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Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio Aterlane Martins Os “lugares” e sua dimensão imaterial para Patrimônio SUMÁRIO 1. Apresentação ............................................................................. 99 2. Lugar e espaço ......................................................................... 100 3. Lugares de memória ................................................................ 102 4. Locais da recordação .............................................................. 103 5. O registro e a patrimonialização dos “lugares” ...................... 104 6. Bens imateriais registrados na categoria “lugares” ............... 106 7. Uma perspectiva do patrimônio integral ................................ 109 Referências bibliográfi cas ........................................................... 111 1. APRESENTAÇÃO Não se encontra o espaço, é sempre necessário construí-lo. (Bachelard) ara compreendermos a cate- goria “lugar” no vasto e com- plexo mundo do patrimônio cultural brasileiro, vamos tri- lhar por três vias distintas, mas que se entrecruzam constante- mente. São elas: • Uma breve abordagem con- ceitual sobre os termos lugar, espaço e local numa perspectiva patrimonial; • A análise do “lugar”, objetiva e legal- mente como categoria patrimonial, no âmbito dos processos de patri- monialização dos bens imateriais; • Uma avaliação de casos específicos da patrimonialização de “lugares”, seja pelo tombamento ou pelo re- gistro, buscando uma visão que aponte para a compreensão da pre- servação do patrimônio integral. Conceitos e obras abordados aqui são oriundos do trabalho de pensadores ociden- tais, cuja trajetória inspirou a profissionais do campo patrimonial brasileiro. Aborda- gens outras, como a perspectiva decolonial ou os processos patrimoniais orientais, em- bora já nos cheguem ao conhecimento, não serão alvo de nossa empreitada, visto que ainda se encontram distantes de uma real incorporação na práxis preservacionista do patrimônio cultural brasileiro. Decolonial Campo do conhecimento que se originou com a produção de intelectuais do chamado Terceiro Mundo, muitos deles radicados nos Departamentos de Estudos Culturais de universidades inglesas e norte- americanas. Esse campo se concentra em denunciar a dependência dos países ditos em desenvolvimento, como o Brasil, perante a hegemonia de pensamento dos países europeus e dos Estados Unidos, propondo ações e maneiras de pensar autônomas desses centros de saber e poder. que se originou com a produção de intelectuais do chamado Terceiro Mundo, muitos deles radicados nos Departamentos de Estudos Culturais de universidades inglesas e norte- americanas. Esse campo se concentra em denunciar a dependência dos países ditos em desenvolvimento, como o Brasil, perante a hegemonia de pensamento dos países europeus e dos Estados Unidos, propondo ações e maneiras de pensar autônomas de saber e poder. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 99 2. LUGAR E ESPAÇO uando Michel de Cer- teau (1998) propôs, em sua obra A invenção do cotidiano, uma distin- ção entre “lugar” e “es- paço”, nos trouxe uma reflexão sobre as opera- ções que estabelecem esses conceitos. A des- peito de o historiador francês ter especifica- do nesta obra a cidade como lócus de suas reflexões, podemos, por analogia, estender suas proposições a ou- tras geografias, que não apenas a urbana. A cidade em sua materialidade plas- mada em ruas, praças ou jardins, no sen- tido estrito de seu planejamento e cons- trução, por exemplo, pode ser lida como um lugar, sem significações simbólicas relevantes para os sujeitos, que não esta- belecem com ele qualquer vínculo relacio- nal. É a partir do habitar a cidade que ela passa a ser significada e pode ser trans- mutada em espaço. Assim, podemos dizer que o espaço é aquele lugar ocupado, apropriado e transformado pelos sujeitos 100 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE que ali transitam e o (res)significam a par- tir de suas vivências particulares e sociais. Espaço que nunca é um dado natural e é sempre construído. Podemos pensar ainda sobre este trân- sito entre o lugar e o espaço, resultante da ação dos sujeitos, como um ato so- cialmente compartilhado. Daí se criam permissões e interdições, tácitas ou explí- citas, conflitos e harmonizações que se in- serem nas disputas de poder pelo discur- so significativo e hegemônico do lugar. Então, se fazem escolhas, se determinam memórias e interpretações sobre as vivên- cias ali realizadas. O espaço é, portanto, resultante de um campo de disputas, inte- rações, barganhas, conquistas e derrotas. O espaço, apesar de vivido individual- mente pelos sujeitos, vai se configurando num lugar comum, compartilhado, pos- sibilitando uma referência cultural que possa significar o coletivo e não apenas o sujeito individual. O lugar, em sua am- pla acepção, depois de significado, pode remeter a uma ou a várias identidades, pode constituir-se num lugar de memória, como afirmou o francês Pierre Nora (1993). PARA OS CURIOSOS Quer saber mais sobre o conceito de referências culturais? Pois não deixe de consultar a publicação O registro do patrimônio imaterial: dossiê final das atividades da comissão e do grupo de trabalho patrimônio imaterial. Disponível em: http://portal. iphan.gov.br/uploads/publicacao/ PatImaDiv_ORegistroPatrimonioIma terial_1Edicao_m.pdf Indicamos ainda o artigo Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio, de Maria Cecília Londres Fonseca. Disponível em: http://portal. iphan.gov.br/uploads/ckfinder/ arquivos/3%20-%20FONSECA.pdf PARA OS CURIOSOS Quer saber mais sobre o conceito ? Pois não publicação O registro do patrimônio imaterial: comissão e do grupo de trabalho iphan.gov.br/uploads/publicacao/ PatImaDiv_ORegistroPatrimonioIma Referências culturais: base para novas políticas arquivos/3%20-%20FONSECA.pdf Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 101 3. LUGARES DE MEMÓRIA ierre Nora pontua uma série de possibilidades materiais e simbólicas para caracterizar o que ele define como lugar de memória. Para o autor, os aspectos “material, funcional e simbóli- co” constitutivos do “lugar de memória” são coexistentes e, necessariamente, a relação entre eles é que caracteriza a experiên- cia ali vivida, dando-lhe sentido e significa- do. Conservam em si uma memória social do acontecimento, que é transmitida pelas épo- cas que se sucedem a outros sujeitos que ali não viveram, mas que se identificaram com ele e com o que ali sucedeu no passado, sob o selo do pertencimento histórico. Mesmo um lugar de aparência puramen- te material, como um depósito de arqui- vos, só é lugar de memória se a ima- ginação o investe de aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamen- to, uma associação de antigos comba- tentes, só entra na categoria se for obje- to de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o extremo de uma significação simbólica, é, ao mesmo tem- po, um corte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, a um lembrete concentrado de lembrar (NORA, 1993, p. 21-22) GRIFOS NOSSOS. Por sua vez, a memória, que vem se agregar ao lugar, é compreendida como um pilar dos bens patrimoniais, que lhe são ele- mentos constitutivos e indissociáveis, con- juntamente à identidade. Conforme Candau: Se identidade, memória e patrimônio são ‘as três palavras-chave da consciência contemporânea’ – poderíamos, aliás, re- duzir a duas se admitirmos que o patri- mônio é uma dimensão da memória – é a memória, podemos afirmar, que vem for- talecer a identidade, tanto no nível indivi- dual quanto no coletivo: assim, restituir a memória desaparecida de uma pessoa é restituir a sua identidade (2012, p. 16). 