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ESTUDOS SOCIAIS AULA 4 Profª Máira Nunes Prof. Guilherme Carvalho 2 CONVERSA INICIAL Olá! Seja bem-vindo a mais uma aula de nossa disciplina. Refletiremos aqui sobre relação entre indivíduo e sociedade. Se, por um lado, cada um de nós tem características próprias, as quais podemos chamar de personalidade, por outro, apresentamos maneiras influenciadas pelo ambiente em que crescemos. Trataremos de alguns conceitos para compreender esses processos e o papel que a mídia e a indústria cultural exercem sobre eles. Refletiremos também a respeito de nosso papel nesse contexto. Vale lembrar a frase de Woody Allen: “a vida não imita a arte, imita um programa ruim de televisão”. CONTEXTUALIZANDO Você se lembra da novela Avenida Brasil? Mesmo que não tenha acompanhado cada capítulo, foi quase impossível não ouvir falar dela. Trata-se da novela mais vendida para o exterior, sendo exibida em 130 países e dublada em 19 idiomas. No Brasil, alcançou média de 42 pontos de audiência, atingindo impressionantes 56 pontos no último capítulo. A trama se concentra na família de Tufão, jogador de futebol, casado com Carminha, que fugiu da vida em um lixão para ganhar dinheiro por meio de golpes. Nina, filha de Genésio, a primeira vítima de Carminha, consegue ser empregada como cozinheira na mansão de Tufão e busca se vingar. Era particularmente interessante assistir à novela e acompanhar, ao mesmo tempo, o Twitter. Fãs da novela que usavam essa rede social criaram espontaneamente a hashtag #oioioi, refrão da música de abertura, para comentar a novela e anunciar aos seus seguidores que estavam assistindo ao programa televisivo. Logo depois da transmissão, era típico surgirem montagens cômicas (mais conhecidas como memes) com base nos fatos narrados na novela. Várias fotos de perfil de redes sociais foram trocadas por versões “congeladas”, fotos em preto e branco com fundo de luzes desfocadas, imitando o “congelamento” da última cena de cada capítulo. Essa resposta do público da internet a um produto cultural diz respeito às maneiras como é possível receber algo da mídia. Há aqueles que simplesmente 3 assistem à novela, mas também há pessoas que vão além, ao comentar na internet, produzir uma brincadeira e compartilhá-la nas redes. Figura 1 – exemplo de “meme” Fonte: Antídoto certo, 2012. É preciso levar em consideração a quem estamos comunicando e como essas pessoas vão receber nossos produtos, seja uma novela, uma notícia, um anúncio de sabão em pó ou um aplicativo de celular. As implicações não são somente comerciais, mas também sociais. É isso que veremos agora. Nas próximas páginas, trataremos dos seguintes temas: 1. Processos de socialização; 2. Subjetividade e função simbólica; 3. Cultura e identidade; 4. Sociedade do espetáculo; 5. A cultura das mídias. TEMA 1 – PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO Mesmo vivendo em uma sociedade globalizada, cada um de nós vai passar por processos diferentes por meio dos quais nos tornamos parte da sociedade. Mas que sociedade é essa? É possível pensar em círculos concêntricos: estamos em uma sociedade ocidental, na qual compartilhamos valores e códigos com mexicanos e 4 parisienses. Também somos latino-americanos, moramos no Brasil, em um estado, cidade e bairro determinados. Ainda, podemos pensar que esses círculos se sobrepõem. Ao mesmo tempo em que moramos no Brasil, torcemos por certo time de futebol, estudamos Jornalismo, rimos de memes, gostamos (ou não) de uva passa no arroz. Cada um desses “círculos” (ou culturas) tem suas próprias normas e seus valores culturais (Giddens, 2005, p. 22). Um europeu pode se surpreender em como brasileiros se abraçam a cada encontro. Pessoas de diferentes estados brasileiros podem se confundir ao se cumprimentar com beijos, já que, em alguns estados, o costume é de dar um único beijo, em outros, é um beijo de cada lado do rosto e, em outros, ainda, são três beijos. Brasileiros podem se surpreender com o fato de que, na Argentina, o cumprimento com beijos é um costume também entre homens. Essas e outras diferenças estão de tal maneira presentes na nossa vida que parece que jamais as aprendemos. São hábitos que surgem da repetição e acabam se institucionalizando (Berger; Luckmann, 1966, p. 70-73). A própria linguagem passa por esse processo: uma criança aprende primeiro a palavra “cachorro” e o que essa palavra