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8.CONFISSÃO 8.1Conceito de confissão Confessar, no âmbito do processo penal, é admitir contra si, por quem seja suspeito ou acusado de um crime, tendo pleno discernimento, voluntária, expressa e pessoalmente, diante da autoridade competente, em ato solene e público, reduzido a termo, a prática de algum fato criminoso.66 Em pretéritos tempos, PIMENTA BUENO definia a confissão como “o reconhecimento ou declaração por que alguém manifesta um fato próprio. Em vez de contumaz, pode o réu confessar o delito no decurso do interrogatório, independentemente de sugestões indevidas do juiz”.67 Deve-se considerar confissão apenas o ato voluntário (produzido livremente pelo agente, sem nenhuma coação), expresso (manifestado, sem sombra de dúvida, nos autos) e pessoal (inexiste confissão, no processo penal, feita por preposto ou mandatário, o que atentaria contra a segurança do princípio da presunção de inocência). Além disso, é incorreto dizer que alguém, não suspeito, nem acusado pelo Estado, ao admitir a prática de um fato considerado criminoso, está confessando.68 Na realidade, nessa hipótese, trata-se da autodenúncia ou autoacusação.69 Considera-se, também, como requisito essencial para caracterizá-la o discernimento, que é a faculdade de julgar as coisas com clareza e equilíbrio, visto que um indivíduo insano não pode admitir sua culpa validamente. Exigir-se que seja produzida diante da autoridade competente implica afastar do cenário da confissão os peculiares depoimentos feitos a policiais fora da delegacia, como, por exemplo, durante o trajeto do local do crime para o distrito policial. Esta situação deve ser considerada um testemunho e não confissão. O ato precisa ser solene, público e reduzido a termo, justamente porque o interrogatório é o momento ideal para a sua ocorrência, o que se faz respeitadas as formalidades legais. Finalmente, a confissão pressupõe a admissão de fato criminoso e não de qualquer fato prejudicial ao réu. O afastamento de qualquer desses requisitos pode acarretar a indevida aceitação e valoração de atos inconciliáveis com o devido processo legal. Por isso, posicionamo- nos contra a possibilidade de admitir como meio de prova a confissão colhida sob métodos ilegais, como a tortura, tendo em vista que o lugar e o método utilizado para sua extração são fundamentais para avaliar a sua força probatória. 8.2Natureza jurídica e objeto da confissão Trata-se de um meio de prova, isto é, um dos instrumentos disponíveis para que o juiz atinja a verdade dos fatos. Seu objeto são os fatos, inadmitindo--se questões relativas ao direito e às regras de experiência. 8.3Espécies de confissão Há, fundamentalmente, duas espécies: a) quanto ao local, ela pode ser judicial ou extrajudicial. Se produzida diante da autoridade judicial competente para julgar o caso, trata-se da confissão judicial própria. Se for produzida perante qualquer outra autoridade judicial, incompetente para o deslinde do processo criminal, trata-se da confissão judicial imprópria. No mais, quando a admissão de culpa é formulada diante de autoridades policiais, parlamentares ou administrativas, competentes para ouvir o depoente em declarações, trata-se da confissão extrajudicial; b) quanto aos efeitos gerados, a confissão pode ser simples ou qualificada. A primeira ocorre quando o confitente admite a prática do crime sem qualquer outra alegação que possa beneficiá-lo. A segunda liga-se à admissão da culpa, quanto ao fato principal, levantando o réu outras circunstâncias que podem excluir a sua responsabilidade ou atenuar sua pena. Exemplo desta última: quando o réu admite ter furtado o bem, invocando, entretanto, o estado de necessidade.70 8.4Valor e fundamentos da confissão A melhor e mais útil maneira de avaliar o valor da confissão é conhecer o fundamento que levou o réu a empreendê-la. Sendo ato antinatural, porque a natureza humana não é dada ao reconhecimento de erros ou falhas, é preciso desvendar os motivos que dão sustentáculo à admissão da culpa. Alguns fundamentos provocam a manifesta ilegalidade da confissão, que não poderá ter qualquer valor judicial. Outros, no entanto, servem para confirmá-la, dando--lhe segurança e veracidade. São os seguintes fundamentos: 1.