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Pi et er B ru eg he l t he Y ou ng er /L ou vr e 1 m ai o 20 20 | N úm er o 27 1| w w w .s ol .p t | E st e su pl em en to é p ar te in te gr an te d a ed iç ão n .º 71 4 do S O L e nã o po de s er v en di do s ep ar ad am en te A EPIDEMIA DE DANÇA DE ESTRASBURGO DE 1518 E OUTROS SURTOS BIZARROS { Páginas 8 a 13 } { 2 } PUB { 3 } L avar as mãos com frequên- cia, manter o distancia- mento social, mudar de roupa e de calçado à chega- da a casa, utilizar máscara em locais fechados, usar luvas em cer- tas circunstâncias. São estas, no essencial, as recomen- dações à população para evitar o contá- gio pelo novo coronavírus. Recomen- dações sensatas. Que toda a gente deverá respeitar. E até há quem diga que muitas destas normas deveriam respeitar-se em to- das as circunstâncias, ou seja, fora do período de pandemia, pois são regras básicas de higiene. Ora, julgo que um dos perigos desta pandemia da covid-19 é exatamente esse: criar um clima de medo nas po- pulações que as leve a adotar regras que só se justificam em períodos de exceção. Mais: que podem tornar-se perigosas em períodos de normalidade. Conheci uma pessoa que tinha especiais cuidados de higiene. Quando chegava a casa mudava de roupa. Lavava o rosto e desinfetava as mãos com álcool. Fazia-o meticulo- samente, sem nenhuma falha. Um dia, ainda relativamente nova, com pouco mais de 60 anos, foi fazer uma opera- ção simples. A intervenção correu bem, só que, nos dias seguintes, começaram os problemas. E ao fim de uma semana faleceu. Causa: septicemia, isto é, infe- ção generalizada. Aquela pessoa vivia numa redoma. Protegia-se em excesso. Não se expu- nha a bactérias nem a vírus. E assim o seu organismo foi perdendo as defe- sas. O seu sistema imunológico foi enfraquecendo. Os seus anticorpos para fazer frente a agressões exterio- res ficaram reduzidos ao mínimo. E assim, um ataque ao qual outra pes- soa resistiria com facilidade foi sufi- ciente para a abater. Todos nós já vivemos experiên-cias afins — embora natural-mente sem as mesmas conse- quências. Quando vamos a países africanos como Marrocos, Egito, Cabo Verde, Angola ou Moçambique, com enorme facilidade apanhamos uma gastroenterite. E porquê? Porque o nos- so organismo não tem defesas contra certos bichinhos que lá são vulgares. Recordo uma viagem ao Egito com a minha mulher e o meu filho mais novo, em que a meio do percurso ambos fica- ram prostrados, mal dos intestinos e cheios de febre. E aparentemente tí- nhamos todos comido o mesmo. Mas havia uma diferença: uma salada fresca comida num barco de cruzeiro. Eles vi- ram as saladas com ótimo aspeto e nunca pensaram que podia estar ali o perigo. E estava mesmo! Mas as populações daqueles países comem as mesmas saladas ou piores, bebem água da torneira, fazem trinta por uma linha e não adoecem. Porquê? Porque os seus organismos criaram anticorpos para resistir às bactérias e aos vírus que por lá circulam. Os seus organismos estão habituados àqueles ataques. Os nossos é que, vi- vendo em sociedades com outros padrões de higiene, não estão prepa- rados para os combater. Com o coronavírus passa-se o mes- mo: os humanos estavam desarmados perante ele. Os sistemas imunológicos desconheciam-no, não tinham meios para lhe dar luta. E isso só será conse- guido a pouco e pouco: quando os in- fetados – com ou sem sintomas – atingirem os 60 ou 70% da população de cada país. Aí, as sociedades estarão preparadas para enfrentar o vírus com normalida- de, independentemente da vacina. Até lá, estarão a ganhar resistências. De qualquer forma, quando este período agudo da pandemia passar, devemos voltar aos nossos hábitos de higiene. Não deve- mos fechar-nos numa redoma esterili- zada. O excesso de higiene pode ser tão ou mais perigoso do que a falta de hi- giene. Devemos expor o organismo ao exterior. Porque isso, em vez de nos tornar mais fracos, faz-nos mais fortes, menos vulneráveis, mais resistentes às doenças. Caso contrário, os nossos cor- pos irão perdendo gradualmente auto- defesas. ‘O que não mata engorda’ – dizia-se antigamente. As agressões de vírus e bactérias, quando não matam, fortalecem o or- ganismo. Afinal, é esse o princípio das vacinas. Um dia, este coronavírus será igual a uma gripe vulgar – porque o nosso sis- tema de defesa já terá criado meios para o derrotar. Só que, nessa altura, aparecerá pro- vavelmente outro vírus a que não está- vamos habituados… { B.I. } VIVER PARA CONTAR A higiene perfeita JOSÉ ANTÓNIO SARAIVA jas@sol.pt{ } Quando o período agudo da pandemia passar, devemos voltar aos nossos hábitos de higiene. Não devemos fechar-nos numa redoma esterilizada. O excesso de higiene pode ser tão ou mais perigoso do que a falta de higiene D re am st im e { 4 } Adolf Hitler O infame fim da besta! dolf gostava de almoçar pontualmente: às 13h00, na companhia das suas secretárias Traudle Junge e Gerda Christian. Era tão fanático em questões de alimentação que também não dispensava a dietista, Fräulein Manziarly. Nenhuma delas sabia que nesse dia 30 de abril de 1945 fariam a última refeição com a besta que destruíra a Europa. Adolf sabia, claro! Já tinha preparado tudo para fugir como cobarde que era às consequências irremediáveis que planeara ao milímetro. A artilharia soviética massacrava o edifício do Reich, logo ali ao lado do bunker do canalha. Adolf quis saber quanto tempo seria possível resistir até à chegada do inimigo. O Brigadenführer das SS, Mohnke, foi o mais direto que pôde: «Talvez mais um dia...» AFONSO DE MELO afonso.melo@sol.pt{ } Hitler suicidou-se há 75 anos, no dia 30 de abril, exatamente dez dias depois de ter festejado com champanhe o seu 56.º aniversário. Cobardemente, abandonou o seu povo e os seus soldados, mesmo que tenha sido anunciada uma morte digna, em combate. Morreu como o canalha que era. A { B.I. } EFEMÉRIDE Notícias desencontradas mas que abalaram o mundo há exatamente 75 anos { 5 } Hitler chamou Martin Bormann, o seu secretário- oficial, e explicou-lhe o que iria acontecer em seguida: suicidar-se-ia com um tiro nessa mesma tarde. Eva Braun, a sua amante de sempre, faria o mesmo. Depois, os corpos de ambos deveriam ser incinerados. Responsável pela operação: Sturmbannführer Otto Günsche. A ordem era inequívoca: os cadáveres deveriam ficar de tal forma irreconhecíveis que não pudessem ser exibidos em público, tal como acontecera na carnificina da Piazzola Loreto com o féretro de Benito Mussolini, apenas dois dias antes. O motorista de Hitler, Erich Kempka, tinha a missão de juntar gasolina suficiente para queimar os dois defuntos. Apesar da derrota incondicional e do opróbrio a que se via sujeito, Adolf quis manter uma última imagem de disciplina germânica para com aqueles que enfiara no seu covil ignavo até não haver saída. Envergando o habitual dólman e as calças pretas com botas até ao joelho, juntou o grupelho que o suportara até ao fim. Eva Braun estava ao seu lado, CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P Hitler morto em combate. Uma mentira digna de Goebbels que morreu no bunker com a sua mulher e seis filhos { 6 } { B.I. } EFEMÉRIDE de vestido azul. Adolf estendeu a mão aos presentes: as suas secretárias, Joseph Goebbels, o Gauleiter de Berlim e seu Ministro da Propaganda, a mulher deste, Magda, e aos generais Burgdorf e Krebs. Depois enfiou-se no seu gabinete. Os seis filhos dos Goebbels - Helga, Hilde, Hellmut, Holde, Hedda e Heide, com idades entre os quatro e os doze anos, todos batizados com nomes iniciados por H, de Hitler - continuavam a correr ingenuamente pelos corredores do bunker. A mãe, uma adoradora fanática de Hitler, não tardaria a assassiná-los a todos com cápsulas de cianeto, antes de seguir o mesmo caminho. Eva Braun juntou-se a Adolf às 15h30. Tinham casado 40 horas antes. Não sesabe ao certo o que pretenderia Hitler com todos estes aprontos protocolares. Que a sua morte ficasse registada ao pormenor da História da Humanidade? A História da Humanidade tinha outras ideias para ele. Conceder-lhe uma divisão especial na grande fossa da ignomínia. UM CHEIRO A AMÊNDOA... Heinz Linge, o serviçal de Adolf, estava junto à porta do gabinete do Führer quando ouviu o barulho de um tiro. Passavam cinco minutos das três e meia da tarde. Lado a lado com Bormann, entraram no compartimento. Sentiram o cheiro intenso a amêndoa próprio do cianeto. Otto Günsche seguiu-os. Foi ele que reparou primeiro nos dois corpos sem vida estendidos no sofá. Eva, com as pernas encolhidas, parecia querer afastar- se de Adolf. Da têmpora direita de Hitler escorria um fio de sangue. A sua pistola preferida, uma Walther PPK 7.65, estava caída a seus pés. A cabeça do animal tombara sobre a pequena mesa de apoio, na sua frente, e o sangue começava a pingar para o chão e a encharcar a carpete. Fräulein Braun não revelava qualquer tipo de escoriações. A morte devera-se simplesmente à cápsula de ácido prússico que havia ingerido. Gunsche tomou a decisão de reportar ao resto dos habitantes do bunker que Adolf estava morto. Em seguida, e obedecendo ás últimas ordens do A encenação que rodeou o suicídio do Führer foi digna de um filme barato e parolo { 7 } Führer, os dois corpos foram retirados pelas escadas de serviço do edifício e levados para os jardins da chancelaria do Reich. Hitler estava finalmente morto, embora o mundo ainda não pudesse partilhar essa inequívoca alegria. Mas havia a missão ainda por cumprir de o fazer desaparecer da face da Terra o mais rapidamente possível. Os corpos de Adolf e Eva foram dispostos lado a lado, num toque amoroso que deveria ter sido dispensável de tão ridículo. Eva à direita do marido. A área era plana e o solo arenoso, como convinha ao processo. A cena macabra que se seguiu foi chefiada por Goebbels, pomposamente designado novo chanceler do