representa. Depois, ela aprende que deve cuidar do cachorro, talvez por meio de algo como uma fábula ou um ensinamento. Finalmente, aprende outras implicações, que podem ir desde a responsabilidade de cuidar dele, até o preço da ração, entre muitas outras (Berger; Luckmann, 1966, p. 112-113). Esses aprendizados são chamados de socialização, que, segundo Giddens (2005, p. 27), consiste no “processo através do qual as crianças, ou outros novos membros da sociedade, aprendem o modo de vida da sociedade em que vivem”. Esse aprendizado implica também conhecer símbolos e significados (o que veremos no próximo tema). Porém, as pessoas não necessariamente assumem um papel passivo diante da socialização; elas podem – e vão – questionar, negociar e se apropriar do que lhes é apresentado de acordo com suas necessidades e exigências. Não se trata de um processo que ocorre durante período determinado, isso porque as pessoas se socializam constantemente em decorrência de interações sociais. A socialização é a principal maneira por meio da qual a cultura é transmitida pelo tempo e pelas gerações entre as pessoas. Ela varia 5 segundo cada cultura, seja pensando em escala global (oriente e ocidente) ou em escalas menores (a família de cada um, por exemplo). Também varia de acordo com as influências de outras culturas, que chegam das mais diversas maneiras. 1.1 Diversidade cultural Qualquer deslocamento de pessoas (por meio de processos como tráfico de escravos, guerras e migrações) ou de informação (pelos meios massivos de comunicação, da distribuição de filmes e livros e da internet) faz com que culturas também se movimentem. Em um mundo globalizado, é possível que várias culturas estejam presentes em algo trivial, como um mesmo prato de comida. Imigrantes e seus descendentes harmonizam o que trouxeram de suas terras natais com o que há no lugar onde se estabeleceram. São formadas, assim, sociedades multiculturais, nas quais diversas culturas e subculturas convivem e se influenciam. Saiba mais Sem intenção de impor hierarquias entre os termos “cultura” e “subcultura”, usamos, aqui, o termo “subcultura” para nos referirmos a qualquer grupo de pessoas que se diferencie da maioria pelos seus padrões culturais. Exemplos dessa diferenciação são torcedores de determinado time de futebol, praticantes de algum esporte, fãs de gêneros musicais específicos, pessoas que gostam de desenhos animados japoneses (os animes) etc. Essas pessoas também podem se mover entre subculturas ou combinar aspectos de várias delas. 1.2 Etnocentrismo e relativismo cultural Quando conhecemos ou nos inserimos em uma cultura nova é comum que aconteça um “choque cultural”. Não podemos compreender certos aspectos da cultura se a separarmos das suas circunstâncias e das pessoas que fazem parte dela (Giddens, 2005, p. 25). É um esforço da Sociologia compreender cada cultura em seu contexto. Não é adequado usar nossas culturas como base de comparação para compreender outras. Essa noção é conhecida como relativismo cultural e se 6 opõe ao etnocentrismo, que é fazer julgamentos com base no que nós conhecemos. TEMA 2 – SUBJETIVIDADE E FUNÇÃO SIMBÓLICA São características dos seres humanos a capacidade de iniciativa individual e coletiva, a instauração de regras sociais de comportamento, assim como a invenção e descoberta de significações (Laburthe-Tolra; Warnier,1997, p. 191). A sociedade reveste o cotidiano e o meio ambiente de sentido, como é o caso das normas e dos valores culturais já citados. O simbólico, mesmo sem ser totalmente coerente, precisa de um mínimo de ordem. Ele está ligado a um código que somente fará sentido se inserido em uma cultura. O simbólico, o código e as significações também fazem parte dos processos de socialização. Essas significações, ordenadas entre si, produzem uma visão do mundo com certa coerência: uma ideologia, ou seja, um “conjunto de ideias e valores que informam o ethos (atmosfera ética) de uma sociedade ou de um grupo” (Laburthe-Tolra; Warnier, 1997, p. 192). O simbólico deve ser considerado, então, para pensar questões relacionadas à religião, aos mitos, aos ritos, aos idiomas, aos gestos, à semântica, à arte, às crenças, ao pensamento etc. 2.1 Representação Stuart Hall (2003) trabalha com os mesmos conceitos. O primeiro elemento analisado por Hall é o signo (2003, p. 5). Há vários tipos de signo. Um objeto, uma foto dele e a palavra que o representa são signos. Alguns