102 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 4.LOCAIS DA RECORDAÇÃO odemos cruzar a definição de Pierre Nora com o intuito de ampliar a compreensão da noção de lugares – sempre na perspectiva patrimonial –, com outra cunhada pela pensadora alemã Aleida Assmann e apre- sentada em seu livro Espaços de recordação: formas e trans- formações da memória cultural. Locais da recordação são fragmentos ir- rompidos da explosão de circunstâncias de vida perdidas ou destruídas. Pois, mesmo com o abandono e a destruição de um local, sua história ainda não acabou; eles retêm objetos materiais remanescen- tes que se tornam elementos de narrativas e, com isso, pontos de referência para uma nova memória cultural. Esses locais, po- rém, são carentes de explicações; seus sig- nificados precisam ser assegurados com- pletamente por meio de tradições orais. A continuidade que tenha sido destruída pela conquista, pela perda e pelo esqueci- mento não pode ser reconstruída em um momento posterior, mas pode se rees- tabelecer o acesso a ela no médium da recordação (ASSMANN, 2011, p. 328-329) Com a noção de “locais da recordação”, Assmann incorpora e amplia aos lugares o sentido de mediadores na renovação da memória cultural. Não são os lugares em si, mas o que neles está contido e como eles são acessados pelos indivíduos e grupos sociais que deles se apropriam, sempre no presente, que os pode fazer seguir existindo, por vezes determinando-os sob nova signifi- cação e sentido. Essas ideias iniciais visam ampliar nosso entendimento do que são os lugares, espa- ços e locais, em especial quando associa- dos ou implicados diretamente à questão patrimonial, o que pode ocorrer de modo oficial, quando o Estado age na patrimonia- lização de bens culturais, ou de forma não- -oficial, quando a sociedade civil realiza, sem a formalidade e a legalidade do Estado, os processos patrimoniais. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 103 5. O REGISTRO E A PATRIMONIALIZAÇÃO DOS “LUGARES” ara fins de proteção patrimo- nial aos lugares e seus aspectos imateriais, temos no registro, no inventário e nos planos de salvaguarda os instrumentos de preservação legal. Como já sabemos, esses instrumentos estão dispostos no Decreto nº 3.551/2000, aquele mesmo que rege a patrimonialização dos bens imateriais, criando o instrumento de acautelamento desses bens e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). Neste decreto são arrolados os Livros de Registro, entre os quais se encontra o Livro de Registro dos Lugares, que traz de forma sucinta os aspectos que conceitual- mente estamos explorando desde o início deste fascículo: IV – Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santu- ários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. Compreendemos que, de modo geral, o texto legal deve ter a escrita concisa, coeren- te e objetiva. Talvez, por este motivo, é que no trecho aqui abordado, lugar e espaço se- jam utilizados sem maiores distinções con- ceituais, o que poderia causar estranhamen- Acautelamento É um termo de uso jurídico que se refere às medidas que visam dar proteção imediata ao bem cultural. Por exemplo, no tombamento, desde a sua fase inicial (tombamento provisório), dá providências para que ele não seja afetado por qualquer ato que venha comprometer sua integralidade até o final do processo e a decisão de tombamento definitiva. Acautelamento É um termo de uso jurídico que se refere às medidas que visam dar proteção imediata ao bem cultural. Por exemplo, no tombamento, desde a sua fase inicial (tombamento providências para que ele não seja afetado por qualquer ato que venha comprometer sua integralidade processo e a decisão de tombamento 104 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE PARA OS CURIOSOS Para consultar o texto integral do Decreto nº 3.551/2000, acesse o endereço: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/decreto/D3551.htm E para uma maior compreensão do conceito e dos processos de patrimonialização dos bens imateriais, consulte a Cartilha Patrimônio Cultural Imaterial, disponível no site do Iphan, no seguinte endereço: http://portal.iphan.gov.br/ uploads/publicacao/cartilha_1__ parasabermais_web.pdf to e questionamentos diversos de nossos leitores e cursistas. Contudo, dada a distin- ção