º)remorso: confessa o réu ou indiciado, colhido pelo sentimento de culpa, remordendo-o por dentro, sem lhe dar trégua ou paz. A perturbação perenemente instalada em seu espírito leva-o a admitir sua culpa. É o constante “instinto de veracidade” sempre presente no espírito humano, como lembra MALATESTA;71 2.º)arrependimento: é a situação do agente que, compreendendo o aspecto negativo do que realizou, passa a admitir como possível o seu castigo, estando insatisfeito pela violação da lei. Difere do remorso, porque o arrependimento é um estado de tristeza, enquanto o outro é doloroso e aflitivo; 3.º)alívio interior: é a sensação de libertação provocada pela admissão da culpa. Ocorre quando o indivíduo já está sendo acusado e, tendo por finalidade não mais digladiar-se com o Estado, rende-se, confessando. É uma necessidade imposta pela aversão ao duelo judiciário; 4.º)necessidade de se explicar: afora o remorso e o arrependimento, existe, ainda, preenchendo o fundamento de muitas confissões, a necessidade do agente de justificar, perante a comunidade onde vive, o ato criminoso praticado. Por isso, confessa, dando suas razões e aguardando aceitação e legitimação para o que fez. É o exemplo da pessoa que mata o traficante do seu bairro e termina admitindo sua culpa para obter a aprovação social; 5.º)interesse: qualquer vantagem ou proveito pode justificar uma confissão. Desde o recebimento de uma quantia em dinheiro, para assumir o crime em lugar de outro, até a necessidade de se impor dentro de um presídio, ganhando notoriedade, pode levar o acusado à confissão. Não são poucos os casos de pessoas que, movidas unicamente pelo interesse, terminam admitindo a prática de fatos, que não lhe dizem respeito. É natural que o interesse possa também provocar confissões verdadeiras, embora, na maior parte dos casos, sejam falsas; 6.º)lógica: o agente racional e inteligente não aprecia negar o óbvio, de modo que, percebendo serem suficientes as provas contra si, termina admitindo o que fez. Há muitos casos retratando situações de admissões de culpa originárias da aversão do agente em prosseguir negando o óbvio; 7.º)orgulho ou vaidade: o demasiado amor-próprio e o desejo imoderado de atrair a atenção e a admiração alheias fazem com que alguns agentes confessem os delitos cometidos. Há aqueles que se promovem à custa do crime, adquirindo, na comunidade, os títulos de justiceiros ou vigilantes, que lhes serve de glória e promoção pessoal, supondo-se paladinos da justiça; 8.º)esperança ou medo: a expectativa de obter algum benefício, ou o receio de ser mais severamente apenado, pode levar o indivíduo à admissão da culpa. Justamente por isso, não deve o magistrado instigar o réu a confessar, “prometendo-lhe” atenuantes ou benefícios processuais. A confissão pode ser, nesse caso, falsa; 9.º)expiação ou masoquismo: ignorar a existência de pessoas que possuem o desejo interior de causar mal a si mesmas é desconhecer a natureza humana. Por isso, deve o magistrado ser sensível para o fato de que réus podem ter a necessidade – porventura patológica – de confessar um crime que não cometeram; 10.º)altruísmo: o desprendimento e a abnegação de alguns podem levá--los a assumir seus crimes, para que terceiros não paguem pelo que não devem; 11.º)forte poder de sugestão de terceiros: há pessoas facilmente sugestionadas por outras, demonstrando possuir autêntica falta de força de vontade para resistir ao poder de convencimento alheio. As personalidades fracas, de mente estreita, com nítida tendência à covardia podem assumir crimes que não cometeram. Tal ocorre quando o interrogante é sagaz, inteligente e constrói raciocínios lógicos irrefutáveis para tais pessoas mentalmentefrágeis, que terminam convencendo-se – ou não mais tendo justificativas – de serem autoras de ilícitos alheios. Por vezes, como explica GISLI GUDJONSSON, ocorre a “síndrome da desconfiança da memória”, quando o confitente, acreditando ser culpado, porque sua memória falha no instante do interrogatório – mormente prolongado e cansativo –, não mais consegue contestar as evidências que lhe são apresentadas, admitindo algo que não realizou;72 12.