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Capítulo 1 DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO O tema da hermenêutica e da interpretação jurídicas remetem-nos ao processo de aplicação da lei realizado pelo Poder Judiciário. Sob essa ótica, só faz sentido interpretar- mos a lei tendo em vista um problema que requeira solu- ção legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes de tudo, o indivíduo e a sociedade a quem ela serve. Por isso, pensamos a lei em função de situações específicas, ou de casos concretos que envolvem pessoas. A norma jurídica encontra-se sempre referenciada a valores na medida em que defende comportamentos ou serve de meio para atingirmos fins mais elevados. Assim, o problema jurídico, que envolve situação de natureza valo- rativa, deve ser compreendido. Compreender é buscar o significado de alguma coisa em função das razões que a orientam. Buscar os valores subjacentes à lei, e que fogem da mera relação causa-efeito. Para aplicá-los, não basta de- tectarmos o fato e encaixá-lo a uma lei geral e abstrata 13 dando-lh e con cretu de , com o se a sub sunção da prem issa m enor à pre m issa m aior con ferisse um a solução n ecessá- ria, m ed ian te op eração pu ram ente form al. N ão . O d ireito é com p rom etid o com valores, e a norm a que b u scam os no tex to através da interpretação encontra-se relacionada a um a situação h istórica da qual fazem parte o su je ito (in tér- p re te ) e o o b je to a ser in terpretado (fato e n orm a). A ssim , p o d em o s a firm ar que o p ro cesso de in terpretação e de aplicação das le is correspon de a um a situ ação herm enêuti- ca , da qual nos fala G ad a m er .13 H erm es, na m ito logia grega, era u m deu s de m uita agi- lid ade e sapiência. A o nascer, desfez-se sozinho da banda- gem q ue o envolvia e ganhou as estradas. C o n fo rm e Jun ito B randão14 nos relata , H erm es logo furto u um rebanho de A poio , p rend end o no rabo das ovelhas um ram o que, arras- tad o ao chão, apagava seus rastros. A o ser indagado por Z eus, seu pai, sobre o ocorrido, depois de algum a relutân - cia concord ou em dizer a verdade, m as não tod a a verdade ou não a v erd ad e por inteiro. E d essa form a, H erm es to r- nou-se o m ensageiro pred ileto dos deu ses: aquele que d e- tém o con hecim ento e que é capaz de dec ifrar co rretam en- te as m ensagen s divinas. C on h eced or e in térp rete das von- tad es ocu ltas, H erm es ganhou fam a de sáb io , torn an do- se im p o rtan te , m a is tard e , para o d ese n v o lv im en to da ciên cia . D aí se segue que a visão h erm enêu tica atual é aquela que privilegia a b usca do con hecim ento de algo que não se apresen ta de form a clara. A com plex idade d as ciências so - 13. Cf. Hans-Georg Gadamer. Verdady metodo. Sígueme: Salaman- ca, 1993; e O problema da consciência histórica. Fundação Getulio Vargas: Rio de Janeiro, 1998. 14. Cf. Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, vol. II, p . 191. 14 ciais, sempre referidas a valores, faz com que a verdade se apresente de forma oculta ou que seja, ao menos, discutí- vel. Cabe falarmos em hermenêutica nesta área do conhe- cimento que não se submete à certeza da investigação científica. E o direito não foge à regra. A hermenêutica jurídica refere-se, assim, a todo um processo de interpre- tação e aplicação da lei que implica a compreensão total do fenômeno que requer solução. 1 .1 0 direito no âmbito da compreensão O conhecimento que requer compreensão difere de qualquer outro cuja repetição dos fenômenos seja possível e, portanto, previsível. E o caso das ciências empíricas, como a física, a química e a biologia, que possuem regras capazes de permitir-nos controlar, com algum rigor, a ocorrência de seus fenômenos. As ciências do espírito, por sua vez, dizem respeito às relações humanas que, por si só, implicam uma relação histórica e de liberdade.15 São rela- ções que se estabelecem no campo da ética; fogem da re- 15. Gadamer define as ciências do espírito em função do comporta- mento ético do homem, tomando por base Aristóteles, da seguinte forma: “As ciências do espírito fazem mais parte do saber moral. São ciências morais. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Agora bem, este saber-se a si mesmo como ser que atua, e o saber que tem de si mesmo não pretende comprovar o que é. O que atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão que podem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer.” Verdade e método, p. 386. Já a dimensão humana, própria das ciências do espírito, e que o positivismo afasta, é explicitada por Paul Ricoeur desta forma: "O homem não é radicalmente um estranho para o homem, porque forne- ce sinais de sua própria existência. Compreender esses sinais é com- preender o homem.” Interpretação e ideologias, p. 25. 15 petição e da imutabilidade, enquanto admitem, em lugar destas, a variedade e a probabilidade.16 Logo, as ciências do espírito, por corresponderem a aspectos inerentes à exis- tência humana, foram muitas vezes relegadas ao estudo da moral e da religião, porque incapazes de produzir uma ver- dade cientificamente comprovada. Com a virada da filoso- fia, em meados do século passado,17 para a ontologia e para o existencialismo, em que ganham proeminência o ser no 16. A respeito da atividade inovadora do espírito, capaz de instaurar formas novas de ser e de viver, ao contrário da natureza, que se repete, ensina o mestre Miguel Reale: “Se a natureza, como natureza, obedece a leis de uma previsão pelo menos estatística, e se os fatos naturais marcam um nexo de causa e efeito ou de funcionalidade, segundo o princípio de que nada acontece que não seja através de uma transfor- mação do já existente, que nada cria de novo, porque tudo, de certa maneira, se repete, já o espírito representa a inserção de algo de con- tingente na natureza, e ao mesmo tempo de vinculante do particular em uma compreensão de totalidade. [...] Ora, graças à verificação de tais fatos, podemos afirmar que o espírito humano se projeta sobre a natureza, dando-lhe uma dimensão nova. Esta dimensão nova são va- lores, como a fonte de que promanam. O valor, portanto, não é proje- ção da consciência individual, empírica e isolada, mas do espírito mes- mo, em sua universalidade, enquanto se realiza e se projeta para fora, como consciência histórica, na qual se traduz a interação das consciên- cias individuais, em um todo de superações sucessivas. [...] O elemen- to de força, de domínio ou de preponderância dos elementos axiológi- cos ou dos valores resultaria, portanto, dessa tomada de consciência do espírito perante si mesmo, através de suas obras: os valores, em última análise, obrigam, porque representam o homem mesmo, como autoconsciência espiritual; e constituem-se na história e pela história porque esta é, no fundo, o reencontro do espírito consigo mesmo, do espírito que se realiza na experiência das gerações, nas vicissitudes do que chamamos ‘ciclos naturais', ou civilizações.” Introdução à filoso- fia, p. 154 e 155. 17. José Lamego aponta para uma "virada hermenêutica” no final da década de 1960, precedida de um amplo debate sobre a “tópica”. Cf. Hermenêutica e jurisprudência, p. 96. 16 seu acontecer, a ciência também aproveita para rever seus parâmetros formalistas, orientando-se para uma nova dire- ção, marcada, agora, pelo pluralismo, pela intersubjetivi- dade e pela experiência histórica. Por outro lado, as mais recentes investigações sobre a razão moral têm apontado para uma base argumentativa que sugere o resgate da retó- rica e da tópica antigas. A esfera da vida referente ao agir encontra-se antes su- jeita à compreensão do sentido que ensejou a ação, do que à simples explicação de relações que lhe tenham servido de causa. A idéia é a de que as ações humanas, orientadas para finalidades, encontram-se inseridas em um porquê histórico, da mesmaforma que o intérprete é um ser tam- bém historicamente orientado e que faz parte de uma tra- dição. A norma jurídica constitui-se, assim, em um fazer humano, carregado de sentido. E o direito, propriamente dito, não é norma geral, porém, norma individual, pois so- mente as decisões dos juizes é que efetivamente obrigam. Com a sentença é que sabemos, efetivamente, qual o nosso direito ou a nossa obrigação. Antes disso, a norma atua apenas como parâmetro e orientação para a conduta, sem imputar qualquer dever, como diria Kelsen. Para nós, o direito apresenta-se jungido à própria hermenêutica, uma vez que a sua existência, enquanto significação, depende da concretização ou da aplicação da lei em cada caso