estilística entre o texto legal e o texto científico, não entraremos neste debate, sendo esta apenas uma observação pontual, mas necessária para não confundir ninguém. Pois bem, a proposta do legislador, num primeiro momento, pode nos soar restrita, configurando o lugar apenas no seu aspec- to material. Mas ao seguirmos a leitura desta definição, dois outros aspectos nos permi- tirão compreender a amplitude da concep- ção de “lugar” inseridas no texto da lei. Quando o legislador escreve “espaço”, re- fere-se a determinados lugares (mercados, feiras, santuários e praças), identificando-os como locais de práticas culturais cole- tivas. Você consegue perceber aí, então, a conformidade com as reflexões de Michel de Certeau, Pierre Nora e Aleida Assmann, an- teriormente abordadas em nosso fascículo? As ações humanas dadas num determi- nado “espaço” configuram-se como forma- doras deste mesmo espaço. Quando signi- ficadas coletivamente e assim incorporadas às tradições próprias do local, dão a este o seu sentido. Tornam este espaço, como afir- ma Assmann, local da recordação, cujo acesso às práticas ali criadas e vividas se dá pela repetição, garantidora da continuidade histórica, pela (re)vivência, mediada pela memória dos sujeitos do presente, que reco- nhecem e se identificam com esta trajetória. to e questionamentos diversos de nossos leitores e cursistas. Contudo, dada a distin- texto , não entraremos neste debate, sendo esta apenas uma observação pontual, mas necessária para não confundir ninguém. Pois bem, a proposta do legislador, num primeiro momento, pode nos soar restrita, apenas no seu aspec- to material. Mas ao seguirmos a leitura desta definição, dois outros aspectos nos permi- tirão compreender a amplitude da concep- Quando o legislador escreve “espaço”, re- fere-se a determinados lugares (mercados, feiras, santuários e praças), identificando-os práticas culturais cole- . Você consegue perceber aí, então, a conformidade com as reflexões de Michel de Certeau, Pierre Nora e Aleida Assmann, an- teriormente abordadas em nosso fascículo? As ações humanas dadas num determi- forma- deste mesmo espaço. Quando signi- ficadas coletivamente e assim incorporadas às tradições próprias do local, dão a este o seu sentido. Tornam este espaço, como afir- , cujo acesso às práticas ali criadas e vividas se dá pela repetição, garantidora da continuidade histórica, pela (re)vivência, mediada pela memória dos sujeitos do presente, que reco- nhecem e se identificam com esta trajetória. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 105 6. BENS IMATERIAIS REGISTRADOS NA CATEGORIA “LUGARES” ntre os 47 bens imateriais já regis- trados como patrimônio cultural brasileiro, listamos aqueles espe- cificamente inscritos no Livro de Registro dos Lugares. São eles, por distribuição regional: • Nordeste: Feira de Caruraru (PE); Feira de Campina Grande (PB). • Norte: Cachoeira de Iauaretê: lu- gar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri (AM); • Sul: Tava, lugar de referência para o povo Guarani (RS). As regiões Sudeste e Centro Oeste não apresentam ainda bens registrados ou em Processo de Instrução para Registro na ca- tegoria “lugares”, restando nessa última condição apenas a Feira de São Joaquim, em Salvador (BA), também no Nordeste. BENS IMATERIAIS REGISTRADOS NA CATEGORIA “LUGARES” apresentam ainda bens registrados ou em Processo de Instrução para Registro na ca- tegoria “lugares”, restando nessa última condição apenas a em 106 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTESE LIGA! O processo de instrução para o registro de um patrimônio imaterial começa quando a sociedade civil organizada ou uma instituição governamental solicitam o registro junto ao órgão de proteção e, ao pedido, são agregados uma pesquisa documental e de campo sobre o bem cultural a ser registrado, um diagnóstico sobre sua vulnerabilidade, recomendações para a sua salvaguarda, além de comprovantes da mobilização social do grupo detentor do bem para a sua inscrição