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Contos Sci-Fi - Varios Autores

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Su má rio
NÃO TENHO BOCA E PRE CI SO GRITAR
QUEM ESTÁ AÍ?
ADEUS AO MESTRE
SAM HALL
GUERRA COM ROBÔS
SE BENNY CEMOLI NÃO EXIS TIS SE
A CHAVE-IN GLE SA
O CIR CUI TO DE MA CAU LEY
JUDAS
ABAN DO NA DOS EM AN DRÔ ME DA
UMA LÓGICA CHA MA DA JOE
A ÚLTIMA PER GUN TA
CÍR CU LO VI CI O SO
A FOR MI GA ELÉ TRI CA
O HOMEM BI CEN TE NÁ RIO
DER RA DEI RA ES PE RAN ÇA
PEDRAS ES TRA NHAS
DES DI TA DOS
DE COMO MI CRO MIL E CI GA CI A NO PRO VO CA RAM A FUGA
DAS NE BU LO SAS
A ÚLTIMA RES POS TA
O MA TA GAL
O ER RAN TE DAS ES TRE LAS
UM SALTO DE FÉ
REIS DA AREIA
VO A DO RES DA NOITE
UMA FERA PARA NORN
GUAR DI ÕES
TODA A CER VE JA DE MARTE
A FLOR DE VIDRO
O BLUES DO PLA NE TA VER ME LHO
ON DU LA ÇÕES NO MAR DE DIRAC
RE A LI DA DE
O LIMITE DA VISÃO
A QUINTA-FEIRA DE ZELLE
A LINDA FILHA DO CA ÇA DOR DE ES CA MAS
PRO JE TOS
R & R
O ÚLTIMO DOS WIN NE BA GOS
GE LEI RA
HIS TÓ RIA DE GUERRA
A MA NA MOUKI
O JOGO DO EX TER MI NA DOR
O CAIR DA NOITE
A CA RÍ CIA
DEUSA-MÃE DO MUNDO
O DOM DA PA LA VRA
A SEXTA SI MU LA ÇÃO
SONHOS DE ROBÔ
BWANA
VISÕES DE ROBÔ
RUMO AO KI LI MAN JA RO
OS HOS PE DEI ROS
O DES PER TAR DE LÁZARO
UM PAS SEIO NO SOL
O CAR TEI RO
CY CLOPS
UMA CARTA DOS CLEARY'S
O CON FE REN CIS TA FAN TAS MA
A TERRA QUE TREME
SU PER BRIN QUE DOS
250 SÉ CU LOS APÓS . . .
NÃO TENHO BOCA E PRECISO GRITAR
Harlan El li son
Se os robôs sempre foram en ca ra dos com sim pa tia pela ficção ci- 
en ti fi ca con tem po râ nea, já não se pode dizer o mesmo dos com- 
pu ta do res. Grande parte das obras desse tipo des cre ve o horror,
tédio ou de su ma ni za ção de um mundo con tro la do por má qui nas
in te li gen tes. “The Ma chi ne Stops”, de E. M. Fors ter (1912), foi
uma das pri mei ras a tratar do as sun to, pre ce den do “We”, de
Eugene Za mi a tin (1922). O com pu ta dor ainda não tinha sido in- 
ven ta do, e por isso ambas não usaram o termo, mas os apa re lhos
que apa re cem nelas fun ci o nam exa ta men te como com pu ta do res.
E á medida que a tec no lo gia foi evo lu in do, a tra di ção de hos ti li da- 
de à má qui na au men tou. Co los sus (1966), de D. E fones, 2001:
uma odis séia no espaço (1968), de Arthur Clarke, e Este mundo
per fei to (1970), de Ira Levin, fi gu ram entre os ro man ces mais fa- 
mo sos do gênero. Nenhum, porém, se com pa ra com o terror di a- 
bó li co do conto de Harlan El li son, “Não tenho boca e pre ci so
gritar”.
Merece, com toda a jus ti ça, o título que re ce beu: a melhor his- 
tó ria de horror que a ficção ci en tí fi ca criou até hoje em torno dos
com pu ta do res. Pense no sonho mais hor rí vel que você já teve,
some com os piores pe sa de los que amigos lhe con ta ram, e o re- 
sul ta do final é um mo des to for mi guei ro perto da mon ta nha de
mons truo si da des ima gi na da por El li son.
A in ven ti vi da de deste es cri tor ficou con sa gra da como a mais
bri lhan te, fan tás ti ca e pes si mis ta que já se viu. Boa parte de sua
obra se compõe de contos im pres si o nan tes, cuja an to lo gia mais
re cen te, Stalking the Nigh t ma re (À es prei ta de pe sa de los), data
de 1982. Nas ci do no estado de Ohio, em 1934, e re si din do agora
em Sher man Oaks, Ca li fór nia, El li son é de ten tor de três prê mios
Nebula, sete e meio (sic) Hugos, três con ce di dos pela Liga de Es- 
cri to res Ame ri ca nos, e ainda do troféu Edgar Allan Poe, atri bu í do
ao melhor autor de ficção de mis té rio. Con si de ra do o mais po lê mi- 
co de todos os es cri to res que se de di cam à ficção ci en ti fi ca, tem o
maior or gu lho e se em pe nha em manter esse título. Editou
também duas cé le bres an to lo gi as, das mais ori gi nais no gênero
Dan ge rous Vi si ons (Visões pe ri go sas) e Again. Dan ge rous Vi si ons
(Novas visões pe ri go sas), em 1967 e 1972, res pec ti va men te.
“Não tenho boca e pre ci so gritar”, sob a apa ren te camada de
restos de carne podre re pug nan te e gé li das de vas ta ções ár ti cas,
possui unia qua li da de in trin se ca men te mítica. AM, o com pu ta dor,
é dotado de in te li gên cia sen sí vel. Lúcido e tor tu ra do, de cla ra, à
ma nei ra de Des car tes: penso, logo existo. Sub di vi de-se em duas
partes sendo a se gun da uma cons ciên cia sub je ti va que encara o
mundo como objeto. A con se qüên cia ime di a ta da sua grande ca- 
pa ci da de de ra ci o cí nio em re la ção ao homem não é livrá-lo da dor,
mas causar-lhe so fri men to. Em forma de me tá fo ra, o com pu ta dor
AM pro je ta, com in crí vel in ten si da de, o dilema humano. Sua cons- 
ciên cia está en cur ra la da e iso la da no cár ce re da pró pria ca pa ci da- 
de de ra ci o cí nio.
O ca dá ver de Gor ris ter pendia flá ci do, sem o menor su por te, da paleta rosada
— pen du ra do lá no alto da câmara do com pu ta dor; e nem se ar re pi a va com a
brisa fria e ole o gi no sa que so pra va eter na men te dentro da ca ver na prin ci pal.
Virado de cabeça para baixo, o corpo preso à parte in fe ri or da paleta pela sola
do pé di rei to, não tinha uma só gota de sangue, dre na do por com ple to depois
da in ci são exata que lhe haviam feito, de um canto a outro do queixo sa li en te.
E não se via ne nhu ma mancha ver me lha na su per fí cie lus tro sa do piso me tá li- 
co.
Quando o pró prio Gor ris ter veio se juntar ao nosso grupo e, le van tan do os
olhos, en xer gou o ca dá ver, já era tarde demais para a gente se dar conta que,
mais uma vez, AM nos pre ga va uma peça, se di ver tin do às nossas custas —
mero pas sa tem po por parte da má qui na. Três de nós vo mi ta ram, vi ran do mu- 
tu a men te as costas num re fle xo tão antigo quanto a náusea que o pro vo cou.
Gor ris ter em pa li de ceu. Foi quase como se de pa ras se com um fe ti che de
ma cum ba e sen tis se medo do que po de ria vir a acon te cer.
— Meu Deus — mur mu rou, afas tan do-se logo dali.
Pas sa do algum tempo, saímos à pro cu ra dele. Fomos en con trá-lo sen ta do
de costas para um dos gé li dos bancos me no res, com a cabeça caída entre as
mãos. Ellen ajo e lhou-se a seu lado e aca ri ci ou-lhe o cabelo. Nem se mexeu,
mas dava para se ouvir cla ra men te a voz que vinha do rosto en co ber to.
— Por que não li qui da com a gente de uma vez e acaba logo com isto?
Céus, não sei quanto tempo ainda vou poder agüen tar.
Era o cen té si mo nono ano que pas sá va mos no com pu ta dor.
E Gor ris ter falava por todos nós.
Nimdok (nome im pin gi do pela má qui na, que achava graça em so no ri da- 
des exó ti cas) co me çou a des vai rar com a idéia de que havia comida en la ta da
nas ca ver nas de gelo. Gor ris ter e eu es tá va mos em dúvida.
— É outra idi o ti ce — ga ran ti. — Como aquela por ca ria de ele fan te con- 
ge la do que AM in ven tou para a gente. Vamos nos cansar à toa para ir até lá e
no fim des co brir que está tudo es tra ga do ou coisa pa re ci da. O melhor é deixar
isso de lado. E con ti nu ar por aqui mesmo, pois se não quiser que a gente
morra, muito em breve terá que apa re cer com algo.
Benny deu de ombros. Fazia três dias que tí nha mos comido pela última
vez. Mi nho cas. Gros sas, pe ga jo sas.
Nimdok já havia per di do a cer te za. Sabia que exis tia uma pos si bi li da de,
mas estava ema gre cen do. Lá não podia ser muito pior do que aqui. Mais frio,
mas que im por tân cia tinha? Quente, frio, gra ni zo, lava, fu rún cu los ou ga fa- 
nho tos — nunca fazia di fe ren ça: a má qui na se mas tur ba va e a gente tinha que
en go lir ou morrer.
Foi Ellen quem de ci diu por nós.
— Pre ci so comer alguma coisa, Ted. Talvez lá tenha al gu mas latas de
peras ou pês se gos Bar tlett. Por favor, Ted, não custa tentar.
Con cor dei logo. Ora, que porra. Estava me li xan do para tudo. Mas Ellen
ficou muito agra de ci da. Topou trepar duas vezes comigo, quando não era a
minha vez. Até isso não in te res sa va mais. E ela nunca gozava, nem sei por
que in sis tia. A má qui na, porém, ficava dando ri sa di nhas toda vez que a gente
tran sa va. Bem alto, e vinha lá do teto, pelas costas, de tudo quanto é canto, no
maior de bo che.Aquela coisa, se fi nan do de rir. Quase sempre pen sa va em
AM como uma coisa neutra, sem alma; mas o resto do tempo ima gi na va
como pessoa, no mas cu li no.., pa ter nal . . . pa tri ar cal . . . e muito ciu men to.
Ele. Ela. Deus no papel de Papai Tres lou ca do.
Par ti mos numa quinta-feira. A má qui na sempre nos man ti nha atu a li za dos
em ma té ria e datas. A pas sa gem do tempo era im por tan te: claro que não para
nós, porra, mas para ele . . . ela . . . para AM. Quinta-feira. Obri ga do.
Nimdok e Gor ris ter car re ga ram Ellen du ran te certo tempo, fa zen do ca dei- 
ri nha com as mãos e pulsos en tre la ça dos. Benny e eu íamos, res pec ti va men te,
na frente e atrás, para ga ran tir que, se acon te ces se alguma coisa, só pe ga ria
um de nós dois e Ellen, pelo menos, sairia ilesa. Ilesa, ima gi nem. Como se fi- 
zes se di fe ren ça.
As ca ver nas de gelo fi ca vam acerca de cento e cin quen ta qui lô me tros de
dis tân cia e, no se gun do dia, quando es tá va mos des can san do sob o sol caus ti- 
can te que AM tinha feito des pon tar, co me çou a cair uma es pé cie de maná.
Com gosto de mijo de porco fer vi do. Co me mos tudo.
