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2017 - 03 - 03 Revista de Processo 2015 REPRO VOL. 246 (AGOSTO 2015) TÉCNICAS ADEQUADAS À LITIGIOSIDADE COLETIVA E REPETITIVA Técnicas Adequadas à Litigiosidade Coletiva e Repetitiva 1. Suspensão ope judicis das ações individuais: comentário ao acórdão do REsp 1.353.801/RS Ope Judicis suspension of individual lawsuits: comments to the Special Appeal 1.353.801/RS ANA CRISTINA DE MELO SILVEIRA Especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Mestranda em Proteção dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Itaúna. Advogada. acmelo.melo@gmail.com LUIZ MANOEL GOMES JUNIOR Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP. Professor nos Programas de Mestrado em Direito da Universidade de Itaúna (UIT-MG), da Universidade Paranaense (Unipar-PR), dos cursos de Pósgraduação da PUC/SP (Cogeae) e da Escola Fundação Superior do Ministério Público do Mato Grosso (FESMP-MT). Advogado. luizm@luizmconsultoria.com.br Sumário: Introdução 1. Síntese da decisão comentada: delimitação do tema 2. Principais fundamentos do acórdão 3. Considerações acerca do procedimento das ações para tutela de direitos ou interesses individuais homogêneos 4. Suspensão da ação individual como procedimento facultado ao demandante individual 5. Argumentos pela possibilidade de imposição da suspensão das ações individuais 6. Insustentabilidade do entendimento do STJ diante do atual regramento da relação entre ações individuais e coletivas Considerações finais Referências bibliográficas Área do Direito: Processual Resumo: O presente trabalho objetiva trazer algumas reflexões sobre a decisão prolatada no REsp 1.353.801/RS. Procura-se mostrar que a decisão violou o direito fundamental ao acesso à Justiça, ao devido processo legal legislativo e judicial. Apesar de se reconhecer a necessidade de se buscar a redução da quantidade de processos que acabam por impactar negativamente o próprio funcionamento do Poder Judiciário, é preciso buscar soluções que respeitem os direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988. Abstract: This paper aims to bring some thoughts on the decision held in Special Appeal n. 1.353.801/RS. It tries to show that the decision violated the fundamental right of access to justice, the due process of law in legislative and judiciary branch. Despite recognizing the need to reduce the number of claims that negatively impact the judiciary, it is necessary to find solutions that respect the fundamental rights provided for in the 1988 Constitution. Palavra Chave: Ações coletivas - Acesso à Justiça - Poder Judiciário - Direito fundamentais. Keywords: Class actions - Access to the justice - Judiciary Power - Fundamental Rights. Recebido em: 20.04.2015 Aprovado em: 28.07.2015 Introdução As relações entre ações individuais e coletivas têm sido debatidas frequentemente na doutrina e na jurisprudência. Recentemente, o STJ reiterou o entendimento pela possibilidade de suspensão das ações individuais concomitantes a ações coletivas semelhantes. A Lei de Recursos Repetitivos (Lei 11.672/2008), foi um dos fundamentos adotados pelo tribunal na decisão. É preciso analisar a coerência de tal entendimento diante do atual sistema processual coletivo. Para tanto, o presente trabalho traz, inicialmente, breve síntese do acordão comentado e seus principais fundamentos. Em seguida, são apresentadas algumas considerações acerca do procedimento para a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos por meio das ações individuais e coletivas. Sucessivamente, são apontados argumentos doutrinários sobre a possibilidade de suspensão ex officio das ações individuais. Por fim, são trazidos argumentos visam demonstrar a insustentabilidade do entendimento adotado pelo STJ na decisão analisada. 1. Síntese da decisão comentada: delimitação do tema A decisão em análise foi prolatada pela 1.