Reich que deveria ter durado mil anos. Duzentos litros de gasolina foram despejados sobre o casal. Linge improvisou uma tocha à base de fósforos e papel. Bormann ficou responsável por atear o fogo àquela pira patética. O pequeno cortejo fúnebre gritou pela última vez a saudação nojenta: «Heil Hitler!» Estenderam o braço no cumprimento derradeiro. Agora era cada um por si. Krebs, que tinha sido adido militar em Moscovo, foi enviado por Goebbles e Bormann ao encontro do marechal Zhukov, chefe das tropas soviéticas, na tentativa de negociar uma rendição. A resposta foi curta: «Niet!» A Wehrmacht e o povo alemão só foram informados da morte de Hitler sete horas depois deste se ter baleado na cabeça. A mentira foi propagada com o descaramento próprio dos miseráveis: caíra no seu posto da Chancelaria do Reich lutando até ao seu último sopro de vida contra o bolchevismo. O almirante Dönitiz foi suficientemente vil para afirmar que se tratara uma morte heroica e que a sua queda fora digna dos mais elevados defensores da capital do Reich. Valeu um pingo de decência no meio de tanta encenação ordinária. O general Helmuth Weidling, comandante das Forças Armadas de Berlim, ordenou às suas tropas que cessassem os combates através de um telegrama que punha a nu a torpeza que se desenrolara: «A 30 de abril de 1945, o Führer pôs fim à sua própria vida e, por conseguinte, abandonou os que lhe haviam jurado fidelidade. De acordo com o alto-comando das tropas soviéticas, ordeno-vos consequentemente que parem de combater com efeitos imediatos». As versões seguintes em relação ao estado em que ficaram as carcaças de Adolf e Eva são dispersas e até contraditórias. O Hauptsturmführer Ewald Lindloff teve ordens para regressar ao local e sepultar o que restasse de ambos. Basicamente, limitou-se a juntar os restos de Hitler e da amante a um monte de numerosos despojos por identificar que tinham sido retirados do hospital que funcionava por debaixo da Nova Chancelaria do Reich. Uma rebaldaria de ossos e pedaços de carne calcinados atirados para as crateras entretanto abertas pelas bombas soviéticas que tinham devastado as redondezas do bunker. Os russos surgiram no local no dia 2 de maio. Iniciaram uma busca febril pelos restos mortais de Adolf e Eva. Era uma questão de honra. Mais ainda: era uma forma de evitar o renascimento do endeusamento de Hitler. Nove dias mais tarde, o adjunto do dentista do Führer, Fritz Echtmann declarou que estava em condições de identificar parte de um osso do maxilar e duas pontes dentárias de Adolph. As relíquias foram imediatamente enviadas para Moscovo e guardadas numa caixa de charutos, segundo o historiador inglês Ian Kershaw. Em 1946, escreveu Kershaw, descobriu-se parte de um crânio com um orifício de bala que se presumiu ser do Führer e que foi, igualmente enviado para Moscovo. Nada mais. Restava a realidade indesmentível: Adolf Hitler tinha sido mais nauseabundo e repelente vivo do que em morto. J A grande preocupação de Hitler era que não pudessem fazer com o seu cadáver o que tinham feito com o de Mussolini O bunker de Adolph Hitler foi revolvido por todos os que chegaram após a sua morte. Mas poucas conclusões se tiraram do seu suicídio que não tenham sido retiradas dos testemunnhos { 8 } Epidemia da dança de 1518 Uma espécie de milagre do avesso gora, a estranheza já não nos pede licença. Abandonou os seus modos discretos, e ganhou uma soturna altivez. Não fica ao lado, puxando a manga, pedindo uma moeda ou um minuto da nossa atenção, prometendo que nos fará pasmar. Já não está com os mendigos, mas somos nós que, com um ar um tanto siderado, diante dos seus paraísos (ou infernos) dispersos mastigando-se, buscamos os seus sacramentos. Nesta hora, estamos imensamente sugestionáveis, porque a realidade que dávamos por garantida fez as malas e desapareceu. Tudo o que nos deixou foi um bilhete num tom quase sardónico. Nesta hora, todas as garantias de nada nos servem. E a rotina nunca nos pareceu tão mesquinha, e, no entanto, o quotidiano (...essa máquina de lavar) parece estar avariado. Ou estamos sozinhos ou entregues a uma «organização menor da lepra em família» (Mário-Henrique Leiria). Isolados, entregues a tarefas frágeis, nas «pequenas fábricas do acontecer». Repomos os stocks da «esperança empacotada», cozinhamos, comemos, lavamos os pratos, e a sensação é de que estamos «todos na panela sem tempero hoje» (ainda do mesmo poema – ‘Aviso Urgente’ – de Mário-Henrique Leiria). Enquanto isso, sabemos que há vítimas nesta história, mas, para a maioria, não chegámos ainda a essa parte. Por agora, estamos como a cobaia, numa tragédia que está ainda longe de lhe parecer familiar, e, por isso, os sentidos estão de novo alerta. Se alguns se viram para a poesia, para histórias que colecionam cartão e reinterpretam as sobras e o lixo como memórias de uma época que nos abandonou há semanas e que, por momentos, nos parece arruinada, outros viram- se para esses fluxos de informação que narcotizam e envenenam, inoculando-os com o vírus paranoico. É nessas esquinas que «a narrativa cai na prostituição», e vai atrás das obsessões e medos de cada um. Como referia o romancista turco Orhan Pamuk, Nobel da Literatura em 2006, que há quatro anos está embrenhado na escrita de um romance sobre o terceiro surto da peste bubónica que, em 1901, matou milhões de pessoas na Ásia, se a tendência dos Governos, no início de uma pandemia, é para entrarem em negação, diluindo os números das vítimas entre outras causas de morte, outra das tendências que sempre se verificam na resposta a estas invasões que exploram ao limite a nossa incredulidade é a tendência para, ao despertarem, as populações ficarem propensas a embarcar em todo o tipo de rumores e nas teorias mais absurdas. Mas Pamuk nota que, se este estupor diante das pandemias do passadoera causado pela repercussão de informações falsas e a impossibilidade de ter uma visão mais global do fenómeno, hoje uma pandemia atinge-nos como uma avalanche de informação, e o terror tanto pode alimentar-se de mentiras como de verdades. «À medida que vemos os pontinhos vermelhos nos mapas dos nossos países e do mundo a multiplicarem-se, damo-nos conta de que não há para onde fugir. Já nem precisamos da nossa imaginação para começarmos a recear o pior dos DIOGO VAZ PINTO diogo.pinto@sol.pt{ } Há 500 anos, em Estrasburgo, mais do que a miséria e a fome, a ansiedade diante da perspectiva da morte sem qualquer redenção, e de uma eternidade de castigo, deu origem a uma das mais fascinantes epidemias da História. Olhando para o passado, somos lembrados de que a natureza humana foi sempre capaz de engendrar crenças tão devastadoras como as piores pestes. E neste período de incerteza, estão reunidas todas as condições para uma nova criação cheia de poder destrutivo. A { B.I. } SURTO { 9 } cenários. Vemos os vídeos das caravanas de carrinhas militares a transportarem os corpos dos pequenos povoados italianos para crematórios nas imediações como se estivéssemos a assistir à procissão do nosso próprio funeral». A HISTÓRIA COMO CONSOLO Agora que estão a ser ensaiadas as primeiras medidas de alívio no regime de quarentena, sempre sob a ameaça de uma nova vaga de contágio que possa reconduzir-nos ao confinamento, é importante pensar nos efeitos a longo prazo desta forma de suspensão da normalidade, e recordar epidemias psíquicas ou nervosas que foram desencadeadas por esta alvorada súbita que lançou o amanhã no reino das incertezas. Agora que «a ruminação se tornou a moeda em circulação nesta nova realidade», Pamuk, como tantos outros autores, incita-nos a tirar algumas lições de um tempo em que não havia jornais, rádio, televisão ou internet, em que a maioria iletrada estava à mercê da sua imaginação, dependendo desta para se guiar, para tentar lançar algum contorno a uma ameaça invisível, e cujos avisos que servia muitas vezes, estavam a um respiro da própria destruição e tormento que causava. «Esta fé na imaginação dava aos medos de cada pessoa uma voz individual, e imbuía-a de uma qualidade lírica – localizada, espiritual e mítica», diz-nos Pamuk. Neste momento, a quietação nas nossas ruas monta o palco para o desassossego das conjeturas e intrigas que a imaginação é capaz de levar à cena dentro de cada um de nós. Quer queiramos quer não, nos próximos meses e com a sucessão dos surtos do novo coronavírus, iremos mergulhar, divididos em grupos, e suspensos de «arneses oscilantes», nesta nova, complexa e desoladora realidade, a História serve-nos sempre de consolo, quanto mais não seja ao lembrar- nos que, mesmo a sul do hemisfério de todas as nossas certezas, além de longas campanhas, sempre tivemos exploradores e assentadores de colónias. Seja Ao longo da História, a humanidade desencantou uma série de epidemias psíquicas ou nervosas CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P { 10 } como for, para cada um de nós, enquanto esperamos que os especialistas nos façam chegar as legendas para esta nova realidade, como referiu a romancista norte- americana num ensaio publicado pela The New Yorker, «ainda ninguém sabe como ou quando a pandemia de Covid-19 irá terminar». E isto quer dizer que fomos reconduzidos a esse território hoje desativado pela teologia católica, mas que permanece algures no terreno da imaginação: o limbo. E «o limbo é um sítio difícil onde buscar residência», como nota Russell, adiantando que é também difícil descrever esse lugar feito do que não se sabe a alguém que acabou de ali chegar. UM FIO DANÇANTE QUE SÓ A MORTE CORTOU Não desistindo, para já, desse propósito, podemos recuar um pouco mais de 500 anos, e desentranhar um dos mais insólitos capítulos de entre esses acontecimentos que conferem à estranheza todos os meios e recursos para atirar com a razão de volta a um estado de quase