julga- do. Assim, apoiamo-nos na filosofia de Hans-Georg Gada- m er,18 que se baseia na relação fática entre compreensão e 18. Apesar de Gadamer não estabelecer uma nítida distinção entre compreensão e interpretação, conforme pretendemos, porque os en- tende como similares, a sua concepção ôntica e historicista sobre a hermenêutica serve aos nossos propósitos. José Lamego também trabalha a filosofia de Gadamer em termos de hermenêutica como filosofia prática, aproximando as noções de verdade e de compreensão como contraponto da visão historicista he- 17 interpretação, no âmbito da experiência, conforme estabe- lecido anteriormente por Heidegger,19 e Dilthey,20 que já havia referenciado a hermenêutica à dinâmica da vida.21 geliana, que propõe para o direito o método científico-espiritual. A respeito escreve: “Já não assim as impostações que acompanham a viragem ontológica da hermenêutica: segundo estas, a hermenêutica, como modalidade de filosofia prática, implicará a superação do méto- do — e a questão das garantias da objetividade —, para desembocar diretamente na questão da verdade, entendida esta não como correspon- dência, mas, em termos hermenêuticos, como desocultação (aletheia). E, deste modo, a compreensão remeteria para a virtude dianoética da phronesis, tratando-se na aplicação hermenêutica não apenas de coor- denar a situação particular à pauta geral, mas, nessa coordenação con- seguida (i.e., a realização de uma applicatio), potenciar a realização das possibilidades do direito enquanto ser possível dentro do seu con- texto vital, quer dizer, permitir a realização do justo concreto. Ou seja: por via da hermenêutica fundamentar-se-ia uma concepção jusnatura- lista que daria, simultaneamente, conta da dimensão de historicidade de todo o direito.” Hermenêutica e jurisprudência, p. 90-91. 19. Para Heidegger, a compreensão é um campo de possibilidades que se abre ao ser presente. Na compreensão, a presença projeta seu ser para possibilidades. E um poder-ser que repercute sobre a presença das possibilidades enquanto abertura. Por sua vez, o projetar da com- preensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, e Heidegger chama essa elaboração de interpretação. Na interpretação, a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa, diz ele. Por fim, a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice- versa: “o mundo já compreendido se interpreta.” Cf. Ser e tempo, p. 204. 20. Gadamer, em Verdade e método, faz muitas referências a Dilthey, pelo viés historicista que este inaugura no âmbito da hermenêutica, apesar de acabar se distanciando do mesmo. Betti é quem mais de perto seguirá Dilthey, perseguindo o propósito, comum a ambos, de estabelecer uma metodologia de interpretação capaz de fundar uma ciência jurídica. Sobre o projeto de Dilthey e Betti, conferir o que diz José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 61, 114, 185 a 187; e Richard Palmer, Hermenêutica, p. 55 a 73. 21. Essa linha hermenêutica também tem sido trabalhada por Inocên- 18 1.2 Direito e interpretação Entendemos que a existência do direito, enquanto nor- ma individual e concreta, corresponde à sua compreensão, para a qual se abrem várias possibilidades interpretativas. De fato, a concretização da norma é feita mediante a cons- trução interpretativa que se formula a partir da e em dire- ção à compreensão. Podemos definir interpretação como a ação mediadora que procura compreender aquilo que foi dito ou escrito por outrem.22 Como ação responsável e não aleatória, procura-se, por meio da interpretação, um signi- ficado que seja aceito ao menos por aqueles a quem inte- ressa ao intérprete, adotando-se, para tanto, técnicas de argumentação. Em contrapartida, tanto o direito objetivo, que corres- ponde à ratio legis, quanto o direito subjetivo, referente à cio Mártires Coelho, no âmbito do direito constitucional. Nesse sen- tido, vale consultar o livro Hermenêutica constitucional — direitos fundamentais. Vide bibliografia. 22. De acordo com Edmond Ortigues (Enciclopédia Einaudi, Impren- sa Nacional — Casa da Moeda, Portugal, 1987), no verbete Interpre- tação, “diremos que interpretar é compreender, reformulando ou re- exprimindo sob uma forma nova; a interpretação consiste em mostrar algo: ela vai do abstrato ao concreto, da fórmula à respectiva aplicação, à sua ilustração ou à sua inserção na vida.” José Lamego, cuja tese também se apóia na proposta hermenêuti- ca de Heidegger e Gadamer, apesar de não estabelecer claramente uma distinção entre compreensão e interpretação, como fazemos, es- creve: “Para uma hermenêutica assente em pressuposições existen- ciais-ontológicas, a atitude interpretativa ou compreensiva terá que ver não com questões de subjetividade ou objetividade do sentido de algo que é dado ao intérprete, mas de um agir mediador que elabore e potencialize as possibilidades projetadas no compreender, identifica- do este, na expressão de Heidegger, com o ser de tal poder-ser.” Her- menêutica e jurisprudência, p. 91. 19 intenção do autor numa situação específica, inserem-se no campo histórico da compreensão. O direito, como obra humana, é compreendido, e não explicado, a partir de re- lações necessárias de causa e efeito, como se para cada pro- blema jurídico houvesse uma única, inequívoca e verdadei- ra resposta. O direito, como as demais ciências do espírito, corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado se- gundo os valores que comandam a sua ação, tanto interna quanto externamente.23 Internamente seria a própria ratio legis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, se é que ambas as posições podem vir desassociadas. A exis- tência do direito conforma-se, assim, a uma tradição cultu- ral determinada, mas que não pode ser encarada sob uma perspectiva reducionista, uma vez que admite valores universais válidos também para outras épocas e outros lu- gares. Compreender é indagar sobre as possibilidades do sig- nificado de um acontecer próprio das relações humanas. E, nesse sentido, acreditamos que o direito só existe quando compreendido. Um código, por exemplo, contém regras gerais e abstratas constituídas em função de hipóteses pro- váveis, mas que só ganham um significado concreto quan- do remetidas à própria prática, ou melhor, quando condu- zidas pela ação, seja a ação de quem as tenha elaborado, como o legislador que prevê a realização de uma prática, seja a de quem produz a transferência da regra de um cam- po virtual dado, que é o código, para um campo de signifi- cado real — o juiz quando decide.24 23. Os valores que comandam a ação advêm tanto do ato do legislador, quando este decide o caso típico (valores internos à lei), quanto do ato do juiz, quando, com base na decisão do legislador, decide o caso concreto (valores externos ao âmbito restrito da lei). 24. A esse respeito escreve Perelman: "O direito, tal como funciona 20 Nossa hipótese é a de que o processo de compreensão se concretiza por meio da argumentação, que, tecnicamen- te viabiliza a interpretação. De outro lado, verifica-se que a compreensão, como movimento oposto ao da explicação racional-demonstrativa, insere-se no campo das possibili- dades. E possível aquilo que é verossímil, ou seja, aquilo que aparentaverdade, sem, no entanto, pretender sê-la.25 A verossimilhança não depende de fatos ocorridos, mas da probabilidade da realização de um projeto. Ora, essas pos- sibilidades nos são apresentadas mentalmente conforme tratadas pela retórica ou pela teoria da argumentação; é o momento em que o pensamento dialético se instaura.26 A argumentação, por sua vez, é a técnica que visa ao acordo sobre a escolha do significado que pareça mais adequado às efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legislador deve decidir quais serão as leis obrigatórias numa comunidade organi- zada, o juiz deve decidir sobre o que é o direito em cada situação submetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam deci- sões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões por que uma lei foi votada e, num sistema moderno, toda sentença deve ser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção de decisão, senão razoável, pelo menos raciocinada." Cf. Ética e direito, p. 376. 25. Olivier Reboul, de forma bastante sintética, atribui o caráter de verossímil a “tudo aquilo em que a confiança é presumida". Cf. Intro- dução à retórica, p. 95. 