ª Seção do STJ, pelo procedimento instituído pela Lei de Recursos Repetitivos, Lei 11.672/2008, nos autos do REsp 1.353.801/RS, cujo julgamento foi realizado em 14.08.2013, sob a relatoria do Min. Mauro Campbell Marques. Trata-se de recurso interposto em face de decisão do TJRS que, em sede de agravo de instrumento, manteve decisão que determinou a suspensão da ação individual ajuizada pela recorrente até o julgamento de ação civil pública intentada pelo Ministério Público que também objetivava a implementação do piso salarial profissional do magistério público de educação física. A Seção decidiu, por unanimidade, que, ajuizada ação coletiva atinente à macro lide geradora de processos multitudinários, devem ser suspensas as ações individuais até o julgamento daquela ação. A tese delineou e reiterou 1 o entendimento de que a suspensão das ações individuais tem como objetivo a homogeneização das decisões judiciais semelhantes, buscando garantir a realização da igualdade, da segurança jurídica e o tratamento isonômico de uma mesma classe ou grupo de indivíduos. O presente comentário analisará a inviabilidade legal da suspensão das ações individuais no atual regramento da tutela coletiva, procurando demonstrar as consequências nos direitos processuais e fundamentais dos jurisdicionados com a adoção da tese adotada pelo STJ. 2. Principais fundamentos do acórdão O acórdão em análise sustenta o entendimento de que as ações individuais devem ser suspensas, independentemente da opção do jurisdicionado individual, devido à necessidade de viabilizar a própria prestação jurisdicional. Inicialmente, a 1.ª Seção constata que as ações individuais formam uma “macro lide multitudinária”, cujo andamento individual, repetindo o julgamento da mesma questão em milhares de ações individuais, leva ao verdadeiro estrangulamento dos órgãos jurisdicionais, em prejuízo da totalidade dos jurisdicionados, entre os quais os próprios litigantes do caso. Argumenta que a Lei de Recursos Repetitivos foi um passo firme e decidido no sentido de enxugar a multidão de processos em poucos autos, pelos quais se julga a mesma lide em todos contidos. Assim, a determinação da suspensão das ações individuais e do agrupamento da macro lide, cumpre a prestação jurisdicional sem verdadeira inundação dos Órgãos Judiciários pela massa de processos individuais. O acórdão, então, afirma que as normas processuais infraconstitucionais devem ser interpretadas teleologicamente, tendo em vista não só a realização dos direitos dos consumidores, mas também a própria viabilização da atividade judiciária. Nessa esteira, a suspensão do processo individual até o julgamento da ação coletiva mostra-se como meio para viabilizar a própria prestação jurisdicional. O tribunal afirma que a interpretação aplicada preserva a faculdade de o autor individual acionar o Judiciário, não fulminando o processo individual pela litispendência. Esclarece que a suspensão da ação individual poderá se dar desde o início. No caso de insucesso da ação coletiva, o processo individual poderá ser julgado de plano, sendo extinto por sentença liminar de mérito, nos termos do art. 285-A do CPC. Mas se julgada procedente a ação coletiva, a ação individual deverá ser convertida em cumprimento de sentença. Aduz, ainda, que eventuais incidentes referentes às peculiaridades de cada ação individual restarão no aguardo da movimentação do processo individual no futuro. Caso não houverem sido julgados antes, posteriormente, serão julgados no próprio bojo da defesa na execução de sentença coletiva. Por meio dessa reserva de questões incidentais, afirma que não haverá nenhum prejuízo para as partes. Diante dessa interpretação teleológica, a 1.ª Seção do STJ conclui que há, ao mesmo tempo, preservação do acesso ao tribunal pelos autores individuais e, por outro lado, a viabilizaçãodo próprio sistema Judiciário ante as demandas multitudinárias de macro lides. Embora seja plausível o argumento de que é necessário conter as demandas multitudinárias, o que é, inclusive, um dos escopos da tutela coletiva, a solução encontrada pelo tribunal não encontra respaldo legal e viola direitos e garantias fundamentais estabelecidos Constituição da República de 1988. 3. Considerações acerca do procedimento das ações para tutela de direitos ou interesses individuais homogêneos A partir de um grande movimento no esforço de melhorar o acesso à Justiça, reconheceu-se que em algumas hipóteses a concepção tradicional do processo civil não atribuía proteção a interesses de caráter coletivo, desenvolvendo-se institutos processuais adequados para a efetivação de tais direitos e interesses. 