hipnose, vagando em espanto entre formulações fantasiosas e meros efeitos de superstição. A 14 de julho de 1518, na cidade de Estrasburgo, uma mulher perdeu de todo o juízo. Desfê-lo em fanicos. Perdeu-o como tantas mulheres ao longo da História, não propriamente num surto de sandice, mas talvez mais por um excesso de razão. E perdeu-o de forma admirável, lendária. Na manhã desse dia, Frau Troffea deu uns passos para fora da sua casa, e como não havia saída, não havia fuga, pôs-se a dançar sobre a calçada. Deixou a residência como quem bate com a porta para estalar alguma aflição, e não precisou de qualquer acompanhamento musical para traduzir numa solitária valsa o seu desespero. Ainda que o marido tenha vindo atrás dela e lhe rogasse insistentemente que se deixasse de figuras, ela continuou ao longo de horas, como quem chama a graça para se libertar de alguma maldição, e logo o céu escureceu e com a noite esta mulher acabou finalmente por colapsar ficando o seu tumulto reduzido a uns tremores e espasmos de exaustão. Mas com o amanhecer lá estava ela tomada desse fulgor de aparição, com os pés inchados, magoados, pisados pela claridade que dançava com ela, e nem a sede ou a fome a impediam de se queimar naquela fogueira. No terceiro dia, aquele estranho transe criou a sua embaixada de rumores. Por toda a cidade começou a ouvir falar-se da louca que se tinha posto a dançar sozinha na rua, e de entre os vendedores ambulantes, os putos e os mendigos, peregrinos e padres, foi-se formando uma assistência, que facilmente imaginamos ora inquisitiva e perplexa ora divertida, entre o abanar de cabeça e o comentário jocoso diante desse tão descabido apontamento rítmico para uma música em falta. Frau Troffea persistiu ao longo de entre quatro a seis dias, dependendo dos diferentes relatos, até que as autoridades decidiram intervir, levando-a à força para uma carroça que a levou para Saverne, a uns bons quilómetros de distância, para que, na catedral dedicada a São Vito, pudesse recobrar da sua afecção. Acreditava-se que este santo protegia os possessos de um sentido da graça, fossem atores, comediantes, dançarinos. Era a ele que rogavam aqueles que eram afligidos pela epilepsia, por essas maldições que atingiam os espíritos que pareciam ter transbordado. Por esses tempos, contava-se que o santo estaria encolerizado com o ambiente de dissolução que reinava, em que não eram apenas os fiéis que tinham mais propensão pelos vícios que pelas virtudes, mas os próprios padres não se atrapalhavam ao serem vistos a sair dos lupanares. Mais do que temores, havia a expectativa de um ajuste de contas, de uma danação que estaria por vir. Circulavam estórias de pessoas acometidas por estranhas perturbações, almas que podiam ouvir os demónios disputando-as num leilão. Falava-se de pragas em que as vítimas perdiam o controlo dos seus corpos, e era àquele santo que eram devidas libações. Nos insultos, nas pragas que os habitantes de Estrasburgo trocavam, o culto de São Vito recaiu numa espécie de maldição que se desejava a quem quer que desse mostras de mau caráter. «Que Deus te entregue à fúria de São Vito», era uma frase que se cuspia sobre um inimigo. E havia uma tamanha desconfiança das próprias autoridades eclesiásticas, que muitos dos crentes acreditavam que, caso morressem estariam condenados, isto porque nem os seus batismos ou outros sacramentos tinham qualquer validade, uma vez que tudo parecia estar mergulhado num clima de profanidade. Esse pessimismo teria evoluído para uma forma de misticismo, o que tornava as pessoas suscetíveis à { B.I. } SURTO { 11 } ideia de que o juízo de São Vito acabaria por se abater sobre elas. Se as autoridades afastaram a mulher, pondo cobro àquele talismânico desacato, o certo é que houve testemunhas que ficaram de tal forma impressionadas que não deixaram que aquele ritual se perdesse, e entregaram-se aesse fervor, o que levou a que, no espaço de alguns dias, em vez de uma mulher solitária, mais de trinta pessoas estivessem ligadas nesse fio dançante, e algumas tomadas de um tal frémito que só a morte soube convencê-las a parar. Dançavam como se os seus corpos se fossem romper em mil pedaços. As paragens eram decididas pela exaustão, e logo que se recompunham retomavam o seu lugar naquele frenesim. Nas tantas descrições em documentos históricos – sejam crónicas locais, observações médicas ou os sermões com que os curas sempre se refortaleceram como pioneiros da propaganda –, os corpos surgem como vestes pesadas sobre o espírito, corpos que se despem ou descarnam, e em que o suor quase lhes lavava os traços do rosto. O que parecia uma celebração à distância, ao perto entrava em detalhes ominosos. Os olhos vidrados, perdidos numa distância impossível de situar. A dança era o próprio chicote. As roupas cobriam-se de sangue. Era um ritual em que o prazer maníaco estava em desfigurar-se. E, assim, os rumores cativaram todo um caldo de crenças envilecidas, com raízes no sobrenatural. Era preciso apaziguar a raiva divina, e com os dias a transformar- se em semanas, já não eram dezenas mas centenas de pessoas a dançar. Mais de duzentas. E agora era a cidade inteira que parecia estar a resvalar para esse delírio frenético, sem que ninguém soubesse explicar exatamente as suas causas, ou como curá-lo. A FOME E O DIVINO Chegamos a este ponto e a narrativa, não fosse pelo aspeto verídico, tem um cheiro a descolado. É aquele ponto em que a realidade pesa mais do que qualquer explicação. E o leitor, sensível mas pragmático, pensa nesses cultos descocados em que o lobo se disfarça de pastor conduzindo o rebanho para o precipício da razão, tendo o cuidado de instruir as ovelhas a tosquiarem-se a si mesmas e deixarem a lã e os restantes bens ao seu cuidado. Nesses estados de transe, o corpo é um trapo a secar ao vento, aliviando-se do sangue negro que o mancha, da dor, da exaustão, do sentido de privação e abuso que a sociedade comete contra o indivíduo. Está explicado: é o ópio e tal. E, contudo, há uma margem de incerteza que persiste, um mistério que, mais de cinco séculos depois, continua a puxar-nos de volta para esse e outros surtos epidémicos difíceis de compreender, e que nos dizem que um vírus ou uma crença são igualmente capazes de nos puxar para uma dança à beira do abismo. De resto, o historiador John Waller, que em 2009 publicou a grande obra de referência sobre a epidemia da dança de 1518, ‘A Time to Dance, a Time to Die’, escolheu abrir o livro com uma citação de H.C. Erik Midelfort, de A History of Madness in Sixteen-Century Germany (1999), em que a prepotência com que encaramos o passado é alvo de um veemente aviso: «Todas as formas de demência do passado não devem ser tomadas como entidades petrificadas que podem ser colhidas dos seus nichos e colocadas debaixo dos nossos microscópios modernos. Elas parecem-se mais, talvez, com medusas que colapsam e secam ao serem removidas da água salgada onde nasceram.» No período em que a epidemia da dança eclodiu, havia um sentimento de suspeita generalizado, uma Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), disse ter presenciado um surto semelhante em 1564, e deixou disso retrato (em cima) Depois da primeira vítima, uma mulher, mais de trinta pessoas entregaram-se com fervor ao macabro espetáculo CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P { 12 } { B.I. } SURTO desconfiança das instituições, a começar pelo clero, bastante permeável a todo o tipo de indiscrições morais, luxos, opulência, e o contágio da hipocrisia em que a linguagem, os apelos, as virtudes propaladas, tudo respira um ar de falsidade. Havia fome, e depois havia esses discursos que nos atravessam com a sensação de miséria profunda que caracteriza o abandono do espírito, da ideia da divindade como última consequência de busca da verdade. O exemplo da pobreza de Cristo era esfregado na cara dos crentes, isto quando famílias inteiras sucumbiam. E depois da morte, ainda tinham de recear pelas suas almas, quando os responsáveis por dar às pessoas os sacramentos não passavam de uns porcos. Que castigo não seria se depois de uma vida miserável ainda fossem condenados ao inferno por esses «condutores de noite aprisionada». A SANGRIA E UM RITUAL MALDITO Mas esta história não acaba assim. A epidemia da dança trouxe uma espécie de reviravolta. O conselho da cidade assumiu a responsabilidade de encontrar uma cura para a maldição. Afinal, Frau Troffea havia recuperado depois de ser levada para as montanhas. Inicialmente, viraram-se para os médicos, que, por esses dias, eram pouco mais do que uma ordem xamânica, com a vantagem de ter muitos associados, beneficiando, portanto, de muitas observações mas, também, sujeita a embarcar nos seus próprios delírios epocais. A opinião dos médicos da região era de que tudo não passava de «sangue excessivamente quente». Nestes casos a prática mandava que fosse prescrita a sangria dos pacientes, mas, talvez por questões logísticas, deverá ter parecido que a forma mais fácil de lidar com o problema seria incentivar a continuação da dança até que, por efeito de exsudação, a coisa fosse ao lugar. Para o efeito, o conselho pagou a carpinteiros e curtidores para que erguessem palcos temporários nos salões da sua guilda, além de plataformas junto ao mercado e à vista de toda a gente. Ali, os amaldiçoados dançarinos foram até encorajados a prosseguir o seu demente exercício, e para ajudar à recuperação, dezenas de músicos foram pagos para tocarem tamborins e pandeiretas, violinos, flautas... Para lhes dar ânimo, foram até contratados dançarinos para dar alguma cor e harmonia aquela estranha forma de carnificina. A esperança das autoridades era criar as melhores condições para que aquele ritual maldito se esgotasse e diluísse numa cerimónia menos desoladora. Mas o plano saiu gorado. Pior