se parecem mais com o objeto que representam, ou seja, são mais icônicos. Outros, como a palavra, são mais abstratos. Curiosidade No episódio “Free Willzyx” do desenho animado South Park, os quatro meninos são procurados por roubarem uma baleia de um parque aquático. É feito um retrato-falado deles, que causa graça por ser uma representação bem mais realista, ou seja, menos icônica, do que o próprio estilo simples da animação, como você pode ver na imagem a seguir: 7 <http://southpark.cc.com/blog/2014/08/08/fan-question-what-was-that-pencil- drawing-of-the-boys-from>. Acesso em: 4 mar. 2019 É difícil dissociar um signo do objeto que ele representa, mas, sozinho, o signo não tem sentido. O sentido não está no objeto, nem na pessoa, nem na palavra. O signo é construído pela cultura, especificamente pelo sistema de representação dessa cultura, e “fixado” pelo código dessa cultura, que é o que estabelece a relação entre os conceitos que conhecemos e aprendemos e nossa linguagem falada, escrita, desenhada etc. (Hall, 2003, p. 8). Essa relação pode parecer eterna, mas o sentido não é fixo, já que muda entre culturas, subculturas, pessoas e até entre diferentes momentos. Para interpretar um significado, primeiro devemos identificar o objeto como portador de sentido. Depois, decodificamos o sentido e o associamos a sentidos mais amplos (Hall, 2003, p. 29-30). Qual é a origem dos sentidos e como surge a relação entre linguagem e sentido? Hall aponta três possibilidades: Que a linguagem funciona por imitação do objeto a ser representado; Que é o autor quem atribui o significado ao signo; Que não são as coisas que significam, e sim a maneira como construímos o sentido dessas coisas. Para Hall, mais do que as coisas em si, o que carrega sentido são as diferenças entre elas. O vermelho do semáforo representa “pare”, mas é também oposição ao verde, que representa “siga”. 2.2 Códigos Os signos só podem portar sentidos se nós tivermos os códigos necessários para interpretá-los. Esses códigos, como são “aprendidos” durante os processos de socialização, parecem naturais, mas também foram socialmente construídos (Hall, 1980, p. 132). Uma vez recebido e compreendido o significado, é que se recebe, de fato, a informação. Isso não acontece de maneira passiva, mas por meio da apropriação da mensagem e de acordo com as possibilidades e os desejos de cada um. http://southpark.cc.com/blog/2014/08/08/fan-question-what-was-that-pencil-drawing-of-the-boys-from http://southpark.cc.com/blog/2014/08/08/fan-question-what-was-that-pencil-drawing-of-the-boys-from 8 2.3 Subjetividade Entendemos subjetividade como a maneira como cada um de nós compreende a si mesmo, nossos pensamentos e nossas emoções conscientes e inconscientes, sobre as quais temos controle ou não (Woodward, 2000, p. 54- 55). Vivemos essa subjetividade em um contexto social. As noções que acabamos de ver implicam pensar em processos coletivos, como a socialização e o crescer, bem como ser socializado no contexto de uma (ou algumas) cultura e subcultura. Cada pessoa vai receber e se apropriar dos significados que aparecerem diante dela para construir sua própria subjetividade. É por meio dessa subjetividade e das suas possíveis contradições que construímos nossas relações perante o “outro”, além de construirmos nossa própria identidade. Leitura complementar O artigo “Meios de Comunicação e subjetividade: elementos para uma metodologia de análise”, além de propor uma metodologia para trabalhar com subjetividade, traz alguns conceitos e bibliografia interessantes para trabalhar a questão da subjetividade em relação à internet. Acesse: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/11469561273661232853709387 8693558980342.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2019. TEMA 3 – CULTURA E IDENTIDADE A socialização também implica que cada pessoa tenha sua própria subjetividade e individualidade. Durante a socialização (lembrando que ela nunca acaba) é que construímos nossa identidade, maneira pela qual entendemos quem somos (seja como indivíduo ou coletivamente) e o que é importante para nós. Por um lado, temos a identidade social, características atribuídas pela sociedade. A sociedade também nos agrupa com outras pessoas que partilham dessas características. É possível ser estudante, mãe, pai, engenheiro, usuário de drogas, autista, casado etc. Essas características podem ter origem em movimentos