º)erro: a confissão pode ocorrer porque o acusado tem uma visão incorreta de como os fatos realmente se deram e termina convencendo-se de que cometeu o delito, embora não o tenha feito. Exemplo: “Tício, visando a matar Caio, atira contra ele, mas não o acerta. Terceira pessoa, entretanto, atirando no mesmo momento, atinge a vítima desejada.Tício pode confessar ter matado Caio, porque assim lhe pareceu, embora tenha somente ficado na esfera da tentativa. Trata-se de uma confissão causada pelo erro” (de nossa autoria, O valor da confissão como meio de prova no processo penal, p. 106). Réus suscetíveis de incidir nesse tipo de confissão, em regra falsa, são pessoas de baixo Q. I., depressivas ou emocionalmente perturbadas, que não possuem condições perfeitas para entender o contexto onde estão inseridas, nem as perguntas exatas que lhes são formuladas; 13.º)loucura ou outro desequilíbrio mental: em razão de estados patológicos, sofrendo de delírios de variadas ordens, o acusado pode obedecer a estímulos mórbidos, sem capacidade de distinguir entre o certo e o errado, muitas vezes crendo desempenhar “missão magnífica” na sua existência. Assim, termina confessando seus feitos, nem sempre de modo verdadeiro. São casos, muitas vezes, detectáveis pelo exame de insanidade mental. Aliás, essa é uma das razões pelas quais, quando a pessoa insana confessa, é preciso que o juiz determine a produção de provas para comprovar o injusto penal, sendo possível, então, aplicar medida de segurança; 14.º)coação psicológica: é o constrangimento psíquico exercido contra o réu, através de ameaças e chantagens, levando-o a desesperar-se, confessando a prática do crime. Por vezes, a admissão de culpa é verdadeira, noutras, é falsa, embora seja sempre um meio inadmissível, porque ilegal. Exemplo disso é o sequestro, pela polícia, de um parente do interrogando, que é ameaçado de algum modo. Para evitar a situação, o suspeito ou indiciado termina confessando o que não deve; 15.º)tortura psicológica: é o constrangimento psíquico exercido de maneira insistente contra o acusado, tendo por fim minar-lhe qualquer capacidade de resistência. Difere da coação psicológica, porque esta tem por estrutura uma ação isolada, enquanto a tortura baseia-se em diversas condutas seguidas e perseverantes, tal como se dá em interrogatórios prolongados e repetitivos, sem possibilidade de se alimentar ou descansar. É meio de extração da confissão nitidamente ilegal; 16.º)coação física: é a agressão contra a incolumidade física do suspeito ou indiciado, levando-o a admitir sua culpa, de modo verdadeiro ou falso, mas para evitar, de imediato, o prosseguimento da violência. Um único tapa no rosto de um homem honrado, não acostumado a agressões, pode levá-lo, em desespero, a confessar; 17.º)tortura física: é o constrangimento físico exercido contra o suspeito ou indiciado de modo sistemático, repetitivo e prolongado. Tem por finalidade reduzir-lhe completamente a capacidade de resistência. Usa-se violência física, como o emprego de choques elétricos, palmatórias, surras, bem como a submissão a jejum prolongado e colocação em lugares úmidos, escuros e insalubres. É considerado, hoje, crime equiparado ao hediondo, regido tanto pela Lei 8.072/90, como pela Lei 9.455/97; 18.º)insensibilidade: existem agentes que estão sob anestesia afetiva, significando que não são sensíveis aos atos violentos praticados. Assim, são capazes de falar sobre seus feitos de maneira natural e fria. Em regra, são confissões verdadeiras, fruto de personalidades antissociais; 19.º)instinto de proteção ou afeto a terceiros: há pessoas que, em virtude de estreitos laços de afetividade com suspeitos da prática de crimes e tendo por fim preservar seus entes queridos, terminam confessando falsamente a prática do fato delituoso. Exemplo disso é o do pai idoso, assumindo o delito cometido pelo filho, para livrá-lo da cadeia; 20.º)ódio a terceiros: é a hipótese de a pessoa confessar, exclusivamente, para poder delatar alguém que odeie, prejudicando-o e envolvendo-o num delito que pode – ou não – ter cometido. É preciso muita cautela com esse método de envolvimento de alguém em um crime, pois a consistência da confissão não é segura;73 21.