2– 3 Era preciso possibilitar a tutela jurisdicional em situações nas quais não se pode identificar um titular individual ou em causas de valor individual menos significantes, mas que reunidas representam vultuosas quantias. O direito processual coletivo desenvolve-se, então, como um instrumento de acesso à Justiça, possibilitando ainda economia processual e judicial. Permite a redução do número de demandas ajuizadas com pretensões similares originadas de fatos comuns. Acaba, assim, evitando decisões contraditórias em prol da isonomia dos jurisdicionados. 4 O direito brasileiro, em resposta às demandas que transcendem a esfera do indivíduo, ordenou um sistema próprio para a tutela dos interesses oriundos dos conflitos de massa, a chamada Tutela Coletiva Diferenciada. Buscou-se o tratamento coletivo de problemas enfrentados por número considerável de pessoas, tornando possível o acesso à Tutela Jurisdicional por indivíduos que estavam ou estão à margem do sistema. 5 O ordenamento pátrio reconheceu e conceituou três espécies de direitos e interesses metaindividuais, os de caráter difuso, os de caráter coletivo estrito senso e aqueles denominados direitos individuais homogêneos, como se depreende do art. 82 do CDC. Tendo em vista o objetivo deste trabalho, focar-se-á nos direitos e interesses individuais homogêneos. O art. 82, III, do CDC cuidou de conceituar tais direitos e interesses como aqueles decorrentes de origem comum. Depreende-se do dispositivo legal que os respectivos titulares são pessoas perfeitamente individualizadas, que podem ser determinadas ou determináveis. A homogeneidade advém da real possibilidade de identidade ou, pelo menos, semelhança entre as causas de pedir de cada direito individual, não vinculadas estritamente à existência das mesmas questões de fato. 6 Trata-se de uma categoria de direitos criada no plano processual com o objetivo de possibilitar a proteção coletiva dos direitos individuais subjetivos clássicos. Assim, mesmo direitos ou interesses divisíveis, podem, se originados de uma mesma questão de fato, merecer tratamento idêntico, de forma que, como leciona José Marcelo Menezes Vigliar, em vez de várias demandas (atomização de conflitos), opta-se por uma única ação, concedendo-se eficácia da coisa julgada material in utilibus (molecularização dos conflitos). 7– 8 Pela particularidade dos direitos individuais homogêneos o legislador adotou regras processuais próprias. Como leciona Cássio Scarpinella Bueno, o art. 94 do CDC prevê que a sentença, no caso, será genérica, limitando-se a identificar o an debeatur, pois o quatum debeatur será objeto de cognição jurisdicional ulterior, na fase de liquidação 9 a que se refere o art. 97 do Estatuto. 10 O legislador também regulamentou regras de convivência, na expressão de Elton Venturini, entre as demandas individuais e coletivas. No art. 103 do CDC estabeleceu a extensão in utilibus da coisa julgada obtida em uma ação coletiva, a qual jamais prejudicará as pretensões individuais. Já o art. 104 do CDC dispôs que a ação coletiva não induzirá litispendência para as ações individuais com pretensões similares à coletiva, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão os autores das ações individuais que não tenham requerido a suspensão de suas demandas no prazo de 30 dias, a contar da ciência nos autos da ação coletiva. 11 O procedimento de suspensão das ações individuais encontra na doutrina duas interpretações antagônicas. A primeira delas entende que o legislador concedeu ao demandante individual a faculdade de optar pela suspensão. Diametralmente opostas, há vozes que vão ao encontro do posicionamento apresentado pelo acórdão em comento. 4. Suspensão da ação individual como procedimento facultado ao demandante individual É importante observar que a tutela coletiva não pode se tornar um óbice ao direito individual subjetivo de ação, previsto no art. 5.