26. Perelman definirá argumentação em oposição a demonstração, da seguinte forma: “Demos o nome de argumentação ao conjunto das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o ter- mo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possi- bilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições, pela de outras proposições, ou ainda, no terreno da lógica formal, passar, com a ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de um sistema a outras teses do mesmo sistema.” Perelman, Retóricas, p. 369. 21 partes discursivas; acordo este fundamentado em provas concretas e opiniões amplamente aceitas. Com a argumen- tação temos condições de “visualizar” a compreensão, na medida em que esta se traduz em algo de concreto.27 O direito admite, pois, uma superposição entre duas esferas: a da compreensão da norma e a da compreensão do fato, levadas a cabo pelo ser historicamente presente, que se utiliza, paja tanto, do procedimento argumentativo. Tecnicamente, a argumentação viabiliza o acordo capaz de formular a compreensão através de uma interpretação que sirva de fundamento à solução mais razoável. O método do direito é, portanto, o método tópico- hermenêutico. Cada situação deve ser compreendida em função do problema que apresenta e da tradição histórica na qual se insere. Mas o seu instrumental é argumentativo. Dessa forma, podemos dizer que o direito consiste na rea- lização de uma prática que envolve o método hermenêutico da compreensão e a técnica argumentativa. Para nós, o método diz respeito à orientação para o co- nhecimento, e a técnica, às regras que dirigem essa ativida- de. Logo, compreensão e concretização encontram-se inti- mamente relacionadas: existe o que se compreende em função imediata de um aplicar. Assim, a realidade do direi- to é a mesma realidade de sua compreensão.28 27. Quando Heidegger diz que a interpretação funda-se na compreen- são e não vice-versa, ele considera os pré-juízos como ponto de partida para toda a compreensão. Esses pré-juízos funcionam no nosso esque- ma como topoi. Para Heidegger, a interpretação sempre se funda numa visão pré- via, que “recorta” o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. Cf. Ser e tempo, p. 206-7. 28. Para Gadamer, “a realidade histórica é igual à realidade do com- preender histórico.” Verdade e método, p. 370. 22 A hermenêutica mostra-se presente quando, segundo Vattimo,29 Nietzsche anuncia a morte do deus da metafísi- ca,30 entendida esta última como “a descrição universal- mente válida de estruturas permanentes e essenciais à compreensão do mundo”.31 A descrição objetiva dos fatos segue-se a busca da verdade mais persuasiva e responsável, originária da interpretação, isto é, uma interpretação que pretende validade até aparecer outra, concorrente, que a destitua.32 O autor situa a hermenêutica na filosofia que se desen- volve ao longo do eixo Heidegger-Gadamer.33 E olhando dessa forma, anota que a hermenêutica revela os seus dois aspectos constitutivos: o da ontologia, privilegiado neste 1.3 Hermenêutica e interpretação 29. Gianni Vattimo. Para além da interpretação: o significado da her- menêutica para a filosofia. 30. Vattimo finaliza o capítulo intitulado "A vocação niilística da her- menêutica”, evocando Nietzsche e o sentido da morte de Deus para a modernidade, “isto é, da dissolução da verdade como evidência pe- remptória e ‘objetiva’. Até agora, [afirma,] os filósofos acreditaram em descrever o mundo, é chegado o momento de interpretá-lo...”. Para além da interpretação, p. 27. 31. Vattimo, ob. cit., p. 23. 32. Passagem ilustrativa sobre a importância da argumentação e de sua matriz intersubjetiva, no processo de interpretação, encontramos no texto de Vattimo: "Os argumentos que a hermenêutica oferece para sustentar a própria interpretação da modernidade são conhecidos por serem ‘apenas’ interpretações; não porque acreditam em deixar fora de si uma realidade verdadeira, que poderia ser lida de modo diferen- te; mas sim porque admitem não se poder apelar, pela própria valida- de, a nenhuma evidência objetiva imediata. Isto porque o seu valor está na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e compartilha- do, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativo mais aceitável.” Ob. cit., p. 24. 33. Cf. p. 14. 23 nosso trabalho, e o da lingüisticidade.34 Gadamer critica o cientificismo e o metodologismo modernos para reivindi- car a busca da verdade além dos limites do método cientí- fico positivo, a começar pela verdade da experiência, como ato interpretativo. Dessa forma, passemos à análise do tema, buscando um pouco das suas origens. Como vimos, a origem do termo Hermenêutica tem como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Signifi- cava trazer algo desconhecido e ininteligível para a lingua- gem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo herme- neuein, usualmente traduzido como “interpretar”, e o substantivo hermeneia, como interpretação, significam transformar aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender.35 O autor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêuti- ca como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir. Dizer, no sentido de anunciar ou afirmar algo, relaciona-se, antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notícias fiéis das divindades. No entanto, o predomínio da palavra entre os gregos fez com que a linguagem falada e sua ver- tente performática ganhassem relevo, e a hermenêutica passasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais im- portante do que simplesmente expressar, na medida em que as palavras racionalizam e clarificam algo; é quando ganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E, quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna com- preensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível. 34. Nesta linha poderíamos apontar o trabalho de Lenio Luiz Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 35. Ver Richard Palmer. Hermenêutica. 24 Em Roma, a hermenêutica desenvolveu-se muito com a própria prática jurídica. Os pretores e os jurisconsultos diziam o direito para cada caso concreto, sem qualquer pretensão de generalidade. Mas essas decisões consolida- ram-se com o tempo, transformando-se em máximas que se tornaram muitas vezes obrigatórias.36 A hermenêutica alcançou notável proeminência no campo religioso. O problema de interpretar corretamente a palavra de Deus era comum ao povo judeu em relação ao Antigo Testamento; aos cristãos, ao Novo Testamento; e aos protestantes, em relação à Reforma. Durante a Idade Média, aanálise sistemática sobre a evidência da revelação divina deu origem à Teologia,37 e a hermenêutica assumiu o aspecto exegético da correta interpretação dos textos sa- grados, dando ensejo ao seu desenvolvimento no campo filológico. 36. O valor do argumento de autoridade em Roma é grande, haja vista a Lei das Citações, promulgada por Constantino no século IV d.C. Este estatuto legal veio corroborar o que a prática já havia confirmado: a sabedoria dos jurisprudentes notáveis tinha legitimidade para esten- der-se a situações similares. De acordo com a Lei das Citações, o juiz deveria aplicar as opiniões de Ulpiano, Modestino, Gaio, Papiniano e Paulo, da seguinte forma: em primeiro lugar, prevalece a opinião da maioria; em caso de divergência, acolhe-se a opinião de Papiniano; finalmente, não havendo regras específicas para o caso, cabe ao juiz adotar a tese que lhe pareça melhor. 37. Na Escolástica, por exemplo, procurava-se organizar racionalmen- te as idéias divinas sob a perspectiva da fé. A racionalidade encontra- va-se no instrumental utilizado, que era o texto, por meio do qual transmitiam-se as idéias reveladas. Na Idade Média existiam os “co- mentários” e as “sumas”. Os primeiros originavam-se diretamente da explicação do texto, enquanto as sumas apresentavam, de forma ra- cionalmente ordenada, a síntese dos princípios extraídos dedutiva- mente dos textos divinos. Vide J. M. Fateaud, no prefácio à 2a edição brasileira de Discurso do método, de Descartes: Editora Martins Fon- tes, 1996. 25 Para o direito, no entanto, foi extremamente significa- tiva a atividade dos glosadores da Universidade de Bolo- nha, durante os séculos XI e XII. Com a descoberta, em 1080, as leis romanas compiladas por ordem do Imperador Justiniano no século VI d.C., mais tarde chamadas de Cor- pus luris Civilis, iniciou-se todo um esforço acerca do seu entendimento e compreensão, de forma a adotar-se, na prática medieva, o exemplo romano. Segundo Wieacker, “a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma modelar e atemporal da sua própria vida”.38 O desenvolvimento das cidades italianas justificou a formação de uma corporação própria — a Universidade —, destinada aos estudos jurídicos para a formação de fun- cionários públicos, como síndicos, procuradores, notários e advogados.39 Como o texto jurídico romano era muito difícil, antes de mais nada ele deveria ser explicado. E do resultado da interpretação feita pelos professores apare- cem as glosas, palavra por palavra, linha por linha,40 para logo alcançar todo o sistema, visto como um todo har- mônico, a reunir as partes, conforme princípios de or- dem geral. A técnica expositiva da Escola de Bolonha ligava-se, se- gundo Wieacker, à tradição do ensino trivial.41 Segundo o mesmo informa, mantinham-se “ainda as figuras de expli- cação e de raciocínio elaboradas originalmente pela lógica, 38. Franz Wieacker. História do direito privado moderno, p. 42. 