do que isso agravou ainda mais as coisas. Mais inclinadas para embalar na explicação sobrenatural do que na pobre teoria clínica dos médicos locais, o público caiu naquela espécie de pavoroso encantamento. Também eles queriam esquivar-se à fúria de São Vito, sacrificando-se. Quem muito peca invariavelmente entra pela morte com pele de galinha. Às tantas eram quatrocentas as pessoas a dançar em simultâneo nos palcos distribuídos pela cidade. A conversa do sangue quente já não pegava. E o clero que, até ali, se tinha mantido um tanto à margem, tomando a doença como uma abominação, viu alguns padres saírem da formação para prestar auxílio aos afligidos. Em vez de desconsiderarem os seus delírios, convenceram-nos a calçar uns sapatos vermelhos que haviam sido Chegaram a ser quatrocentas pessoas a dançar em simultâneo nos palcos improvisados pelas autoridades Em cima, uma representação da histeria em massa de um autor desconhecido. Ao lado: gravura de Henricus Hondius (1597-1651) a partir do esboço de Pieter Brueghel, o Velho { 13 } benzidos e a seguirem-nos numa peregrinação até Saverne e ao mosteiro dedicado a São Vito. Não era uma tarefa simples subir as montanhas num grupo de centenas, muitos seriamente desgastados ao fim de semanas de exercício intenso. Foi organizado um extravagante ritual, como uma serpente avançando por entre uma nuvem de incenso, com as velas como escamas a luzirem ao longe. E esta marcha solene não apenas deu rédeas às pessoas sobre os seus movimentos como sobre o desespero que as tomara. Mas também os padres, empunhando relíquias e imagens religiosas, se deixaram reconverter à fé que pregavam e, assim, a epidemia serviu para devolver a Igreja às pessoas. A epidemia da dança de Estrasburgo durou mais de um mês, em dias de calor tórrido, entre meados de julho e finais de agosto ou início de setembro. No seu auge, morriam de exaustão ou enfarte, cerca de 15 pessoas por dia. O balanço final demortos não se conhece, mas basta somar as mortes diárias durante o mês de Agosto para chegarmos às centenas. Também nós já começámos a endereçar ao vírus algumas orações. Não é que o vírus seja uma manifestação divina, um castigo que se abateu sobre quem dança violentamente, num ritmo cada vez mais acelerado, e que há muito ignora todo o compasso musical, tendo-se incompatibilizado com qualquer harmonia superior que desvele os compassos da unidade da criação. Não é que acreditemos em milagres, simplesmente, a humanidade que nos resta não consegue deixar de se horrorizar com o crime da nossa época, o crime contra as gerações mais novas, as gerações futuras. Este crime de termos embalado numa forma de «niilismo que tragou a realidade inteira, transformando a natureza num cadáver e aniquilando o presente» (Claudio Magris). Não é que o vírus não seja um flagelo, um desastre sem sentido. É que a humanidade não sabe fazer outra coisa, sobretudo em períodos de incerteza, do que organizar a realidade contando-se histórias, lendo os seus sinais, criando paralelos, à luz dos seus mitos e crenças. E o vírus veio sublinhar o que já sabíamos. A imensa ansiedade com que estávamos a viver fica a um passo do desespero absoluto. Depois disso, se não houver um vírus que nos faça parar, seremos nós a conceber um. Uma espécie de milagre do avesso. J Epidemia de riso de Tanganica Na região da Tanganica, atual Tanzânia, em 1963, duas adolescentes de uma escola missionária desataram a rir descontroladamente. Os colegas foram contagiados e de repente dois terços da escola estava a desfazer-se em gargalhadas. A escola foi fechada. Em casa, os alunos ‘infetaram’ as suas famílias e vilas inteiras foram tomadas pela histeria. Os médicos registaram centenas de casos, com duração média de uma semana. Epidemias bizarras ‘Koro’ de Singapura Koro é uma ‘maldição’ que envolve a retração do pénis, mamilos ou vulva. No caso da ‘epidemia’ de 1967 em Singapura, o British Medical Journal relatou no ano seguinte que «uma súbita sensação de retração do pénis no abdómen» era a principal característica. Isto, a juntar-se à ideia de que «se não fosse feita alguma coisa, o pénis desapareceria no abdómen levando à morte», levou a que os contagiados tentassem impedir o encolhimento, recorrendo a objetos como tenazes e elásticos. Freiras a imitar animais As condições em que as freiras da França e da Alemanha viviam no confinamento dos conventos a partir do século XV parece tê-las tornado especialmente suscetíveis a surtos de histeria em massa. Um cronista, escrevendo em 1844, relata os rumores que lhe chegaram de um convento em França tomado por uma dessas ‘pragas’ que a Igreja associava a possessões demoníacas, e em que uma a uma as freiras eram tomadas por um furor que as levava à imitação de gatos. Houve relatos de outras situações com a imitação de cães e pássaros. A epidemia de dança de Estrasburgo durou mais de um mês e chegou a matar 15 pessoas por dia { 14 } { B.I. } HISTÓRIA total da polícia. A nobreza e a decência viajavam nas carruagens dos vencidos. Ngungunhane, ou Gungunhana, o Leão de Gaza tinha medo. Um medo terrível da morte. Estava convencido de que iria ser fuzilado em Lisboa. Suplicou pela vida. Pediu a António Enes, Ministro da Marinha e do Ultramar que o levasse à presença do Rei D. Carlos. Perguntou, angustiado: «Digam- me o que querem de mim. Vou morrer? Para que lhes sirvo eu?» Aires de Ornelas, outro militar que se distinguiu nas campanhas de África, descreveu-o desta forma. «É um homem alto. E sem ter as magníficas feições que tenho notado em tantos seus, tem-nas, sem dúvidas, belas, testa ampla, olhos castanhos e inteligentes e um certo ar de grandeza e superioridade». Mdungazwe Ngungunyane Nxumalo, ou N’gungunhana, ou Gungunhana ou ainda Reinaldo Frederico Gungunhana cometera o crime imperdoável de herdar o reino de Gaza, esse território a sul de Moçambique, uma área costeira entre os rio Zambeze e Lourenço Marques, que se considerava independente desde que Soshangane, igualmente chamado de Minicusse, em 1828, o manteve separado dos zulus, integrando o reino de Tsonga, comerciando marfim com os portugueses que se tinham estabelecido na costa, de Lourenço Marques a Inhambane. Soshangane era zulu, foi muito próximo de Shaka Zulu, o guerreiro que criou um exército capaz de fazer tremer o império britânico, mas tinha uma etnia particular: jamine. Anunciou-se como Rei de Gaza e acabou por ter apenas três sucessores, Mawewe, Muzila e o seu filho Mundungazi, o Gungunhana, homem de todos os nomes. O Gungunhana era poderoso: reinava sobre mais de 90 mil quilómetros quadrados e mais de milhão e meio de habitantes. Aos 34 anos tomou o lugar do pai e logo numa altura em que o território de Moçambique era extremamente cobiçado por ingleses e alemães que procuravam minar a presença portuguesa. Barros Gomes, Ministro dos Negócios estrangeiros, assinou com Otto von Bismark um pacto de delimitação das colónias dos dois países, Portugal avança com o projeto do Pacto Cor de Rosa e a Inglaterra apresenta o ultimatum a 11 de janeiro de 1890. A situação é anárquica. Diplomaticamente, os portugueses procuram a aproximação aos vátuas, povos que falam as línguas angunes, e ao seu novo régula, o Leão de Gaza. As imposições britânicas são claras: retirada imediata e total das forças portuguesas da Niassalândia e da zona do atual Zimbabué, ocupada pelos macololos e pelos machonas. Entretanto elegem a região de Gaza e o porto de Lourenço Gungunhana rotesco: parece ser esta a palavra que vem a calhar. Pelas ruas de Lisboa, desde o Arsenal até Monsanto, dava a sensação de que se repetia uma cena da velha Roma imperial. César segue na frente da comitiva, exibindo os seus exóticos prisioneiros como troféus. Os basbaques juntam- se, de baba bovina ao canto da boca, admirando a grandeza dos seus heróis, desprezando a dignidade dos derrotados. Uma das imagens mais salientes da história colonial portuguesa não passou de uma pantomima grosseira. A tarde está no fim. Corre o dia 13 de março de 1896. Seis carruagens abertas, escoltadas por 30 praças de cavalaria, percorrem o traçado previamente definido ao longo da capital: as três primeiras exibem à populaça feroz dez mulheres de ar altivo, enfeites vistosos, altas, bonitas, carapinhas bem penteadas e, segundo um testemunho da época, mais castanhas do que pretas; a quarta é ocupada por Gó, o cozinheiro; a quinta transporta bagagens, sobretudo trouxas e esteiras para dormir; fechava a parada bacoca uma carruagem onde viajavam os ilustres capturados - Matibejane, Molungo, o Gungunhana e o seu filho Godide. Como selvagens, os que se juntavam para assistir a esta anacrónica procissão insultavam os prisioneiros e atiravam-lhes lixo sob a passividade AFONSO DE MELO afonso.melo@sol.pt{ } À maneira dos desfiles da Roma Imperial, Lisboa foi palco de uma das mais reles exibições de prepotência. O régulo e o seu séquito foram exibidos como troféus de caça, do Arsenal à Cadeia de Monsanto, em carruagem abertas que provocaram o caos nas ruas entre curiosos e gente cheia de ódio que fez chover insultos do pior. G PRESO NO CIRCO, O LEÃO DE GAZA MORREU BÊBADO { 15 } Marques para escoamento das matérias-primas do Transvaal. Cecil Rhodes, que não era conhecido pelos seus escrúpulos, tratou de comprar o Gungunhana com um milhares de espingardas e um subsídio anual em dinheiro em troca da exploração de minérios e acesso ao mar. O Leão de Gaza tem o peito cheio de vento. Pensa poder jogar as sua pedras no conflito diplomático que existe entre Lisboa e Londres. Mas Lisboa e Londres entendem-se sem que ele o saiba. Gaza é considerada território interior de Moçambique no acordo assinado em junho de 1891. O Gungunhana recebe uma intimação inesperada: deve assumir-se como súbdito português! Era humilhante. Buliu-lheprofundamente com o orgulho. A QUEDA! «U