º, XXXV, da CF, direito e garantia fundamental. Embora um dos escopos da tutela coletiva seja a economia processual e a isonomia dos jurisdicionados, ela deve se harmonizar com o direito inafastável do acesso à Justiça. Venturini ressalta que a coexistência de ações coletivas que visem à tutela de direitos individuais homogêneos e de ações individuais conexas se justifica pela ideologia segundo a qual a tutela coletiva não pode ser encarada como substitutiva, mas sim adicional à individual. Dessa forma, com o intuito de harmonizar, tanto quanto possível, a convivência entre ações coletivas e individuais, com especial atenção à economia processual e a repulsa às decisões contraditórias, assegura- se aos demandantes individuais o direito potestativo de optar pela suspensão ou prosseguimento da ação individual. 12 Marcelo Abelha Rodrigues acrescenta que ninguém pode usurpar ou impedir que o indivíduo ajuíze sua demanda individual, mesmo quando possível a ação coletiva. O acionamento do Poder Judiciário, na hipótese, não precisa ser justificado, tratando-se de direito seu, e ponto final. Lembra ainda o autor que é extremamente heterogênea a realidade de funcionamento da Justiça nos Estados brasileiros e, até mesmo, dentro das diversas comarcas da unidade da federação. É crível, portanto, que a celeridade seja um mote para a demanda individual. Conclui, portanto, que a suspensão da ação individual em curso e concomitante à coletiva é mera faculdade do indivíduo. 13– 14 Hugo Nigro Mazzilli coaduna com a posição, afirmando que o acesso à Justiça é garantia individual e coletiva que não pode ser obstado aos lesados. Portanto, cabe ao lesado optar pela suspensão do seu processo individual ou decidir prosseguir em sua defesa de forma individual. 15 5. Argumentos pela possibilidade de imposição da suspensão das ações individuais Os argumentos expressos no aresto em comento encontram eco na doutrina. Vigliar defende a suspensão ex officio das demandas individuais na concomitância de ação coletiva com pretensão semelhante. Afirma que tal procedimento atende ao princípio da economia processual. Acrescenta que seria homenagem excessiva ao liberalismo permitir que as ações individuais pudessem ser suspensas apenas pela vontade das partes, sem que o Poder Judiciário pudesse fazê-lo em nome da segurança jurídica e economia processual. 16 Vera Lucia. R. S Jucovsky aprova a aplicação da Lei dos Recursos Repetitivos como fundamento para a suspensão das ações individuais. Afirma que, assim, o Poder Judiciário cumpre seu importante papel, aprimorando a interpretação das regras processuais por meio do manejo de novos mecanismos existentes no ordenamento jurídico para dar eficácia e rapidez às ações coletivas. 17 Há ainda quem defenda um protagonismo por parte do Poder Judiciário a fim de que seja aprimorada a tutela coletiva, uma vez que vários têm sido os entraves para asmudanças advindas através do Legislativo necessárias ao sistema. 18– 19 Trata-se de posição perigosa que afronta não só o princípio da separação dos poderes, mas também o direito fundamental ao devido processo judicial e legislativo. 6. Insustentabilidade do entendimento do STJ diante do atual regramento da relação entre ações individuais e coletivas É preciso reconhecer a necessidade de uniformização das decisões no caso de questões ventiladas em centenas ou milhares de ações com pretensão semelhante, de forma a buscar isonomia, segurança jurídica e, até mesmo, a redução da quantidade de processos que acabam por impactar negativamente o próprio funcionamento do Poder Judiciário. Contudo, a solução para a questão deve respeitar as previsões legais vigentes acerca da tutela coletiva e, principalmente, os direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição da República de 1988. Mazzilli, 20 acertadamente, ao comentar a aplicação da Lei de Recursos Repetitivos para a suspensão das ações individuais, apresenta argumentos importantes que demonstram a insustentabilidade da posição do STJ. Ressalta, em primeiro lugar, que a aplicação da Lei de Recursos Repetitivos para as ações individuais nega o direito fundamental previsto no art. 5.º, XXXV, da CF/1988. O acesso à jurisdição não está garantido pela mera possibilidade de o indivíduo ajuizar sua ação individual, quando se nega, ao mesmo tempo, o direito de vê-la prosseguir. Uma garantia para ser real, afirma, deve ser garantida. 