em um dos Livros do Patrimônio Imaterial: Celebrações, Lugares, Saberes e Formas de Expressão. Para consultar toda a lista de bens imateriais registrados ou em Processo de Instrução para Registro, consultar as listas na página do Iphan, nos endereços: http://portal.iphan.gov.br/pagina/ detalhes/606 e http://portal.iphan. gov.br/pagina/detalhes/426/ Como podemos ver, nesta pequena lista acima se sobressai a região Nordeste com dois registros. Ambos são feiras públicas tradicionais. Também observamos que no Sul e no Norte do país a característica co- mum é o pertencimento a povos indíge- nas. Essas observações nos permitem algu- mas reflexões e questionamentos quanto à valoração e a determinação conceitual dos bens registrados na categoria “lugares”. Até o momento há uma prática de ins- crever os bens culturais de natureza imate- rial em apenas um dos Livros de Registro (Celebrações; Saberes; Formas de Expres- são; Lugares), caracterizando-os univoca- mente, quando muitos poderiam tran- sitar em mais de uma categoria. Um destes bens, ao qual nos deteremos um pouco mais, é a Festa do Pau da Bandei- ra de Santo Antônio em Barbalha, no Ceará, que você, cursista, conheceu bem pela apresentação em módulo anterior. A Festa está registrada exclusivamente no Livro de Registro das Celebrações. Con- tudo, considerados o Parecer Conclusivo do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) e o Parecer do Conselho Consultivo do Iphan, bem como o texto Alguns registros sobre a Festa de Santo Antônio, do histo- riador Igor Soares (2013), podemos evocar a força do “lugar/espaço” na constituição patrimonial deste bem. Diversos são os pontos no Parecer do DPI que denotam a força motriz do “lugar” como constituinte desta festa/celebração. Entre eles, nos atemos àquele redigido no item III, sobre o “objeto do registro”: Após o árduo trajeto, marcado por diversas paradas em pontos referenciais da zona rural e urbana da cidade, no qual também muitas brincadeiras ocorrem, o Cortejo do Pau chega à Praça da Matriz de Santo An- tônio, onde a bandeira com a imagem do padroeiro da cidade será enfim hasteada. Neste momento, milhares de espectadores e participantes da festa assistem entusias- mados o levantamento do Pau da Bandeira, deixando explícita a devoção barbalhense ao santo padroeiro e a permanência da tradição local (BRASIL, 2015a, p. 24) O trajeto geograficamente marcado no território, desde o sítio na zona rural, donde se extrai o mastro da bandeira, até a praça da matriz (carregamento do pau) onde o mesmo é fincado para o hasteamento da flâmula, são claramente compreensíveis como “espaços onde se concentram e se reproduzem prá- ticas culturais coletivas”, sendo destas um eminente condicionante para a sua realização. Neste sentido, uma questão sobre a qual necessariamente temos de tratar refere-se ao processo do corte, carregamento e hasteamento do pau da bandeira de Santo Antônio. Todo o cortejo do pau da bandeira evoca a noção de devoção e sa- crifício em torno do santo padroeiro. (...) E, para além de uma integração social, ocor- re uma proximidade entre o meio natu- ral e o meio urbano, entre o tradicional e o moderno, garantindo uma espécie de comunhão simbólica, que evidentemente envolve pessoas e os diferentes espa- ços da cidade (BRASIL, 2015a, p. 198) Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 107 Tomemos agora a Cachoeira do Iaua- retê como outro exemplo de patrimônio imaterial registrado. Ressaltamos as con- siderações do antropólogo Roque de Bar- ros Laraia, em seu parecer apresentado ao Conselho Consultivo do Iphan, em 2 de agosto de 2006: (...) Um lugar somente pode ser consi- derado como passível de registro como Patrimônio Cultural Imaterial, quando uma população lhe atribui importan- tes significados culturais que estão vinculados à sua história, à sua mitologia e a sua própria identidade cultural. Este é o caso da Cachoeira do Iauaretê. (...) Con- siderando a importância simbólica de abrir o Livro dos Lugares com um espaço geográfico