deste modo à chegada: «O 
grande e temível Gungunhana, caminhando na 
frente dos seus companheiros de infortúnio, 
descalço, com a fralda de fora, uma trouxa ao 
ombro, escorrendo em suor, feito um maltrapilho, 
comoveu-nos profundamente». 
Inseridos lentamente na rotina do lugar, os 
prisioneiros ganharam hábitos. O Gungunhana 
caçava coelhos no Monte Brasil e fazia cestos que 
vendia às gentes da terra. Recebiam todos um pré 
diário de 60 réis e começaram a ganhar liberdade 
de movimentos. O Dr. Liengme foi visitá-los e 
contribuiu fortemente para a sua cristianização 
concluída com o batismo coletivo na Sé Catedral 
pelo bispo de Angra do Heroísmo. 
O Gungunhana aprendeu a ler e a escrever 
perfeitamente português. Através de uma missiva, 
voltou a reclamar a reunião com as suas mulheres. 
Não obteve sequer resposta. Dentro do grupo, 
tornou-se um elemento à parte, muito distante da 
alegria comunitária de Zixaxa e Godide, sempre 
bem recebidos nas atividades sociais da cidade. 
O Leão de Gaza preferia a companhia da aguardente. 
Bebia como se disso dependesse a própria vida. Os 
estados de embriaguez eram frequentes e 
incomodativos. De tempos a tempos era detido por 
desacatos ou por tentativas de agressão. Georges 
Liengme apontou num dos seus diários: «Era um 
ébrio inveterado. Após qualquer das numerosas 
orgias a que se entregava, era medonho de ver, com 
os olhos vermelhos, a face tumefacta, a expressão 
bestial que se tornava diabólica, horrenda, quando 
nesses momentos se encolerixava». 
Morreu no dia 23 de dezembro de 1906, de 
hemorragia cerebral no Hospital Militar da Boa Nova 
e foi enterrado no cemitério da Conceição. O Leão 
de Gaza fora domesticado à força. Apenas o álcool 
lhe devolvia um pouco da ferocidade com que 
nascera em África sob o nome de Mudungazi. J
{ 20 }
ma viagem de mil léguas começa 
com o primeiro passo», reza o Tao Te 
Ching, um livro de provérbios 
atribuído a Lao Tsé, pensador chinês 
do século VII a.C. 
Patrick Leigh Fermor despediu-se dos amigos a 9 
de dezembro de 1933, numa tarde de chuvas 
torrenciais, e entrou para um ferry no Tamisa com 
destino a Hoek von Holland, na costa da Holanda. 
Era o único passageiro do navio. Levava uma 
mochila emprestada e pouca bagagem: «um velho 
sobretudo» adquirido poucos dias antes num 
armazém de excedentes militares, «diferentes 
camisolas, para usar em camadas, camisas 
cinzentas de flanela, um par de camisas brancas de 
linho para ocasiões mais elegantes, um corta-vento 
de couro macio, grevas, botas ferradas, um saco-
cama (que perderia dentro de um mês e que nunca 
haveria de ser substituído nem de fazer falta); 
cadernos e blocos de desenho, borrachas, um 
cilindro metálico cheio de lápis Venus e Golden 
Sovereign», um bordão, dois livros de poesia e a 
promessa de uma libra semanal. Planeava, nos 
meses seguintes, caminhar por longas distâncias e 
para issonão podia ir muito carregado. 
Um mês antes tinha tido uma espécie de 
iluminação, como descreve no seu clássico Tempo 
de Dádivas, recentemente editado pela Tinta da 
China. «Mudar de ares; abandonar Londres e a 
Inglaterra e viajar pela Europa como um 
vagabundo – ou, na formulação original que 
usava comigo mesmo, como um peregrino ou um 
romeiro, um estudioso errante, um cavaleiro [...]. 
Viajaria a pé, dormindo sobre medas de feno 
durante o verão, procurando abrigo nos celeiros 
em caso de chuva ou neve». 