21 Não por outra razão, é possível entender que o acesso à Justiça deve ser compreendido como requisito fundamental de um sistema jurídico moderno e igualitário que, verdadeiramente, pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. O “acesso” não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido, ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. 22 Importante ainda observar que a Lei de Recursos Repetitivos regulamenta apenas e tão somente a suspensão de recursos especiais repetitivos, não fazendo referência ou atribuindo poder aos tribunais para suspender as ações individuais em andamento no País, como lembra Mazzili. Na verdade, a referida lei teve o intuito de apresentar solução para os recursos repetitivos no tribunal, resguardando o acesso à Justiça, na medida em que apenas os recursos ficam suspensos enquanto não é julgado o caso paradigmático. 23 A aplicação da referida Lei aos processos que veiculam pretensões individuais homogêneas acabou por não garantir de forma substancial o direito de acessar o Judiciário. Esse direito fundamental restou violentamente ferido, vez que a suspensão, tal como entendida pelo STJ, impede toda e qualquer ação individual de prosseguir até o julgamento da ação coletiva. Nesse diapasão, Thais Matallo Cordeiro, afirma 24 que o STJ não se limitou a elaborar uma interpretação atualizada aos dispositivos, mas perfilou entendimento totalmente discrepante daquilo que se encontra previsto na legislação processual coletiva: “O tribunal impôs aos jurisdicionados uma situação completamente diferente daquilo que a própria legislação confere. Em suas palavras: Deve-se, ressaltar, contudo, que a suspensão das ações individuais diante da ação coletiva tratando sobre a mesma tese jurídica seria absolutamente positiva, seja para proferir decisões de forma única, seja para diminuir a movimentação do Poder Judiciário, evitando o julgamento de inúmeros casos idênticos. O problema é que não temos tal previsão na nossa legislação brasileira e o STJ, adotando tal entendimento, em arrepio a normas vigentes, está agindo de forma absolutamente discricionária”. 25 De fato, no sistema jurídico brasileiro, como leciona Humberto Ávila, o Poder Judiciário deve ter como ponto de partida as disposições normativas estabelecidas pelo Poder Legislativo. Mesmo que não se pretenda que os textos normativos legais encapsulem normas, mas apenas estabeleçam núcleos de significação mais ou menos determinados, que necessitam ser argumentativamente contextualizados do ponto de vista fático e normativo para adquirirem pleno sentido, o Poder Judiciário deve usá-los como pontos de referência para a aplicação do direito. 26 A questão toma contorno indissociável à própria essência do Estado Democrático de Direito. Ao legislador cabe traduzir em leis a vontade daqueles que representa. De outra forma, corre-se o sério risco de romper a lógica das instituições concebidas pelo próprio Estado para o exercício do poder que lhe é inerente, lesando-se gravemente a democracia e a segurança jurídica. 27 Não se pode negar a normatividade da Constituição, afastando-se, de forma peremptória e desproporcional o direito fundamental ao acesso à Justiça. O processo precisa ser analisado, além da perspectiva meramente instrumentalista. Os operadores do direito devem ainda reconhecê-lo sob uma perspectiva constitucional e, em consequência disso, entender a inarredável configuração do próprio processo como um direito fundamental. 28 Nem sempre uma Justiça rápida é uma boa Justiça, portanto, não pode ser transformada em um fim em si mesma, como adverte Boaventura de Souza Santos. Para este, a Justiça tende a ser tendencialmente rápida para aqueles que sabem que, previsivelmente, a interpretação do direito favorecerá seus interesses. Por essa razão, reflete que uma intepretação inovadora e socialmente responsável pode exigir um tempo adicional de estudo e reflexão. 29 De fato, é preciso repensar, aprofundar e debater a possibilidade de suspensão das ações individuais até a decisão da ação coletiva, assim como perquirir alternativas que possam trazer celeridade, isonomia, segurança jurídica de forma compatibilizada com o direito e garantia fundamental de acesso à Justiça. O que não se pode admitir é que decisões apressadas e que busquem resolver o problema de forma política, e não jurídica, se sobreponham à normatividade da Constituição e do Estado Democrático de Direito. Oportuno lembrar que os membros da comissão que elaborou o PL 5.139/2009 entenderam ser possível a suspensão das ações individuais sem que seja violada a norma do art. 5.