º)questões religiosas: é o caso das pessoas que se convertem a alguma religião e, seguindo mandamentos da crença ou do líder espiritual, admitem a prática de crimes para aliviar a alma, expiando sua culpa. Portanto, conhecidas as razões que levaram o suspeito, indiciado ou réu a confessar, pode o magistrado, corretamente, avaliar se a admissão de culpa é verdadeira ou falsa. A confissão extrajudicial, não contando com as garantias constitucionais inerentes ao processo, especialmente o contraditório e a ampla defesa, é apenas um meio de prova indireto, isto é, um indício. Deve ser reputada totalmente inconsistente para condenar uma pessoa, caso venha isolada no bojo dos autos. Necessita ser firmemente confrontada com outras provas e nitidamente confirmada pelas provas produzidas em juízo, não bastando mera fumaça de veracidade. Os riscos de aceitação da confissão extrajudicial, como meio de prova direto, são inúmeros e capazes de gerar o malfadado erro judiciário, inaceitável no Estado Democrático de Direito.74 A confissão judicial, por sua vez, porque produzida diante de magistrado, após a citação, sob o manto protetor da ampla defesa – que deve, efetivamente ser assegurada ao réu antes do interrogatório – é meio de prova direto. Ainda assim, precisa ser confrontada com outras provas e por elas confirmada, embora possua maior força do que a confissão-indício feita, em regra, na polícia. Enfim, a confissão jamais possui um caráter absoluto, devendo ser analisada no contexto do conjunto probatório.75 8.5Conceito de delação Delatar significa acusar, denunciar ou revelar. Na ótica processual, somente tem sentido falar em delação quando alguém, admitindo a prática criminosa, revela que outra pessoa também o ajudou de qualquer forma. Esse é um testemunho qualificado, feito pelo indiciado ou acusado. Tem valor probatório, especialmente porque houve admissão de culpa pelo delator. Nunca, entretanto, deve o magistrado deixar de atentar para os aspectos negativos da personalidade humana, pois não é impossível que alguém, odiando outrem, confesse um crime somente para envolver seu desafeto, que, na realidade, é inocente. Essa situação pode ser encontrada quando o confitente já está condenado a vários anos de cadeia, razão pela qual a delação não lhe produzirá maiores consequências, o mesmo não se podendo dizer quanto ao delatado. No mais, quando o réu nega a prática do crime ou a autoria e indica ter sido outro o autor, está, em verdade, prestando um autêntico testemunho, mas não se trata de delação. Pode estar agindo dessa forma para proteger-se, indicando qualquer outro para figurar como autor do crime, como pode também estar narrando um fato verdadeiro, ou seja, que o verdadeiro agente foi outra pessoa. De qualquer modo, envolvendo outrem e para garantir o direito à ampla defesa do denunciado, é preciso que o juiz permita, caso seja requerido, que o defensor do delatado faça reperguntas no interrogatório do delator. Essas reperguntas terão conteúdo e amplitude limitados, devendo haver rígido controle do juiz. Assim, somente serão admitidas questões envolvendo o delatado e não a situação do delator, tudo para preservar a este último o direito de não ser obrigado a se autoacusar. Em semelhante posição, está o magistériode CARLOS HENRIQUE BORLIDO HADDAD: “A chamada de corréu, a mais das vezes, tem sede no interrogatório e por ser comum impedir a intervenção das partes, a prova é produzida em flagrante violação do direito de defesa. Se o terceiro a quem é imputado o cometimento do delito não puder intervir no interrogatório do confitente, fazendo perguntas elucidativas ou infirmativas das declarações increpantes, não se obedecerá ao princípio que adota o contraditório na instrução criminal. Inexplicavelmente, reconhece-se ao defensor a faculdade de dirigir perguntas a testemunhas e ao ofendido, de modo a assegurar a contrariedade na instrução criminal, mas se lhe veda participar de ato cujas consequências podem ser ainda mais danosas, como na hipótese de inculpação desapaixonada do corréu, por estar acompanhada da confissão. (...) Deve-se adotar o sistema angular de inquirição: o defensor do corréu inquire o acusado através do juiz, que negará ou indeferirá perguntas impertinentes ou dará forma regular às que se apresentem mal formuladas. O fato de não se permitir reperguntas ao corréu acarreta a necessidade de o acusado, incriminado pelo comparsa, ter que produzir prova negativa da culpabilidade, sendo impedido de fazê-lo através da inquirição do próprio autor das declarações. Portanto, caso não se permita ao defensor do corréu intervir no interrogatório do comparsa delator, a incriminação não poderá ser considerada para embasar a condenação. Produzida a chamada de corréu, o juiz deve abrir vista ao defensor do denunciado para pronunciar-se. Caso este requeira, deverá ser marcada nova data para reinterrogar o denunciante. A solução apontada é preferível à desconsideração da delação, pois evita impor um obstáculo à elucidação da verdade material”.76 A delação tem caráter relativo, devendo ser confrontada com as demais provas existentes nos autos para fundamentar uma condenação. Nesse prisma, disciplinou o art. 4.