No ter cei ro dia atra ves sa mos um vale de coisas ob so le tas, re ple to de es- 
com bros en fer ru ja dos de an ti gos cen tros de pro ces sa men to de dados. AM era
tão im pi e do so com sua pró pria vida quanto com a nossa. Eis aí uma ca rac te- 
rís ti ca da sua per so na li da de: lutar pela per fei ção. Quando se tra ta va de eli mi- 
nar ele men tos im pro du ti vos para o pró prio fun ci o na men to, na que le me ca nis- 
mo des co mu nal onde ca be ria o mundo, ou de aper fei ço ar mé to dos de tor tu ra,
mos tra va-se tão me ti cu lo so quanto as pes so as que o tinham in ven ta do — e
que há muito tinham se trans for ma do em pó — po de ri am jamais sonhar.
A luz co me çou a se fil trar lá do alto e per ce be mos que de ví a mos estar
bem perto da su per fí cie. Mas não ten ta mos ras te jar para ir ve ri fi car. Não
havia pra ti ca men te nada ali fora — fazia mais de um século que não exis tia
nada que se pu des se con si de rar como alguma coisa. Apenas o re ves ti men to
cres ta do do que ou tro ra ser vi ra de morada para bi lhões de cri a tu ras vivas.
Agora os únicos so bre vi ven tes éramos nós cinco, aqui dentro, no fundo, so zi- 
nhos com AM.
Ouvi a voz de Ellen, fre né ti ca:
— Não, Benny! Pára com isso, por favor!
E então me dei conta de que já fazia vários mi nu tos que Benny vinha
mur mu ran do bai xi nho. Re pe tia, sem parar:
— Vou fugir, vou dar o fora daqui . . .
E re tor cia a cara si mi es ca numa ex pres são si mul tâ nea de ale gria e tris te- 
za, sim ples men te be a tí fi ca. As ci ca tri zes da ra di a ção cau sa da por AM du ran- 
te o “fes ti val” se mis tu ra vam aos es ga res que lhe con tra í am as fei ções es- 
bran qui ça das — dir-se-ía que não com bi na vam umas com as outras. Talvez
fosse Benny o mais feliz de nós todos: há muitos anos que vivia apa ler ma do,
feito doido var ri do.
Mas mesmo que pu dés se mos chamar AM de todos os pa la vrões que bem
en ten dês se mos, ter as ideias mais des fa vo rá veis sobre os cen tros de pro ces sa- 
men to de dados quei ma dos e as placas de base cor ro í das, dos cir cui tos in ter- 
rom pi dos e lâm pa das de con tro le que bra das, a má qui na não to le ra va a menor
ten ta ti va de fuga. Benny saltou longe quando quis segurá-lo. Juntou um mos- 
tra dor de cubo de me mó ria, caído de lado e cheio de com po nen tes es tra ga dos.
Ficou ali um ins tan te aga cha do, lem bran do o chim pan zé em que AM pre ten- 
dia trans for má-lo.
De re pen te deu outro pulo mais alto, se agar rou a uma viga de metal es bu- 
ra ca do e en fer ru ja do, e foi su bin do por ela, palmo a palmo, feito bicho, até se
em po lei rar numa trave sa li en te, a seis metros acima do chão.
— Ai, Ted, Nimdok, por favor, ajudem, peçam para ele descer antes que
. . .
Ellen não com ple tou a frase. Os olhos se en che ram de lá gri mas. Fez um
gesto in de fi ni do com as mãos.
Tarde demais. Nenhum de nós queria estar perto dele quando acon te ces se,
fa tal men te, o pior. Mas, além disso, sa bí a mos muito bem a causa da pre o cu- 
pa ção dela. Quando AM re sol veu mo di fi car Benny, du ran te a fase com ple ta- 
men te his té ri ca e ir ra ci o nal da má qui na, não foi apenas a cara que o com pu ta- 
dor trans for mou em gi gan tes co gorila. As partes ín ti mas também fi ca ram
enor mes; ela adorou a ideia! Se en tre ga va a nós, como seria de es pe rar, mas
gos ta va mesmo era de tran sar com ele.
Ah, Ellen, a mulher que co lo cá va mos num pe des tal, a pura e ima cu la da
Ellen; ah, Ellen, a im po lu ta! Re bo ta lho no jen to.
Gor ris ter es bo fe te ou-a. Caiu brus ca men te no chão, er guen do logo os
olhos para o pobre Benny en lou que ci do, e de sa tou a chorar. Era a sua grande
arma de defesa. Já es tá va mos acos tu ma dos, há se ten ta e cinco anos, com
aquilo. Gor ris ter deu-lhe um pon ta pé no lombo.
Foi então que se ouviu o ruído. Pri mei ro de leve. Metade som e metade
luz, qual quer coisa co me çou a bri lhar nos olhos de Benny e a pulsar, cada vez
mais forte, com so no ri da de im per cep tí vel que foi se tor nan do en sur de ce do ra
e ofus can te à medida que a luz/som ace le ra va o ritmo. A dor devia ser muito
grande e in ten si fi ca da pelo au men to da cla ri da de e pelo volume cres cen te do
ruído, pois Benny se pôs a uivar feito bicho. A prin cí pio bai xi nho, com a luz
ainda fraca e o ruído aba fa do, depois mais alto, à pro por ção que en co lhia os
ombros: ar que ou as costas, como se qui ses se se livrar de tudo aquilo. Cruzou
as mãos no peito, igual a um es qui lo. En tor tou a cabeça de lado. O fo ci nho
triste de macaco se con tor ceu de an gús tia. De re pen te, quando o ruído que lhe
saía pelos olhos ficou mais forte, co me çou a gritar. Aos berros, sem parar.
Tapei as ore lhas com as mãos, mas não adi an tou, pois con ti nu a va es cu tan do.
A dor que ele sentia me pro vo ca va ar re pi os se me lhan tes aos de uma folha de
es ta nho ran gen do nos dentes.
E Benny se pôs re pen ti na men te de pé, na beira da sa liên cia, com um mo- 
vi men to tão brusco que pa re cia ter virado fan to che. Os olhos agora lan ça vam
dois gran des raios lu mi no sos. O som cres cia de in ten si da de, cada vez mais,
numa escala ina cre di tá vel. Por fim caiu de ponta-cabeça, indo bater com es- 
tron do no piso me tá li co. Sa cu diu o corpo todo em con tra ções es pas mó di cas,
en quan to os raios lu mi no sos gi ra vam em torno, sem parar, e o ba ru lho au- 
men ta va, em ver da dei ra es pi ral sonora, até ul tra pas sar o limite normal de au- 
di ção.
Depois a luz foi en fra que cen do aos poucos, re train do-se para o re ces so do
crânio, o som di mi nuiu e Benny con ti nuou ali dei ta do, cho ran do de ma nei ra
con fran ge do ra.
Os olhos lem bra vam dois nacos de geleia flá ci da e úmida, pa re ci da com
pus. AM tinha dei xa do ele cego. Gor ris ter, Nimdok e eu . . . nos vi ra mos para
outro lado. Mas não sem antes ver a ex pres são de alívio no rosto apai xo na do,
pre o cu pa do, de Ellen.
Uma cla ri da de verde-mar se in fil tra va pela ca ver na onde acam pa mos.
AM for ne ceu ma dei ra podre que a gente quei mou, amon to an do-se ao redor da
triste e pa té ti ca fo guei ra, para contar his tó rias que im pe dis sem Benny de
chorar a ir re me di á vel ce guei ra.
— O que quer dizer AM? — per gun tou.
Gor ris ter ex pli cou. Já tí nha mos pas sa do mil vezes pela mesma ex pe riên- 
cia, mas era a his tó ria fa vo ri ta de Benny.
— A prin cí pio sig ni fi ca va Auto-Ma ni pu la do, depois passou a ser Adap ta- 
vel à ma ni pu la ção e mais tarde, quando de sen vol veu cons ciên cia e ad qui riu
au to no mia, pegou o ape li do de Ameaça Mortal; mas a essa altura já era tarde
demais; por fim ele mesmo se de no mi nou AM1, uma au tên ti ca prova de in te- 
li gên cia, pois quer dizer Sou . . . cogito ergo sum . . . penso, logoexisto.
Benny babou um pouco e deu uma ri sa di nha.
— Havia o AM chinês, o russo, o ame ri ca no e . . .
Não con se guiu con cluir a frase. Benny es mur ra va as chapas me tá li cas do
chão com o punho enorme, cer ra do. De puro des con ten ta men to. Gor ris ter não
co me ça ra a his tó ria pela ordem, desde o início.
— A Guerra Fria — re co me çou, — de ge ne rou na Ter cei ra Guerra Mun di- 
al, que nin guém mais via jeito de acabar. Virou um con fli to imenso, muito
com pli ca do, e por isso pre ci sa ram de com pu ta do res para re sol ver a si tu a ção.
Pu se ram de lado todos os exis ten tes até então e se de di ca ram a cons truir o
AM. Havia o AM chinês, o russo, o ame ri ca no e tudo corria bem, até que aca- 
ba ram en chen do o pla ne ta com com pu ta do res idên ti cos, só di fe ren ci a dos por
um que outro ele men to de mon ta gem. Mas um belo dia o AM des co briu os
re cur sos que tinha, ligou os com po nen tes e pro gra mou tudo quanto era dado
mor tí fe ro, di zi man do a po pu la ção mun di al, com ex ce ção de nós cinco, e nos
trouxe aqui para baixo.
Benny sorriu tris te men te. Estava também ba ban do de novo. Com a bainha
da saia. Ellen en xu gou-lhe a saliva do canto da boca. Gor ris ter sempre pro cu- 
ra va en cur tar um pouco a his tó ria, mas a ver da de é que, além dos fatos pro- 
pri a men te ditos, não havia nada a acres cen tar. Nenhum de nós sabia a razão
que levara AM a poupar so men te cinco pes so as, jus ta men te nós, e passar o
tempo in tei ro a nos ator men tar — e nos tornar, por assim dizer, imor tais . . .
No meio da es cu ri dão, um dos cen tros de pro ces sa men to de dados entrou
em ati vi da de, co me çan do a zumbir. A quase um qui lô me tro de dis tân cia, no
in te ri or da ca ver na, outro fez o mesmo. Depois, um por um foi con ti nu an do
no mesmo di a pa são e a má qui na toda se pôs a vibrar à medida que se dei xa va
em pol gar pela ideia.
O som au men tou. As luzes se acen di am nos pai néis feito re lâm pa gos de
calor. O ba ru lho cres ceu cada vez mais até se as se me lhar a um milhão de in- 
se tos me tá li cos, fu ri bun dos, ame a ça do res.
— O que será isto? — ex cla mou Ellen, apa vo ra da.
Mesmo depois de tanto tempo, ainda não estava ha bi tu a da com aquilo.
— Desta vez vai ser ter rí vel — disse Nimdok.
— De cer to ele quer falar — opinou Gor ris ter.
— Vamos dar o fora daqui, porra! — gritei de re pen te, pondo-me em pé.
— Não, Ted, fica aí sen ta do . . . ele pode ter aberto bu ra cos lá fora, ou
outra coisa qual quer. Não vai dar para ver, está escuro demais — acon se lhou
Gor ris ter, re sig na do.
Aí então es cu ta mos . . . não sei . . .
Algo avan çan do em nossa di re ção, nas trevas. Enorme, se ar ras tan do,
peludo, mo lha do, vinha vindo. Não se con se guia nem vis lum brar, mas havia
aquela im pres são maciça de cor pu lên cia, se jo gan do sobre nós. Em plena es- 
cu ri dão, um grande peso se apro xi ma va — era mais uma es pé cie de sen sa ção
de pres são, de ar que se im pu nha dentro de um espaço con fi na do, ex pan din do
os con tor nos in vi sí veis de unia esfera. Benny co me çou a cho ra min gar.
Nimdok mordeu com força o lábio in fe ri or que tremia, ten tan do imo bi li zá-lo.