que recebeu atribuições culturais bem antes da formação do nosso país (BRASIL, 2006, p. 7 -10). A reiterada atribuição de significados simbólicos específicos ao lugar é des- tacada novamente, como frisa o próprio antropólogo em seu parecer, entre tantos outros similares que nos remetem à identi- dade cultural dos diferentes povos indíge- nas do Amazonas. O específico do local (AS- SMANN, 2011, p. 319) é também o comum, compartilhado entre os diversos povos, como figura no Dossiê de Registro: O que há de comum é, de fato, passível de circular em um domínio público; já o co- nhecimento a respeito do que é particular se restringe às unidades e subunidades desse extenso sistema social, isto é, aos grupos exogâmicos e seus clãs compo- nentes específicos (BRASIL, 2008, p. 83). PARA OS CURIOSOS Sobre a noção de paisagem consultar as obras: Paisagem e memória, de Simon Schama (1996); A invenção da paisagem, de Anne Cauquelin (2007). Para a interface entre a paisagem e o patrimônio cultural, consultar: Paisagem cultural e patrimônio, de Rafael Winter Ribeiro (Iphan, 2007) disponível em: http://portal.iphan.gov.br/ uploads/publicacao/SerPesDoc1_ PaisagemCultural_m.pdf Minuta da Portaria Iphan nº 127, de 30.04.2009, que “define paisagem cultural brasileira e estabelece a chancela como instrumento de reconhecimento do patrimônio cultural”: https://www.normasbrasil.com.br/ norma/portaria-127-2009_214271.html É nessa confluência de diferentes “espa- ços da cidade”, dessa proximidade entre o “meio natural e o meio urbano”, suscitada pelo trajeto do cortejo celebrativo, que além do que se realiza em cada lugar ocupado, per- cebe-se a inegável relação entre as categorias lugar e celebração. Os lugares ocupados por usos peculiares, desde aqueles do trabalho, da brincadeira, do profano, àqueles do sa- grado, do ritual oficial, tramam e reafirmam a teia desta integração no espaço da festa. O historiador Igor Soares, no que se refe- re à patrimonialização da festa, inseriu uma nova perspectiva para a sua abordagem e leitura. Perceba: Não restam dúvidas de que a Festa de Santo Antônio, como construção paisa- gística de Barbalha, reflete sobremanei- ra uma referência cultural da cidade; a festa sintetiza, portanto, uma ideia de uma coerência comunitária da sociedade de Barbalha expressa por meio de cons- truções ritualísticas e performáticas que convergem a um elemento central – a fé em Santo Antônio (SOARES, 2013, p. 244) Ou seja, ao aproximar da Festa do Pau da Bandeira à noção de paisagem, já difundi- da no meio patrimonial, embora ainda não incorporada definitivamente às práticas pre- servacionistas brasileiras, esses historiadores abrem espaço para uma abordagem mais ampla e integrativa do patrimônio cultural. Assim, analisar uma celebração, é pen- sar sobre o conjunto da sua realização, sobretudo na relação entre a sua configura- ção espacial e as práticas culturais que “ne- las” e tão somente “com elas” se realizam. 108 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 7. UMA PERSPECTIVA DO PATRIMÔNIO INTEGRAL nalisemos agora o tomba- mento do Sítio Histórico do Patu, na cidade de Senador Pompeu (CE), realizado em julho de 2019, pela Prefeitu- ra Municipal, questionando a eficácia deste instrumento e a necessidade do reconhe- cimento do uso conjunto do registro como forma de ga- rantir a preservação integral do bem, dada a sua condição de lugar geográficoe espaço de peregrinação religiosa na atualidade. O recorte espacial Sítio Histórico do Patu compreende edificações remanescen- tes do ano de 1919, acrescidas de outras do ano de 1932, totalizando 12 edifícios (integrais, em ruínas e inconclusos), que ini- cialmente serviram de suporte às obras de construção da barragem do Patu e, poste- riormente, à administração do Campo de Concentração do Patu. PARA OS CURIOSOS Os campos de concentração foram erguidos pelo governo do estado do Ceará, em dois períodos: 1915 e 1932. Eram espaços de aprisionamento para evitar que os retirantes da seca, saídos do interior