39. Idem, Ibidem, p. 40 e 41. 40. As glosas ganharam robustez nos seus significados, tornando-se fecunda fonte de consulta para os práticos e estudiosos do direito. Destaque para a Glossa Ordinaria de Accurius (1250), considerado o maior trabalho de interpretação, na época, sobre o Digesto. 41. Durante o século XI, o trivium correspondia ao ensino dos ele- mentos básicos da cultura da época: gramática, lógica e retórica; o quadrivium, à música, à geometria, à aritmética e à física. 26 pela gramática e pela retórica gregas, aplicadas, inicial- mente pelos eruditos alexandrinos, à exegese dos textos filológicos: a glosa gramatical ou semântica, a exegese ou interpretação do texto, e a distinção. [...] Como ratio scripta, o texto isolado de um jurista constituía, em si mes- mo, sem referência à sua conexão com o conjunto de todos os textos, uma verdade.”42 No entanto, “a convicção do domínio de uma ratio sobre todo o conjunto da tradição conduziu a investigação hermenêutica à procura do senti- do global de todo o texto, para apresentá-lo em cadeias silogísticas, pois se cada texto encerra a verdade da autori- dade absoluta, um texto não pode contradizer outro igual- mente verdadeiro”.43 O método de análise escolástico, por sua vez, foi fator responsável pelo aparecimento da dogmática jurídica, tal como ocorrera com a religião. De acordo com J. Harold Berman, o método escolástico pressupunha a absoluta au- toridade de certos livros, que continham um completo e integrado corpo doutrinário, como era o caso do Corpus Iuris Civilis e da Bíblia, corporificando a razão. Verifica- se, assim, que a chamada ciência do direito e a ciência da teologia formam-se na mesma época.44 42. Wieacker, ob. cit., p. 47 e 50. 43. Idem. Ibidem, p. 53. Com a interpretação das Escrituras Sagradas, já se tem a noção da relação circular existente entre o todo e as partes, que não abandonará mais a hermenêutica. Quem nos chama a atenção para tal fato é Hans- Georg Gadamer. Segundo ele, o sentido literal da Escritura não se entende inequivocamente em todas as suas passagens nem em todos os momentos. É o conjunto da Sagrada Escritura que guia a compreen- são do individual, tal como no inverso, em que este conjunto só pode empreender-se quando realizada a compreensão individual. O sentido de unidade passa, assim, a servir de pressuposto dogmático para toda a hermenêutica. Cf. Gadamer, Verdade e método, p. 227. 44. Cf. Berman. Law and Revolution, p. 131 e 132. 27 O romantismo e o renascimento também se ocupam da recuperação das obras clássicas, procurando, na correta utilização da palavra e da língua, ser fiel ao espírito da épo- ca antiga. Em um e outro caso, trata-se, na realidade, do redescobrimento de algo cujo sentido era estranho e ina- cessível, e não, propriamente, de algo novo. O que se pre- tendia, nesses casos, era pôr a descoberto o sentido original dos textos através de um procedimento quase artesanal, que implicava a aprendizagem de outras línguas. Posterior- mente, sob a influência do historicismo, a hermenêutica abandona o seu aspecto puramente exegético, na medida em que é reconhecida a necessidade de se interpretarem tanto as circunstâncias históricas que ensejaram a criação de um texto quanto as circunstâncias que determinam a sua posterior utilização. Mas é com o movimento da Ilus- tração e o pensamento científico moderno que interpreta- ção e hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. A hermenêutica passa, então, a se comportar como ciência, preocupando-se com as técnicas próprias do fazer inter- pretativo. E, ao investir na questão do método, a herme- O método dialético era bastante utilizado como forma de resolver problemas de contradição no texto. Como exemplo do papel da dialé- tica escolástica na formação do direito ocidental, temos o tratado do monge de Bolonha, Graciano, escrito por volta de 1140, intitulado, sugestivamente, A Concordance of Discordant Canons. Segundo Ber- man, Graciano foi quem, na Idade Média, primeiro explorou, de for- ma sistemática, as implicações legais dessas distinções e arranjou as várias fontes de direito em ordem hierárquica. Ele começou interpon- do o conceito de direito natural entre os conceitos de direito divino e de direito humano. O direito divino era a vontade de Deus refletida na revelação, especialmente a revelação da Sagrada Escritura, e o di- reito natural, também refletido na vontade de Deus, poderia ser en- contrado tanto na revelação divina quanto na razão e consciência hu- manas. Cf. Law and Revolution, p. 145. 28 nêutica ganha particular importância para a filosofia e para a teoria do conhecimento.45 No entanto, a ênfase dada à linguagem matemática acaba por inserir a hermenêutica no campo da lógica formal, e é apenas com a fenomenologia desenvolvida por Husserl e Heidegger que ela passa a ser vista como compreensão, revelando-se na consciência do próprio ser. Para Heidegger, a compreensão consiste no movimen- to básico da existência, no sentido de que compreender não significaum comportamento do pensamento humano en- tre outros que se possa disciplinar metodologicamente e, portanto, conformar-se como método científico. Consti- tui, antes, o movimento básico da existência humana.46 Compreender, para Heidegger, “é a forma originária de realização do estar aí, do ser-no-mundo”.47 Gadamer dirá que compreender é experiência. 45. Filosofia como reflexão sobre o conhecimento e “teoria do conhe- cimento” aquela que procura a verdade objetiva, com base na distin- ção existente entre sujeito e objeto. Gadamer diz que a hermenêutica atual, incentivada pela desco- berta das ciências humanas, não trata de definir simplesmente um método específico, mas sim fazer justiça a uma idéia inteiramente diferente de conhecimento e de verdade. As ciências humanas, afir- ma, não se limitam a pôr um problema para a filosofia. Ao contrário, elas põem um problema de filosofia. Cf. O problema da consciência histórica, p. 20. A respeito da relação existente entre hermenêutica e teoria do conhecimento, vale conferir o que diz Raimundo Bezerra Falcão, em Hermenêutica, p. 87 e segs. 46. Cf. Gadamer, “Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica” [1977], in Verdade e Método II, p. 105, e Palmer, ob. cit., p. 134. 47. Verdade e método, p. 325. A idéia de “mundo” corresponde ao conjunto de condições geográ- ficas, históricas, sociais e econômicas, em que cada pessoa está imersa. 29 No século XX, seguindo a esteira do historicismo de Dilthey,48 que considerava a reflexividade como base da experiência, e da ontologia heidegeriana,49 à luz da retoma- da da questão do ser, o Professor Hans-Georg Gadamer traz a hermenêutica para o campo da práxis ou da filosofia prática.50 Deixa claro que seu objetivo é dar continuidade 48. Reconhecidamente, Dilthey empreendeu um notável esforço no sentido de dar objetividade metodológica às “ciências do espírito”, assumindo o problema da relatividade. A partir da importância da consciência do condicionamento histórico, Dilthey procurou conver- ter em ciência a experiência histórica. Porém, segundo Gadamer, Dilthey não conseguiu escapar das amarras do cartesianismo, manten- do a experiência como algo transcendente ao próprio ser. Não obstan- te, Dilthey teria conseguido cumprir a tarefa que considerou sua, de justificar epistemologicamente as ciências do espírito, pensando o mundo histórico como um texto a ser decifrado. Cf. Verdade e méto- do, páginas 211 & 304, e “Extensão e limites da obra de Wilhelm Dilthey”, em O problema da consciência histórica, p. 27 e segs. 49. De acordo com Gadamer, “sob o termo chave de uma hermenêuti- ca dafaticidade Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e a distinção entre fato e essência sobre a qual repousa, uma exigência paradoxal. A faticidade do estar aí (Dasein), a existência, que não é suscetível nem de fundamentação nem de dedução, é o que deve erigir-se em base ontológica da fenomenologia, e não o puro cogito como constituição essencial de uma generalidade típica.” Verdade e método, p. 319. 