Ngungunhane! Uya Ngungunya e bafazi ne madoda!», gritavam os vátuas em honra do seu régulo. «Tu és o Gungunhana! Aterrorizarás as mulheres e os homens!» A presunção era exagerada. Gungunhana tornara- se demasiado incomodativo para o Governo português e para a sua política colonial. Georges Liengme, médico missionário suíço, que viveu no Império de Gaza, analisou-o atentamente: «Toda a sua política é de tal modo falsa, absurda, cheia de duplicidade que se tornava difícil entender os seus verdadeiros sentimentos». O coronel Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo não estava mais preocupado com as chicanas políticas do régulo. Comandava uma coluna de 700 homens que, no dia 11 de novembro de 1895, abre as primeiras hostilidades em Manjacaze, capital de Gaza, e a fuga dos locais é generalizada. A pilhagem é total. As palhotas são incendiadas. O Gungunhana treme. Refugia-se em Chaimite, a aldeia sagrada dos jamines. Mas é um homem condenado. António Enes ordena a sua captura ou a sua morte para que o receio de o ver reunir os povos ngúnis e seus aliados não volte a atormentar-lhe os sonhos. O major de cavalaria Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque é o homem escolhido para a missão. Fulano vaidoso, dado a ligeiras libações alcoólicas, decide fomentar um espetáculo para a História. Parte em direção a Chaimite no dia de Natal. Leva consigo apenas dois tenentes, um médio, 49 praças portuguesas e 200 auxiliares africanos. A sua imaginação podia conceber os quadros napoleónicos que pintariam (e pintaram) para eternizar a sua façanha. O Gungunhana tinha decidido render-se e já informara o exército português da sua intenção, pelo que a teatralidade de Mouzinho foi francamente exagerada. Pelo caminho foi abordado por Godide, o primogénito de Gungunhana, sucessor do trono de Gaza. Era uma tentativa desesperada para que os portugueses não entrassem em Chaimite antes de o pai estar preparado para se render com o mínimo de dignidade. Trazia, para selar a súplica, 510 libras em ouro e 63 búfalos. Mouzinho de Albuquerque desprezou a oferta. No dia 28 estava às portas da aldeia. Ainda havia um foco grande de resistência. Conta a lenda que, ao nascer do sol do dia seguinte, infiltrou-se por uma fresta aberta na paliçada que rodeava o povoado e pela qual apenas podia passar um homem de cada vez. Os soldados seguiram-no e a surpresa foi avassaladora. 300 guerreiros fogem cada um para seu lado, o Gungunhana é feito refém com a sua família à porta da cabana onde estava refugiado, mas Albuquerque quer sangue para pintar o quadro. Manda fuzilar, sem julgamento, Mahune e Queto, respetivamente conselheiro e tio do imperador, considerando-os os instigadores da rebelião de Gaza contra os portugueses. Não lhe chega. Precisa ainda de mais dramatismo: manda que lhes tirem os corações dos peitos e os trespassem à espada. Às 10 horas da manhã, Chaimite estava arrasada. Mouzinho e o seu grupo arrastam consigo os prisioneiros até à lancha-canhoneira Capelo, CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P { 16 } { B.I. } HISTÓRIA Ainda assim foram expostos num palanque erguido frente ao palácio do governador e sujeitaram-se ao tribofe de mais de oito mil pessoas excitadas até à medula óssea. O Gungunhana e as suas gentes já estavam dispostos a suportar todas as aleivosias nesta exibição mazomba do poderio do grande império português que ainda cinco anos antes tinha rastejado de forma sabuja perante a que ficou conhecida como pérfida Albion. Mas seguia-se algo que, para eles, mexia com todos os tabus: a viagem para Lisboa. Os nobres ngunis estavam proibidos de atravessar o mar. E um naco do Índico e a maior parte do Atlântico abria-se na sua frente como um vácuo ameaçador. No dia 13 de janeiro foram embarcados à força no África com mais 284 passageiros e 215 militares. Sofrem horrores, mas não é problema que incomode os seus algozes. O navio fundeia ao largo de Cascais no dia 12 de Março. Iria começar a pândega... Toda a gente queria ver, nem que fosse pelo canto do olho, o terrível Gungunhana. O África é rodeado por botes e barcos a remos apinhados de curiosos. Um grupo de jornalistas é autorizado a subir a bordo para observarem e escreverem sobre as feras aprisionadas que tinham vindo de Gaza. As condições que descrevem são de envergonhar reles piratas. Os 16 reféns estão confinados a um espaço minúsculo com dois patamares de beliches. Nas esteiras superiores, viajaram o régulo e as suas mulheres. Nos estacionada em Zimacaze, nas margens do rio Limpopo. O Leão de Gaza, temido por toda a África, insubmisso ao homem branco, começava a sua longa jornada para Lisboa. O episódio da sua captura transformou Mouzinho de Albuquerque numa das grandes personagens da história de Portugal. E ele soubera fazer muito para que tal acontecesse. UMA QUESTÃO DE MULHERES! Namatuco, Machacha, Patihina, Xisipe, Fussi, Muzamussi e Dabondi: eis os nomes das sete mulheres que o Gungunhana pôde escolher para saírem consigo de Chaimite. Godide, o filho, e dois tios, completam o grupo dos capturados. A marcha é acelerada. Os portugueses não demonstram qualquer tipo de sensibilidade para com os prisioneiros. Um simples atraso ou tropeção é castigado a pontapés ou a coronhadas. Chegados a Zimacaze, havia centenas de pessoas atraídas pela curiosidade de verem o rei deposto e humilhado. A Capelo navegou até à foz, parando pelo caminho, em Languene, para recolher o príncipe Matibejane de Zixaxa, e três das suas mulheres, alargando o leque de reféns. No dia 31 de dezembro, em Chai-Chai, todos foram transferidos para bordo do vapor Neves Ferreira que os transporta para Lourenço Marques pelo meio de uma tempestade. Também na capital moçambicana está preparada uma cena de circo, embora numa escala bem mais modesta do que a de Lisboa. Gungunhana: o terrível régulo assassino que foi pintado como um dos grandes inimigos do império português. Depois de preso, revelaram-se todas as suas infinitas fraquezas Gungunhana e algumas das suas mulheres. Teve mais de 200 esposas. Acabou sozinho { 17 } beliches inferiores aguentaram-se como puderam Godide, o príncipe Metibejane com as suas três mulheres, Pembane, Oxaca e Debeza, Molungo, tio de Gungunhana, e Gó, o cozinheiro. O cheiro era insuportável. No Diário de Notícias, uma reportagem descrevia o seguinte: «Quando entramos nos alojamentos estavam todos os pretos deitados e o Gungunhana, que ocupava uma extremidade da tarimba, tinha o rosto coberto. Alguém lhe descobriu a cara e o preto despertou, olhando para todos com olhos desconfiados. Pouco depois, como os jornalistas e outras pessoas admitidas a bordo eram cada vez em maior número e o espaço faltasse, foi ordenado que subisse a pretalhada para a tolda, onde se faria a sua exibição». O nome do escriba tem direito ao prémio dos birbantes: o anonimato. Toda a história da captura de Gungunhana, o Imperador de Gaza, ensinada com tanto enlevo e empenho nos tempos tão distantes da minha Escola Primária, fica marcada por uma torpeza e uma indignidade que deviam envergonhar-nos quanto povo perante a forma praticamente esclavagista como o régulo e o seu séquito foram tratados. Com o tempo, algum pudor cobriu os acontecimentos com um diáfano manto de comedimento e o estilo napoleónico de Mouzinho de Albuquerque já não é propriamente fascinante para estas novas gerações. Recordo-me das imagens de Albuquerque à garupa do seu cavalo e da figura gorda e meio abandalhada do Gungunhana e de pensar para comigo que o Leão de Gaza não tinham um ar mais feroz do que os leões pindéricos do Circo Areola Paramés. Atirados para as casamatas do Forte de Monsanto, os africanos enregelavam ao ponto de o Gungunhana ter sofrido uma pleurisia. Godide, que falava bem português, assumiu o papel de tradutor, mas os carrascos não estavam para grandes conversas. Do lado de fora dos muros do forte,havia arraiais populares, rulotes de comes e bebes, gente sempre a ir e a vir na esperança de um vislumbre dos terríveis guerreiros que o herói Mouzinho de Albuquerque obrigara a vergar a cerviz. O ridículo atingiu o ponto de se venderem postais do Gungunhana, de uma fábrica da Pampulha lançar uma Bolachas Gungunhana e abrir, no Areeiro, um Casa de Petiscos Gungunhana. O rei D. Carlos estava metido numa camisa de onze varas. Mouzinho de Albuquerque foi perdendo, a pouco e pouco, a aura mágica que o rodeava, à medida que mais pormenores do assalto a Chaimite se foram sabendo. Soares de Andrea, oficial da Armada, comandante da canhoneira Capelo, escreveu um relatório assassino chamado ‘A Marinha de Guerra na Campanha de Lourenço Marques e Contra o Gungunhana’, no qual desmentia muitas das afirmações de Albuquerque e o acusava mesmo de ter cometido crimes militares. Já instalados nos Açores, num estilo europeizado. Da esquerda para a direita: Gungunhana, Godide, Zichacha e Molungo CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P { 18 } { B.I. } HISTÓRIA A feira popular espontânea de Monsanto também não contribuía em nada para a decência e respeitabilidade da cidade de Lisboa. O arraial permanente, os coros de insultos aos prisioneiros, a lixeira a céu aberto em que os terrenos em redor se tornavam diariamente, ajudaram à decisão governamental de 22 de junho: embarcar o Gungunhana e o seu séquito no Zambeze, navio de grande porte, e enviá-los para o degredo na Ilha Terceira, nos Açores. Mas isso estava longe de resolver outro tipo de questões, sobretudo as que a igreja levantava incessantemente. Em Gaza, gozando da total liberdade de régulo, Gungunhana tomou para si mais de 200 esposas, 40 delas instaladas na corte, as restantes espalhadas pelas aldeias vizinhas. Agora via-se impedido de levar consigo para os Açores as sete que trouxera para a Metrópole. As autoridades portuguesas não estavam dispostas a aturar o