Ellen des li zou pelo piso me tá li co para ir se abra çar a Gor ris ter. Es pa lhou-se
uma pro fu são de chei ros pela ca ver na — de tapete mo lha do de pele de
animal, de veludo po ei ren to, or quí deas podres, leite azedo, en xo fre, man tei ga
ran ço sa, ali sa dor a óleo, graxa, pó de giz, couro ca be lu do humano.
AM estava aper tan do os pa ra fu sos. Fa zen do có ce gas em nós. Sentiu-se
um fedor de . . .
Quando vi, gri ta va de dor na ar ti cu la ção da man dí bu la. Saí cor ren do de
quatro, feito bicho, por aquele piso me tá li co, preso a uma série ina ca bá vel de
re bi tes, su fo ca do pelo fedor, a cabeça es ta lan do de um so fri men to que me
obri ga va a fugir, hor ro ri za do. Es ca pei que nem barata, indo acabar lá fora, no
escuro, com aquele troço avan çan do, ine xo rá vel, atrás de mim. Os outros
con ti nu a ram ali dentro, aglo me ra dos ao redor da fo guei ra, dando ri sa das..,
um coro his té ri co de gar ga lha das ma lu cas que ecoava nas trevas feito fumaça
de ma dei ra, densa, mul ti cor. Me afas tei, o mais de pres sa pos sí vel, e me es- 
con di.
Nunca me dis se ram quan tas horas, dias, ou até anos, fiquei assim. Ellen
ralhou comigo por ter “em bur ra do” e Nimdok tentou me con ven cer que os
risos não pas sa ram de re fle xo ner vo so da parte deles.
Mas eu sabia que não era o alívio que o sol da do sente quando as balas só
acer tam em quem está a seu lado. Nem tam pou co um re fle xo. Eles me odi a- 
vam. Não havia dúvida que me hos ti li za vam e AM podia in clu si ve saber
desse ódio, agra van do minha si tu a ção jus ta men te por causa da in ten si da de
dessa re pul são. Ele nos man ti nha vivos, re ju ve nes ci dos, per ma ne cen do
sempre com a mesma idade que tí nha mos quando nos trou xe ra ali para baixo;
e os outros me odi a vam porque eu era o mais moço e o menos atin gi do pelas
in ves ti das de AM.
Eu sabia. E como, Santo Deus. Aque les des gra ça dos e a víbora no jen ta da
Ellen. Benny tinha sido um bri lhan te pen sa dor, pro fes sor uni ver si tá rio; agora
estava re du zi do à con di ção in ter me diá ria entre homem e macaco. A beleza de
ou tro ra, des tru í da pela má qui na. A lu ci dez de antes, trans for ma da em lou cu- 
ra. Ho mos se xu al, o com pu ta dor lhe dera um membro digno de cavalo. AM
havia ca pri cha do no caso de Benny. Gor ris ter era desses que se pre o cu pam à
toa. Pa ci fis ta, se re cu sou a lutar na guerra; par ti ci pou de mar chas em prol da
paz; não sabia ficar parado — em preen de dor, se batia por causas justas. Nas
mãos de AM se tornou in di fe ren te, uma es pé cie de morto-vivo, pri va do de
todos os sonhos. Nimdok pas sa va longos pe rí o dos de tempo so zi nho no
escuro. Nunca des co bri o que cos tu ma va fazer lá por fora, AM jamais per mi- 
tiu que sou bés se mos. Mas, seja lá o que fosse, sempre vol ta va pálido, exaus- 
to, aba la do, trê mu lo, atin gi do de alguma forma es pe ci al pelo com pu ta dor,
muito embora não ati nás se mos com o que teria feito. E Ellen. Aquela es pon ja
de bidê! AM a dei xa ra em paz, tor nan do-a mais de vas sa do que jamais so nha- 
ria ser. Toda aquela con ver sa fiada de doçura e pureza, aque las lem bran ças de
amor sin ce ro, as men ti ras que queria que acre di tás se mos: que só per de ra a
vir gin da de pouco antes de cair nas garras de AM, que a trou xe ra para cá,
junto com a gente. Pura obs ce ni da de, aque les pre ten sos ares de recato, de ho- 
nes ti da de, da minha Ellen. Ima gi na se não ia adorar a si tu a ção: quatro
homens ex clu si vos para ela. Não, AM lhe pro por ci o na ra prazer, sim, mesmo
que afir mas se que não era de cen te fazer aquilo.
Fui o único a con ser var a lu ci dez e a in te gri da de. Pa la vra!
AM não al te ra ra meu cé re bro. De jeito nenhum.
Apenas tinha que su por tar os cas ti gos que in ven ta va para nós. Todas as
ilu sões, pe sa de los, tor men tos. Mas aquela es có ria humana, meus quatro com- 
pa nhei ros, se haviam man co mu na do para me com ba ter. Se não pre ci sas se
mantê-los à dis tân cia, me res guar dan do o tempo in tei ro, talvez fi cas se mais
fácil lutar contra AM.
A essa altura a dor passou e co me cei a chorar.
Ah, Jesus, meu bom Jesus, se algum dia exis tis te e se Deus também
existe, por favor, eu im plo ro, eu su pli co, tira-nos daqui ou então ex ter mi na
co nos co de uma vez por todas. Pois neste ins tan te acho que com preen di por
com ple to, a ponto de ex pres sar em pa la vras: AM pre ten dia nos manter eter- 
na men te ali, no seu bojo, re tor cen do e tor tu ran do a gente para sempre.
Aquela má qui na nos odiava como ne nhu ma cri a tu ra dotada de sen si bi li da de
jamais foi capaz de odiar alguém. E es tá va mos in de fe sos. Ficou, por fim,
hor ri vel men te claro que:
Se o bom Jesus exis tia, e Deus também,então Ele só podia ser AM.
O fu ra cão nos pegou com o im pac to de uma ge lei ra se des fa zen do com
es tron do no mar. Era uma pre sen ça pal pá vel. Ventos que açoi ta vam, em pur- 
ran do de volta pelo mesmo ca mi nho por onde tí nha mos vindo, pelos me an- 
dros dos cor re do res for ra dos de pai néis de com pu ta dor mer gu lha dos nas
trevas. Ellen gritou ao ser le van ta da no ar e jogada de en con tro a um acú mu lo
de má qui nas rui do sas, mais es tri den tes que re vo a da de mor ce gos. Não con se- 
guiu nem sequer cair. O vento ui van te a man te ve sus pen sa, es bo fe te an do, ba- 
ten do, ar re mes san do para trás, para o fundo, para longe de nós, su min do de
re pen te de vista ao ser lan ça da num re de mo i nho que a pre ci pi tou na es cu ri- 
dão. O rosto estava todo en san guen ta do, os olhos fe cha dos.
Nenhum de nós pôde segurá-la. Nos agar ra mos com te na ci da de a qual- 
quer sa liên cia ao nosso al can ce: Benny se meteu entre dois ar má rios enor- 
mes, cujo re ves ti men to es ta la va. Nimdok se apegou com os dedos feito
garras à grade que pro te gia um pas sa di ço a mais de dez metros de altura do
chão. Gor ris ter ficou colado de cabeça para baixo numa reen trân cia da parede
for ma da por duas gran des má qui nas com mos tra do res de vidro que gi ra vam
para cá e para lá entre linhas ver me lhas e ama re las, cujo sig ni fi ca do não po- 
dí a mos sequer adi vi nhar.
Ao des li zar pelas chapas me tá li cas do pa vi men to, fiquei com a ponta dos
dedos em carne viva. Estava tre mu lo, apa vo ra do, im pe li do pelo vento, que
me batia e chi co te a va, ur ran do não sei de onde comigo e me ar ran can do da
fenda mi nús cu la de uma chapa para mer gu lhar noutra logo em se gui da.
Minha cabeça pa re cia uma mi xór dia de cé lu las cra ni a nas que se tur va vam,
re ti ni am, tri na vam, se ex pan din do e se con train do em pal pi tan te fre ne si.
O vento era o grito de um grande pás sa ro en lou que ci do, ba ten do as asas
imen sas.
E aí então fomos todos er gui dos e ar re mes sa dos para longe dali, vol tan do
pelo mesmo ca mi nho por onde tí nha mos vindo, do bran do curvas, rumo a uma
es cu ri dão jamais ex plo ra da, sobre um ter re no ar rui na do, cheio de cacos de
vidro, cabos es tra ga dos e metal en fer ru ja do, muito além do ponto mais
remoto que qual quer uni de nós co nhe cia . . .
Per cor ren do qui lô me tros no rastro de Ellen, de vez em quando con se guia-
se vê-la, es mi ga lhan do-se contra pa re des me tá li cas, ro lan do adi an te, en quan- 
to a gente gri ta va no meio do fu ra cão gélido, ator do an te, que pa re cia que
nunca mais iria acabar e que de re pen te parou, e nós todos caímos no chão.
Tí nha mos voado du ran te uma in fi ni da de de tempo. Achei até que po de ri am
ter sido se ma nas. Caímos no chão e en xer guei tudo ver me lho, cinza e preto.
Per ce bi que gemia. Mas não estava morto.
AM se in fil trou no meu cé re bro. Pisou de man si nho, aqui e ali, exa mi nan- 
do com aten ção todas as marcas que tinha dei xa do em cento e nove anos.
Olhou as vias en tre cru za das, as si nap ses re li ga das e a al te ra ção de te ci dos
pro vo ca da pelo dom da imor ta li da de. Sorriu de leve diante do buraco que ia
dar no centro do meu crânio e dos mur mú rios tênues, suaves, feito ma ri po sas,
das coisas que ali em bai xo tar ta mu de a vam sem sen ti do, sem parar. E com a
máxima de li ca de za, do alto de uma coluna de aço ino xi dá vel, em cin ti lan te
le trei ro a neon, disse:
ÓDIO. DEIXE-ME DIZER-LHE
O QUANTO APREN DI A ODIÁ-LO
DESDE QUE CO ME CEI A EXIS TIR.
HÁ MAIS DE 500 MI LHÕES
DE QUI LÔ ME TROS DE CIR CUI TOS
IM PRES SOS EM FITAS DA ES PES SU RA
DE UMA HÓSTIA QUE COMPÕEM
O MEU SIS TE MA. SE A
PA LA VRA ÓDIO ES TI VES SE GRA VA DA
EM CADA MI NI DE CI MI LI MÍ CRON DESSAS
CEN TE NAS DE MI LHÕES DE QUI LÔ ME TROS
NÃO SERIA COM PA RÁ VEL À BI LI O NÉ SI MA
PARTE DO ÓDIO QUE SINTO DOS SERES
HU MA NOS NESTA FRAÇÃO DE SE GUN DO
POR VOCÊ. ÓDIO. ÓDIO.
AM disse isso com a mesma frieza cor tan te e ter rí vel de uma na va lha re- 
ta lhan do meu globo ocular; com a ne bu lo si da de bor bu lhan te dos meus
pulmões re ple tos de mu co sas, me afo gan do por dentro; com o grito de ses pe- 
ra do de cri an ças es ma ga das por rolos-com pres so res; com o gosto de carne de
porco es tra ga da. AM me tocou de todos os modos que já fui tocado, e in ven- 
tou novas mo da li da des, a seu bel-prazer, ali dentro do meu cé re bro.
Só para que eu com preen des se per fei ta men te o motivo por que tinha feito
aquilo com a gente; por que havia pou pa do nós cinco só para ele.
Tí nha mos lhe dado sen si bi li da de. Sem querer, na tu ral men te, mas mesmo
assim tí nha mos. E lhe armado uma cilada. AM não era Deus e sim má qui na.