50. Gadamer, ao trabalhar com o problema hermenêutico da aplica- ção, reporta-se a Aristóteles. Apesar de Aristóteles não tratar direta- mente do problema hermenêutico nem da sua dimensão histórica, na Ética trata do desempenho da razão na atuação moral. Como as cha- madas “ciências do espírito” possuem como base a vida e o homem, nas suas relações interindividuais, e o que ele sabe de si mesmo, o saber que lhe é próprio é o saber moral e não o teórico ou científico. O saber moral ou a phronesis, tal como descreve Aristóteles, não é evidentemente um saber objetivo, na medida em que o seu conhecer não decorre da constatação de fatos, mas daquilo que se faz. Aquele que atua trata antes com coisas que nem sempre são como são, senão 30 à proposta de Heidegger, ao reconhecer que o conceito da compreensão não é mais um conceito metódico, mas o ca- ráter ôntico original da vida humana mesma.51 Segundo Gadamer, o estar a í é, na realização do seu próprio ser, compreender. Mas, na realidade, nem o conhe- cedor nem o conhecido “se dão” “onticamente”, mas “his- toricamente”, isto é, participam do modo de ser da histo- ricidade. Pertencer é condição para o sentido originário do interesse histórico. O problema da faticidade, que aparece em Heidegger, era também o problema central do histori- cismo, e isto significa que o ser determina-se no horizonte do tempo. “A tese de Heidegger é de que o ser mesmo é tempo".52 O ponto central da teoria de Gadamer, que diz respei- to ao problema da verdade e da compreensão no âmbito das ciências do espírito,53 é a análise da “consciência da história efetiva”, traduzida para o inglês como historically effected consciousness.54 A consciência da história efetiva é a consciência da situação hermenêutica, portanto, do mo- mento de realização da compreensão.55 Gadamer defende que podem ser também distintas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua atuação; seu saber deve dirigir seu fazer. Cf. Verdade e método, p. 383 a 386. Sobre a visão aristotélica de raciocínio prático, e a noção de próai- resis, vale também conhecer o trabalho de Alasdair Maclntyre, Justiça de quem? Qual racionalidade? 51. Cf. Gadamer. Verdade e método, p. 325. 52. Idem, p. 322. (Grifo nosso.) 53. Essa temática é abordada na segunda parte de sua principal obra: Verdade e método. 54. Ver Hans-Georg Gadamer. Truth and Method, Tradução de Joel Weinsheimer e Donald G. Marshall, The Continuum Publishing Company, New York, 1994. 55. Gadamer. Verdade e método, p. 372. 31 a idéia de que não é tarefa da hermenêutica descobrir mé- todos para uma correta interpretação, mas refletir sobre o acontecer da própria interpretação, que no âmbito das ciências do espírito corresponde mais especificamente à compreensão.56 O indivíduo compreende-se a si mesmo através da consciência que tem de sua situação histórica. A idéia de situação ligam-se, por sua vez, as idéias de tradi- ção e de horizonte. Todo ser histórico encontra-se inserido na tradição e ocupa determinada posição que lhe delimita horizontes. O ser humano, devido à sua condição histórica, é, por isso, um ser limitado. O horizonte, para Gadamer, é o âmbito de visão que alcança e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Não obstante, ter hori- zonte não significa estar limitado àquilo que nos cerca mais de perto, mas poder ver, inclusive, por cima dele. Horizon- te é apenas a dimensão do que o homem compreende e que ajuda a compreender-se a si mesmo. Aquele que tem horizonte consegue valorar o significado das coisas que se encontram dentro ou fora dele, segundo padrões de per- to/longe, grande/pequeno, etc. A mobilidade histórica im- pede a existência de horizontes únicos, ao passo que o ho- rizonte se move conforme quem se move: não é a cons- ciência histórica que põe em movimento o horizonte, mas na consciência histórica este movimento se faz consciente de si mesmo. Por outro lado, de acordo com a teoria de Gadamer, o horizonte do presente encontra-se em constante forma- 56. Para Gadamer, a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se aproxima do objeto eleito para alcançar o seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pres- suposto o estar dentro de um acontecer tradicional. Cf. Verdade e método, p. 380. 32 evand Manuscrito ção, na medida em que colocamos constantemente em prova os pré-juízos formados sob as bases da tradição. O horizonte do presente não se forma à margem do passado; ao contrário, é a fusão desses horizontes que possibilita a compreensão. O novo e o velho fundem-se em um novo horizonte que se supera, à medida que acompanha um pro- cesso de crescimento até atingirem uma validez nova e sig- nificativa. Sintetizando, é este o entendimento de Gada- mer: O projeto de um horizonte histórico é, portanto, uma fase ou momento na realização da compreensão, e não se consolida na auto-alienação de uma consciência passada, masse recupera no próprio horizonte compreensivo do pre- sente. Na realização da compreensão tem lugar uma verda- deira fusão horizôntica que com o projeto do horizonte his- tórico leva a cabo simultaneamente sua superação. A realiza- ção controlada da fusão damos o nome de “tarefa da cons- ciência histórico-efetiva”.57 A idéia de horizonte sustenta-se num dos principais pi- lares da construção teórica de Gadamer, que é a idéia de tradição, uma vez que o tempo passa a ser visto não como um precipício que deve ser transposto para a recuperação do passado, mas é, na realidade, o solo que mantém o devir e onde o presente cria raízes. Dessa forma, A “distância temporal” não é uma distância no sentido de uma distância que deva ser transposta ou vencida. Esse era o preconceito ingênuo do historicismo, que acreditava poder alcançar o terreno da objetividade hitórica através de um esforço para se colocar na perspectiva da época estudada e pensar com os conceitos e representações que lhes eram 57. Idem, p. 377. 33 “próprias”. Trata-se, na verdade, de considerar a "distância tem poral”como fundamento de uma possibilidade positiva e produtiva de compreensão. Não é uma distância a percor- rer, mas uma continuidade viva de elementos que se acumu- lam formando uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo o que trazem os conosco de nosso passado, tudo o que nos é transmitido faz a sua aparição.58 O que Gadamer procura não é manter o passado me- diante uma postura conservadora, mas, antes, desmistifi- car esse passado. Diante do que chama de ingenuidade do objetivismo histórico, busca distinguir os preconceitos que cegam daqueles que, ao contrário, esclarecem: os precon- ceitos falsos, dos verdadeiros. A tradição, além do solo que nos une com o passado, apresentando o presente, atua também como instância objetiva a propiciar a integração e a comunicação. Nas palavras de Gadamer, enquanto apro- priação espontânea e produtiva de conteúdos transmiti- dos, a tradição “é o elo concreto entre todos nós”; “o espe- lho em que cada um de nós se reconhece”,59 e que promo- ve a consciência histórica da situação hermenêutica, pois “compreender é operar uma mediação entre o presente e o passado, é desenvolver em si mesmo toda a série contí- nua de perspectivas na qual o passado se apresenta e se dirige a nós”.60 Nesse sentido, apresenta-se a dialética do pensamento gadameriano: toda experiência só pode ser compreendida porque referenciada ao passado, numa relação de confron- to. De acordo com Gadamer, o novo opõe-se ao antigo, e nunca se sabe qual prevalecerá, isto é, se o novo será incor- 58. O problema da consciência histórica, p. 67-8. 59. Idem, p. 44 e 45, respectivamente. 60. Idem, p. 71. 34 evand Manuscrito evand Manuscrito evand Manuscrito porado à consciência, como experiência, ou se o antigo, costumeiro e previsível, reconquistará sua consistência. A experiência precisa triunfar sobre a tradição sob pena de fracassar por causa dela, e o novo deixaria de sê-lo se não tivesse que se afirmar contra alguma coisa.61 Gadamer foi duramente criticado, principalmente por Emílio Betti,62 por ignorar em toda a sua obra os métodos hermenêuticos ou de interpretação, ameaçando a objetivi- dade do método histórico.63 Por isso Gadamer se defende no prólogo à segunda edição de sua principal obra, Verda- de e método, sustentando nunca ter se proposto a tal, mui- to menos a oferecer uma teoria geral da interpretação. An- tes, pretendeu mostrar o que é comum a toda maneira de compreender, porque acredita que a tarefa da hermenêu- tica não é desenvolver um procedimento da compreensão, mas iluminar as condições sob as quais se compreende. Neste sentido, Gadamer sustenta que “a compreensão não é nunca um comportamento subjetivo com respeito a um ‘objeto’ dado, senão que pertence à história efetiva, isto é, ao ser do que se compreende”;64 e assim afasta-se de toda 61. É o que autor apresenta em O problema da consciência histórica, p. 14. 