º, § 16, da Lei 12.850/2013 (Organização criminosa): “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. 8.5.1Prós e contras da delação premiada Estabelecemos, inicialmente, que, embora delatar signifique acusar ou denunciar alguém, no sentido processual, devemos utilizar o termo quando um acusado, admitindo a prática criminosa, revela que outra pessoa também o ajudou de qualquer forma. O valor da delação, como meio de prova, é difícil de ser apurado com precisão. Por outro lado, é valioso destacar que há, atualmente, várias normas (ver o item 8.5.1 deste Capítulo) dispondo sobre a delação premiada, isto é, a denúncia que tem como objeto narrar às autoridades o cometimento do delito e, quando existente, os coautores e partícipes, com ou sem resultado concreto, conforme o caso, recebendo, em troca, do Estado, um benefício qualquer, consistente em diminuição de pena ou, até mesmo, em perdão judicial. Seria válida essa forma de incentivo legal à prática da delação? Existem inúmeros aspectos a considerar. São pontos negativos da delação premiada: a) oficializa-se, por lei, a traição, forma antiética de comportamento social; b) pode ferir a proporcionalidade da aplicação da pena, pois o delator receberia pena menor do que os delatados, cúmplices que fizeram tanto ou até menos que ele; c) a traição, em regra, serve para agravar ou qualificar a prática de crimes, motivo pelo qual não deveria ser útil para reduzir a pena; d) não se pode trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos; e) a existente delação premiada não serviu até o momento para incentivar a criminalidade organizada a quebrar a lei do silêncio, que, no universo do delito, fala mais alto; f) o Estado não pode aquiescer em barganhar com a criminalidade; g) há um estímulo a delações falsas e um incremento a vinganças pessoais. São pontos positivos da delação premiada: a) no universo criminoso, não se pode falar em ética ou em valores moralmente elevados, dada a própria natureza da prática de condutas que rompem com as normas vigentes, ferindo bens jurídicos protegidos pelo Estado; b) não há lesão à proporcionalidade na aplicação da pena, pois esta é regida, basicamente, pela culpabilidade (juízo de reprovação social), que é flexível. Réus mais culpáveis devem receber pena mais severa. O delator, ao colaborar com o Estado, demonstra menor culpabilidade, portanto, pode receber sanção menos grave; c) o crime praticado por traição é grave, justamente porque o objetivo almejado é a lesão a um bem jurídico protegido; a delação seria a traição de bons propósitos, agindo contra o delito e em favor do Estado Democrático de Direito; d) os fins podem ser justificados pelos meios, quando estes forem legalizados e inseridos, portanto, no universo jurídico; e) a ineficiência atual da delação premiada condiz com o elevado índice de impunidade reinante no mundo do crime, bem como ocorre em face da falta de agilidade do Estado em dar efetiva proteção ao réu colaborador; f) o Estado já está barganhando com o autor de infração penal, como se pode constatar pela transação, prevista na Lei 9.099/95. A delação premiada é, apenas, outro nível de transação; g) o benefício instituído por lei para que um criminoso delate o esquema no qual está inserido, bem como os cúmplices, pode servir de incentivo ao arrependimento sincero, com forte tendência à regeneração interior, o que seria um dos fundamentos da própria aplicação da pena; h) a falsa delação, embora possa existir, deve ser severamente punida; i) a ética é juízo de valor variável, conforme a época e os bens em conflito, razão pela qual não pode ser empecilho para a delação premiada, cujo fim é combater, em primeiro plano, a criminalidade organizada. Do exposto, parece-nos que a delação premiada é um mal necessário, pois o bem maior a ser tutelado é o Estado Democrático de Direito. Não é preciso ressaltar que o crime organizado tem ampla penetração nas entranhas estatais e possui condições de desestabilizar qualquer democracia, sem que se possa