sociais (como feminismo e sindicatos de trabalhadores) e não são excludentes entre si: uma pessoa pode, ao mesmo tempo, ser mãe, engenheira, muçulmana e cinéfila, 9 negociando os sentidos e as possíveis contradições entre essas identidades (Giddens, 2005, p. 29). Por outro, temos a identidade pessoal, que nos distingue como indivíduos e ficou mais complexa desde as sociedades antigas, nas quais prevaleciam as identidades sociais. O crescimento urbano, a industrialização e a globalização tiraram a importância de antigas convenções sociais. Podemos construir nossas identidades por meio do cotidiano, de como decidimos nos vestir, dos artefatos que usamos e das nossas ações. Novamente, essas decisões não são estáticas nem eternas: as identidades podem ser criadas e recriadas a todo momento (Giddens, 2005, p. 30). Para teóricos pós-modernos, essa mutabilidade das identidades é, na verdade, sinal de que elas estão mais instáveis e frágeis, talvez por causa de influências midiáticas. Vamos abordar essa questão mais adiante. 3.1 Construção de identidades Kathryn Woodward (2000, p. 8-14) enumera algumas maneiras sobre como as identidades são construídas. De um lado estão as ideias de caráter essencialista, que consideram a identidade como algo externo, um conjunto de características que representam um ideal a ser atingido, um referencial. Segundo ela, identidades são reivindicadas por meio de circunstâncias externas, como local de nascimento e etnia da família, ou circunstâncias históricas. A reivindicação dessas identidades por parte de quem almeja tê-las pode se basear, por exemplo, em alguma versão da história apresentada como uma verdade imutável, ou supostas qualidades inerentes a algum grupo social. As reivindicações de pertencimento a uma identidade costumam ser acompanhadas do suposto poder de julgar quem pertence ou não a um grupo identitário. Woodward, assim como outros autores, diz que, na verdade, a identidade é relacional, ou seja, trata-se de uma construção social que tem como base o outro. Para nos identificarmos com a nossa cultura, é necessário que haja outras, inclusive para diminuir a importância delas e exaltar a nossa. Outra maneira importante de construção de identidades é por meio do consumo, em um sentido amplo. Fãs de algum seriado constroem essa identidadecom base no consumo desse seriado e de material ligado a ele. Uma apresentadora de televisão, ao consumir as tecnologias necessárias para sua 10 profissão, também constrói sua identidade perante o público, e talvez também para si mesma. Curiosidade A delimitação de identidades se por marcações simbólicas, como bandeiras e costumes. Porém, apesar de simbólicas, essas delimitações podem se desdobrar em exclusão social e consequentes desvantagens materiais. Um grupo identitário que seja marcado como inimigo pode ser alvo de ataques e discriminação. Quer um exemplo? Quatro dias depois do atentado de 11 de setembro de 2001, Balbir Singh Sodhi foi assassinado em seu posto de gasolina, em retaliação aos atentados. Balbir usava turbante não por ser muçulmano, como acreditava o assassino, mas sim por ser da religião Sikh, originária da Índia, onde Balbir nasceu. Para mais informações, acesse: <http://www.colorlines.com/articles/ten-years-murder- balbir-singh-sodhi-first-911-hate-crime>. Acesso em: 4 mar. 2019. O resgate histórico, apresentado como essencialista, também pode servir para a construção de novas identidades por meio desse resgate. Exemplo disso são as práticas dos imigrantes e seus descendentes que nasceram no Brasil, sejam poloneses, japoneses ou ucranianos, que poderiam formar novas identidades, mesclando elementos de seus países de origem e do Brasil. 3.2 Identidades em crise Douglas Kellner (2001, p. 297) situa a chamada “crise de identidade”, quando o indivíduo cansa da identidade que construiu/adotou. Autores pós- modernos questionam a existência da identidade, que teria se perdido em um “fluxo de euforia intensa, fragmentada e desconexa” (Kellner, 2001, p. 298), característica de uma sociedade na qual a informação circula – ou explode – livremente. As identidades seriam niveladas por uma sociedade racionalizada, hipermidiatizada, burocratizada e consumista, na qual a mídia cumpre um papel importante na alienação das pessoas por meio da espetacularização da cultura. Isso será analisado no próximo tema. 11 Leitura obrigatória PLÜMER, E. Identidades em crise em uma