62. Dentre as obras mais significativas de Emilio Betti a respeito da interpretação no direito destacam-se: Teoria Generale delia Interpre- tazione. Milano: D.A. Giuffré, 1955; e Interpretazione delia Legge e degliAtti Giuridici. Milano: D. A. Giuffrè, 1971. 63. Richard Palmer nos dá notícia desta polêmica. Segundo ele, "do ponto de vista de Betti, Heidegger e Gadamer são os críticos destruti- vos da objetividade, que pretendem mergulhar a hermenêutica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras. É a integridade do pró- prio conhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defen- dê-la com firmeza.” Hermenêutica, p. 56. 64. Verdade e método, p. 13-4. “A compreensão é menos um método através do qual a consciên- 35 corrente filosófica que estabelece uma posição bipolar en- tre o sujeito-intérprete e o objeto. Feito isso, elimina qual- quer consideração referente ao grau de subjetividade do intérprete frente ao máximo de objetividade que se requer para o conhecimento exato da coisa. O que ele faz é inserir tanto um quanto outro em um processo histórico do qual ambos fazem parte. Na realidade, Gadamer cria sua teoria sob o problema da consciência histórica.65 Acompanha Reinhardt Kosel- leck, no âmbito do historicismo, quando este aponta para a mudança de paradigma ocorrida entre o renascimento e a modernidade, quando a História deixa de orquestrar o conhecimento, apresentando seus exemplos, de onde po- deríamos chegar à verdade, para dar lugar ao surgimento de uma nova consciência crítica.66 Segundo Gadamer, o aparecimento de uma tomada de consciência histórica, im- posto pelo problema epistemológico trazido pelas “ciên- cias humanas” desde Dilthey, revela “o privilégio do ho- mem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião” .67 Em suas palavras, cia histórica se acercaria do objeto eleito para alcançar seu conheci- mento objetivo que um processo que tem como pressuposto o estar dentro de um acontecer tradicional. [...] A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva rompe definitivamente o que clara- mente é uno.” Idem, p. 381 e 382. 65. Veja a série de conferências proferidas em 1958, no Instituto Su- perior de Filosofia de Louvain, logo antes de Verdade e método, e que foram publicadas com o mesmo título: O problema da consciência histórica, sob a organização de Pierre Fruchon, em 1963. No Brasil, contamos com a tradução de Paulo Cesar Duque Estrada, e com a publicação pela Fundação Getulio Vargas Editora, em 1998. 66. Ver Reinhardt Koselleck. Futuro passado: para uma semântica dos tempos históricos, p. 43 e segs. 67. O problema da consciência histórica, p. 17. 36 A vida moderna começa a se recusar a seguir ingenua- mente uma tradição ou um conjunto de verdades aceitas tradicionalmente. A consciência moderna assume — preci- samente como “consciência histórica” — uma posição refle- xiva com relação a tudo o que lhe é transmitido pela tradi- ção. A consciência histórica já não escuta beatificamente a voz que lhe chega do passado, mas, ao refletir sobre a m es- ma, recoloca-a no contexto em que ela se originou, a fim de ver o significado e o valor relativos que lhe são próprios. Esse comportamento reflexivo diante da tradição chama-se inter- pretação .68 A interpretação, então, aplica-se a tudo o que nos é transmitido pela história, exigindo uma postura de refle- xão e mediação, de forma a trazermos o verdadeiro signifi- cado do texto. A interpretação de um texto, por exemplo, não é uma comunicação entre pessoas: autor e intérprete, mas a participação no tema que o texto comunica. Assim Gadamer sugere que deixemos o texto nos interpelar, tor- nando-se presente, contemporâneo. A compreensão não é tanto um processo subjetivo, afirma, e nem uma questão de nos situarmos numa tradição ou num "evento" que nos transmita esta tradição. A compreensão é, antes, uma par- ticipação na corrente da tradição, num momento em que se misturampassado e presente. O verdadeiro ponto de referência não é a subjetividade do autor nem a do leitor, mas a própria significação histórica, ou seja, a significação assumida por nós, situados no presente.69 68. Idem, p. 18-9. Grifo nosso. 69. Richard Palmer. Hermenêutica, p. 188-9. Palmer sintetiza a idéia de compreensão no pensamento de Gada- mer da seguinte forma: “A compreensão [...] é sempre um evento histórico, dialético, lingüístico — nas ciências, nas ciências humanas, na cozinha. A hermenêutica é a ontologia e a fenomenologia da com- 37 A questão da interpretação recai principalmente sobre os textos escritos, notadamente o direito, que se encontra circunscrito à norma posta. O primeiro problema que se nos apresenta é o do distanciamento histórico entre a ori- gem do texto carregado das intenções do seu autor, bem como do espírito da sua época, e o momento atual em que a lei, ou o texto, é interpretado e aplicado. A respeito, anota Gadamer: “Quando compreendemos um texto, não nos colocamos no lugar do outro e nem é o caso de pensar que se trata de penetrar a atividade espiritual do autor; trata-se, isso sim, de apreender simplesmente o sentido, o significado ou a perspectiva daquilo que nos é transmitido. Em outros termos, cuida-se de apreender o valor intrínse- co dos argumentos apresentados.”70 Da mesma forma, aplicar não significa “ajustar uma generalidade já dada an- tecipadamente para desembaraçar em seguida os fios de uma situação particular.” Diante de um texto, por exem- plo, continua Gadamer, “o intérprete não procura aplicar um critério geral a um caso particular: ele se interessa, ao contrário, pelo significado fundamentalmente original do escrito de que se ocupa.”71 Sobre a comunicação escrita é ainda bastante ilustrati- va a contribuição de Paul Ricoeur. O autor trabalha com a preensão. A compreensão não é concebida de modo tradicional como um ato da subjetividade humana mas como o modo essencial que Dasein tem de estar no mundo. As chaves para a compreensão não são a manipulação e o controle, mas sim a participação e a abertura, não é o conhecimento, mas a experiência, não é a metodologia mas sim a dialética. Para Gadamer, o objetivo da hermenêutica não é avançar com regras para uma compreensão objetivamente válida mas sim con- ceber a própria compreensão de um modo tão lato quanto possível.” Hermenêutica, p. 216. 70. O problema da consciência histórica, p. 59. 71. Cf. O problema da consciência histórica, p. 57. 38 relação dialógica do discurso, que tem no significado de sua mensagem a instância capaz de aproximar locutor e ouvinte. Segundo Ricoeur, na fala, enquanto discurso oral, o discurso é o evento da linguagem. Os eventos se esvane- cem, mas o seu significado permanece, podendo, inclusi- ve, ser dito novamente e de outra forma. A propósito, pre- ceitua que “a supressão e superação do evento na significa- ção é uma característica do próprio discurso, isto é, se todo o discurso se atualiza como um evento, é compreendido como significação.”72 E dessa forma, sustenta que com a fala a nossa competência lingüística se atualiza na perfor- mance que, enquanto acontecimento, consegue estabele- cer a transição da lingüística do código para a lingüística da mensagem. O código, ou sistema da língua, possui apenas uma existência virtual e fora do tempo, sendo o discurso quem o realiza temporalmente e num momento presente. O dis- curso oral permite uma identificação mais fácil e imediata do sujeito, do verbo e do predicado em um determinado contexto que auxilia na interpretação mais adequada dos seus termos muitas vezes polissêmicos. Mas com a escrita, esta imediaticidade desaparece e o significado ganha um outro contexto. O autor e a sua conjuntura, que funda- mentam a primeira intenção da mensagem, desvinculam- se da própria mensagem, que ganha autonomia. A signifi- cação, definida por Ricoeur como aquilo que o falante quer dizer, ganha com a escrita uma outra dimensão. Segundo ele, a escrita fixa não o evento da fala, mas o “dito”, que é a exteriorização intencional do par “evento-significação”. O que escrevemos é o noema (intenção de comunicabilida- de) do ato de falar, ou seja, a significação do evento.73 Con- 72. Paul Ricoeur. Teoria da interpretação, p. 24. 73. Idem, p. 39. 