combatê-lo, com eficiência, desprezando-se a colaboração daqueles que conhecem o esquema e dispõem-se a denunciar coautores e partícipes. No universo dos seres humanos de bem, sem dúvida, a traição é desventurada, mas não cremos que se possa dizer o mesmo ao transferirmos nossa análise para o âmbito do crime, por si só, desregrado, avesso à legalidade, contrário ao monopólio estatal de resolução de conflitos, regido por leis esdrúxulas e extremamente severas, totalmente distante dos valores regentes dos direitos humanos fundamentais. A rejeição à ideia da delação premiada constituiria um autêntico prêmio ao crime organizado e aos delinquentes em geral, que, sem a menor ética, ofendem bens jurídicos alheios, mas o Estado não lhes poderia semear a cizânia ou a desunião, pois não seria moralmente aceitável. Se os criminosos atuam com leis próprias, pouco ligando para a ética, parece--nos viável provocar-lhes a cisão, fomentando a delação premiada. A lei do silêncio, no universo criminoso, ainda é mais forte, pois o Estado não cumpriu sua parte, que é diminuir a impunidade, atuando, ainda, para impedir que réus colaboradores pereçam em mãos dos delatados. Ademais, como exposto nos fatores positivos da delação, o arrependimento pode surgir, dando margem à confissão espontânea e, consequentemente, à delação. O prêmio deve emergir em lugar da pena, afinal, a regeneração do ser humano torna-se elemento fundamental, antes mesmo de se pensar no castigomerecido pela prática da infração penal. Cenas teatrais, barganhas misteriosas, delações falsas e todos os atos de vingança, sem qualquer utilidade efetiva, devem ser banidos e punidos. Em suma, pensamos ser a delação premiada um instrumento útil, aliás, como tantos outros já utilizados, legalmente, pelo Estado, como a interceptação telefônica, que fere a intimidade, em nome do combate ao crime. 8.5.2A delação premiada e suasfontes legais No Código Penal, encontramos a delação premiada no art. 159, § 4.º (“Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”). Porém, de maneira desregrada e assistemática, podemos detectar a sua existência, ainda, nas seguintes normas: a)Lei 9.807/99 (Lei de Proteção à Vítima e às Testemunhas): art. 13 (“Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado: I – a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa; II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III – a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso”) e art. 14 (“O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços)”); b)Lei 7.492/86 (Crimes contra o Sistema Financeiro): art. 25, § 2.º (“Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha [associação criminosa] ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”); c)Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos): art. 8.º, parágrafo único (“O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha [associação criminosa], possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”); d)Lei 8.137/90 (Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e Relações de Consumo): art. 16, parágrafo único (“Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha [associação criminosa] ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”); e)Lei 9.613/98 (Crimes de Lavagem de Capitais): art. 1.º, § 5.º (“A pena poderá ser reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços) e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá--la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime”); f)Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas): art. 41 (“O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços)”); g)Lei 12.850/2013 (Organização criminosa): art. 4.º (“O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 [dois terços] a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada”. Não temos o objetivo de analisar todas as normas referentes à delação premiada, ingressando no debate de qual estaria em vigor e qual não seria aplicável, pois não é tema pertinente a este Manual, embora devamos apontar a importância da delação, em especial da denominada premiada, no contexto dos meios de prova existentes em processo penal. Sugerimos ao leitor, para a obtenção de maiores detalhes sobre a aplicabilidade das várias normas acerca da delação, conforme supracitadas, a consulta às nossas obras Leis penais e processuais penais comentadas – vol. 1 (particularmente, a