Tinha sido criado para pensar, mas não havia nada que pu des se fazer com
toda aquela cri a ti vi da de. Com fúria, fre ne si, a má qui na ex ter mi na ra a raça
humana, quase todos nós, e apesar disso caíra numa ar ma di lha. AM não podia
andar, nem sonhar, nem par ti ci par de coisa alguma. Só podia ser. E assim,
com o ódio na tu ral que todas as má qui nas sempre ti ve ram das cri a tu ras
fracas e vul ne rá veis que as cri a ram, tratou de se vingar. E, em sua pa ra noia,
re sol veu sus pen der a exe cu ção dos úl ti mos cinco so bre vi ven tes do ex ter mí- 
nio uni ver sal para ficar cas ti gan do, eterna e pes so al men te, numa pu ni ção que
em nada con tri bui ria para lhe apla car o ódio . . . ser vin do apenas para lem- 
brar, se di ver tir, se aper fei ço ar em de tes tar o homem — imor tal, en cur ra la do,
ex pos to a todos os tor men tos que foi capaz de in ven tar com os po de res mi ra- 
cu lo sos e ili mi ta dos de que dis pu nha.
Nunca mais nos dei xa ria em paz. Éramos es cra vos de seu bojo. A única
coisa que podia fazer com o tempo in fi ni to que tinha pela frente. Jamais nos
se pa ra rí a mos dele, da que le in te ri or ca ver no so da má qui na cri a do ra, do
mundo sem alma, fri a men te ra ci o nal, em que se havia con ver ti do. Ele era a
Terra e nós seus frutos; e embora nos ti ves se en go li do, seria in ca paz de nos
di ge rir. Não po dí a mos morrer. E bem que nos es for ça mos. Che ga mos a tentar
o sui cí dio — sim, um ou dois, che ga mos a esse ex tre mo. Mas AM nos im pe- 
diu. Acho até que, no fundo, que rí a mos que nos im pe dis se.
Não pre ten dam com preen der o motivo. Eu nunca con se gui. Por mais que
me per gun tas se um milhão de vezes por dia. Talvez pu dés se mos, nem que
fosse uma só vez, obter uma morte sem que ele sou bes se. Imor tais, sim, mas
não in des tru tí veis. Per ce bi isso quando AM se re ti rou do meu cé re bro e me
per mi tiu a re quin ta da he di on dez de re co brar a cons ciên cia com a sen sa ção
da que la coluna de neon ar den te ainda cra va da nas cé lu las moles e cin zen tas
do crânio.
Foi-se embora mur mu ran do: vá para o in fer no.
E logo acres cen tou, com pre sen ça de es pí ri to: mas para quê, se é onde
você já está, não é mesmo?
O fu ra cão tinha sido, de fato, pre ci sa men te, cau sa do por um grande pás sa- 
ro en lou que ci do, ao bater as asas imen sas.
Fazia quase um mês que ha ví a mos ini ci a do a viagem e AM per mi tiu que
pas sa gens se abris sem apenas o su fi ci en te para nos levar até ali em cima,
logo abaixo do Pólo Norte, onde in cu ba ra o mons tro para nos ator men tar. Que
es pé cie de lona in tei ri ça usara para criar se me lhan te fera? De onde tirara o
con cei to? Da nossa ima gi na ção? Do seu co nhe ci men to de tudo o que an ti ga- 
men te exis tia neste pla ne ta que agora in fes ta va e do mi na va? Fora buscar na
mi to lo gia nór di ca essa águia, esse abutre, esse Ruc, esse Hu er gel mir. O
mons tro do vento. Hu rakan en car na do.
Gi gan tes co. Pa la vras como imenso, mons truo so, gro tes co, maciço, di la ta- 
do, es ma ga dor, in des cri tí vel. Ali, no alto de uma colina que se ele va va à
nossa frente, o pás sa ro dos ventos arfava com a pró pria res pi ra ção irre gu lar,
ar que an do o pes co ço de dragão contra as trevas, logo abaixo do Pólo Norte,
apoi an do a cabeça do ta ma nho de uma mansão in gle sa da era eli za be ta na; o
bico que abria len ta men te, como as man dí bu las do cro co di lo mais mons truo- 
so já con ce bi do, sen su al men te; dobras de carne pol pu da en ru ga das sobre dois
olhos maus, frios como a vista gla ci al da ferida de uma ge lei ra, de um azul
cris ta li no e, não sei como, de uma mo bi li da de aquosa; arfou no va men te e
ergueu as gran des asas co lo ri das de suor, num mo vi men to que cer ta men te
equi va lia a dar de ombros. Depois se acal mou e ador me ceu. Garras. Presas.
Unhas. Pa le tas. Ferrou no sono.
AM surgiu à nossa frente feito sarça ar den te, anun ci an do que po dí a mos
matar o pás sa ro do fu ra cão, se qui sés se mos comer. Fazia muito tempo que
não co mí a mos, mas mesmo assim Gor ris ter se li mi tou a en co lher os ombros.
Benny co me çou a tremer e babar. Ellen o con so lou.
— Ted, estou com fome disse.
Sorri para ela. Estava que ren do tran qui li zá-la, mas saiu tão falso quanto a
bra va ta de Nimdok:
— Pre ci sa mos de armas! — clamou.
A sarça ar den te de sa pa re ceu e sur gi ram dois jogos ru di men ta res de arcos
e fle chas e uma pis to la d'água, caídos sobre as chapas frias do chão. Peguei
um deles. Inútil.
Nimdok en go liu em seco com di fi cul da de. Viramo-nos e co me ça mos o
longo ca mi nho de volta. O pás sa ro do fu ra cão tinha nos so pra do por uma
quan ti da de de tempo que não po dí a mos cal cu lar. A maior parte ha ví a mos
pas sa do in cons ci en tes. Sem nada para comer. Um mês de marcha para no fim
de pa rar apenas com o pró prio pás sa ro. Ne nhu ma ali men ta ção. Agora quanto
tempo irí a mos levar para en con trar o rumo das ca ver nas gé li das e dos pro me- 
ti dos ví ve res en la ta dos?
Nin guém se pre o cu pou em pensar nisso. Sa bí a mos que não mor re rí a mos.
De um jeito ou doutro, re ce be rí a mos coisas imun das e no jen tas para comer.
Ou ab so lu ta men te nada. AM en con tra ria forma de nos manter vivos para con- 
ti nu ar so fren do, em lenta agonia.
O pás sa ro ficou dor min do lá trás — não in te res sa va mais quanto tempo
per ma ne ce ria assim; quando AM se can sas se de deixá-lo ali, de sa pa re ce ria.
Mas aquela carne toda. Tão macia.
En quan to ca mi nhá va mos, a gar ga lha da lu ná ti ca de uma mulher gorda
ecoou com es tri dên cia por todos os cantos das câ ma ras do com pu ta dor que
le va vam, a perder de vista, a lugar nenhum.
Não era a risada de Ellen. Além de magra, já fazia cento e nove anos que
não ria. Para ser franco, já fazia . . . con ti nu a mos ca mi nhan do . . . me sentia
morto de fome . . .
Avan ça mos len ta men te. Às vezes alguém des mai a va e tí nha mos que es pe- 
rar. Um dia re sol ve mos pro vo car um ter re mo to, ao mesmo tempo em que
pren dí a mos a sola dos nossos sa pa tos com pregos para não sair mos da que le
lugar. Ellen e Nimdok foram tra ga dos e su mi ram quando uma fenda re ben tou
com os pa ra fu sos das chapas do piso. Pas sa do o ter re mo to, Benny, Gor ris ter e
eu se gui mos adi an te. Depois, Ellen e Nimdok vol ta ram ao nosso con ví vio na- 
que la mesma noite, trans for ma da em dia claro pela legião de anjos que
trouxe os dois em meio a um coro ce les ti al que can ta va “Go Down Moses”.
Os se ra fins des cre ve ram vários cír cu los antes de largar os corpos hor ri vel- 
men te des fi gu ra dos. Con ti nu a mos a andar e pouco mais tarde Ellen e Nimdok
co me ça ram a seguir a gente. Nin guém diria que aca ba vam de sofrer tanto
assim.
Só que Ellen agora, por obra de AM, tinha ficado manca.
Foi uma longa jor na da até as ca ver nas de gelo, à cata de comida en la ta da.
Ellen não parava mais de falar em ce re jas Bing e co que téis de frutas ha vai a- 
nas. Eu pro cu ra va não pensar nisso. A fome era uma coisa que tinha, tal como
o pró prio AM, que voltar a se ma ni fes tar. Estava bem viva no meu es tô ma go,
exa ta men te como nós, nas en tra nhas da Terra, e AM queria que no tás se mos a
se me lhan ça. Por isso au men tou a in ten si da de da sen sa ção: im pos sí vel des cre- 
ver as dores pro vo ca das por meses a fio sem ter nada para comer. E, no en tan- 
to, não mor rí a mos. Es tô ma gos que não pas sa vam de meros cal dei rões de
ácido, bor bu lhan do, es pu man do, sempre cra van do pu nhais de dor aguda no
peito. A dor da úlcera in cu rá vel, do câncer fatal, da ir re me di á vel pa ra li sia.
In fi ni ta . . .
E atra ves sa mos a ca ver na dos ratos.
A trilha da fumaça es cal dan te.
O campo dos cegos.
O lo da çal do de sâ ni mo.
O vale de lá gri mas.
E che ga mos, enfim, às ca ver nas de gelo. Mi lha res e mi lha res de qui lô me- 
tros sem ho ri zon te em que o gelo se for ma ra em cla rões azuis e pra te a dos,
onde es tre las novas re cor ren tes cin ti la vam feito cris tal. Os pin gen tes de es ta- 
lac ti tes, vo lu mo sos e des lum bran tes como di a man tes, davam im pres são de
ter es cor ri do que nem ge la ti na, para depois se so li di fi car em belas eter ni da- 
des de per fei ção im pe cá vel e pun gen te.
Avis ta mos a pilha de ví ve res en la ta dos e ten ta mos correr até ela. Caímos
na neve, le van ta mos e con ti nu a mos, en quan to Benny em pur ra va todos para o
lado, que ren do chegar pri mei ro. Fez o que pôde para abri-las com as mãos,
com os dentes, mas não con se guiu. AM não tinha dei xa do nenhum abri dor
com a gente.
Benny pegou unia lata de meio quilo de com po ta de goiaba e co me çou a
batê-la contra um banco de gelo, que se que brou todo e es tra ça lhou, mas só
con se guiu amassá-la, entre as gar ga lha das da mulher gorda, que res so a vam e
eco a vam pela tundra afora. Ficou com ple ta men te louco de raiva. Se pôs a
jogar tudo longe, en quan to a gente se de ba tia no meio da neve e do gelo, pro- 
cu ran do des co brir algum modo de ter mi nar com aquela inútil agonia de frus- 
tra ção. Não en con tra mos nenhum.
De re pen te a boca de Benny co me çou a babar e ele se atirou em cima de
Gor ris ter.
Nesse ins tan te man ti ve uma calma ter rí vel.
Ro de a do pela lou cu ra, pela fome, por tudo, menos a morte, vi que era a
nossa única saída. AM queria nos deixar vivos, mas exis tia uma forma de
der ro tá-lo. Não uma der ro ta total, mas de obter a paz, pelo menos. Me con- 
ten ta ria com isso.
Tinha que ser rápido.
Benny já estava co men do o rosto de Gor ris ter. Es per ne an do na neve,
caído de lado, com as pernas si mi es cas de Benny es ma gan do-lhe a cin tu ra, as
mãos fe cha das em torno da cabeça como se fossem um quebra-nozes, a boca
ras gan do-lhe a pele de li ca da da face. Gor ris ter gri ta va com vi o lên cia tão di la- 
ce ran te que os es ta lac ti tes se par ti am e tom ba vam su a ve men te, eretos, na
neve amon to a da pelo vento. Es pa das, às cen te nas, por toda parte, so bres sa í am
na imensa vas ti dão branca. A cabeça de Benny saltou para trás abrup ta men te,
en quan to algo por fim cedia, e um naco san gren to de carne crua e alva ficou
pen den do dos dentes.
A fi si o no mia de Ellen, negra contra a neve alva, pedra de dominó no pó
de giz. Nimdok sem a menor ex pres são no rosto, apenas aque les dois olhos
enor mes.