Atravessou a Holanda com uma rapidez que o 
surpreendeu. Ainda antes do Natal, passados 
poucos dias da sua partida, estava a chegar à 
cidade fronteiriça de Goch, na Alemanha. Hitler 
tinha assumido o poder no início daquele ano de 
1933. «Havia bandeiras nacional-socialistas por 
toda a cidade e a montra da loja de roupa de 
homem ao lado exibia parafernália do partido: 
braçadeiras com suásticas, punhais da Juventude 
Hitleriana, blusas para as Donzelas Hitlerianas e 
camisas pardas para os membros adultos das SA». 
Ao final do dia, Patrick sentava-se «a uma mesa 
maciça numa pousada» para descansar as pernas, 
fumar, escrever no seu diário e apreciar uma 
{ B.I. } LIVRO
Patrick Leigh Fermor
JOSÉ CABRITA SARAIVA 
jose.c.saraiva@sol.pt{ }
Na Alemanha, olhavam para ele como se fosse uma ave rara 
quando se identificava como inglês. E ainda mais 
espantados ficavam quando dizia que estava a caminho 
de Constantinopla. Patrick Leigh Fermor ainda não tinha 
20 anos quando, na década de 1930, atravessou a Europa 
a pé. Mais tarde descreveu a sua viagem em três volumes, 
o primeiro dos quais acaba de ser publicado em Portugal.
U
Um vagabundo 
à conquista da Europa
CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P 
bebida espirituosa. Assistiu a algumas discussões 
acaloradas sobre política. Os partidários de Hitler 
impunham-se sempre, por serem mais militantes, 
mais convictos ou simplesmente mais agressivos. 
O regime nazi provocava ao jovem viajante 
britânico um sentimento de repulsa, quer pela 
perseguição que movia aos judeus, quer pela 
prática instituída de queimar livros. Teria, ainda 
assim, surpresas, como quando um castiço 
trabalhador em fato-macaco o convidou a dormir 
em sua casa e descobriu «que o quarto era um 
santuário de objetos relacionados com Hitler. As 
paredes estavam cobertas de bandeiras, 
fotografias, slogans e emblemas. O seu uniforme 
das SA, impecavelmente passado a ferro, estava 
pendurado num cabide». Os nazis não eram todos 
assassinos ávidos de sangue e destituídos de 
coração. 
 
O RAPTO DO GENERAL 
Seis anos depois, quando o expansionismo nazi 
tornou a guerra na Europa inevitável, Leigh 
Fermor haveria de juntar-se às Irish Guards, as 
{ 21 }
{ 22 }
tropas de infantaria de elite do Exército britânico. 
Os seus conhecimentos de línguas e de geografia, 
em parte adquiridos ou aperfeiçoados durante a 
longa caminhada pela Europa em 1933 e 1934, 
levá-lo-iam em seguida para os serviços de 
espionagem britânicos na Grécia. Foi o primeiro 
homem da sua unidade a saltar de paraquedas e, 
disfarçado de pastor de rebanhos, ajudou a 
organizar a resistência em Creta, vivendo durante 
mais de um ano entre montanhas, grutas e 
abrigos na natureza. Ali levou a cabo uma das 
operações mais ousadas do conflito: o rapto do 
general Heinrich Kreipe, o comandante das 
forças nazis na ilha. «Os cretenses eram os 
melhores combatentes de guerrilha natos do 
mundo», diria mais tarde ao historiador militar 
Max Hastings. «Estavam sempre tão desejosos de 
raptar raparigas que o rapto de um general 
alemão lhes pareceu tremendamente divertido». 
A 26 de abril, após várias tentativas, ‘Paddy’, 
como era conhecido entre amigos, e os seus 
homens intercetaram o carro do general. Vestidos 
com uniformes alemães, mandaram o condutor 
parar, imobilizaram-no com uma pancada na 
cabeça e tomaram o controlo da viatura. 