sociedade em transformação. In: _____. Sociedade e contemporaneidade. Curitiba: InterSaberes, 2018. p.113- 126. TEMA 4 – SOCIEDADE DO ESPETÁCULO Lançado em 1967, A Sociedade do Espetáculo, do francês Guy Debord, foi um dos textos que influenciou os protestos estudantis de maio do ano seguinte, o famoso “maio francês”. Nele, Debord, que se dizia “doutor em nada”, associa arte ao capitalismo, concebendo que a arte, no contexto do capitalismo, não era senão “espetáculo”. Não haveria mais realidade, e sim representações espetacularizadas que substituíram o natural e o autêntico. Para Debord, o espetáculo obedecia à necessidade do sistema capitalista de funcionar, inclusive, fora do horário de trabalho dos operários, mantendo-os em um estado de alienação constante. A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta da sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo aparece no fato de seus próprios gestos já́ não serem seus, mas de um outro que os representa por ele. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o espetáculo está em toda parte (Debord, 1997, p. 24). Já Douglas Kellner vê a mídia como algo menos totalitário, já que concebe que as pessoas têm um papel crítico e que conseguem detectar tentativas de manipulação, enquanto, para Debord, não havia meios de escapar dessa manipulação. A mídia atual, incluindo televisão, jornais e a internet, traria, além do espetáculo, novas possibilidades para a democratização e para a justiça social. A ideia do espetáculo de Debord inclui pensar que a mercadoria e o comércio ocuparam por completo a vida social. Para Kellner, é necessário pensar na sociedade espetacular como um circuito no qual produtos comerciais são disseminados com base em produtos culturais, e que há um desejo de controle para poder vender mais (Kellner, 2001, p. 137). O espetáculo, então, se expande para anúncios televisivos, já que não basta apenas explicar as qualidades do produto, mas sim que o anúncio seja notado e que as marcas e os logotipos se tornem parte da cultura popular. 12 A arte também se torna parte do espetáculo e do comércio. Nomes de artistas se tornam marcas registradas e suas obras precisam ser concebidas para atingir metas comerciais, seja em quantidade de discos ou de ingressos de cinema vendidos. Notícias também precisam ter sucesso, daí a transformação de tragédias em espetáculos jornalísticos que garantem a audiência dos telejornais, o que, por sua vez, aumenta o preço da veiculação de anúncios. Novas possibilidades nas tecnologias de comunicação também colaboram para o espetáculo. No começo das transmissões televisivas, só era possível transmitir ao vivo. Depois, os programas passaram a ser editados antes da transmissão e, mais tarde, foram acrescentadas transmissões via satélite, recursos de animação e simulações computadorizadas. A sociedade do espetáculo inclui a espetacularização para além da mídia de massa, talvez indo além do que Debord concebia quando escreveu seu livro. Veja alguns exemplos a seguir: A arquitetura de museus, como o Guggenheim, em Bilbao, se torna uma atração maior do que as próprias obras neles expostas; Shows de rock buscam oferecer atrativos além da própria música; Videogames superam o lucro de produções cinematográficas; Até o terrorismo busca se espetacularizar, por meio da divulgação de crimes chocantes, como o assassinato de reféns ocidentais. Leitura complementar Os pesquisadores Michele Negrini e Alexandre Rossato Augusti, da PUC- RS, fizeram uma análise da obra de Guy Debord. Acesse o link a seguir e leia o texto na íntegra. Disponível em: <www.bocc.ubi.pt/pag/negrini-augusti-2013- legado-guy-debord.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2019. Com base no que já foi visto e no que foi apontado pelos pesquisadores, em quais pontos você concorda com Debord? Você acredita que o público é “alienado e passivo”? Por quê? Dica de filme A montanha dos sete abutres (título original: Ace in the Hole), lançado em 1951, conta a história de um repórter que, depois de ser demitido de 11 jornais, consegue emprego numa cidade do interior dos Estados Unidos na qual nada aconteces. Um dia, ele descobre um fato que pode se tornar uma notícia nacional e lhe trazer fama. 13 TEMA 5 – A CULTURA DAS MÍDIAS A cultura da mídia tem implicações políticas e ideológicas e não pode ser interpretada sem levar esses aspectos em consideração. Além de precisar ser analisada em seu