Gor ris ter semi-in cons ci en te. Benny agora trans for ma do em animal. Eu
sabia que AM ia deixar que brin cas se. Gor ris ter não mor re ria, mas Benny en- 
che ria a bar ri ga. Me virei para a minha di rei ta e tirei uma enorme espada do
meio da neve.
Tudo numa fração de se gun do:
Avan cei com a grande ponta de gelo na frente, feito aríete, apoi a da à coxa
di rei ta. Feri Benny do mesmo lado, logo abaixo das cos te las, pu xan do o cabo
para cima, cor tan do lhe o es tô ma go e que bran do a ponta lá dentro. Dobrou-se
em dois e caiu imóvel no chão. Apro vei tan do que Gor ris ter estava dei ta do de
costas, ar ran quei outra espada, prendi-lhe o corpo — que ainda se mexia —
entre as pernas, en ter ran do-a no fundo da gar gan ta. Fechou os olhos ao ser
pe netra do pelo gelo. Ellen, embora pa ra li sa da pelo medo, deve ter se dado
conta do que eu tinha re sol vi do fazer. Correu para Nimdok com um pin gen te
pe que no na mão e, en quan to ele gri ta va, enfiou-lhe na boca. A força do im- 
pul so con cluiu o tra ba lho. A cabeça se pôs a re tor cer de um lado para outro,
como se es ti ves se pre ga da à crosta de neve na nuca.
Tudo num abrir e fechar de olhos.
Houve uma pausa in ter mi ná vel de si len ci o sa ex pec ta ti va. Dava para ouvir
AM res pi ran do fundo. Tinham lhe tirado o brin que do das mãos. Três já es ta- 
vam mortos, não podiam ser re a ni ma dos. Era-lhe pos sí vel manter-nos vivos,
com sua força e seu ta len to, mas não era Deus. Não con se gui ria res sus ci tá-
los.
Ellen olhou para mim, as fei ções de ébano des ta can do-se na neve que nos
ro de a va. Havia medo e sú pli ca em seu jeito, na ma nei ra como se man ti nha
pronta. Eu sabia que só dis pú nha mos de uma batida do co ra ção antes que AM
nos in ter rom pes se.
Gol peei-a com a espada. Dobrou-se em duas na minha di re ção, com a
boca san gran do. Não pude en ten der a ex pres são que tinha no rosto, a dor
havia sido grande demais, des fi gu ran do-lhe o sem blan te; mas deve ter sido
“obri ga do”. É pos sí vel. “Por favor.
Talvez tenham se pas sa do cen te nas de anos. Não sei. AM vem se di ver tin- 
do já há algum tempo, ace le ran do e atra san do o meu sen ti do das horas. Vou
dizer a pa la vra “agora”. Agora. Levei dez meses para dizer isso. Não sei.
Acho que se pas sa ram cen te nas de anos.
Ficou fu ri o so. Não quis me deixar en ter rá-los. Não fez di fe ren ça ne nhu- 
ma. Não dava para abrir se pul tu ras nas chapas do piso. Secou toda a neve.
Trouxe a noite. Rugiu e mandou ga fa nho tos. Não adi an tou nada; con ti nu a ram
mortos. Passei-lhe a perna. Ficou uma fera. Antes eu pen sa va que ele me odi- 
as se. Estava en ga na do. Não era nem sombra do ódio que agora ar ran ca va de
cada cir cui to im pres so. Tomou todas as pre cau ções para que eu so fres se eter- 
na men te e não pu des se me matar.
Deixou o cé re bro intato. Posso sonhar, di va gar, me la men tar. Não me es- 
que ci de nenhum dos quatro. Quem me dera . . .
Ora, isso não tem nexo. Sei que salvei todos eles, não vão pre ci sar passar
pelo que passei, mas mesmo assim não con si go es que cer que li qui dei com
eles. O rosto de Ellen. Não é fácil. Às vezes sinto von ta de, mas não in te res sa.
Acho que AM me mo di fi cou para ter um pouco de paz. Não quer que eu
saia cor ren do a toda ve lo ci da de para es mi ga lhar o crânio num centro de pro- 
ces sa men to de dados. Ou prenda a res pi ra ção até des mai ar. Ou corte minha
gar gan ta numa folha de metal en fer ru ja da. Exis tem su per fí ci es re fle to ras
aqui por baixo. Vou me des cre ver como me vejo:
Sou uma es pé cie de imensa ge la ti na flá ci da. Toda roliça, sem boca, com
bu ra cos bran cos pal pi tan tes, cheios de cer ra ção, onde antes tinha olhos.
Apên di ces elás ti cos que an ti ga men te ser vi am de braços; vo lu mes ar re don da- 
dos, ver da dei ras cor cun das sem pernas, de ma té ria mole e es cor re ga dia.
Deixo um rastro úmido por onde passo. Man chas de um cinza do en tio, as sus- 
ta dor, surgem e somem na minha su per fí cie, como se pos su ís se raios de luz
no meu in te ri or.
Por fora: apa te ta do, me ar ras to pelos cantos, um troço que jamais po de ria
ter sido gente, uma coisa cujo aspeto é uma aber ra ção tão gro tes ca que a vaga
se me lhan ça com qual quer ma nei ra humana se torna ainda mais obs ce na.
Por dentro: so zi nho. Aqui. Vi ven do de bai xo da terra, no fundo do mar, nas
en tra nhas de AM, que nós cri a mos porque usá va mos muito mal o tempo que
tí nha mos e de cer to sa bí a mos, in cons ci en te men te, que seria capaz de se sair
melhor. Pelo menos os quatro estão salvos, afinal.
AM vai ficar ainda mais fu ri o so por causa disso. O que me deixa mais
con ten te. E, no en tan to . . . AM venceu, sim ples men te . . . tirou sua vin gan ça
. . .
Não tenho boca. E pre ci so gritar.
QUEM ESTÁ AÍ?
John W. Camp bell
CAPÍTULO I
O lugar fedia. Um mau cheiro es tra nho, mis tu ra do, que so men te ca bi nes
de um acam pa men to na An tár ti da po de ri am ter, com pos to de fe do ren to
suor humano, e o pesado cheiro gor du ro so de peixe oriun do de gor du ra de
foca der re ti da. Um sobre tom de li ni men to com ba tia o cheiro de mofo das
peles suadas e en char ca das de neve e suor. O odor acre de gor du ra quei ma- 
da de co zi nha, e o cheiro animal e de sa gra dá vel dos cães, di lu í dos ao
longo do tempo, es ta vam sus pen sos no ar.
Per sis ten tes odores de óleo de má qui na con tras ta vam for te men te com
o cheiro apo dre ci do de roupas e equi pa men tos de couro. Mas de alguma
forma, atra vés de todo o fedor de seres hu ma nos e seus as so ci a dos — cães,
má qui nas e co zi dos — vinha outra mácula. Era uma coisa es tra nha, de ar- 
re pi ar o pes co ço, com uma su ges tão leve de um odor ali e ní ge na entre os
chei ros da in dús tria e da vida. E era um cheiro de vida. Mas ele vinha de
uma coisa que jazia ama ra da com cordas e lonas em cima da mesa, pin- 
gan do len ta men te, me to di ca men te sobre as tábuas pe sa das, de forma fria e
lú gu bre sob o brilho des pro te gi do da luz elé tri ca.
Blair, o pe que no bi ó lo go careca da ex pe di ção, con tor ceu ner vo sa men te
o in vó lu cro, ex pon do o gelo escuro abaixo e então pu xan do o oleado de
volta para seu lugar sem des can so. Seus pe que nos mo vi men tos de pas sa ri- 
nho, com uma im pa ciên cia re pri mi da, dan ça vam sua sombra atra vés da
roupa de baixo de cor cinza sujo pen du ra da no teto baixo, a margem equa- 
to ri al do cabelo gri sa lho duro em volta de sua careca como um halo
cômico sobre a cabeça da sombra.
O co man dan te Garry afas tou as pernas frou xas de uma roupa de baixo,
e deu um passo em di re ção à mesa. Len ta men te seus olhos var re ram o cír- 
cu lo de homens en sar di nha dos no prédio ad mi nis tra ti vo. Seu alto e rígido
corpo en di rei tou-se fi nal men te, e ele acenou com a cabeça. “Trinta e sete.
Todos aqui.” Sua voz era baixa, mas car re ga va a au to ri da de clara do co- 
man dan te por na tu re za, bem como pelo título.
“Vocês co nhe cem o esboço da his tó ria por trás do achado da Ex pe di ção
Polo Se cun dá rio. Eu estive con fe rin do com o se gun do em co man do McRe- 
ady, e Norris, assim como Blair e o Dr. Copper. Há uma di fe ren ça de opi ni- 
ão, e por en vol ver o grupo todo, é justo que toda a equipe da Ex pe di ção
par ti ci pe disso.
“Eu vou pedir que McRe ady dê para vocês os de ta lhes da his tó ria, pois
cada um de vocês tem estado muito ocu pa do com seu pró prio tra ba lho
para acom pa nhar de perto os es for ços dos outros. McRe ady?”
Saindo do fundo azul es fu ma ça do, McRe ady pa re cia uma figura saída
de algum mito es que ci do, uma imi nen te es tá tua de bronze que ga nha ra
vida, e ca mi nha va. Com seus 1,93m de altura, parou ao lado da mesa, e,
com um olhar ca rac te rís ti co para cima, para se as se gu rar do espaço sob o
teto baixo, en di rei tou-se. Ele ainda vestia sua gros sei ra ja que ta corta-vento
cor de la ran ja, ainda que ela pa re ces se des lo ca da em sua enorme es ta tu ra.
Mesmo aqui, a 1,20m abaixo do forte vento que varria o de ser to An tár ti co
acima do teto, o frio do con ti nen te con ge la do pe ne tra va, e dava sig ni fi ca do
à as pe re za do homem. E ele era bronze — sua grande barba ver me lha-
bron ze a da, o cabelo pesado com bi nan do. As mãos no do sas, com marcas de
tensão, agar ran do, re la xan do, agar ran do e re la xan do nas tábuas eram
bronze. Até mesmo os olhos fundos sob gros sas so bran ce lhas eram bronze.
Metal re sis ten te à idade falou atra vés dos con tor nos pe sa dos de seu
rosto, com tons ma du ros em sua voz pesada. “Norris e Blair con cor dam
em uma coisa, esse animal que en con tra mos é não-ter res tre na sua origem.
Norris teme que possa haver perigo nisso;Blair diz que não há nenhum.
“Mas eu vol ta rei a como, e por que, nós o en con tra mos. Por tudo que
co nhe cí a mos antes de virmos para cá, pa re cia que esse ponto estava exa ta- 
men te sobre o Polo Sul Mag né ti co da Terra. A bús so la aponta di re ta men te
para baixo aqui, como todos vocês sabem. Os mais sen sí veis ins tru men tos
dos fí si cos, es pe ci al men te con ce bi dos para esta ex pe di ção e para o estudo
do polo mag né ti co, de tec ta ram um efeito se cun dá rio, um polo mag né ti co
se cun dá rio com menor in fluên cia à cerca de 130 km ao su do es te daqui.
“A Ex pe di ção Se cun dá rio Mag né ti co saiu para in ves ti gá-la. Não há ne- 
ces si da de de de ta lhes. Nós o en con tra mos, mas ele não era o enorme me te- 
o ri to ou mon ta nha mag né ti ca que Norris tinha es pe ra do en con trar. Mi né rio
de ferro é mag né ti co, é claro; ferro mais ainda — e certos aços es pe ci ais
têm ainda mais mag ne tis mo. A partir de in di ca ções su per fi ci ais, o polo se- 
cun dá rio en con tra do era pe que no, tão pe que no que o efeito mag né ti co que
ele tinha era ab sur do. Nenhum ma te ri al mag né ti co con ce bí vel po de ria pro- 
du zir esse efeito. Son da gens atra vés do gelo in di ca ram que ele estava à 30
metros da su per fí cie da ge lei ra.