«Paddy pôs o chapéu do general na cabeça e 
passou para a frente do grande Opel, enquanto 
três guerrilheiros se sentavam em cima do velho 
general semiconsciente lá atrás», escreveu Max 
Hastings no obituário de Leigh Fermor, publicado 
no Daily Mail. 
«Durante as horas que se seguiram, passaram 
pelos 22 postos de controlo alemães e pelo centro 
de Heraklion [...]. Três semanas mais tarde, após 
uma marcha épica pelas montanhas e muitas 
fugas por um triz, encontravam-se a bordo de 
um navio de guerra britânico, com destino a 
Alexandria, e o general alemão sequestrado foi 
entregue para interrogatório». Embora as 
respetivas nações estivessem em guerra, o agente 
britânico não viu o general nazi como apenas um 
inimigo: ambos perceberam que tinham mais em 
comum do que imaginavam quando o segundo 
começou a recitar versos de Horácio e o seu 
jovem raptor continuou no ponto em que o 
alemão os deixara. As Odes do poeta latino eram 
um dos dois livros que levara na bagagem para a 
sua viagem pela Europa uma década antes. 
 
DA VACARIA AO CASTELO 
Filho de um ilustre geólogo e naturalista colocado 
na Índia, Patrick Leigh Fermor nasceu em 
Londres a 11 de janeiro de 1915. «No segundo ano 
da Primeira Guerra Mundial, pouco depois do 
meu nascimento, a minha mãe e a minha irmã 
embarcaram para a Índia (onde o meu pai era 
funcionário do governo indiano) e eu fiquei para 
trás, para que pelo menos um de nós pudesse 
sobreviver se o barco fosse afundado por um 
submarino». 
Entretanto, o pequeno Patrick ficou entregue a 
uma família do Northamptonshire. «Passei estes 
anos fundamentais e habitualmente considerados 
formativos mais ou menos como o filho selvagem 
de um agricultor: guardo recordações de uma 
felicidade completa e perfeita», relatou nas 
páginas iniciais de Tempo de Dádivas. 
Não gostava de cumprir regras, e as expulsões de 
colégios sucediam-se. Teve uma educação 
irregular, atribulada, até que lhe ocorreu a ideia 
de atravessar a Europa a pé. 
Como planeara, viajou como um vagabundo. Para 
se entreter, ia cantando e recitando versos pelo 
caminho, e dormia onde calhava. Só em Colónia, 
ao fim de vários dias de jornada, tomou o 
primeiro banho desde que saíra de Londres! 
Rapidamente descobriu que o facto de ser inglês 
não suscitava desconfiança, pelo contrário. «Na 
Alemanha há uma tradição antiga de 
benevolência para com os jovens viajantes: a 
própria humildade do meu estatuto funcionava 
como um ‘Abre-te Sésamo’, suscitando 
amabilidade e hospitalidade. Uma grande 
surpresa para mim foi o facto de ajudar ser 
inglês; era visto como uma ave rara e inspirava 
curiosidade». Outra coisa que inspirava um misto 
de espanto e pena, e lhe abria todas as portas, era 
o nome da cidade que tinha definido como 
destino final, que repetia como se se tratasse de 
uma fórmula mágica: Constantinopla. 
Numa altura de maior aperto, por sugestão de um 
bom homem que conhecera numa pousada para 
mendigos em Viena, recorreu ao seu talento 
artístico para fazer retratos dos habitantes da 
cidade e ganhou o suficiente para ambos 
comerem como lordes e ainda ficarem com uma 
reserva considerável. 