contexto, é importante ver como produtos culturais midiáticos carregam conotações de poder e dominação que dão continuidade a valores hegemônicos, que podem estar presentes de maneira sutil. Elementos e decisões estéticas têm valores codificados na produção de um filme, de uma fotografia e de um texto jornalístico. Os produtos midiáticos ajudam no estabelecimento desses valores. Como já visto, a ideologia é formada por discursos e simbolismos, que também estão presentes em produtos culturais. Os primeiros teóricos estabeleciam que esses valores eram ditados pela relação dos produtos midiáticos com o capital. Debord deu continuidade a essas ideias, demonstrando a relação entre capitalismo e produtos culturais com seus valores. Mais recentemente, teóricos oriundos, por exemplo, dos chamados Estudos Culturais, observaram outros valores hegemônicos presentes em produtos culturais. Além da questão de classe social, outros valores passaram a ser considerados para fazer uma leituracrítica de produtos midiáticos. Questões de gênero e sexualidade, raças e etnias, nacionalidades, entre outros grupos oprimidos, passaram a ser analisados nos mesmos termos em que antes se criticava somente a representação de classes sociais menos favorecidas. A análise de como essas questões sociais e políticas são representadas em produtos midiáticos se torna importante para detectar discursos hegemônicos ou, até mesmo, contraculturais e de resistência. O que está́ em jogo é o desenvolvimento de um estudo da cultura da mídia que analise, em primeiro lugar, o modo como a cultura da mídia transcodifica as posições dentro das lutas políticas existentes e, por sua vez, fornece representações que, por meio de imagens, espetáculos, discursos, narrativas e outras formas culturais, mobilizam o consentimento a determinadas posições políticas. (Kellner, 2001). Kellner (2001, p. 128) defende que uma crítica da cultura da mídia precisa ser multicultural para abarcar diversas leituras. No entanto, também alerta que o multiculturalismo corre o risco de ser cooptado e apresentado 14 como um discurso separatista, sendo que, se há lutas separadas para cada grupo, também há interesses em comum. Uma crítica multicultural, feita por meio de vários pontos de vista, evita análises unilaterais e etnocêntricas. Portanto, um estudo cultural crítico demonstra de que modo os textos culturais produzem identidades sociais e posições pessoais, comparando posições opostas. Kellner (2001) analisa as mensagens e os efeitos da mídia e tenta mostrar como certas figuras e modelos de discursos solapam os valores e o ethos de uma sociedade pluralista, igualitária, democrática e multicultural, ao passo que outros podem preconizar a criação de uma sociedade mais igualitária e democrática. É necessário considerar que certos produtos da cultura da mídia, como os filmes de Hollywood analisados por Kellner, têm um objetivo comercial e, por isso, não há muito espaço para radicalismos. As representações de questões sociais como classe, gênero e sexualidade costumam se dar dentro de limites já estabelecidos, para não causar controvérsias. Curiosidade Em vários filmes de ação estadunidenses, há representações de inimigos pertencentes a uma etnia, como terroristas árabes, sem que seja especificada a nacionalidade (simplesmente são “árabes”, identificáveis por roupas típicas e feições características), os quais serão provavelmente mortos pelo “mocinho”. É possível que tenha sido em alguma dessas representações midiáticas que o assassino de Balbir Singh Sodhi tenha aprendido que muçulmanos usam turbante. Infelizmente, ele não aprendeu que sikhs também usam turbante. Mulheres, negros, latinos, homossexuais, asiáticos, entre outros também podem ser representados por meio de estereótipos e lugares comuns, muitas vezes criados pela própria indústria do entretenimento. Mulheres, por exemplo, são tidas como pertencentes somente a essa categoria. É típico que em um grupo de pessoas representadas em um filme haja somente uma mulher, que está ali somente por isso, no que foi chamado de “Princípio da Smurfette”. A influência dessas representações sobre o público é questionada de diversas maneiras. Por um lado, críticos como Debord afirmam que a influência é completa e alienante. Por outro, teóricos dos Estudos Culturais afirmam que o público não deve ser considerado massa homogênea sem capacidades de pensar, e sim que cada um decodifica e se apropria dos significados presentes na cultura da mídia. 