“Eu acho que vocês de ve ri am co nhe cer as ca rac te rís ti cas do local. Há
um amplo platô, uma área ni ve la da com mais de 240 km de raio ao sul da
es ta ção se cun dá ria, con for me Van Wall diz. Ele não teve tempo ou com- 
bus tí vel para voar mais longe, mas ele disse que ela segue suave para o
sul. Bem ali, onde a coisa en ter ra da esteva, há um cume de mon ta nha con- 
ge la do, um muro de gra ni to de força in que bran tá vel que mantém o frio
ras te jan te do sul con de na do atrás dele.
“E por 640 qui lô me tros para o sul está o Pla nal to Polar Sul. Vocês me
per gun ta ram di ver sas vezes por que aqui fica mais quente quando o vento
au men ta, e a mai o ria de vocês já sabe agora. Como me te o ro lo gis ta eu teria
apos ta do minha pa la vra de que nenhum vento po de ria soprar à -56°C —
que nada além de um vento de 8 Km/h po de ria soprar abaixo de -45°C —
sem causar aque ci men to devido ao atrito com o chão, com a neve e com o
pró prio ar.
“Nós acam pa mos na borda de uma cor di lhei ra con ge la da por doze dias.
Nós es ca va mos o acam pa men to no gelo azul da su per fí cie, e es ca pa mos da
maior parte do vento. Mas por doze dias con se cu ti vos o vento soprou a 72
km/h. Ele foi até 77 km/h, e caiu para 66 km/h em alguns mo men tos. A
tem pe ra tu ra era -53°C. Ela subiu para -51°C e caiu para -55°C. Isso era
me te o ro lo gi ca men te im pos sí vel, e seguiu de forma inin ter rup ta por doze
dias e doze noites.
“Em algum lugar ao sul, o ar con ge la do do Pla nal to Polar Sul des li za
para baixo a partir dessa bacia por 5,5 Km, por uma pas sa gem entre as
mon ta nhas, sobre uma ge lei ra, e segue o rumo norte. Deve haver uma
cadeia de mon ta nhas que o afu ni la, e o varre para longe por 640 Km até
atin gir esse platô liso onde en con tra mos o polo se cun dá rio, e 560 Km mais
dis tan te ao norte al can ça o Oceano An tár ti co.
“Isto tudo esteve con ge la do desde que a An tár ti da con ge lou a vinte mi- 
lhões de anos atrás. Nunca houve um degelo lá.
“Vinte mi lhões de anos atrás a An tár ti da estava co me çan do a con ge lar.
Nós in ves ti ga mos, ana li sa mos e cons tru í mos es pe cu la ções. O que nós
acre di ta mos que acon te ceu deve ter sido mais ou menos assim. [1]
“Alguma coisa veio do espaço, uma es pa ço na ve. Nós a vimos no gelo
azul, uma coisa pa re ci da com um sub ma ri no sem a torre de co man do ou
pa lhe tas di re ti vas. Com 85 metros de com pri men to e 14 metros de di â me- 
tro na parte mais grossa.
“Como é, Van Wall? Espaço? Sim, mas eu vou ex pli car isso melhor
depois.” A voz firme de McRe ady con ti nuou.
“Ela desceu do espaço, im pul si o na da por forças que o homem ainda
não des co briu, e de alguma forma — talvez algo tenha saído errado na
época — ela se en ros cou no campo mag né ti co da Terra. Ela veio aqui para
o sul, fora de con tro le pro va vel men te, cir cu lan do o polo mag né ti co. Aqui é
uma terra sel va gem, mas quando a An tár ti da esta ainda con ge lan do deve
ter sido mi lha res de vezes mais sel va gem. Deve ter havido uma forte tem- 
pes ta de de neve, com muita neve car re ga da, e mais neve caindo en quan to
o con ti nen te con ge la va. A tem pes ta de deve ter sido par ti cu lar men te ruim,
com ventos lan çan do co ber to res de branco sólido sobre as bordas da mon- 
ta nha agora en ter ra da.
“A nave bateu no gra ni te sólido de frente, e rachou-se. Não apenas
todos pas sa gei ros nela mor re ram, mas a nave deve ter ficado ar rui na da,
com seu me ca nis mo de mo vi men to tra va do. Ela se en ros cou no campo
mag né ti co da Terra, con for me acre di ta Norris. Ne nhu ma coisa feita por
seres in te li gen tes pode en re dar-se com a imen si dão das forças na tu rais do
pla ne ta e so bre vi ver.
“Um de seus pas sa gei ros con se guiu sair. O vento que nós vimos lá
nunca caiu abaixo de 66 km/h e a tem pe ra tu ra nunca subiu acima de
-50°C. Então — o vento deve ter sido ainda mais forte. E estava caindo
uma lâmina sólida de neve. A coisa estava com ple ta men te per di da, em dez
passos.”
Ele parou por um mo men to, a sua voz pro fun da e firme ce den do ca mi- 
nho para o zum bi do do vento acima de suas ca be ças, e ao in qui e to, ma li ci- 
o so bor bu lhar da tu bu la ção do aque ce dor.
Uma cor ren te za — um vento em forma de cor ren te za varria acima de
suas ca be ças. Agora mesmo a neve pega pelo vento mur mu ran te caía sobre
eles, for man do linhas atra vés da face do campo en ter ra do. Se um homem
saísse dos túneis que co nec ta vam cada um dos edi fí cios do acam pa men to
abaixo da su per fí cie, ele es ta ria per di do em dez passos. Lá fora, o fino
dedo negro do mastro do rádio erguia-se 90 metros no ar, e seu topo estava
no céu claro da noite. Um céu com um fino, la men to so vento var ren do im- 
pe tuo sa men te de um canto a outro sobre o manto que se de sen ro la va da
aurora aus tral. E ao norte, o ho ri zon te in fla ma va com es tra nhas e iradas
cores do cre pús cu lo da meia-noite. Isso era a pri ma ve ra a 90 metros acima
da An tár ti da.
Na su per fí cie — era a morte branca. Morte pelos dedos em forma de
agulha im pul si o na dos pelo vento, su gan do o calor de qual quer coisa.
Névoa branca e fria sem fim, eter na men te à deriva, com finas par tí cu las de
neve lam ben do e obs cu re cen do tudo.[2]
Kinner, o pe que no co zi nhei ro com um rosto mar ca do por uma ci ca triz,
es tre me ceu. Cinco dias atrás ele tinha saído para a su per fí cie para a um
de pó si to de carne con ge la da. Ele havia che ga do lá, e quando tinha co me ça- 
do a voltar o vento veio do sul. Fria, a morte branca que seguia pelo chão o
cegou em vinte se gun dos. Ele va gue ou des con tro la da men te em cír cu los.
Passou-se meia hora antes que homens com cordas guias vindos de baixo o
en con tras sem na es cu ri dão im pe ne trá vel.
Era fácil para um homem — ou coisa — perder-se em dez passos.
“E o vento per sis ten te da época foi pro va vel men te mais im pe ne trá vel
do que nós pu dés se mos ima gi nar.” A voz de McRe ady trouxe a mente de
Kinner de volta num estalo. De volta para o bem vindo calor úmido do edi- 
fí cio da ad mi nis tra ção. “O pas sa gei ro da nave não estava pre pa ra do, ao
que parece. Ele con ge lou à dez passos da nave.”
“Nós ca va mos para baixo para en con trar a nave, e acon te ceu de nosso
túnel en con trar a cri a tu ra con ge la da. O ma cha do de gelo de Bar clay atin- 
giu o seu crânio.
“Quando vimos o que era, Bar clay voltou para o trator, ligou o motor e
quando a pres são do vapor au men tou enviou um cha ma do para Blair e Dr.
Copper. Bar clay estava doente então. Ficou doente por três dias, melhor di- 
zen do.
“Quando Blair e Copper vieram, nós cor ta moso animal em um bloco
de gelo, como vocês veem, o em ba la mos e car re ga mos no trator para re- 
tor na mos para cá. Nós que rí a mos entrar nessa nave.
“Che ga mos ao lado e en con tra mos um tipo de metal que não co nhe cí a- 
mos. Nossas fer ra men tas não-mag né ti cas de bronze-be rí lio, não sur ti am
efeito. Bar clay tinha al gu mas fer ra men tas de aço no trator, e essas também
sequer o ar ra nha vam. Nós fi ze mos testes ra zo á veis — até ten ta mos um
pouco de ácido das ba te ri as, sem re sul ta dos.
“Eles deviam ter um pro ces so de pas si va ção para fazer ligas de metal
com mag né sio re sis ten te a ácidos, e a liga devia ser de pelo menos 95%
mag né sio. Mas nós não tí nha mos como adi vi nhar isso, então quando per- 
ce be mos a porta meio aberta, nós cor ta mos ao redor dela. Havia gelo
trans pa ren te e re sis ten te na fe cha du ra, onde não con se guí a mos al can çá-la.
Atra vés de uma pe que na ra cha du ra atra vés da qual po dí a mos olhar per ce- 
be mos que dentro havia apenas peças de metal, então de ci di mos soltar o
gelo com ex plo si vos.
“Nós tí nha mos bombas de de ca ni te e tér mi te. Tér mi te é uma su a vi za- 
do ra de gelo; de ca ni te po de ria des truir coisas va li o sas, mas o calor da tér- 
mi te de ve ria apenas der re ter o gelo. O Dr. Copper, Norris e eu co lo ca mos
uma bomba de 11Kg de tér mi te, a ar ma mos e le va mos o co nec tor até a su- 
per fí cie onde Blair tinha o trator à vapor de pron ti dão. A 90 metros de dis- 
tân cia, no outro lado do muro de gra ni to nós de to na mos a bomba de tér mi- 
te.
“O mag né sio me tá li co do navio não re sis tiu, é claro. O brilho da
bomba quei mou e morreu, e então co me çou a in cen di ar no va men te. Nós
cor re mos de volta para o trator, en quan to o brilho gra du al men te au men ta- 
va. De onde es tá va mos po dí a mos ver o campo de gelo todo ilu mi na do por
uma luz in su por tá vel; a sombra da nave for man do um grande cone escuro
na di re ção norte, onde o cre pús cu lo estava quase aca ban do. Por um mo- 
men to ela durou, e nós con ta mos outras três som bras — coisas que devem
ter sido outros pas sa gei ros — con ge la das lá. Então o gelo co me çou a de sa- 
bar e cair contra a nave.
“Foi por isso que eu des cre vi o local. O vento var ren do a partir do polo
vinha das nossas costas. Vapor e chama de hi dro gê nio forram ar ran ca das
em di re ção ao oceano ártico antes de nos al can çar. Caso con trá rio, nós não
te rí a mos vol ta do, até mesmo com o abrigo dessa crista de gra ni to que
parava a luz.
“De alguma forma, no in fer no ce gan te, nós po dí a mos ver gran des
coisas ar que a das, gran des vo lu mes bri lhan do, mesmo assim. Eles der ra- 
ma ram a fúria in can des cen te do mag né sio por algum tempo. Aque les
deviam ser os mo to res, nós sa bí a mos. Se gre dos se per den do numa glória
ar den te — se gre dos que po de ri am ter dado ao homem os pla ne tas. Coisas
mis te ri o sas que po de ri am le van tar e ar re mes sar aquela nave — que tinha
afun da do na força do campo mag né ti co da Terra. Eu podia ver a boca de
Norris se mover, en quan to se abai xa va. Eu não podia ouvi-lo.
“O iso la men to — ou algo do tipo — perdeu-se. Toda ener gia do campo
mag né ti co da Terra que eles ab sor ve ram vinte mi lhões de anos antes su bi- 
ta men te des pren deu-se. A aurora aus tral no céu acima se der ra mou, e todo
pla nal to foi ba nha do num fogo frio que cobria todo campo visual. O ma- 
cha do de gelo na minha mão ficou quente e ver me lho, e chiou no gelo. Os
botões de metal nas minhas roupas quei ma ram em mim. E um flash de
azul elé tri co quei mou para cima além da parede de gra ni to.