{ B.I. } LIVRO
O jovem inglês dizia sempre que se dirigia para 
Constantinopla, embora por aquela altura a cidade 
já se chamasse oficialmente Istambul
{ 23 }
A paixão pela Grécia durou toda 
a vida: durante a II Guerra 
Mundial organizou a resistência 
em Creta e na década de 60 
foi viver para o Sul do Peleponeso
Noutras alturas, viajou em grande estilo, sendo 
recebido em casas de burgueses bem instalados 
e até em castelos de aristocratas. «Depois de 
dizer boa noite, de percorrer, carregado de 
livros, um corredor cheio de armações, e de 
subir uma escada de pedra em caracol até ao 
meu quarto, era difícil acreditar que na noite 
anterior tinha dormido numa vacaria. Há muitas 
vantagens em passar da palha para uma cama de 
dossel e depois voltar à palha. Dentro do casulo 
de linho macio, embalado pelo aroma dos 
troncos, da cera de abelha e da lavanda, ficava, 
ainda assim, acordado durante horas, 
deleitando-me com todos estes prazeres e 
comparando-os, numa sensaçãode felicidade, 
com os encantos já familiares dos estábulos, 
palheiros e celeiros». 
 
‘PARA CONQUISTAR O MUNDO, 
HÁ QUE RENUNCIAR A TUDO’ 
Patrick Leigh Fermor teve a ventura de conhecer 
um mundo condenado a desaparecer. Os últimos 
vestígios da velha Europa que haviam 
sobrevivido à Grande Guerra – como os cultos e 
generosos castelões que o acolhiam nas suas 
habitações palacianas – seriam definitivamente 
obliterados pela Segunda Guerra Mundial. O 
autor fixou-os para a posteridade em retratos 
literários que têm o encanto das fotografias 
esbatidas pelo tempo. 
Publicado em 1977, Tempo de Dádivas é o 
primeiro volume da trilogia em que o autor-
viajante narrou a sua travessia do Velho 
Continente. Termina numa ponte sobre o 
Danúbio, à entrada da Hungria. O segundo 
volume, Entre os Bosques e a Água, foi dado ao 
prelo em 1986. A chegada a Constantinopla no 
dia de ano novo de 1935 encontra-se descrita 
no terceiro e último volume (The Broken 
Road), publicado em 2013, dois anos após a 
morte do autor. 
Especialmente bonito e galante em jovem (foi 
encarnado no cinema por Dirk Bogard e as 
senhoras da sociedade disputavam a sua 
companhia), Sir Patrick Leigh Fermor manteve a 
vitalidade até ao fim da vida. Terminou os seus 
dias na Grécia, para onde se mudou na década de 
60 com a mulher, Joan. Usando pedrada região 
oferecida pelos habitantes das redondezas, 
construiu uma casa em Kardamili, no sul do 
Peloponeso, com uma vista privilegiada sobre o 
mar. Mesmo nonagenário, continuava a escalar 
as montanhas circundantes, a passear nos olivais 
e a nadar no mar Jónico. 
«Para conquistar o mundo, há que renunciar a 
tudo», diz o Tao Te Ching. Patrick Leigh Fermor 
partiu de Londres quase sem nada e cerca de 
um ano depois podia dizer que conquistara a 
Europa a pé. Estava a poucos dias de fazer vinte 
anos – a idade de Alexandre quando foi coroado 
Rei da Macedónia e partiu à conquista do 
Império Persa. J
Em Tempo de Dádivas relata 
a sua chegada à Alemanha nazi 
no final de 1933, ano em que 
os nazis tomaram o poder
{ 24 }
FOTOGRAFIAS 
MAURO PIMENTEL/ AFP
De azul, o rio passou a rosa. Cortesia dos milhares 
de flamingos em plena rota migratória que, 
com as cidades em silêncio devido ao confinamento 
causado pela pandemia, decidiram descansar 
do longo voo em plena metrópole. Aconteceu 
no rio de Nova Bombaim, na Índia.