grande escândalo da poligamia. Quando, no dia 22 de junho de 1896, um grupo de militares surgiu em Monsanto, de surpresa, para levar os prisioneiros para bordo do Zambeze, Gungunhana convenceu-se de que iria ser executado. Engano total: enfiaram-no num fato novo encomendado para a ocasião, mas tão apertado que não tardou em rasgar as calças de brim. Só então percebeu que todas as mulheres e o cozinheiro Gó não sairiam com ele. O histerismo apoderou-se delas, mas em vão. Teriam de suportar a cadeia por mais uns dia. A 6 de julho foi a sua vez de partirem, neste caso para São Tomé. O jornal O Paiz publicou sobre a separação: «Afinal parece que as pretas do Gungunhana e Zixaxa já não vão para Angola, como se havia propalado. Agora diz-se que o governo tenciona mandá-las para São Tomé. Ora a verdade é que essas pobre negras nunca deviam ter vindo para Lisboa, nem elas nem os prisioneiros de guerra. As pretas podiam muito bem ter ficado em Moçambique e o ex-rei de Gaza e os seus companheiros podiam ter ido logo para Angola ou para os Açores. A Lisboa é que não havia necessidade nenhuma de os terem Os portugueses instalados em Moçambique levavam uma vida tranquila e requintada. Não estavam dispostos a que alguém pusesse isso em causa A grande revolta dos soldados de Shaka Zulu fez tremer o império britânico e temer que outros reinos idênticos surgissem para combater o colonialismo A rendição do Gungunhana ganhou força de mito na tentativa de se fazer esquecer a humilhação do ultimato inglês de cinco anos antes. Era a prova provada da força colonial portuguesa { 19 } Mouzinho de Albuquerque ganhou uma aura napoleónica e as suas imagens enchiam os livros de História. O tempo trouxe à superfície uma realidade não completamente correspondente à que nos ensinavam na escola trazido. Mas o governo queria dar espetáculo e explorar com os pobres negros o patriotismo do povo, e por isso os mandou vir». De novo no Arsenal, para outra viagem através do mar, algo que lhe causava um pavor indescritível, o Gungunhana tombou num estado de inanição que foi preciso carregá-lo em ombros para o barco. Atingira o ponto mais baixo da sua condição humana. Após o chorrilho de humilhações, de iniquidades e de tratamentos infames a que fora sujeito, separarem-no das mulheres foi como se, de alguma forma, o tivesse matado por dentro. Jacinto Cândido da Silva, entretanto constituído Ministro da Marinha e Ultramar, deu-lhe a possibilidade de, perante as leis da santa madre igreja, escolher uma das mulheres para o acompanhar no exílio açoriano. O Leão de Gaza foi capaz de um último gesto de nobreza: «Não posso optar por uma de entre todas estas mulheres que amo». Por seu lado, a santa madre igreja tratou de fechar os olhos à prática semanal de arejar as tardes dos reféns em Angra do Heroísmo à conta das visitas a umas messalinas de bordel pagas para o efeito. Instalado no Forte de São João Baptista, na península do Monte Brasil, Gungunhana definhou na década que se seguiu. Com 46 anos, perdera tudo o que restava de compostura. O jornal regional A União, descreveu-o deste modo à chegada: «O grande e temível Gungunhana, caminhando na frente dos seus companheiros de infortúnio, descalço, com a fralda de fora, uma trouxa ao ombro, escorrendo em suor, feito um maltrapilho, comoveu-nos profundamente». Inseridos lentamente na rotina do lugar, os prisioneiros ganharam hábitos. O Gungunhana caçava coelhos no Monte Brasil e fazia cestos que vendia às gentes da terra. Recebiam todos um pré diário de 60 réis e começaram a ganhar liberdade de movimentos. O Dr. Liengme foi visitá-los e contribuiu fortemente para a sua cristianização concluída com o batismo coletivo na Sé Catedral pelo bispo de Angra do Heroísmo. O Gungunhana aprendeu a ler e a escrever perfeitamente português. Através de uma missiva, voltou a reclamar a reunião com as suas mulheres. Não obteve sequer resposta. Dentro do grupo, tornou-se um elemento à parte, muito distante da alegria comunitária de Zixaxa e Godide, sempre bem recebidos nas atividades sociais da cidade. O Leão de Gaza preferia a companhia da aguardente. Bebia como se disso dependesse a própria vida. Os estados de embriaguez eram frequentes e incomodativos. De tempos a tempos era detido por desacatos ou por tentativas de agressão. Georges Liengme apontou num dos seus diários: «Era um ébrio inveterado. Após qualquer das numerosas orgias a que se entregava, era medonho de ver, com os olhos vermelhos, a face tumefacta, a expressão bestial que se tornava diabólica, horrenda, quando nesses momentos se encolerixava». Morreu no dia 23 de dezembro de 1906, de hemorragia cerebral no Hospital Militar da Boa Nova e foi enterrado no cemitério da Conceição. O Leão de Gaza fora domesticado à força. Apenas o álcool lhe devolvia um pouco da ferocidade com que nascera em África sob o nome de Mudungazi. J { 20 } ma viagem de mil léguas começa com o primeiro passo», reza o Tao Te Ching, um livro de provérbios atribuído a Lao Tsé, pensador chinês do século VII a.C. Patrick Leigh Fermor despediu-se dos amigos a 9 de dezembro de 1933, numa tarde de chuvas torrenciais, e entrou para um ferry no Tamisa com destino a Hoek von Holland, na costa da Holanda. Era o único passageiro do navio. Levava uma mochila emprestada e pouca bagagem: «um velho sobretudo» adquirido poucos dias antes num armazém de excedentes militares, «diferentes camisolas, para usar em camadas, camisas cinzentas de flanela, um par de camisas brancas de linho para ocasiões mais elegantes, um corta-vento de couro macio, grevas, botas ferradas, um saco- cama (que perderia dentro de um mês e que nunca haveria de ser substituído nem de fazer falta); cadernos e blocos de desenho, borrachas, um cilindro metálico cheio de lápis Venus e Golden Sovereign», um bordão, dois livros de poesia e a promessa de uma libra semanal. Planeava, nos meses seguintes, caminhar por longas distâncias e para issonão podia ir muito carregado. Um mês antes tinha tido uma espécie de iluminação, como descreve no seu clássico Tempo de Dádivas, recentemente editado pela Tinta da China. «Mudar de ares; abandonar Londres e a Inglaterra e viajar pela Europa como um vagabundo – ou, na formulação original que usava comigo mesmo, como um peregrino ou um romeiro, um estudioso errante, um cavaleiro [...]. Viajaria a pé, dormindo sobre medas de feno durante o verão, procurando abrigo nos celeiros em caso de chuva ou neve». Atravessou a Holanda com uma rapidez que o surpreendeu. Ainda antes do Natal, passados poucos dias da sua partida, estava a chegar à cidade fronteiriça de Goch, na Alemanha. Hitler tinha assumido o poder no início daquele ano de 1933. «Havia bandeiras nacional-socialistas por toda a cidade e a montra da loja de roupa de homem ao lado exibia parafernália do partido: braçadeiras com suásticas, punhais da Juventude Hitleriana, blusas para as Donzelas Hitlerianas e camisas pardas para os membros adultos das SA». Ao final do dia, Patrick sentava-se «a uma mesa maciça numa pousada» para descansar as pernas, fumar, escrever no seu diário e apreciar uma { B.I. } LIVRO Patrick Leigh Fermor JOSÉ CABRITA SARAIVA jose.c.saraiva@sol.pt{ } Na Alemanha, olhavam para ele como se fosse uma ave rara quando se identificava como inglês. E ainda mais espantados ficavam quando dizia que estava a caminho de Constantinopla. Patrick Leigh Fermor ainda não tinha 20 anos quando, na década de 1930, atravessou a Europa a pé. Mais tarde descreveu a sua viagem em três volumes, o primeiro dos quais acaba de ser publicado em Portugal. U Um vagabundo à conquista da Europa CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P bebida espirituosa. Assistiu a algumas discussões acaloradas sobre política. Os partidários de Hitler impunham-se sempre, por serem mais militantes, mais convictos ou simplesmente mais agressivos. O regime nazi provocava ao jovem viajante britânico um sentimento de repulsa, quer pela perseguição que movia aos judeus, quer pela prática instituída de queimar livros. Teria, ainda assim, surpresas, como quando um castiço trabalhador em fato-macaco o convidou a dormir em sua casa e descobriu «que o quarto era um santuário de objetos relacionados com Hitler. As paredes estavam cobertas de bandeiras, fotografias, slogans e emblemas. O seu uniforme das SA, impecavelmente passado a ferro, estava pendurado num cabide». Os nazis não eram todos assassinos ávidos de sangue e destituídos de coração. O RAPTO DO GENERAL Seis anos depois, quando o expansionismo nazi tornou a guerra na Europa inevitável, Leigh Fermor haveria de juntar-se às Irish Guards, as { 21 } { 22 } tropas de infantaria de elite do Exército britânico. Os seus conhecimentos de línguas e de geografia, em parte adquiridos ou aperfeiçoados durante a longa caminhada pela Europa em 1933 e 1934, levá-lo-iam em seguida para os serviços de espionagem britânicos na Grécia. Foi o primeiro homem da sua unidade a saltar de paraquedas e, disfarçado de pastor de rebanhos, ajudou a organizar a resistência em Creta, vivendo durante mais de um ano entre montanhas, grutas e abrigos na natureza. Ali levou a cabo uma das operações mais ousadas do conflito: o rapto do general Heinrich Kreipe, o comandante das forças nazis na ilha. «Os cretenses eram os melhores combatentes de guerrilha natos do mundo», diria mais tarde ao historiador militar Max Hastings. «Estavam sempre tão desejosos de raptar raparigas que o rapto de um general alemão lhes pareceu tremendamente divertido». A 26 de abril, após várias tentativas, ‘Paddy’, como era conhecido entre amigos, e os seus homens intercetaram o carro do general. Vestidos com uniformes alemães, mandaram o condutor parar, imobilizaram-no com uma pancada na cabeça e tomaram o controlo da viatura. «Paddy pôs o chapéu do general na cabeça e passou para a frente do grande Opel, enquanto três guerrilheiros se sentavam em cima do velho general semiconsciente lá atrás», escreveu Max Hastings no obituário de Leigh Fermor, publicado no Daily Mail. «Durante as horas que se seguiram, passaram pelos 22 postos de controlo alemães e pelo centro de Heraklion [...]