39 tudo, com o discurso escrito a intenção do autor e o signi- ficado do texto deixam de coincidir, ganhando o texto au- tonomia semântica: “o que o texto significa interessa agora mais do que aquilo que o autor quis dizer quando o escre- ” 74veu. Com a escrita, o discurso se abre para o mundo, isto é, para um número indefinido de leitores e, conseqüente- mente, de interpretações. Sobre o “auditório” ao qual a mensagem se dirige, escreve Ricoeur: Enquanto o discurso falado se dirige a alguém que é previamente determinado pela situação dialógica — é dirigi- do a ti, a segunda pessoa — um texto escrito dirige-se a um leitor desconhecido e, potencialmente, a quem quer que saiba ler. Esta universalização do auditório é um dos efeitos mais notáveis da escrita e pode expressar-se em termos de um paradoxo. Porque o discurso está agora ligado a um su- porte material, torna-se mais espiritual, no sentido de que é libertado da estreiteza da situação face a face.75 E mais: “Graças à escrita, o homem e só o homem tem um mundo e não apenas uma situação.”76 Cabe lembrar aqui, tal como procede o próprio Ri- coeur, a idéia de projeto como esboço de um novo “estar no mundo”, conforme fizeram Heidegger e Gadamer so- bre o processo hermenêutico. Entretanto, Ricoeur vê a ex- terioridade como condição necessária deste processo.77 Na 74. Idem, p. 41. 75. Idem, p. 42. 76. Idem, p. 47. “Para mim, o mundo é o conjunto das referências desvendadas por todo o tipo de texto, descritivo ou poético, que li, compreendi e amei". Ricoeur, Teoria da Interpretação, p. 49. 77. Ao assumir a exterioridade originária do distanciamento histórico, 40 hermenêutica, a apropriação pelo intérprete do texto, que goza de autonomia, faz-se à medida que ele assume o “tu”, isto é, concebe como “seu” o que é alheio. Apropriar-se significa tornar semelhante o que é estranho, de forma a possibilitar sua assimilação pelo leitor presente. A inter- pretação tem assim a tarefa de atualizar a significação do texto como um evento. E, enquanto apropriação, a inter- pretação torna-se um acontecimento. A respeito, ensina Ricoeur: Aquilo de que importa apropriar-se é o sentido do pró- prio texto, concebido de um modo dinâmico como a direção do pensamento aberta pelo texto. Por outras palavras, aqui- lo de que importa apropriar-se nada mais é do que o poder de desvelar um mundo, que constitui a referência do texto. Desta maneira, estamos o mais longe possível do ideal ro- mântico de coincidir com uma psiquê alheia. Se se pode dizer que coincidimos com alguma coisa não é com a vida interior do outro ego, mas com o desvelamento de um modo possível de olhar para as coisas, que é o genuíno poder refe- rencial do texto.78 Sobre este apropriar-se, mais uma vez nos reportamos a Gadamer, quando nos chama a atenção para a posição do intérprete na tradição. Pertencer à tradição significa co- mungar dos fundamentos que sustentam e informam o pré-juízo, e que levam a uma situação ao mesmo tempo de familiaridade e estranheza diante da “coisa”, que pode ser o texto. Para Gadamer, o “ponto médio" entre a objetivi- dade da distância histórica e o pertencer a uma tradição, Ricoeur não se afasta da fenomenologia heideggeriana (baseada na consciência do ser presente), empenhando-se, ao contrário, em assu- mi-la. Vide Interpretações e ideologias, p. 40. 78. Ricoeur. Teoria da interpretação, p. 104. 41 ou o “ponto médio” que caracteriza a estranheza e a fami- liaridade, é o verdadeiro locus da hermenêutica.79 Tanto Ricoeur quanto Gadamer posicionam-se a favor da objetividade hermenêutica capaz de ver no texto uma vontade própria ou que se abre ao intérprete, inde- pendentementeda vontade de quem lhe deu origem. Atualmente é ponto pacífico na hermenêutica jurídica a prevalência da razão objetiva da lei sobre a razão subjetiva ou originária. Não há qualquer dúvida quanto à necessida- de da lei responder ou fundamentar uma solução que de- verá ser dada a uma determinada situação concreta, me- lhor dizendo, a uma situação atual. Dessa forma, caberá ao intérprete, que é o aplicador da lei, adequá-la ao momento presente, conferindo-lhe o melhor significado de direito. A criatividade do intérprete faz-se sentir na teoria gadame- riana quando é dito, por exemplo, que “o sentido de um texto supera o seu autor não ocasionalmente senão sem- pre. Por isso a compreensão não é nunca um comporta- mento só reprodutivo, mas sempre produtivo.80 79. Cf. Gadamer. Verdade e método, p. 365. A idéia de “pertencimento”, que traduz a onticidade da herme- nêutica de Gadamer, corresponde ao fator tradição no comportamen- to histórico-hermenêutico. A hermenêutica, escreve Gadamer, "deve partir do fato de que compreender é estar em relação, a um só tempo, com a coisa mesma que se manifesta através da tradição e com uma tradição de onde a ‘coisa’ possa me falar. [...] Precisamente sobre a tensão que existe entre a ‘familiaridade’ e o caráter ‘estranho’ da men- sagem que nos é transmitida pela tradição é que fundamos a tarefa hermenêutica. Mas a tensão de que falamos não é, como em Schleier- macher, uma tensão psicológica. É, isso sim, o sentido e a estrutura da historicidade hermenêutica. [...] No que se refere ao caráter a um só tempo ‘familiar’ e ‘estranho’ das mensagens históricas, a hermenêuti- ca reivindica uma 'posição mediadora’.” O problema da consciência histórica, p. 67. 80. Idem, p. 366. 42 Já vimos que, para Gadamer, a compreensão é expe- riência e faticidade, ou seja, corresponde a um processo que tem como pressuposto o estar dentro de um acontecer tradicional, ao passo que a interpretação seria a forma ex- plícita da compreensão. A interpretação não é um ato complementar e posterior ao da compreensão, senão que compreender é sempre inter- pretar, e em conseqüência a interpretação é a forma explíci- ta da compreensão.81 Encontrar-se dentro de um acontecer tradicional signi- fica experimentar a situação; e daí Gadamer fala na herme- nêutica da experimentação como uma forma de juízo mo- ral.82 Cabe ao intérprete compreender o verdadeiro senti- do de um texto na concreção de sua execução adequada. Gadamer aqui assume uma perspectiva neo-aristotélica, retomando o sentido de phronesis, por considerar que “a tarefa da decisão moral é acertar com o adequado em uma situação concreta, isto é, ver o que nela é correto e fazê- lo.”83 Sendo que, para Aristóteles, julgar acertadamente é, ainda, julgar segundo a verdade.84 O sentido de adequação corresponde antes à aplicação no processo hermenêutico, uma vez que a compreensão se mostra como um acontecer. Interpretar um texto é esta- 81. Idem, p. 378. 82. Aristóteles, na Ética a Nicômacos, também vincula a ação moral à experiência referida ao hábito: “quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, [...] a excelência moral é engendrada em nós, mas a natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito.” (1103 b) 83. Verdade e método, p. 388. 84. Ética a Nicômacos, 1143 b, p. 123. 43 belecer a sua relação com o presente, aplicá-lo à situação presente. Evidentemente, a compreensão se mede segundo um padrão que não está contido nem na literalidade da ordem nem na verdadeira intenção daquele que a dá, senão unica- mente na compreensão da situação e na responsabilidade daquele que obedece.85 No direito talvez esta questão fique mais clara, porque o seu acontecer corresponde a uma decisão de caráter con- creto, quando a lei é chamada a servir de parâmetro para uma decisão presente. Gadamer reconhece a exemplarida- de do modelo jurídico para a hermenêutica, cuja tônica é a aplicação. Entretanto, não vê na hermenêtuica jurídica um caso especial, encontrando-a capacitada a reunir a velha unidade do problema hermenêutico em que se encontra tanto o jurista quanto o teólogo e o filósofo.86 Na realidade, não se trata de subsumir um fato a uma idéia geral, porque, a nosso ver, a idéia da norma já nasce, para o intérprete, concreta; e concreta, justamente, por- que adstrita ao fato que se compreende.87 Logo, a com- preensão não é propriamente um método, na qualidade de condição técnica de um fazer, mas um processo que verifi- camos no seu acontecer e que tem como pressuposto o estar aí, ou seja, o participar de uma tradição.88 85. Verdade e método, p. 407. 86. Cf. Verdade e método, p. 401. 87. “Aplicar o direito significa pensar conjuntamente o caso e a lei de maneira tal, que o direito propriamente dito se concretize”, escreve Gadamer em A razão na época da ciência, p. 51. E de concretização em concretização temos, como resultado, um franco projetar da juris- prudência. 88. Gadamer. Verdade e método, p. 380. 