15 Kellner (2001, p. 142) propõe um meio termo no qual o público tem sim, poder crítico, sem deixar de considerar o poder que a indústria da mídia exerce sobre nós, e que “subestimar seu poder não traz benefícios aos projetos críticos de transformação social”. Leitura complementar Leia o artigo intitulado “A cultura da mídia e o triunfo do espetáculo”, de Douglas Kellner. Com base nos exemplos desse texto e na abordagem feita pelo autor, analise um produto de mídia mais recente, como um clipe, uma música, um videogame. Disponível em: <http://www.ciencianasnuvens.com.br/site/wp- content/uploads/2013/07/35932881-A-Cultura-da-midia-e-o-triunfo-do- espetaculo.pdf>. Acesso em: 4 mar. 2019. TROCANDO IDEIAS Chimamanda Ngozi Adichie, escritora, nasceu na Nigéria em 1977. Seus três romances foram traduzidos em trinta idiomas. Em 2009, ela ministrou uma TED Talk na qual narrava suas experiências com relação a culturas. Trata-se de um depoimento muito interessante, que mostra o perigo em conhecer apenas um lado de qualquer história. Acesse o link a seguir e assista ao vídeo: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_stor y?language=pt-br>. Acesso em: 5 mar. 2019. 1. Por meio deste vídeo, podemos estabelecer uma série de relações com os conteúdos da nossa aula. Algumas questões nos ajudam a refletir sobre o que debatemos. Vejamos: 2. Por que os livros que Chimamanda escrevia quando criança não contextualizavam a Nigéria? 3. Que comparação é feita com a história de Fidé, o menino que foi trabalhar em sua casa? 4. Por que a colega de quarto estadunidense de Chimamanda se surpreendeu ao ver que ela ouvia Mariah Carey? 5. Chimamanda se identifica como nigeriana, mas conta que começou a assumir uma identidade mais geral, africana, quando morou nos Estados Unidos. Por que você acha que isso aconteceu? 6. Que ideia o professor que julgou o romance de Chimamanda como não “autenticamente africano” faria da Nigéria ou da África? 16 7. Qual o papel da mídia na impressão que Chimamanda tinha do México? 8. Qual o papel da mídia na impressão que nós temos sobre a África? 9. Quando ela fala de uma visão ocidental de africanos “incapazes de falar por eles mesmos e esperando serem salvos por um estrangeiro branco e gentil”, que relação você faria com o que é visto sobre a construção de identidades e sobre a reação diante da cultura da mídia? 10. O que você sabe da Nigéria? 11. Você acha que a sua cidade, seu estado ou seu país são vistos de maneira similar por alguém no mundo? NA PRÁTICA Baseado no que você refletiu na seção “Trocando Ideias”, escreva um texto descrevendo seu sentimento em uma situação similar à de Chimamanda nos Estados Unidos. Escolha um país ou uma cidade e imagine que você vai morar lá. Atente às seguintes questões para montar seu texto: Quais poderiam ser as reações que o provocariam a dizer de onde é? O que você teria em comum com as pessoas que moram no país? Você conseguiria encontrar pessoas que gostassem das mesmas coisas que você? Com quem você iria se “enturmar”? O que as pessoas saberiam ou imaginariam sobre o lugar de onde você veio? FINALIZANDO Nesta aula vimos como o ser humano vive, durante toda vida, processos de socialização. Por meio deles, é possível aprender, quase sem perceber, sobre signos, símbolos e códigos, que são fundamentais na construção de identidades e subjetividades. Analisamos também o papel da mídia e da indústria cultural nessas construções, pois influenciam atitudes, vimos o que as pessoas fazem diante disso. 17 REFERÊNCIAS BERGER, P.; LUCKMANN, T. The Social Construction of Reality. London: Penguin, 1966. DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. GIDDENS, A. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005. HALL, S. Encoding/Decoding. In: _____. Culture, Media, Language. Birmingham: Centre for Contemporary Cultural Studies, 1980. _____. The work of representation. 2003. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/91656682/Cap-1-Representation-Stuart-Hall>. Acesso em: 6 mar. 2019. KELLNER, D. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001. LABURTHE-TOLRA, P.; WARNIER, J. Etnologia – Antropologia. Petrópolis,Rio de Janeiro: Vozes, 1997. WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. (Org.). Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
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