. Três semanas mais tarde, após uma marcha épica pelas montanhas e muitas fugas por um triz, encontravam-se a bordo de um navio de guerra britânico, com destino a Alexandria, e o general alemão sequestrado foi entregue para interrogatório». Embora as respetivas nações estivessem em guerra, o agente britânico não viu o general nazi como apenas um inimigo: ambos perceberam que tinham mais em comum do que imaginavam quando o segundo começou a recitar versos de Horácio e o seu jovem raptor continuou no ponto em que o alemão os deixara. As Odes do poeta latino eram um dos dois livros que levara na bagagem para a sua viagem pela Europa uma década antes. DA VACARIA AO CASTELO Filho de um ilustre geólogo e naturalista colocado na Índia, Patrick Leigh Fermor nasceu em Londres a 11 de janeiro de 1915. «No segundo ano da Primeira Guerra Mundial, pouco depois do meu nascimento, a minha mãe e a minha irmã embarcaram para a Índia (onde o meu pai era funcionário do governo indiano) e eu fiquei para trás, para que pelo menos um de nós pudesse sobreviver se o barco fosse afundado por um submarino». Entretanto, o pequeno Patrick ficou entregue a uma família do Northamptonshire. «Passei estes anos fundamentais e habitualmente considerados formativos mais ou menos como o filho selvagem de um agricultor: guardo recordações de uma felicidade completa e perfeita», relatou nas páginas iniciais de Tempo de Dádivas. Não gostava de cumprir regras, e as expulsões de colégios sucediam-se. Teve uma educação irregular, atribulada, até que lhe ocorreu a ideia de atravessar a Europa a pé. Como planeara, viajou como um vagabundo. Para se entreter, ia cantando e recitando versos pelo caminho, e dormia onde calhava. Só em Colónia, ao fim de vários dias de jornada, tomou o primeiro banho desde que saíra de Londres! Rapidamente descobriu que o facto de ser inglês não suscitava desconfiança, pelo contrário. «Na Alemanha há uma tradição antiga de benevolência para com os jovens viajantes: a própria humildade do meu estatuto funcionava como um ‘Abre-te Sésamo’, suscitando amabilidade e hospitalidade. Uma grande surpresa para mim foi o facto de ajudar ser inglês; era visto como uma ave rara e inspirava curiosidade». Outra coisa que inspirava um misto de espanto e pena, e lhe abria todas as portas, era o nome da cidade que tinha definido como destino final, que repetia como se se tratasse de uma fórmula mágica: Constantinopla. Numa altura de maior aperto, por sugestão de um bom homem que conhecera numa pousada para mendigos em Viena, recorreu ao seu talento artístico para fazer retratos dos habitantes da cidade e ganhou o suficiente para ambos comerem como lordes e ainda ficarem com uma reserva considerável. { B.I. } LIVRO O jovem inglês dizia sempre que se dirigia para Constantinopla, embora por aquela altura a cidade já se chamasse oficialmente Istambul { 23 } A paixão pela Grécia durou toda a vida: durante a II Guerra Mundial organizou a resistência em Creta e na década de 60 foi viver para o Sul do Peleponeso Noutras alturas, viajou em grande estilo, sendo recebido em casas de burgueses bem instalados e até em castelos de aristocratas. «Depois de dizer boa noite, de percorrer, carregado de livros, um corredor cheio de armações, e de subir uma escada de pedra em caracol até ao meu quarto, era difícil acreditar que na noite anterior tinha dormido numa vacaria. Há muitas vantagens em passar da palha para uma cama de dossel e depois voltar à palha. Dentro do casulo de linho macio, embalado pelo aroma dos troncos, da cera de abelha e da lavanda, ficava, ainda assim, acordado durante horas, deleitando-me com todos estes prazeres e comparando-os, numa sensaçãode felicidade, com os encantos já familiares dos estábulos, palheiros e celeiros». ‘PARA CONQUISTAR O MUNDO, HÁ QUE RENUNCIAR A TUDO’ Patrick Leigh Fermor teve a ventura de conhecer um mundo condenado a desaparecer. Os últimos vestígios da velha Europa que haviam sobrevivido à Grande Guerra – como os cultos e generosos castelões que o acolhiam nas suas habitações palacianas – seriam definitivamente obliterados pela Segunda Guerra Mundial. O autor fixou-os para a posteridade em retratos literários que têm o encanto das fotografias esbatidas pelo tempo. Publicado em 1977, Tempo de Dádivas é o primeiro volume da trilogia em que o autor- viajante narrou a sua travessia do Velho Continente. Termina numa ponte sobre o Danúbio, à entrada da Hungria. O segundo volume, Entre os Bosques e a Água, foi dado ao prelo em 1986. A chegada a Constantinopla no dia de ano novo de 1935 encontra-se descrita no terceiro e último volume (The Broken Road), publicado em 2013, dois anos após a morte do autor. Especialmente bonito e galante em jovem (foi encarnado no cinema por Dirk Bogard e as senhoras da sociedade disputavam a sua companhia), Sir Patrick Leigh Fermor manteve a vitalidade até ao fim da vida. Terminou os seus dias na Grécia, para onde se mudou na década de 60 com a mulher, Joan. Usando pedrada região oferecida pelos habitantes das redondezas, construiu uma casa em Kardamili, no sul do Peloponeso, com uma vista privilegiada sobre o mar. Mesmo nonagenário, continuava a escalar as montanhas circundantes, a passear nos olivais e a nadar no mar Jónico. «Para conquistar o mundo, há que renunciar a tudo», diz o Tao Te Ching. Patrick Leigh Fermor partiu de Londres quase sem nada e cerca de um ano depois podia dizer que conquistara a Europa a pé. Estava a poucos dias de fazer vinte anos – a idade de Alexandre quando foi coroado Rei da Macedónia e partiu à conquista do Império Persa. J Em Tempo de Dádivas relata a sua chegada à Alemanha nazi no final de 1933, ano em que os nazis tomaram o poder { 24 } FOTOGRAFIAS MAURO PIMENTEL/ AFP De azul, o rio passou a rosa. Cortesia dos milhares de flamingos em plena rota migratória que, com as cidades em silêncio devido ao confinamento causado pela pandemia, decidiram descansar do longo voo em plena metrópole. Aconteceu no rio de Nova Bombaim, na Índia. { { B.I. } PORTEFÓLIO } Flamingos UM RIO PINTADO DE ROSA { 25 } { 26 } Nestas últimas semanas, uma das vantagens evidentes do confinamento tem sido a possibilidade de ver televisão – algo que, de há uns anos para cá, vinha sendo praticamente impossível. Não me refiro a ligar o aparelho e a ver por ver, ou simplesmente fazer zapping, mas sim a ver bons programas ou bons filmes. É que a televisão tanto pode ser um instrumento de embrutecimento sem igual como um meio de aprendizagem precioso. Por estes dias tive, por exemplo, a oportunidade de ver Silêncio, de Martin Scorsese, que passou na RTP1 por alturas da Páscoa. Trata-se de um filme impressionante – com muita violência à mistura, à boa maneira do realizador americano – que retrata os suplícios sofridos pelos cristãos no Japão do século XVII, depois de em 1639-1640 o governo Tokugawa ter instituído a política do ‘país proibido’. Ao mesmo tempo fascinado pela fé inquebrantável daquelas pessoas humildes e horrorizado pelas atrocidades contra elas cometidas pelas autoridades japonesas daquela época, fui à procura de mais alguma informação sobre o assunto no livro de Charles Boxer de 1978 A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770) (edições 70). Boxer fala numa conversão superficial dos autóctones ao cristianismo – que em muitos casos se resumia a três dias de ‘catecismo’. Ainda assim, reconhece «a extraordinária persistência do cristianismo católico, uma vez firmemente implantado, mesmo que de uma forma muito simples, ou então sob formas adulteradas ou sincréticas». É isso que nos mostra o filme de Scorsese: aldeãos que, mais do que a Deus, adoram pequenas imagens de Cristo na cruz, ignorando as subtilezas da teologia, mas talvez por isso mesmo dando mostras de uma fé intensa, despojada, obstinada, à prova de tudo. «Protestantes ingleses e holandeses», conta-nos o historiador britânico, «testemunhas oculares da sádica perseguição aos convertidos católicos nos primeiros tempos do governo Tokugawa no Japão, ficavam espantados com a firmeza da gente simples perante a fogueira. Entre estes, incluíam- se crianças de cinco e seis anos queimadas nos braços de suas mães, clamando ‘Jesus, recebei as suas almas’». Hoje parece-nos impensável queimar crianças por causa da religião. A verdade é que o governo japonês via os cristãos como uma ameaça latente, uma ‘quinta coluna’ de infiltrados que em caso de invasão de uma potência (católica) ibérica se juntaria aos senhores feudais descontentes para combater contra o seu próprio país. Mas a principal questão que o filme de Scorsese (baseado no romance homónimo de Shusaku Endo) coloca, de forma inquietante, é se as preces dos supliciados foram ou não ouvidas. É impossível o espectador não se interrogar se aquele sofrimento atroz de tantos e tantos cristão que recusaram renunciar à sua fé serviu para alguma coisa. O que encontraram do outro lado? Não há maneira de sabê- lo. Cada um terá de procurar a resposta no silêncio de si mesmo. { B.I. } DÊEM-ME TEMPO PARA LER HISTÓRIA DE DOIS PATIFES E OUTRAS PROSAS { Fialho de Almeida } Dele, Jorge de Sena disse: «O pior defeito do Fialho é, de facto, o seu imenso talento». Nascido em 1857 em Vila de Frades, concelho da Vidigueira, Fialho de Almeida passou à posteridade como o célebre autor d’Os Gatos. E é de gatos que nos fala o conto que dá título a este volume: gatos mimosos e mimados que «tinham o péssimo costume de afiar as unhas nos mognos polidos e nos estofos matizados dos gabinetes, sulcando e rasgando, sem preferência e sem atenção