44 Essas considerações sustentam nossa hipótese de admi- tir o direito como concretização. A norma só ganha signifi- cado quando assume uma posição concreta, ou melhor, quando se revela realmente. O direito, como elemento éti- co da vida social — teoria da vida reta —, pretende realizar o bem. Daí concordarmos com Gadamer quando mostra que “a interpretação correta das leis não é uma simples teoria da arte, uma espécie de técnica lógica da subsunção sob parágrafos, mas uma concreção prática da idéia do Di- reito. A arte dos juristas é também o cultivo do Direito.”89 O existencialismo de Gadamer serve de base ao nosso projeto, na medida em que vemos a compreensão do direi- to em função de sua existência concreta. O direito se reve- la na sua existência, quando interpretado e aplicado. Mas não como um processo espontâneo ou natural, pois as leis são volitivas, feitas pelo homem, com intenções definidas sobre valores, interpretadas e aplicadas também sobre va- lores relativos a cada situação específica, o que faz com que devam ser compreendidas. O juiz, a seu turno, tem que cuidar de decidir, e, por isso, quando procura adequar a lei às necessidades do pre- sente, na realidade procura resolver uma tarefa prática. Seu trabalho não se compara à do historiador que busca entender o passado, mas, antes, se ocupa da própria histó- ria, que é o seu próprio presente.90 Em outro momento, Gadamer aponta para o aspecto intersubjetivo da compreensão, sob sua dimensão prática, com o que podemos aproximá-lo da Nova Retórica. Com- preender, antes de mais nada, diz ele, significa entender-se uns aos outros. Compreender é, para começar, acordo.91 E, 89. Idem, p. 63-4. 90. Idem, p. 400. 91. Idem, p. 232. 45 sob a ênfase dada à condição dialética e intersubjetiva da compreensão, que envolve a relação pergunta/resposta, objeção/refutação, enfim, a contestação, que por sua vez obedece a todo um esforço argumentativo, Gadamer acre- dita que “o verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço para compreender um conteúdo se co- loca a pergunta reflexiva de como haveria o outro chegado à sua opinião.”92 No livro A razão na época da ciência, ao tratar da di- mensão prática da compreensão no mundo moderno, G a- damer procura chamar a atenção para os efeitos perversos da comunicação de massas e seu poder de manipulação nas sociedades contemporâneas, e que não raro levam a um individualismo exacerbado.93 A Hermenêutica, como teoria da interpretação, não é simplesmente uma teoria. De modo muito claro, desde os tempos mais remotos, até hoje, a Hermenêutica esboçou sempre a exigência de que sua reflexão acerca das possibili- dades, regras e meios de interpretação sirva e promova, de modo imediato, a práxis, [...]. De modo semelhante ao que acontece com a retórica, a Hermenêutica pode designar uma capacidade natural do homem, isto é, a capacidade de um contato compreensivo com os homens.94 E a propósito, ressalta o caráter ético dapráxis aristo- télica, acreditando que “é próprio da capacidade criadora do homem o inventar desejos e buscar logo as vias para sua satisfação. Porém, isto não muda em nada o fato de que o 92. Idem, p. 233. 93. N esse sentido, ver especialmente o capítulo intitulado “O que é a práxis? As condições da razão social”, em /4 razão na época da ciência, p. 41 a 56. 94. Gadamer. A razão na época da ciência, p. 61. 46 desejar não é querer, não é práxis. À práxis pertence o escolher, e decidir-se em favor de algo e contra algo”,95 isto é, saber preferir um ao outro e escolher conscientemente entre as possibilidades.96 De fato, o caráter de liberdade de escolha e de decisão, apontado por Gadamer como parte de uma relação natural entre os homens, leva-nos a aproximá-lo da Nova Retórica proposta por Chaim Perelman, principalmente no que diz respeito ao acordo. E próprio da argumentação chegar-se ao acordo, que, conforme anota Rui Alexandre Grácio, produz uma verda- de apenas temporária e revisível, cuja única vantagem é ser funcional, ou seja, permitir estabelecer princípios que diri- jam o pensamento e a ação, resolvendo situações ao menos em um determinado momento.97 A racionalidade, que in- forma e viabiliza o acordo, serve de base a um “novo” modo de pensar humano, mais voltado para a vida em so- ciedade, e que se apresenta como um novo paradigma filo- sófico, em contraposição às posições monolíticas caracte- rísticas da filosofia tradicional.98 Cabe-nos ainda destacar os aspectos de liberdade e am- pla participação daqueles que promovem o acordo, ao lhes permitir um tipo de pensar mais amplo e contrário ao pen- samento linear.99 Mas, a respeito do aspecto paradoxal 95. Idem, p. 51. 96. Idem, p. 59. 97. “O acordo torna-se fundamental, sob o ponto de vista prático, porque implica diretamente na organização das relações sociais.” É o que diz Rui Alexandre Grácio no estudo que faz sobre a obra de Perel- man, Racionalidade argumentativa, p. 11. 98. Esta é a tese desenvolvida por Rui Alexandre Grácio em Raciona- lidade argumentativa. 99. Veremos, ainda, que todo pensamento tópico tem, necessaria- mente, como base o acordo. 47 oriundo dos limites ao acordo, pela sua circunstancialida- de, escreve Grácio: Lim itações que se, por um lado, nos expõem à precarie- dade dos acordos, à conflitualidade dos debates e à instabi- lidade das discussões, abrem-nos, por outro, a um mundo humano em que a liberdade de opinião e o direito ao livre exame se podem sempre assumir e praticar como alternati- va à tirania de profetas iluminados que procuram encerrar a contingência do pensamento na prisão das verdades neces- sárias e universais.100 Podemos ainda inferir que, tanto Gadamer quanto Pe- relman, ao se indisporem contra o cartesianismo, que de- sassocia a teoria da prática, trabalham com a idéia de razão que se assume na sua historicidade. Através da noção de “auditório”, que resgata da retórica antiga, Perelman nos permitirá falar de uma razão histórica e situada, bem como pensar a racionalidade a partir da sua própria encarna- ção.101 Logo, como integrantes da corrente tópico-retórica, podemos distinguir aqueles pensadores que reconhecem a tradição como elemento que fundamenta a compreensão, em lugar de servir-lhe de obstáculo. Descartes, ao contrá- À propósito da diferença existente entre o pensamento linear e o pensamento que assume a complexidade do contexto em que é gera- do, anota Perelman em O império retórico: “o pensamento linear se- gue um encadeamento de idéias rigoroso, no qual a dedução não deve nunca saltar um elo da cadeia, pois “onde um ponto for omitido, por menor que seja, logo a cadeia se rompe e toda a certeza da conclusão desvanece” (p. 134, nota 20). Mais adiante continua: “Mas se se muda de foro, sendo o raciocínio assimilado, não a uma cadeia, mas a um tecido cuja trama é constituída por argumentos entrelaçados, imedia- tamente se vê que a sua solidez é de longe superior a cada um dos fios” (p.134, nota 21). 100.Cf. Grácio. Racionalidade argumentativa, p. 11. 101. Idem, p. 69. 48 rio, reprova expressamente a influência dos costumes, dos valores e das opiniões em suas considerações sobre a razão por considerá-los fatores de origem indefinida e obscura que contaminam a pureza e a clareza do raciocínio. Um outro aspecto que também nos levará a aproximar as concepções ontológicas e existencialistas de Gadamer com a proposta de uma racionalidade argumentativa feita pela Nova Retórica refere-se à questão da deliberação, isto é, da escolha que se verifica no âmbito da práxis, ampla- mente explorada por ambos os autores. Os homens, assu- mindo a sua liberdade e as suas diferenças, adotam posi- ções mediante escolha, que comporta, outrossim, justifi- cativa. Mas, antes, cabe reconhecer a participação da his- tória (comunhão gerada pela tradição) nas nossas escolhas e, até mesmo, na nossa interpretação do mundo, notada- mente para o que se dá no campo jurídico, circunscrito à dogmática. 1.4 Dogmática e interpretação: o círculo hermenêutico Como toda obra humana, que corresponde a um pro- cesso de criação, o direito tem a sua marca valorativa. Por conseguinte, o direito tem como sentido não só os valores que concebem a intenção, ou a vontade, do sujeito que faz a lei, como também os valores incorporados à tradição his- tórica na qual ela se insere. Isso encontra referência tanto na vontade do autor quanto na vontade do intérprete, en- quanto seres históricos pertencentes a épocas distintas. O direito, no momento de sua criação, pelo ato originário do legislador ou pelo ato decisório do juiz, aplica-se às neces- sidades práticas de todos aqueles que, direta ou indireta- mente, se encontrem envolvidos na tarefa de interpretar a lei, ganhando um significado de natureza volitiva, o que faz 49
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