{
{ B.I. } PORTEFÓLIO 
}
Flamingos
UM RIO PINTADO 
DE ROSA
{ 25 }
{ 26 }
Nestas últimas semanas, uma 
das vantagens evidentes do 
confinamento tem sido a 
possibilidade de ver televisão – 
algo que, de há uns anos para 
cá, vinha sendo praticamente 
impossível. Não me refiro a 
ligar o aparelho e a ver por ver, 
ou simplesmente fazer zapping, 
mas sim a ver bons programas 
ou bons filmes. É que a 
televisão tanto pode ser um 
instrumento de 
embrutecimento sem igual 
como um meio de 
aprendizagem precioso. 
Por estes dias tive, por 
exemplo, a oportunidade de 
ver Silêncio, de Martin 
Scorsese, que passou na RTP1 
por alturas da Páscoa. Trata-se 
de um filme impressionante – 
com muita violência à mistura, 
à boa maneira do realizador 
americano – que retrata os 
suplícios sofridos pelos cristãos 
no Japão do século XVII, depois 
de em 1639-1640 o governo 
Tokugawa ter instituído a 
política do ‘país proibido’. 
Ao mesmo tempo fascinado 
pela fé inquebrantável daquelas 
pessoas humildes e horrorizado 
pelas atrocidades contra elas 
cometidas pelas autoridades 
japonesas daquela época, fui à 
procura de mais alguma 
informação sobre o assunto no 
livro de Charles Boxer de 1978 
A Igreja e a Expansão Ibérica 
(1440-1770) (edições 70). 
Boxer fala numa conversão 
superficial dos autóctones ao 
cristianismo – que em muitos 
casos se resumia a três dias de 
‘catecismo’. Ainda assim, 
reconhece «a extraordinária 
persistência do cristianismo 
católico, uma vez firmemente 
implantado, mesmo que de 
uma forma muito simples, ou 
então sob formas adulteradas 
ou sincréticas». É isso que nos 
mostra o filme de Scorsese: 
aldeãos que, mais do que a 
Deus, adoram pequenas 
imagens de Cristo na cruz, 
ignorando as subtilezas da 
teologia, mas talvez por isso 
mesmo dando mostras de uma 
fé intensa, despojada, 
obstinada, à prova de tudo. 
«Protestantes ingleses e 
holandeses», conta-nos o 
historiador britânico, 
«testemunhas oculares da 
sádica perseguição aos 
convertidos católicos nos 
primeiros tempos do governo 
Tokugawa no Japão, ficavam 
espantados com a firmeza da 
gente simples perante a 
fogueira. Entre estes, incluíam-
se crianças de cinco e seis anos 
queimadas nos braços de suas 
mães, clamando ‘Jesus, recebei 
as suas almas’». 
Hoje parece-nos impensável 
queimar crianças por causa da 
religião. A verdade é que o 
governo japonês via os cristãos 
como uma ameaça latente, 
uma ‘quinta coluna’ de 
infiltrados que em caso de 
invasão de uma potência 
(católica) ibérica se juntaria aos 
senhores feudais descontentes 
para combater contra o seu 
próprio país. 
Mas a principal questão que o 
filme de Scorsese (baseado no 
romance homónimo de 
Shusaku Endo) coloca, de 
forma inquietante, é se as 
preces dos supliciados foram 
ou não ouvidas. É impossível o 
espectador não se interrogar se 
aquele sofrimento atroz de 
tantos e tantos cristão que 
recusaram renunciar à sua fé 
serviu para alguma coisa. O 
que encontraram do outro 
lado? Não há maneira de sabê-
lo. Cada um terá de procurar a 
resposta no silêncio de si 
mesmo.
{ B.I. } DÊEM-ME TEMPO PARA LER 
HISTÓRIA DE DOIS PATIFES 
E OUTRAS PROSAS 
{ Fialho de Almeida } 
Dele, Jorge de Sena disse: «O pior defeito do Fialho é, de 
facto, o seu imenso talento». Nascido em 1857 em Vila de 
Frades, concelho da Vidigueira, Fialho de Almeida passou 
à posteridade como o célebre autor d’Os Gatos. E é de 
gatos que nos fala o conto que dá título a este volume: 
gatos mimosos e mimados que «tinham o péssimo 
costume de afiar as unhas nos mognos polidos e nos 
estofos matizados dos gabinetes, sulcando e rasgando, 
sem preferência e sem atenção de preços». Reúne esta 
antologia (enriquecida por dois anexos: uma pequena 
autobiografia e uma cronologia do autor) seis contos e 
dois textos de não ficção, ou não fosse Fialho um 
jornalista de mão cheia. 