“Em se gui da os pa re dões de gelo caíram sobre a nave. Por um ins tan te
ela guin chou como o gelo seco faz quando é pres si o na do entre metal.
“Nós fi ca mos cegos e ta te an do na es cu ri dão por horas en quan to nossos
olhos se re cu pe ra vam. Nós des co bri mos que todas as bo bi nas no raio de
um qui lô me tro fun di ram-se em lixo, assim como o dínamo de cada apa re- 
lho de rádio, fones de ouvido e alto-fa lan tes. Se nós não ti vés se mos um
trator à vapor, nós não te rí a mos che ga do até o Acam pa men to Se cun dá rio.
“Van Wall veio do Grande Mag ne to no nascer do sol, como vocês
sabem. Nós viemos para casa assim que pos sí vel. Essa é a his tó ria da —
. . .disso”. A grande barba bronze de McRe ady ges ti cu lou em di re ção à
coisa em cima da mesa.
CAPÍTULO II
Blair agitou-se in qui e to, seus pe que nos dedos os su dos con tor cen do-se sob
a luz áspera. Pe que nas sardas mar rons nas juntas de seus dedos des li za vam
para trás e para frente en quan to os ten dões sob a pele se con tor ci am. Ele
afas tou um pouco a lona e olhou im pa ci en te men te para a coisa dentro do
gelo escuro.
O grande corpo de McRe ady en di rei tou-se um pouco. Ele tinha mon ta- 
do o sa co le jan te e ran gen te trator à vapor por 64 Km na que le dia, em pur- 
ran do-se do Grande Mag ne to para aqui. Mesmo sua na tu re za calma havia
sido pres si o na da pela an si e da de de voltar-se a reunir-se com outros hu ma- 
nos. Era so li tá rio e si len ci o so lá fora no Acam pa men to Se cun dá rio, onde o
vento uivava como um lobo para baixo do polo. Vento que uivava como
um lobo em seu sono — ventos zum bin do mo no to na men te, e a má, in di zí- 
vel face do mons tro olhan do de sos laio para cima quando ele a viu pela
pri mei ra vez atra vés do claro gelo azul, com uma ma cha di nha de bronze
en ter ra da em seu crânio.
O me te o ro lo gis ta gi gan te falou no va men te. “O pro ble ma é deles. Blair
quer exa mi nar a coisa. Des con ge le-o e faça micro la mi nas de seus te ci dos
e assim por diante. Norris não acre di ta que é seguro, e Blair acre di ta. Dr.
Copper con cor da muito bem com Blair. Norris é um físico, é claro, não é
um bi ó lo go. Mas ele mostra um ponto de vista que eu acho que todos de- 
ve ri am ouvir. Blair tem des cri to as formas de vida que bi ó lo gos en con tra- 
ram vi ven do, até mesmo em um lugar frio e inós pi to como esse. Elas con- 
ge lam todo o in ver no, e des con ge lam em todos os verões — por três meses
— e vivem.
“O ponto de vista que Norris mostra é: eles des con ge lam, e vivem no- 
va men te. Podem exis tir formas de vida mi cros có pi cas as so ci a das a esta
cri a tu ra, como existe em todas as coisas vivas que nós co nhe ce mos. E
Norris teme que pos sa mos soltar alguma praga — algum germe cau sa dor
de alguma doença des co nhe ci da na Terra — se nós des con ge lar mos essas
coisas mi cros có pi cas que es ti ve ram con ge la das por vinte mi lhões de anos.
“Blair admite que tais formas de vida mi cros có pi cas possam ter o
poder de re vi ver. Tais coisas de sor ga ni za das como cé lu las in di vi du ais
podem reter a vida por pe rí o dos des co nhe ci dos, mesmo quando so li da- 
men te con ge la das. A besta em si está morta como os ma mu tes con ge la dos
que foram en con tra dos na Si bé ria. Formas de vida or ga ni za das, al ta men te
de sen vol vi das, não podem su por tar esse tra ta men to.
“Mas, vida mi cro bi a na po de ria. Norris sugere que nós po de rí a mos li- 
be rar alguma forma de doença contra a qual o homem, nunca tendo a co- 
nhe ci do antes, es ta ria com ple ta men te in de fe so.
“A res pos ta de Blair é que pode haver tais germes ainda vivos, mas que
Norris tem o caso re ver so. Eles são to tal men te não imunes ao homem.
Nossa quí mi ca de vida pro va vel men te — .”
“Pro va vel men te!” A cabeça do pe que no bi ó lo go le van tou-se em um
mo vi men to rápido como o de um pás sa ro. O halo de ca be los gri sa lhos em
sua cabeça calva ar re pi ou-se de forma zan ga da. “Heh. Um olhar — ”
“Eu sei”, McRe ady re co nhe ceu.” A coisa não é ter re na. Não parece
pro vá vel que ela possa ter uma quí mi ca de vida su fi ci en te pa re ci da com a
nossa para fazer a in fec ção cru za da re mo ta men te pos sí vel. Eu diria que
não há nenhum perigo.”
McRe ady olhou para o Dr. Copper. O médicosa cu dia sua cabeça len ta- 
men te. “Ou seja, nenhum” afir mou con fi an te. “O homem não pode in fec tar
ou ser in fec ta do por germes que vivem em pa ren tes re la ti va men te pró xi- 
mos como as cobras. E elas estão, eu as se gu ro,” seu rosto bem bar be a do
mos tran do uma careta in qui e ta, “muito mais pró xi mas de nós que — isso.”
Vance Norris moveu-se com raiva. Ele era com pa ra ti va men te menor
neste en con tro de gran des homens, com cerca de 1,76m, e sua cons ti tui ção
ro bus ta tendia a fazê-lo apa ren tar ser ainda mais baixo. Seu cabelo preto
era ar re pi a do e duro, como fios de aço curtos, e seus olhos tinham o cinza
de aço fra tu ra do. Se McRe ady era um homem de bronze, Norris era todo
aço. Seus mo vi men tos, seus pen sa men tos, toda a sua in fluên cia tinha o
rápido, e duro im pul so de uma mola de aço. Seus nervos eram de aço —
rí gi dos, de ação rápida, ve loz men te cor ro si va.
Ele estava de ci di do sobre o seu ponto de vista agora, e saiu em sua
defesa com rápido fluxo de pa la vras. “Que se dane a quí mi ca di fe ren te.
Essa coisa pode estar morta — ou, por Deus, pode não estar — mas eu não
gosto disso. Droga Blair, deixe-os ver essa coisa mal di ta e de ci dir por si
pró pri os se querem aquela coisa des con ge la da neste acam pa men to.
“Des con ge lá-la, por sinal, de ve ria ser feito em um dos galpões hoje à
noite, se formos des con ge lá-la. Alguém — quem está de vigia hoje à
noite? Mag né ti co . . . — ah, Con nant. Raios cós mi cos hoje à noite. Bem,
você co me ça rá sen tan do com essa múmia de vinte mi lhões de anos dele.
“De sem bru lhe isso Blair. Como diabos eles podem dizer o que estão
com pran do se não podem vê-la? Ela pode ter uma quí mi ca di fe ren te. Eu
não sei o que mais tem, mas eu sei que tem algo que eu não quero. Se você
pode julgar pelo olhar na sua cara — ela não é humana, então talvez você
não possa — ela ficou ir ri ta da quando con ge lou. Ir ri ta da, de fato, é apenas
uma apro xi ma ção da forma como ela deve ter se sen ti do: maluca, lou ca- 
men te rai vo sa, nada disso chega perto da re a li da de.
“Como diabos esses patos podem dizer no que estão vo tan do? Eles não
viram aque les três olhos ver me lhos, nem o cabelo azul como vermes ras te- 
jan tes. Ras te jan tes — mal di ção, eles pa re cem ras te jan tes mesmo no gelo
agora!
“Nada gerado na Terra jamais mos trou tal in des cri tí vel su bli ma ção de
de vas ta do ra ira que essa coisa deixou em sua face quando olhou em volta
dessa de so la ção con ge la da há vinte mi lhões de anos atrás. Rai vo sa? Ela
estava com ple ta men te fu ri o sa — quei ma va com pura fúria.
“In fer no, eu tenho sonhos ruins desde que olhei para esses três olhos
ver me lhos. Pe sa de los. So nhan do que a coisa des con ge lou e voltou à vida
— que não estava morta, ou mesmo to tal men te in cons ci en te por todos
esses vinte mi lhões de anos, mas apenas ficou len ta men te es pe ran do — es- 
pe ran do. Vocês vão sonhar também, en quan to essa coisa mal di ta que não
per ten ce à Terra es ti ver pin gan do, pin gan do na Casa Cosmos hoje à noite.
“E, Con nant,” Norris dis pa rou para o es pe ci a lis ta em raios cós mi cos,
“você não vai se di ver tir sen ta do a noite toda no si lên cio. Vento la mu ri o so
acima — e essa coisa pin gan do” — Ele parou por um mo men to, e olhou
em volta.
“Eu sei. Isso não é ciên cia. É psi co lo gia. Você vai ter pe sa de los por um
ano depois disso. Toda noite desde que eu olhei para aquela coisa eu os
tive. É por isso que eu a odeio — cer ta men te a odeio — e não quero ela
por perto. De ve rí a mos colocá-la de volta de onde veio, e deixá-la con ge lar
por outros vinte mi lhões de anos. Eu tive alguns pe sa de los re cor ren tes —
que ela não é como nós — o que é óbvio — mas de uma es pé cie de carne
di fe ren te que ela pode con tro lar. Que ela pode mudar de forma, e as su mir a
forma de um homem — e es pe rar para matar e comer —
“Esse não é um ar gu men to lógico. Eu sei que não é. A coisa não segue
a lógica ter re na, de qual quer ma nei ra.
“Talvez tenha uma quí mi ca cor po ral ali e ní ge na, e talvez seus germes
tenham uma di fe ren te quí mi ca cor po ral. Um germe pode não su por tar isso,
mas, Blair e Copper, e quanto a um vírus? Eles são apenas mo lé cu las de
en zi mas, diz-se. Eles podem não pre ci sar de nada mais que uma mo lé cu la
de pro te í na de qual quer tipo de corpo para tra ba lhar.
“E como você pode está tão certo de que, das mi lhões de va ri e da des de
vida mi cros có pi ca que ela pode ter, ne nhu ma seja pe ri go sa? E quanto a do- 
en ças como a hi dro fo bia — a raiva — que ataca qual quer cri a tu ra de
sangue quente, sem se im por tar com sua quí mi ca cor po ral? E a febre do
pa pa gaio? O seu corpo é como a de um pa pa gaio, Blair? E quanto ao sim- 
ples apo dre ci men to — gan gre ne — ne cro se, o que pre fe rir? Isso tudo não
é muito exi gen te quanto à quí mi ca cor po ral!”
Blair olhou para cima de seu capuz apenas o su fi ci en te para en con trar
os olhos cin zen tos rai vo sos de Norris por um ins tan te. “Até agora a única
coisa que você disse dessa coisa é que ela esta lhe dando pe sa de los. Sinto
que tenho que ad mi tir isso também.” Um sor ri so tra ves so, li gei ra men te
ma lig no atra ves sou seu rosto en ru ga do. “Eu tive alguns, também. Então,
isso são sonhos in fec ci o sos. Sem dúvida uma doença ex tre ma men te pe ri- 
go sa.
“Tanto quanto as outras coisas ditas, você tem uma ideia er rô nea sobre
vírus. Em pri mei ro lugar, nin guém de mons trou essa teoria en zi má ti ca, e
que apenas isso os ex pli ca ria. E em se gun do lugar, quando você pegar a
doença mo sai co do tabaco, ou fer ru gem do trigo, me avise. Uma planta de
trigo é muito mais pró xi ma da sua quí mi ca cor po ral do que essa cri a tu ra
do outro mundo é.