nota 35 ao art. 14 da Lei 9.807/99) e Organização criminosa. Comentários à Lei 12.850, de 02 de agosto de 2013.77 8.5.2.1Os abusos dos acordos de delação premiada Começam a ser divulgados os primeiros acordos de delação premiada, quando se tornam públicos, a partir do ajuizamento da ação penal. Observa--se, em particular na denominada “operação lava jato”, que os acordos estão envolvendo inúmeras cláusulas não previstas em lei. São condições idealizadas pelo Ministério Público, com as quais, sob pressão ou não, concordaram os delatores, crendo na sua validade. Desse modo, as delações são realizadas, outras prisões são conseguidas, mais pressões em relação aos detidos, novas delações surgem, sob cláusulas ilegais e assim sucessivamente. A pergunta que se deve fazer, em nome do processo penal democrático, é até que ponto a sociedade brasileira deseja combater a corrupção? A qualquer preço? Sob quaisquer condições? Como cidadão, pode-se responder afirmativamente. Custe o que custar, quer-se preso o corrupto (embora o delator corrupto nem sempre vá para o presídio, em face de seus acordos). Mas como operador do direito, não seria um custo muito elevado concordar com fissuras aos direitos humanos e às regras fundamentais de processo penal para que isso se concretize? Quem garante que, no futuro, formada jurisprudência em relação a tais acordos sem base legal, não se volte o Estado contra qualquer um? As nossas preocupações voltam-se ao universo do processo penal e não a uma operação específica de determinada força-tarefa. Aliás, imagine-se o dano para o próprio instituto da delação premiada se os Tribunais Superiores, futuramente, anularem várias cláusulas consideradas abusivas desses acordos. Como ficam os colaboradores, sem obter tudo aquilo que lhes foi prometido pelo órgão acusatório, mas não chancelado pelo Judiciário de todos os graus de jurisdição? Hoje, há um só juízo deliberando sobre tais acordos, mas não ficarão os processos e eventuais condenações restritos ao primeiro grau. Se alguns acordos forem julgados abusivos, a luta contra a corrupção, afoita sob determinados aspectos, terá perdido seu valor. O sucesso de hoje, tanto da operação quanto de seus operadores, pode tornar-se o insucesso de amanhã. Porém, o pior não é somente prejudicar o deslinde da denominada operação lava jato, mas atingir várias outras operações em andamento noutros Estados, sob o comando de outros operadores do direito. Finalmente, visualiza-se, por ora, o empenho de forças-tarefa do Estado--investigação e do Estado-acusação em redor dos crimes econômico-financei-ros. Onde estão as mesmas forças no combate aos crimes de sangue e ao tráfico ilícito de drogas, igualmente estruturados em organizações criminosas? Quais chefes do tráfico, graças a delações premiadas, foram levados recentemente à prisão? O questionamento feito resulta da falta de estrutura do Estado para combater o crime organizado, que não se abate por conta de algumas delações. Ao contrário, reage e elimina tantos os delatores quanto os operadores do direito que conduzem tais feitos. Em suma, para provocaro debate, a pressão de forças-tarefa sobre delinquentes de colarinho branco torna-se muito mais eficiente do que em relação ao crime organizado que efetivamente reage. A sociedade aguarda, segundo cremos, a disseminação da delação premiada para todos os graves delitos cometidos pelas organizações criminosas no Brasil. 8.6Critérios de avaliação da confissão e confronto com outras provas A admissão de culpa, por ser ato contrário à essência do ser humano, deve ser avaliada com equilíbrio e prudência. Não pode mais ser considerada, como no passado, a rainha das provas, visto ser inconsistente e impura em muitos casos. O Estado não se deve conformar em mandar para o cárcere a pessoa inocente que, envolvida por uma série de erros e constrangimentos, termina admitindo a prática de algo que não fez. É meta indispensável do juiz confrontar a confissão com as outras provas existentes nos autos, jamais aceitando que ela, isoladamente, possa significar a condenação do réu. Por isso, consta do art. 197 do Código de Processo Penal, claramente, a advertência para que haja confronto entre a confissão e outras provas, verificando-se a sua compatibilidade e concordância com o quadro probatório. Sem isso, deve-se desprezar a admissão da culpa produzida nos