A EDITORA Guerra & Paz PREÇO 14,50€
A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS 
HOLGERSSON ATRAVÉS DA SUÉCIA 
{ Selma Lagerlöf } 
Numa manhã de primavera, um menino traquina de «cerca 
de 14 anos» vê-se em casa sem os pais e decide aproveitar a 
liberdade. Acaba transformado em duende e, viajando pelo 
ar à boleia de um ganso, passa a ver o mundo e a vida a 
partir de outra perspetiva. Escrito nos primeiros anos do 
século XX para edificar e ensinar geografia aos estudantes 
suecos, este clássico é também uma lição sobre o respeito 
que devemos à natureza. Surge aqui numa edição bonita e 
cuidada, que reproduz integralmente o texto da edição 
original em dois volumes, e com tradução a partir do sueco 
de João Reis. 
 A EDITORA Sextante PREÇO 18,80€
AS PROVADORAS DE HITLER 
{ Rosella Postorino } 
«Para ela, naquele dia, nada de sobremesa. Mas coube-lhe 
os ovos e o puré de batata: os ovos eram uma das comidas 
favoritas do Führer, gostava deles polvilhados com 
cominhos». Rosa Sauer é uma das dez mulheres 
responsáveis por experimentar a comida de Hitler, para 
evitar que o chanceler seja envenenado. Mas as provadoras 
correm riscos e, sob a vigilância constante dos guardas, o 
ambiente na caserna onde vivem pode tornar-se opressivo. 
A EDITORA D. Quixote 
UMA FÉ MAIS ARDENTE DO QUE 
AS CHAMAS DA FOGUEIRA
JOSÉ CABRITA SARAIVA 
jose.c.saraiva@sol.pt{ }
BIBLIOTECA 
PESSOAL
{ 27 }
PUB
PUB
{ 28 }
EM BUSCA DA FURTIVA 
WHITTIER
espertamos tarde. Partimos a más 
horas decididos a parar sempre que o 
justificasse o caminho. Passamos ao 
largo de Nikolaevsk. Interrompemos a 
viagem, pela primeira vez, em 
Ninilchik, uma povoação fundada por colonos 
russos, em 1820, quarenta e sete anos antes de os 
seus governantes terem vendido o Alasca aos 
Estados Unidospor 7,2 milhões de dólares num 
dos negócios mais desastrosos feitos pelo país dos 
czares. Pouco tempo depois da transação, os 
exploradores norte-americanos descobriram ouro 
em várias partes do estado. Bastaram alguns anos 
para a riqueza extraída pelos americanos dos filões 
e rios do estado suplantar o valor despendido. 
Após a passagem do vasto território para a posse 
dos americanos, nem todos os russos partiram. 
Os que ficaram preservam boa parte da sua 
cultura. Famílias inteiras partilham chá de 
grandes samovares seculares, guardam fatos 
tradicionais russos em que posam para 
fotografias memoráveis, junto de grandes 
matrioskas coloridas. A sua fé cristã, é Ortodoxa, 
claro está. Como o são as suas várias igrejas de 
madeira com cruzes de oito braços, decoradas 
com painéis dourados-coloridos dos santos que a 
comunidade louva. 