de preços». Reúne esta antologia (enriquecida por dois anexos: uma pequena autobiografia e uma cronologia do autor) seis contos e dois textos de não ficção, ou não fosse Fialho um jornalista de mão cheia. A EDITORA Guerra & Paz PREÇO 14,50€ A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSSON ATRAVÉS DA SUÉCIA { Selma Lagerlöf } Numa manhã de primavera, um menino traquina de «cerca de 14 anos» vê-se em casa sem os pais e decide aproveitar a liberdade. Acaba transformado em duende e, viajando pelo ar à boleia de um ganso, passa a ver o mundo e a vida a partir de outra perspetiva. Escrito nos primeiros anos do século XX para edificar e ensinar geografia aos estudantes suecos, este clássico é também uma lição sobre o respeito que devemos à natureza. Surge aqui numa edição bonita e cuidada, que reproduz integralmente o texto da edição original em dois volumes, e com tradução a partir do sueco de João Reis. A EDITORA Sextante PREÇO 18,80€ AS PROVADORAS DE HITLER { Rosella Postorino } «Para ela, naquele dia, nada de sobremesa. Mas coube-lhe os ovos e o puré de batata: os ovos eram uma das comidas favoritas do Führer, gostava deles polvilhados com cominhos». Rosa Sauer é uma das dez mulheres responsáveis por experimentar a comida de Hitler, para evitar que o chanceler seja envenenado. Mas as provadoras correm riscos e, sob a vigilância constante dos guardas, o ambiente na caserna onde vivem pode tornar-se opressivo. A EDITORA D. Quixote UMA FÉ MAIS ARDENTE DO QUE AS CHAMAS DA FOGUEIRA JOSÉ CABRITA SARAIVA jose.c.saraiva@sol.pt{ } BIBLIOTECA PESSOAL { 27 } PUB PUB { 28 } EM BUSCA DA FURTIVA WHITTIER espertamos tarde. Partimos a más horas decididos a parar sempre que o justificasse o caminho. Passamos ao largo de Nikolaevsk. Interrompemos a viagem, pela primeira vez, em Ninilchik, uma povoação fundada por colonos russos, em 1820, quarenta e sete anos antes de os seus governantes terem vendido o Alasca aos Estados Unidospor 7,2 milhões de dólares num dos negócios mais desastrosos feitos pelo país dos czares. Pouco tempo depois da transação, os exploradores norte-americanos descobriram ouro em várias partes do estado. Bastaram alguns anos para a riqueza extraída pelos americanos dos filões e rios do estado suplantar o valor despendido. Após a passagem do vasto território para a posse dos americanos, nem todos os russos partiram. Os que ficaram preservam boa parte da sua cultura. Famílias inteiras partilham chá de grandes samovares seculares, guardam fatos tradicionais russos em que posam para fotografias memoráveis, junto de grandes matrioskas coloridas. A sua fé cristã, é Ortodoxa, claro está. Como o são as suas várias igrejas de madeira com cruzes de oito braços, decoradas com painéis dourados-coloridos dos santos que a comunidade louva. Desviamo-nos da Sterling Highway em busca da igreja russa local. Encontramo-la na imediação de uma falésia, virada para o mar e cercada por D { B.I. } DESTINO IMPROVÁVEL { 29 } uma vedação branca, de madeira. Mais do que a religiosidade, impressiona o significado histórico da visão. Malgrado a arquitetura eslava do edifício principal, num pequeno cemitério subsumido entre a vegetação, misturam-se cruzes ortodoxas com católicas, estas, acompanhadas de bandeiras dos Estados Unidos. Como ali se provava, a convivência de habitantes das duas nações verificou-se durante bastante tempo. E assim continua muito depois da retirada diplomática dos russos. É, este, aliás, um dos aspetos mais fascinantes da vida do sul do Alasca. Prosseguimos para norte. Passamos por outras localidades de origem russa como a pequena, quase impercetível Kasilof, batizada segundo o rio que por ali passa e desagua mais à frente. Em junho e julho, um exército de pescadores oriundos das redondezas e de outras partes mais longínquas do Alasca reúnem-se de ambas as margens. Enquanto a migração dos cardumes o MARCO C. PEREIRA (TEXTO) MARCO C. PEREIRA E SARA WONG (FOTOGRAFIA){ } Depois de vários dias no fundo sem saída de Homer, revertemos o itinerário na grande Península de Kenai. Viajamos à procura de Whittier, uma povoação erguida como refúgio, em plena 2.ª Guerra Mundial, e que agora abriga duzentas e poucas pessoas, quase todas num único edifício habitacional. permite, competem entre eles e com as águias pesqueiras e pigarros pelos espécimes de salmão, mais acessíveis que nunca sobre os baixios em que o rio se espraia. Ali, os salmões ainda vão no início de uma viagem fluvial que, a completar-se, os levaria bem mais a montante do Kasilof, quem sabe se até ao grandioso lago Tustumena. CONTINUA NA PÁG. SEGUINTE P { 30 } Por estes lados, a paisagem mais próxima da estrada é dominada por florestas de coníferas baixas e de aspeto frágil. Não chegam a atingir alturas mais dignas devido ao subsolo quase sempre gelado em que assentam. Na distância, destacam-se os cumes da cordilheira Kenai, coroados de branco pelo gelo mais persistente. Segue-se Soldotna. Logo, Sterling. Em Sterling, chama-nos a atenção um outdoor gráfico. Dele se destaca uma grande faca de punho amarelo e vermelho. Projeta-se da faca, uma bandeira americana star-splangled esvoaçante. Um painel abaixo apresenta-nos o Walt & Connies Knives, o negócio de beira da estrada deste casal, bem posicionada para servir os pescadores, os caçadores e os alasquenses em geral com o que mais falta lhes faz: facas de caça, facas de filé, facas de cozinha, facas alasquenses unu e facas Campbell. Além destes tipos todos de facas, o casal anuncia ainda que as afia e que vende currais para renas. Por azar, à hora a que passámos à sua porta, o estabelecimento do casal estava fechado. Não podíamos esperar pela hora do seu regresso, sem sequer termos a certeza de que regressariam. Após vários desvios que incluem pausas estratégicas em Soldotna, Cooper Landing e Moose Pass, deixamos por fim, a Sterling Hwy. Apontados a noroeste, ao fundo bem fundo do braço de mar de Turnagain, que se estende desde a ainda longínqua cidade de Anchorage. Explorados todos os cantos da cidade e as redondezas, damos início a nova etapa. Antes do regresso a Anchorage impõe-se a visita a uma das povoações mais surreais de todo o estado: Whittier. Só os interessados pela história bélica do mundo o sabem. Durante a II Guerra Mundial, além de Pearl Harbour, os Estados Unidos foram atacados pelos japoneses nas Aleutas, a longa cadeia de ilhas que surge na extremidade da Península do Alasca. Confrontados com a necessidade de construir uma base militar secreta, os responsáveis do exército acharam o lugar ideal, ali, de frente para o Canal Passage, cercado pelas montanhas íngremes em redor, cobertas por gelo e por nuvens densas na maior parte do ano. Num ápice, tornaram-no um esconderijo bélico sofisticado, dotado de um porto e caminho-de- ferro. Durante a época alta turística, esse mesmo porto recebe agora os grandes navios cruzeiro que percorrem a costa ocidental do Alasca, de Anchorage até as diversas povoações do Cabo de Frigideira alasquense. Capital Juneau incluída. Na altura chamaram-no de Camp Sullivan. Em 1943, Camp Sullivan já era usado como o porto de entrada das forças dos Estados Unidos da América no Alasca. Por forma a assegurar o acesso por terra, foi aberto um longo túnel, que é, ainda hoje, uma das maravilhas da engenharia do Alasca. Malgrado o propósito da sua fundação e o visual de grande bunker que ostenta, Whittier tomou de empréstimo o nome de um glaciar imponente nas redondezas. Em 1915, esse glaciar foi batizado em honra do poeta americano John Greenleaf Whittier. No fim de março de 1964, ainda em plena ocupação militar, Whittier viu-se chocalhada pelo tremor de terra de Sexta Feira Santa, um dos eventos sísmicos mais poderosos e destrutivos verificados no Alasca, com uma magnitude de 9.2 graus, gerador de diversos maremotos ao longo da costa Oeste dos Estados Unidos mas que, apesar desta intensidade, só fez treze vítimas. Os militares ocuparam Whittier até 1968, ano em que a abandonaram e aos seus estranhos edifícios. Com a afirmação do turismo estival, { B.I. } DESTINO IMPROVÁVEL Os alasquenses mantêm uma estreita relação com os cursos de água e são, geralmente, exímios pescadores Um dos aspetos mais fascinantes da vida do sul do Alasca é a mistura da cultura russa com a norte- -americana { 31 } mesmo entre cordilheiras e glaciares, a cidade fantasma – entretanto colonizada por indígenas – tornou-se numa atração alasquense à parte, com importância reforçada por se ter tornado numa escala do Alasca Marine Highway. Só quando chegamos à entrada do Anton Anderson Tunnel, descobrimos que não permite a viagem simultânea aos dois sentidos, que o acesso só é possível de hora a hora. Dedicamos os 40 minutos que faltam às rádios regionais e a apreciar a paisagem glaciar circundante. Quando o sinal verde finalmente cai, prosseguimos pelo escuro. Levamos quinze minutos a atravessar o longo túnel. Até que, do outro lado da montanha, damos de caras com um refúgio de visual cimentado, em tudo idêntico a tantos outros que a Guerra Fria viria, mais tarde, a gerar. Pela dimensão e peso arquitetónico, destaca-se do casario, o Buckner Building que não resistimos a explorar. A determinada altura, parecia aos moradores tão vasto e completo que o tratavam por «uma cidade debaixo de um telhado». Até 1968, habitaram ali mais de 1000 pessoas, na maioria ao serviço do exército dos EUA. Hoje, o edifício não é mais que um bunker habitacional abandonado ao tempo e à vegetação, com a companhia de diversos carros amolgados e enferrujados. Destino diferente tiveram as Torres Begich. Com catorze andares e um aspeto civil de prédio suburbano, logo após a desmobilização, foram ocupadas por indígenas da região e por alguns imigrantes que se instalaram nos cento e cinquenta apartamentos
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