em busca de socorro e sobrevivência, muitos deles doentes, famintos, em andrajos, chegassem ao centro da capital, Fortaleza. Para saber mais sobre o tema, consultar: a. Isolamento e poder. Fortaleza e os Campos de Concentração na seca de 1932, de Kênia Rios. Disponível em: http:// www.repositorio.ufc.br/ bitstream/riufc/10380/1/2014 _liv_ksrios.pdf. b. Das santas almas da barragem à caminhada da seca: projetos de patrimonialização da memória no sertão central cearense (1982 – 2008), de Aterlane Martins. Disponível em: http://www. repositorio.ufc.br/bitstream/ riufc/14518/1/2015_dis_ rapmartins.pdf c. Assista ainda o longa- metragem Currais, ganhador do Prêmio Abraccine na categoria Melhor Filme Brasileiro de Diretor Estreante, na 43° Mostra Internacional de Cinema, realizada em outubro de 2019, na cidade de São Paulo. PARA OS CURIOSOS foram erguidos pelo governo do estado do Ceará, em dois períodos: aprisionamento para evitar que sobrevivência, muitos deles doentes, famintos, em andrajos, chegassem ao centro da capital, Fortaleza. Para saber mais sobre o tema, consultar: Fortaleza e os Campos de Concentração , de Kênia Rios. Disponível em: http:// bitstream/riufc/10380/1/2014 Das santas almas da barragem projetos de patrimonialização , de Aterlane Martins. Disponível em: http://www. repositorio.ufc.br/bitstream/ , ganhador Brasileiro de Diretor Estreante, na 43° Mostra Internacional de Cinema, realizada em outubro Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 109 Deste conglomerado de edificações nos importa, para a análise, o Cemitério da Bar- ragem, dada a sua configuração e uso pas- sado e atual. Esse lugar permite a rememo- ração dos episódios vividos ali na década de 1930 e os atualiza socialmente, em pequena ou em larga escala quando, respectivamen- te, as famílias o visitam em culto privado aos seus mortos ou quando realizam a Ca- minhada da Seca, na qual milhares de de- votos o tomam em romaria, desde os anos 1980. É no “campo santo” que hoje melhor se situa o sentido e o significado das memórias do Campo de Concentração. O tombamento em questão abrange esta edificação apenas no aspecto físico do lugar (o muro de alvenaria, o território cer- cado, as pequenas construções religiosas ali erigidas, os túmulos e seus cruzeiros). Cabe- -nos retomar a premissa que nos guiou até aqui: a compreensão do processo de trans- formação do lugar em espaço; do vestígio material em espaço significado, abarcan- do nessa passagem o aspecto patrimonial: Conjuntamente à dimensão imaterial sobre a qual se fundam estas crenças e práticas devocionais legadas no co- tidiano familiar, comunitário, perma- nece também deste momento inicial um vestígio palpável, material, um espaço sagrado. O campo santo: o Ce- mitério da Barragem. Ali, onde foram enterrados e repousam os mortos da epidemia de cólera em 1932, é o local por excelência para o exercício de culto às Santas Almas. (MARTINS, 2017, p. 48). Este cemitério, lugar construído, traz em si os aspectos material, funcional e simbólico que os sujeitos lhe aplicaram ao longo da história e isto lhe garante a con- dição de lugar de memória. Há, contudo, uma importante prática cultural e religio- sa a considerar, que dota este espaço de -nos retomar a premissa que nos guiou até aqui: a compreensão do processo de trans- formação do lugar em lugar em lugar espaço; do vestígio material em espaço significado, abarcan- do nessa passagem o aspecto patrimonial: significativo valor imaterial: a devoção às Santas Almas da Barragem, que no nosso entendimento é o que sustentou, sustenta e amplia a “vida” do local. Acreditamos que é nesta confluência entre o material e o imaterial que o bem cultural deve ser visto e preservado, a des- peito do trabalho ficar pela metade, in- completo e incorreto, quando apenas uma dimensão do bem é protegida pelos atos formais do Estado. O tombamento e o registro são instru- mentos acessórios entre si para a real pro- teção do bem na condição de “lugar”, assim se considera também a sua dimensão ima- terial, pois não há atribuição de significado e sentido dado pelas práticas culturais que se substancie de outra maneira. Lembramos, então, que nos é muito im- portante que o(a) cursista procure ler nossas indicações e procurem similaridade em seu município ou estado de casos de tombamen- to e registro e os analisem à luz do que apren- deram por aqui e dos casos aqui ilustrados. 