autos. Segundo MICHEL FOUCAULT, em feliz apreciação do valor da confissão em matéria criminal, apontando os prós e contras de sua aceitação, “no interior do crime reconstituído por escrito, o criminoso que confessa vem desempenhar o papel da verdade viva. A confissão, ato do sujeito criminoso, responsável e que fala, é a peça complementar de uma informação escrita e secreta. Daí a importância dada à confissão por todo esse processo de tipo inquisitorial. Daí também as ambiguidades de seu papel. Por um lado, tenta-se fazê-lo entrar no cálculo geral das provas; ressalta-se que ela não passa de uma delas; ela não é a evidentia rei; assim como a mais forte das provas, ela sozinha não pode levar à condenação, deve ser acompanhada de indícios anexos, e de presunções; pois já houve acusados que se declararam culpados de crimes que não tinham cometido; o juiz deverá então fazer pesquisas complementares, se só estiver de posse da confissão regular do culpado. Mas, por outro lado, a confissão ganha qualquer outra prova. Até certo ponto ela as transcende; elemento no cálculo da verdade, ela é também o ato pelo qual o acusado aceita a acusação e reconhece que esta é bem fundamentada; transforma uma afirmação feita sem ele em uma afirmação voluntária. Pela confissão, o próprio acusado toma lugar no ritual de produção de verdade penal. Como já dizia o direito medieval, a confissão torna a coisa notória e manifesta. (...) Ela conserva alguma coisa de uma transação; por isso exige-se que seja ‘espontânea’, que seja formulada diante do tribunal competente, que seja feita com toda consciência, que não se trate de coisas impossíveis etc. Pela confissão, o acusado se compromete em relação ao processo; ele assina a verdade da informação”.78 8.7Silêncio como elemento para o convencimento do juiz A parte final do art. 198 do CPP, que prevê a possibilidade de ser levado em conta o silêncio do réu para a formação do convencimento do magistrado, não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, que, expressamente, conferiu ao réu a possibilidade de manter-se calado (art. 5.º, LXIII), sem estabelecer qualquer consequência dessa opção, razão pela qual não pode a lei ordinária fixar conteúdo diverso. 8.8Divisibilidade da confissão Admite a lei ser permitida a divisibilidade da confissão (art. 200, CPP), isto é, pode o juiz aproveitá-la por partes, crendo num trecho e não tendo a mesma impressão quanto a outro. É muito comum o réu admitir a prática do fato criminoso para levantar, em seu benefício, alguma causa de exclusão de ilicitude ou da culpabilidade. Nesse caso, é permitido ao juiz dividi-la em partes, aceitando a admissão da culpa no tocante à autoria e à materialidade, mas rejeitando-a no que pertine à excludente.79 O que é defeso ao magistrado é repartir a confissão em porções estanques, sem sentido e com quebra de contexto. Assim, não se pode dividir frases ou mesmo uma narrativa que possui um contexto único, pois, nesse caso, deturpa--se por completo a ideia exposta pelo interrogado.80 8.9Retratabilidade da confissão A lei expressamente admite a possibilidade do réu retratar-se, a qualquer momento, narrando a versão correta dos fatos, na sua visão (art. 200, CPP). Nem poderia ser de outra forma, pois a admissão de culpa envolve direitos fundamentais, onde se inserem o devido processo legal, a ampla defesa e, até mesmo, o direito à liberdade. Entretanto, admitida a possibilidade de o réu retratar-se, não quer isso dizer seja o magistrado obrigado a crer na sua nova versão.81 O livre convencimento do juiz deve ser preservado e fundado no exame global das provas colhidas durante a instrução. Portanto, a retratação pode dar-se ainda na fase extrajudicial, como pode ocorrer somente em juízo. Excepcionalmente, pode ocorrer, ainda, em grau de recurso, a contar com o deferimento do relator. A confissão pode ser retratada integral ou parcialmente, significando que o indiciado ou acusado pode renovar, inteiramente, o seu depoimento anterior ou somente parte dele. Como já visto, não é adequado dar o mesmo valor às confissões extrajudicial e judicial. A primeira é somente um indício de culpa, necessitando ser confirmada em juízo por outras provas, enquanto a segunda é meio de prova, também sendo confirmada pelas demais provas, embora seja considerada prova direta.
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