º, XXXV, da CF/1988. Para tanto, procuraram conciliar a suspensão prevista no caput do art. 37 30 com a possibilidade de prosseguimento concomitante das ações individuais a pedido do autor, se demonstrado que a suspensão causará graves prejuízos ao indivíduo, como previsto no § 3.º 31 do mesmo Dispositivo. Contudo, ainda há celeuma entre os operadores do direito acerca da possibilidade de alteração nesse sentido. O Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG) encaminhou parecer ao Deputado Federal Renato Biscaia, relator do referido projeto de lei, apontando algumas críticas e sugestões para aprimoramento do projeto. Dentre as propostas apresentadas pelo Conselho está a retirada da suspensão obrigatória dos processos individuais. Segundo aquela a instituição, o sistema processual coletivo deve preservar a liberdade de escolha do indivíduo, de forma que, proposta a ação coletiva e provocada a automática suspensão das ações individuais relacionadas ao mesmo tema, os autores individuais possam, livremente, optar pelo prosseguimento da ação individual e, consequentemente, não benefício pelo julgado coletivo. 32 De qualquer forma, o que parece certo é que, pela mera leitura da legislação hoje em vigor, depreende-se a possibilidade da existência concomitante das ações coletivas e individuais, mesmo quando ambas tratarem da mesma tese jurídica, sendo uma faculdade do litiganteindividual requerer a suspensão de seu processo. Inexiste, portanto, no ordenamento jurídico brasileiro previsão de suspensão imposta à ação individual. Também não parece possível a interpretação delineada pelo STJ, pois, de forma peremptória, obsta o prosseguimento das ações individuais, sem sequer considerar particularidades da casuística processual. Se há dúvidas sobre a possibilidade de a própria legislação determinar a suspensão das ações individuais, mais difícil ainda é conceber que tal procedimento advenha de uma interpretação judicial. De outro lado, não pode ser ignorado que com a aprovação do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), haverá com a sua entrada em vigor, expressa autorização legal para este tipo de decisão: “Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo. (...). § 5.º Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional. “Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça. Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036, proferirá decisão de afetação, na qual: (...). II – determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional (...)”. Considerações finais Era necessário mesmo repensar o atual sistema processual, perquirindo soluções para as demandas envolvendo direitos individuais homogêneos. Imprescindível buscar a redução da quantidade de processos que acabam por impactar negativamente o próprio funcionamento do Poder Judiciário. Por outro lado, não é possível coadunar com interpretações que violem peremptoriamente o direito e garantia fundamental de acesso à justiça, como a decisão proferida pelo STJ no acórdão analisado. Não se pode desconsiderar que atuação do Poder Judiciário deve ter como ponto de partida a própria legislação, sob pena de se tornar ilegítima. O aprimoramento do sistema processual coletivo é um anseio não só da comunidade jurídica, mas também dos próprios jurisdicionados. Contudo, sem avaliações acuradas, discussões e análise à luz dos direitos e garantias fundamentais, corre-se o risco de retrocessos. Com a aprovação do novo Código de Processo Civil poderá haver sensível melhora na busca por um processo mais célere e, em especial, a adoção de decisões iguais para casos idênticos, especialmente visando a uniformização do entendimento nos tribunais superiores. Referências bibliográficas ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: Superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, segurança, massificação e a proposta de um “incidente de resolução de demandas repetitivas”. Revista Magister de Direto Civil e Processual Civil 53/47-78, ano IX, Porto Alegre, mar.