Desviamo-nos da Sterling Highway em busca da 
igreja russa local. Encontramo-la na imediação 
de uma falésia, virada para o mar e cercada por 
D
{ B.I. } DESTINO IMPROVÁVEL
{ 29 }
uma vedação branca, de madeira. Mais do que a 
religiosidade, impressiona o significado histórico 
da visão. Malgrado a arquitetura eslava do edifício 
principal, num pequeno cemitério subsumido 
entre a vegetação, misturam-se cruzes ortodoxas 
com católicas, estas, acompanhadas de bandeiras 
dos Estados Unidos. Como ali se provava, a 
convivência de habitantes das duas nações 
verificou-se durante bastante tempo. E assim 
continua muito depois da retirada diplomática 
dos russos. É, este, aliás, um dos aspetos mais 
fascinantes da vida do sul do Alasca. 
Prosseguimos para norte. Passamos por outras 
localidades de origem russa como a pequena, 
quase impercetível Kasilof, batizada segundo o 
rio que por ali passa e desagua mais à frente. 
Em junho e julho, um exército de pescadores 
oriundos das redondezas e de outras partes mais 
longínquas do Alasca reúnem-se de ambas as 
margens. Enquanto a migração dos cardumes o 
MARCO C. PEREIRA (TEXTO) 
 MARCO C. PEREIRA E SARA WONG (FOTOGRAFIA){ }
Depois de vários dias no fundo 
sem saída de Homer, revertemos 
o itinerário na grande Península 
de Kenai. Viajamos à procura 
de Whittier, uma povoação 
erguida como refúgio, em plena 
2.ª Guerra Mundial, 
e que agora abriga duzentas e 
poucas pessoas, quase todas 
num único edifício habitacional.
permite, competem entre eles e com as águias 
pesqueiras e pigarros pelos espécimes de salmão, 
mais acessíveis que nunca sobre os baixios em 
que o rio se espraia. 
Ali, os salmões ainda vão no início de uma 
viagem fluvial que, a completar-se, os levaria 
bem mais a montante do Kasilof, quem sabe se 
até ao grandioso lago Tustumena. 
CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P 
{ 30 }
Por estes lados, a paisagem mais próxima da 
estrada é dominada por florestas de coníferas 
baixas e de aspeto frágil. Não chegam a atingir 
alturas mais dignas devido ao subsolo quase 
sempre gelado em que assentam. 
Na distância, destacam-se os cumes da 
cordilheira Kenai, coroados de branco pelo gelo 
mais persistente. 
Segue-se Soldotna. Logo, Sterling. Em Sterling, 
chama-nos a atenção um outdoor gráfico. Dele se 
destaca uma grande faca de punho amarelo e 
vermelho. Projeta-se da faca, uma bandeira 
americana star-splangled esvoaçante. Um painel 
abaixo apresenta-nos o Walt & Connies Knives, o 
negócio de beira da estrada deste casal, bem 
posicionada para servir os pescadores, os 
caçadores e os alasquenses em geral com o que 
mais falta lhes faz: facas de caça, facas de filé, 
facas de cozinha, facas alasquenses unu e facas 
Campbell. Além destes tipos todos de facas, o 
casal anuncia ainda que as afia e que vende 
currais para renas. Por azar, à hora a que 
passámos à sua porta, o estabelecimento do casal 
estava fechado. Não podíamos esperar pela hora 
do seu regresso, sem sequer termos a certeza de 
que regressariam. 
Após vários desvios que incluem pausas 
estratégicas em Soldotna, Cooper Landing e 
Moose Pass, deixamos por fim, a Sterling Hwy. 
Apontados a noroeste, ao fundo bem fundo do 
braço de mar de Turnagain, que se estende desde 
a ainda longínqua cidade de Anchorage. 
Explorados todos os cantos da cidade e as 
redondezas, damos início a nova etapa. Antes do 
regresso a Anchorage impõe-se a visita a uma 
das povoações mais surreais de todo o estado: 
Whittier. 
Só os interessados pela história bélica do mundo 
o sabem. Durante a II Guerra Mundial, além de 
Pearl Harbour, os Estados Unidos foram atacados 
pelos japoneses nas Aleutas, a longa cadeia de 
ilhas que surge na extremidade da Península do 
Alasca. 