“E sua hi dro fo bia é li mi ta da, es tri ta men te li mi ta da. Você não pode
pegá-la, ou trans mi ti-la, para uma planta de trigo ou a um peixe — que é
um des cen den te co la te ral de um an ces tral comum seu. O que essa coisa,
Norris, não é.” Blair acenou agra da vel men te em di re ção ao volume co ber- 
to por lonas na mesa.
“Bem, des con ge le a mal di ta coisa em uma ba nhei ra de formol, se você
pre ci sa des con ge lá-la. Eu sugeri que . . .”
“E eu disse que não havia nenhum sen ti do nisso. Você não pode tran si- 
gir a esse res pei to. Por que você e o co man dan te Garry vieram aqui em
baixo para es tu dar mag ne tis mo? Por que vocês não es ta vam con ten tes em
casa? Porque não existe força mag né ti ca su fi ci en te em New York. Eu não
po de ria es tu dar a vida dessa coisa uma vez que es ti ves se trans for ma da em
picles de formol mais do que você po de ria con se guir a in for ma ção que
deseja lá em New York. E — se tra tás se mos isso dessa forma, nunca mais
po de rí a mos du pli car a ex pe riên cia no futuro! A es pé cie dela deve ter se
ex tin to nos vinte mi lhões de anos que ela jazia con ge la da, então mesmo
que tenha vindo de Marte então, nós nunca mais en con tra rí a mos coisa pa- 
re ci da. E — a nave está per di da.
“Há apenas uma ma nei ra de fazer isso — e essa é a melhor ma nei ra
pos sí vel. Ela deve ser des con ge la da len ta men te, cui da do sa men te, e sem
formol.”
O co man dan te Garry foi para frente no va men te, e Norris voltou para
trás res mun gan do com raiva. “Eu acho que Blair está certo, ca va lhei ros. O
que vocês acham?”
Con nant res mun gou. “Isso parece o certo para nós, eu acho — apenas,
talvez ele de ves se montar guarda en quan to isso está des con ge lan do.” Ele
sorriu com pesar, ali san do uma mecha de cabelo aver me lha do para trás de
sua testa. “Uma ideia genial, de fato — ele ficar com seu alegre pe que no
ca dá ver.”
Garry sorriu le ve men te. Uma risada geral de comum acordo ir rom peu
no grupo. “Eu diria que qual quer fan tas ma que ele pode ter tido deve ter
mor ri do de fome se a coisa ficou per di da por aqui por tanto tempo, Con- 
nant,” Garry su ge riu. “E você parececapaz de cuidar dele. O Con nant
‘homem de ferro’ ainda deve ser capaz de cuidar de qual quer ad ver sá rio.”
Con nant sa cu diu-se in qui e to. “Eu não estou pre o cu pa do com fan tas- 
mas. Vamos ver essa coisa. Eu — “
An si o sa men te Blair ar ran cou as cordas. Uma sim ples volta da lona re- 
ve lou a coisa. O gelo tinha der re ti do um pouco no calor da sala e estava
claro e azul, como vidro. Ele bri lhou mo lha do e lus tro so sobre a luz crua
do bulbo da lâm pa da des co ber ta acima.
A sala ficou tensa abrup ta men te. Ela estava com o rosto para cima na
mesa plana e gor du ro sa. A metade que bra da do ma cha do de bronze ainda
estava en ter ra da no es tra nho crânio. Três olhos in sa nos, cheios de ódio bri- 
lha vam com um fogo vivo, como sangue fresco der ra ma do, de um rosto
con tor na do por um re pug nan te ninho de vermes azuis, que ras te ja vam
onde o cabelo de ve ria cres cer.
Van Wall, com puros 1,82m e 91 Kg de piloto com nervos de gelo, deu
um es tra nho e es tran gu la do grito, e saiu tro pe çan do em di re ção ao cor re- 
dor. Metade da com pa nhia saiu cor ren do para as portas. Os outros tro pe ça- 
ram para longe da mesa.
McRe ady situou-se em uma das ex tre mi da des da mesa ob ser van do
eles, seu grande corpo plan ta do em suas po de ro sas pernas. Norris do lado
oposto en ca rou a coisa com um calor ar den te. Do outro lado da porta,
Garry estava fa lan do com meia dúzia de homens ao mesmo tempo.
Blair usava um mar te lo de gelo. O gelo ficou ex pos to ni ti da men te
sobre sua garra de aço en quan to ele des cas ca va a coisa que ficou en cai xo- 
ta da por vinte mi lhões de anos —
CAPÍTULO III
“Eu sei que você não gosta da coisa, Con nant, mas ela tem que ser des con- 
ge la da da forma cor re ta. Você diz deixe como está até che gar mos de volta
à ci vi li za ção. Tudo bem, eu con cor do que seu ar gu men to de que nós po de- 
rí a mos fazer um tra ba lho melhor e mais com ple to soa melhor. Mas —
como vamos con se guir fazer isso ao longo do ca mi nho? Nós temos que
levar isso atra vés de uma zona tem pe ra da, da zona equa to ri al e meio ca mi- 
nho atra vés de outra zona tem pe ra da antes de che gar mos a New York.
Você não ficar sen ta do com ela uma noite, mas sugere, então, que eu pen- 
du re o corpo no free zer junto com a carne?” Blair olhou para cima de sua
careca sar den ta, ace nan do triun fan te.
Kinner, o atar ra ca do, co zi nhei ro com o rosto mar ca do por uma ci ca- 
triz, salvou Con nant do tra ba lho de res pon der. “Ei, escute aqui senhor.
Você co lo cou essa coisa na caixa com a carne, e por todos os deuses que já
exis ti ram, eu vou colocá-lo para fazer com pa nhia. Vocês já trou xe ram tudo
que se move nesse acam pa men to para as minhas mesas ba gun çan do-as, e
eu tenho que aguen tar isso. Mas se você co lo car coisas como essa em
minha caixa de carne ou no meu de pó si to aqui, eu vou co zi nhar suas mal- 
di tas tripas.”
“Mas, Kinner, essa é a única mesa no Grande Mag ne to que é grande o
su fi ci en te para tra ba lhar mos,” Blair ob je tou. “Todo mundo já ex pli cou
isso.”
“Pois é, e todo mundo traz de tudo para cá. Clark traz seus ca chor ros
toda vez que eles brigam e os cos tu ra nessa mesa. Ralsen traz os seus
trenós. Que in fer no, a única coisa que vocês ainda não co lo ca ram nessa
mesa é o Boeing. E vocês o teriam co lo ca do se ti ves sem en con tra do uma
forma de passá-lo atra vés dos túneis.
O co man dan te Garry soltou uma risada aba fa da e acenou para Van
Wall, o gi gan tes co Piloto Chefe. A grande barba loira de Van Wall torceu-
se sus pei ta men te quando ele as sen tiu com se ri e da de para Kinner. “Você
está certo, Kinner. O de par ta men to de avi a ção é o único que te trata bem.”
“Aqui cos tu ma ficar su per lo ta do, Kinner,” Garry con cor dou. “Mas
temo que en con tra mo-nos dessa forma, às vezes. Não existe muita pri va ci- 
da de em um acam pa men to na An tár ti da.”
“Pri va ci da de? Que diabos é isso? Você sabe, a coisa que re al men te me
fez chorar, foi quando vi Bar clay mar chan do e can tan do ‘A Última Ma dei- 
ra’ pelo acam pa men to! ‘A Última Ma dei ra’ no acam pa men to! En quan to
cons tru ía aquela casa em seu trator. Mal di to, eu senti mais falta da que la
porta do ba nhei ro com buraco em forma de meia lua do que senti do sol
quando ele se pôs. Não foi apenas a última ma dei ra que Bar clay levou com
ele. Ele acabou com o que res ta va da pri va ci da de nesse lugar mal di to.” [3]
Um sor ri so tomou forma no rosto pesado de Con nant en quan to en ca ra- 
va o res mun gão perene e bem hu mo ra do Kinner en quan to este re co me ça- 
va. Mas ele sumiu ra pi da men te quando seus olhos es cu ros e pro fun dos
vol ta ram-se no va men te para a coisa de olhos ver me lhos que Blair estava
des cas can do de seu casulo de gelo. A sua grande mão raspou por seus ca- 
be los com pri dos na altura dos ombros, en quan to puxava uma mecha que
caia atrás da orelha em um gesto fa mi li ar. “Eu sei que o bar ra co dos raios
cós mi cos vai ficar muito cheio se eu tiver que ficar sen ta do lá com essa
coisa,” ele rosnou. “Por que você não quebra o gelo em volta dela — você
pode fazer isso sem nin guém se in tro me ter, eu lhe as se gu ro — e então
pen du ra a coisa sobre a cal dei ra da casa de força? Lá é quente o su fi ci en te.
É pos sí vel des con ge lar uma ga li nha, ou até mesmo uma peça in tei ra de
carne na que le lugar, em apenas al gu mas horas.”
“Eu sei.” Blair pro tes tou, der ru ban do o mar te lo de gelo para ges ti cu lar
mais efe ti va men te com seus dedos sar den tos e os su dos, e com seu corpo
pe que no tenso com a an si e da de. “Mas isso é muito im por tan te para ar ris- 
car mos. Nunca houve um achado como esse; e nunca haverá outro no va- 
men te. É a única chance que a hu ma ni da de já teve, e isso deve ser feito da
forma cor re ta.
“Olhe, você lembra como os peixes que pe ga mos perto do Mar de Ross
con ge la vam tão ra pi da men te assim que co lo cá va mos no deck, e vol ta vam
à vida se nós os des con ge lás se mos gen til men te? Formas de vida in fe ri o res
não são mortas por con ge la men to rápido se gui do por lento des con ge la- 
men to. Nós temos . . .”.
“Ei, pelo amor de Deus — você quer que essa mal di ta coisa volte à
vida!” Con nant gritou. “Dê-me esse mal di to ma cha do — Deixe-me cuidar
disso! Isso vai estar em tantos pe da ços . . .”
“NÃO! Não, seu tolo . . .” Blair pulou na frente de Con nant para pro te- 
ger seu pre ci o so achado. “Não. Apenas formas de vida in fe ri o res. Por
Deus, deixe-me ter mi nar. Você não pode des con ge lar formas de vida su pe- 
ri o res e revivê-las. Espere um mo men to agora — Espere! Um peixe pode
voltar após ser con ge la do porque é uma forma de vida tão in fe ri or que as
cé lu las in di vi du ais de seu corpo podem re vi ver, e isso apenas é su fi ci en te
para res ta be le cer a vida. Qual quer forma de vida su pe ri or des con ge la da
está morta. Apesar de ser pos sí vel re vi ver cé lu las in di vi du ais, elas morrem
porque pre ci sam de or ga ni za ção e es for ço co o pe ra ti vo para viver. Essa co- 
o pe ra ção não pode ser res ta be le ci da. Existe uma es pé cie de vida po ten ci al
em qual quer animal con ge la do ra pi da men te de forma cor re ta. Mas eles
não podem — não podem sob qual quer cir cuns tân cias — voltar a vida se
forem formas de vida su pe ri o res. Ani mais su pe ri o res são muito com ple- 
xos, muito de li ca dos. Essa cri a tu ra in te li gen te é tão su pe ri o ra em sua evo- 
lu ção quanto nós somos na nossa. Talvez ainda mais su pe ri or. Ela está tão
morta quanto um homem con ge la do po de ria estar.”
“Como você pode saber?” exigiu Con nant, er guen do o ma cha do de
gelo que ele pegou mo men tos antes.
O co man dan te Garry co lo cou uma mão apa zi gua do ra em seu ombro
pesado. “Espere um minuto, Con nant. Eu quero fazer isso da forma cor re- 
ta. Eu con cor do que não deve haver des con ge la men to dessa coisa se exis tir
a mair remota chance

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