-abr. 2013. ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização do direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. BAUMBACH, Rudinei. Sobre a tutela de direitos coletivos no contexto brasileiro: reflexões à luz das reformas projetadas. 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Pesquisas do Editorial O RESP 1.110.549 À LUZ DO DEVIDO PROCESSO LEGAL: O ACESSO À JUSTIÇA INDIVIDUAL FRENTE ÀS AÇÕES COLETIVAS, de Felipe Silva Noya - RePro 197/2011/373 RELAÇÃO ENTRE DEMANDAS INDIVIDUAIS E COLETIVAS: "PROJETO CADERNETAS DE POUPANÇA - TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL" - UMA ANÁLISE DO CASO, de Débora Chaves Martines Fernandes - RePro 201/2011/315 TRATAMENTO COLETIVO ADEQUADO DAS DEMANDAS INDIVIDUAIS REPETITIVAS PELO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU, de Alexandre Gir Gomes - RePro 234/2014/181 FOOTNOTESFOOTNOTES 1 Nesse sentido já havia decidido a 2.ª Seção, por maioria, no REsp. 1.110.549/RS, j. 28.10.2009.2 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 92. 3 Cappelletti e Garth ressaltam que os novos direitos substantivos de pessoas comuns têm sido particularmente difíceis de fazer valer no plano individual. As barreiras enfrentadas pelos indivíduos relativamente fracos com causas relativamente pequenas, contra litigantes organizacionais – especialmente corporações ou governos – têm prejudicado o respeito a esses novos direitos (CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant, 1988, p. 92). 4 MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro. O Código Modelo de Processo Coletivo. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (coord.). Tutela Coletiva: 20 anos da Lei de Ação Civil Publica e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, 15 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006. p. 46. 5 FAVRETO, Rogério; GOMES JUNIOR; Luiz Manoel. O projeto da nova Lei de Ação Civil Pública: principais aspectos. In: SALIBA, A. T.; ALMEIDA, G. A.; GOMES JÚNIOR, L. M. (orgs.). Direitos fundamentais e sua proteção nos planos interno e internacional. Belo Horizonte: Arraes, 2010. p. 220. 6 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: Superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova Summa Divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 485-486. 7 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Interesses individuais homogêneos e seus aspectos polêmicos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 59. 8 O autor informa que as expressões “atomização” e “molecularização” foram cunhadas por Kazuo Watanabe. 9 Importante observar que em fase de liquidação além da apuração do quantum a ser pago pelo réu, inclui-se a demonstração do nexo causal entre os danos individuais e a responsabilização imposta na sentença, dano geral (LUCON, Paulo Henrique dos Santos; SILVA, Érica Barbosa e. Análise crítica da liquidação e execução da tutela coletiva. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (coord.). Tutela Coletiva – 20 anos da Lei de Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa de Direitos Difusos – 15 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006. p. 175. 10 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: direito processual público, direito processual coletivo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. vol. 2, t. III, p. 215. 11 VENTURINI, Elton. Processo civil coletivo: A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil – Perspectivas de um Código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 344-345. 12 VENTURINI, Elton, 2007, p. 347-348. 13 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Relações entre ações individuais e ações coletivas: anotações sobre os efeitos decorrentes da propositura e extinção das ações coletivas para defesa dos direitos individuais homogêneos em relação às pretensões individuais sob a perspectiva dos art. 35 e 38 do Projeto de Lei que altera a ação civil pública. In: GOZZOLI, Maria Clara; CIANCI, Mirna; CALMON, Petronio; QUARTIERI, Rita (coord.). Em defesa de um novo sistema de processos coletivos – Estudos em homenagem à Prof. Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 415. 