110 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução de Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2012. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petropólis, RJ: Vozes, 1998. BRASIL. Parecer. Registro da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio em Barbalha/CE. 2015. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ ckfinder/arquivos/Parecer_dpi_santo_ antonio_barbalha.pdf Disponível em: Acessado em: 31.01.2020. ________. Dossiê de Registro da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio em Barbalha. Fortaleza, 2015. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ ckfinder/arquivos/Dossie_festa_pau_da_ bandeira_santo_ant%C3%B4nio_barbalha. pdf Acesso em: 31.01.2020. ________. Parecer. Registro da Cachoeira do Iauaretê. Lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri. 2006. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/ uploads/ckfinder/arquivos/Parecer_conselho_ consultivo.pdf Acessado em: 31.01.2020. ________. Dossiê de Registro da Cachoeira do Iauaretê. Lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri (AM). 2008. Disponível em: http://portal. iphan.gov.br/uploads/publicacao/PatImDos_ iauarete_m.pdf Acessado em: 31.01.2020. MARTINS, Aterlane. Das santas almas da barragem à caminhada da seca. Fortaleza: Museu do Ceará, 2017. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução Yara Aun Khoury. In: Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. SOARES, Igor de Menezes. In: Alguns registros sobre a Festa de Santo Antônio. In: SILVA, Ítala Byanca de Morais; SOARES, Igor de Menezes (Orgs). Sentidos de devoção: festa e carregamento em Barbalha. Iphan, Fortaleza, 2013, p.238-256. AUTOR Aterlane Martins é professor efetivo do Instituto Federal do Ceará (IFCE) e coordenador de Extensão do Campus de Quixadá. Historiador do patrimônio cultural. Educador de museus e centros culturais. Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História e Licenciado em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi pesquisador-bolsista da Unesco no Programa de Especialização em Patrimônio (PEP Ip han/Unes co). É membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Patrimônio e Memória UFC/CNPq (GEPPM) e da Coordenação Nacional do Grupo de Trabalho História e Patrimônio Cultural da Associação Nacional dos Profissionais de História (Anpuh). ILUSTRADOR Daniel Dias é ilustrador e artista gráfico, com extensa produção em projetos editoriais, sendo a maior parte destinada ao público infantil e infantojuvenil. Seu trabalho tem como base a pesquisa de materiais e estilos, envolvendo estudo de técnicas tradicionais de pintura, desenho,fotografia e colorização digital. 111Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 111 Este fascículo é parte integrante do projeto Formação de Mediadores de Educação Patrimonial, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza, sob o nº 02/2019. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br EXPEDIENTE: FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Emanuela Fernandes Analista de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional Thifane Braga Secretária Escolar CURSO FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE EDUCAÇÃO PARA PATRIMÔNIO Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Revisor Cristina Holanda Coordenadora de Conteúdo Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfi co Miqueias Mesquita Diagramador Daniel Dias Ilustrador Thaís de Paula Produtora ISBN: 978-85-7529-951-7 (Coleção) ISBN: 978-85-7529-958-6 (Fascículo 7) Realização Apoio
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