Confrontados com a necessidade de construir 
uma base militar secreta, os responsáveis do 
exército acharam o lugar ideal, ali, de frente para 
o Canal Passage, cercado pelas montanhas 
íngremes em redor, cobertas por gelo e por 
nuvens densas na maior parte do ano. Num 
ápice, tornaram-no um esconderijo bélico 
sofisticado, dotado de um porto e caminho-de-
ferro. Durante a época alta turística, esse mesmo 
porto recebe agora os grandes navios cruzeiro que 
percorrem a costa ocidental do Alasca, de 
Anchorage até as diversas povoações do Cabo de 
Frigideira alasquense. Capital Juneau incluída. 
Na altura chamaram-no de Camp Sullivan. Em 
1943, Camp Sullivan já era usado como o porto de 
entrada das forças dos Estados Unidos da 
América no Alasca. 
Por forma a assegurar o acesso por terra, foi 
aberto um longo túnel, que é, ainda hoje, uma 
das maravilhas da engenharia do Alasca. 
Malgrado o propósito da sua fundação e o visual 
de grande bunker que ostenta, Whittier tomou de 
empréstimo o nome de um glaciar imponente nas 
redondezas. Em 1915, esse glaciar foi batizado em 
honra do poeta americano John Greenleaf 
Whittier. 
No fim de março de 1964, ainda em plena 
ocupação militar, Whittier viu-se chocalhada 
pelo tremor de terra de Sexta Feira Santa, um dos 
eventos sísmicos mais poderosos e destrutivos 
verificados no Alasca, com uma magnitude de 9.2 
graus, gerador de diversos maremotos ao longo 
da costa Oeste dos Estados Unidos mas que, 
apesar desta intensidade, só fez treze vítimas. 
Os militares ocuparam Whittier até 1968, ano em 
que a abandonaram e aos seus estranhos 
edifícios. Com a afirmação do turismo estival, 
{ B.I. } DESTINO IMPROVÁVEL
Os alasquenses mantêm uma estreita 
relação com os cursos de água e são, 
geralmente, exímios pescadores
Um dos 
aspetos mais 
fascinantes 
da vida do sul 
do Alasca 
é a mistura 
da cultura russa 
com a norte- 
-americana
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mesmo entre cordilheiras e glaciares, a cidade 
fantasma – entretanto colonizada por indígenas – 
tornou-se numa atração alasquense à parte, com 
importância reforçada por se ter tornado numa 
escala do Alasca Marine Highway. 
Só quando chegamos à entrada do Anton 
Anderson Tunnel, descobrimos que não permite 
a viagem simultânea aos dois sentidos, que o 
acesso só é possível de hora a hora. Dedicamos os 
40 minutos que faltam às rádios regionais e a 
apreciar a paisagem glaciar circundante. 
Quando o sinal verde finalmente cai, prosseguimos 
pelo escuro. Levamos quinze minutos a atravessar o 
longo túnel. Até que, do outro lado da montanha, 
damos de caras com um refúgio de visual 
cimentado, em tudo idêntico a tantos outros que a 
Guerra Fria viria, mais tarde, a gerar. 
Pela dimensão e peso arquitetónico, destaca-se 
do casario, o Buckner Building que não 
resistimos a explorar. A determinada altura, 
parecia aos moradores tão vasto e completo que o 
tratavam por «uma cidade debaixo de um 
telhado». 
Até 1968, habitaram ali mais de 1000 pessoas, na 
maioria ao serviço do exército dos EUA. Hoje, o 
edifício não é mais que um bunker habitacional 
abandonado ao tempo e à vegetação, com a 
companhia de diversos carros amolgados e 
enferrujados. 
Destino diferente tiveram as Torres Begich. Com 
catorze andares e um aspeto civil de prédio 
suburbano, logo após a desmobilização, foram 
ocupadas por indígenas da região e por alguns 
imigrantes que se instalaram nos cento e 
cinquenta apartamentos

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