14 Também entendem se tratar de faculdade do autor individual: GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. Curso de direito processual coletivo. 2. ed. São Paulo: SRS, 2008. p. 314. BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: direito processual público, direito processual coletivo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. vol. 2, t. III, p. 221. LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2005. p. 259. 15 MAZZILLI, Hugo Nigro. A tutela dos interesses difusos em juízo. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 248. 16 VIGLIAR, José Marcelo Menezes, 2008. p. 80. 17 JUCOVSKY, Vera Lucia. R. S. Ação civil pública na atualidade: alguns aspectos polêmicos. In: MILARÉ, Edis (coord.). Ação civil pública após 25 anos. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 826. 18 Rudinei Baumbach continua afirmando que há como fazer muito mais sem mudanças vindas do parlamento. O avanço da tutela transindividual deve ser pelos operadores do direito, maiormente pelos juízes, que devem usar a criatividade para reconstruir interpretativamente, com ambições funcionais, as normas do sistema processual coletivo. Não se justifica a passiva espera por soluções legisladas. (...) Já que o processo coletivo não progredirá por via legislativa, caberá aos juristas, práticos e teóricos, o protagonismo na tarefa de aperfeiçoá-lo, atividade a ser desenvolvida a partir do levantamento das restrições à tutela metaindividual que têm origem antes na jurisprudência do que na lei (BAUMBACH, Rudinei. Sobre a tutela de direitos coletivos no contexto brasileiro: reflexões à luz das reformas projetadas. RePro 226/233-266, São Paulo, dez. 2013. 19 Guilherme Rizzo Amaral aponta que a intervenção judicial determinando a suspensão das ações individuais é uma importante forma para, se não corrigir, atenuar as distorções do sistema processual coletivo no Brasil. In: AMARAL, Guilherme Rizzo. Efetividade, Seguranca, Massificação e a Proposta de um “Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”. Revista Magister de Direto Civil e Processual Civil 53/47-78, mar.-abr. 2013. 20 Registre-se que a posição do autor foi endereçada a já citada decisão prolatada pela 2.ª Seção no REsp 1.110.549. As críticas apontadas pelo autor são aplicáveis ao acórdão ora comentado, vez que são ventilados os mesmos argumentos daquele outro julgado. © edição e distribuição da EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. 21 MAZZILLI, Hugo Nigro, 2011, p. 251. 22 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant, 1988, p. 12-13. 23 MAZZILLI, Hugo Nigro, 2011, p. 251. 24 A afirmativa foi feita em relação a já citada decisão prolatada pela 2.ª Seção no REsp 1.110.549. As críticas apontadas pela autora também são válidas para o presente trabalho, já que ambas as decisões contêm os mesmos argumentos jurídicos. 25 CORDEIRO, Thais Matallo. Suspensão das ações individuais em face de ação coletiva tratando da mesma tese jurídica: uma faculdade ou uma obrigatoriedade? RDDP 129/96-104, São Paulo, dez. 2013. 26 ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização do direito tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 616. 27 REICHELT, Luis Albero. Efetividade do processo, tutela jurisdicional do consumidor e direito ao processo justo. RDC 91/351-364, ano 23, São Paulo, jan.-fev. 2014. 28 ZANETI JÚNIOR, Hermes; GOMES, Camilla de Magalhães. O processo coletivo e o formalismo-valorativo como nova fase metodológica do processo civil. Revista de Direitos Difusos 53/13-32, ano XI, mar. 2011. São Paulo. 29 SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 27. 30 “Art. 37. O ajuizamento de ações coletivas não induz litispendência para as ações individuais que tenham objeto correspondente, mas haverá a suspensão destas, até o julgamento da demanda coletiva em primeiro grau de jurisdição.” 31 § 3.º A ação individual somente poderá ter prosseguimento, a pedido do autor, se demonstrada a existência de graves prejuízos decorrentes da suspensão, caso em que não se beneficiará do resultado da demanda coletiva. 32 [www2.mp.pr.gov.br/direitoshumanos/docs/cpcc/par01.doc]. Acesso em: 28.05.2014.
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