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1 A DIVERSIDADE CULTURAL COMO PRÁTICA NA EDUCAÇÃO AULA 3 Prof. Lucas Pydd Nechi 2 CONVERSA INICIAL Cada narrativa sobre o passado é advinda de um ponto de vista. Cada ponto de vista é fundamentado a partir de interpretações e análises objetivas de fontes históricas. Porém, não há apenas uma explicação e uma interpretação de cada fato do passado ou fonte histórica. Nota-se esta multiperspectividade ao se comparar depoimentos de testemunhas que presenciaram a mesma cena – como um crime ou um acidente de trânsito. Pessoas que acompanham de perto o mesmo acontecimento, podem ter versões variadas dos fatos. Isso se deve em função da interpretação da realidade, que possui caráter subjetivo. A ciência da História, a partir disso, busca fornecer os relatos e análises de fonte com o maior grau de confiabilidade. Esse pensamento, sustentado por fontes, faz parte da metódica da História. Nesta aula será realizada a apresentação do conceito de consciência histórica, que pode ser compreendido e usado na sala de aula como ferramenta para o estudo da diversidade cultural. CONTEXTUALIZANDO Uma fazenda, pertencente à família Moraes, deu origem à formação de um núcleo populacional que se tornou uma pequena cidade do interior do Paraná. Logo na entrada da fazenda, acima do portão, existia uma placa de madeira com a seguinte mensagem: “Se algum homem da tribo Guarani aparecer perante esta fazenda, mesmo com o cadáver de um homem em sua mão, encontrará aqui segurança e proteção”. Esta mensagem foi fixada pelo dono da fazenda alguns anos após receber a posse desta terra do governo do estado do Paraná e mudar-se para a região com sua família, com o intuito de abrir clareiras e iniciar a lavoura de café. Em uma noite quente, Bento, o herdeiro mais novo dos Moraes, de 7 anos, resolveu brincar do lado de fora da casa e, ao perseguir um vagalume, entrou no meio da mata e se perdeu. Os pais, donos da fazenda, ao sentirem falta da presença da criança ficaram desesperados e iniciaram a busca pelo menino. 3 Os índios Guarani, que habitavam a região, não tinham um relacionamento pacífico com os fazendeiros, uma vez que foram expulsos de suas terras para que elas fossem cedidas aos novos proprietários. Independente do debate das terras, um índio, que até então era visto como “selvagem” pela família Moraes, encontrou a criança perdida no meio da mata e a levou até seus pais em segurança. Diante deste acontecimento e como forma de agradecimento, o patriarca da família Moraes determinou que sua fazenda serviria como lugar de refúgio para qualquer membro daquela tribo que se encontrasse em perigo.1 Após ler esta história, imagine que você é atualmente um membro da família Moraes e vive na fazenda. Um dia, um membro da tribo Guarani pede ajuda e diz que está fugindo da polícia sendo acusado de um crime. O que você faria? A partir desta pequena problematização podemos gerar diversas respostas, sendo que cada uma delas nos demostrará o modo como compreendemos, interpretamos e utilizamos o passado em nossas vidas. Em outras palavras, a maneira pela qual respondemos desafios do presente utilizando o passado aponta a forma pela qual mobilizamos nossa consciência histórica. TEMA 1: DEFINIÇÃO Apesar de o conceito de Consciência Histórica ser trabalhado por autores a partir de diferentes perspectivas, nesta aula nos deteremos às ideias apresentadas por Jörn Rüsen, filósofo e historiador alemão estudado como referência principal na Educação Histórica no Brasil. O propósito da História, como disciplina e ciência da relação da humanidade com fatos do passado, visa ao desenvolvimento da consciência histórica das pessoas, de forma que possam agir no presente intencionalmente, com base na experiência cultural da humanidade. Logo, o desenvolvimento do pensamento histórico se afasta da ideia de senso comum e do ensino de história 1 Esta história foi inspirada no conto de Samuel Johnson citado por Rüsen (2010) 4 tradicional que busca fazer com que os alunos somente memorizem fatos e datas históricas. Aprender história está ligado a saber se orientar no tempo presente. Como afirmou Rüsen (2001), a consciência histórica é “um pré-requisito para a orientação em uma situação presente que demanda ação”. A orientação sempre se renova e atualiza, pois cabe aos sujeitos interpretar e agir no mundo todo o tempo, de forma dialógica: compreendemos e mudamos o mundo, que também nos influencia e molda pela cultura. No Brasil, as pesquisadoras Schmidt e Garcia reforçam o papel da consciência histórica como mediadora entre a vida prática do cotidiano e as memórias, tanto dos sujeitos como da cultura, agindo tanto na orientação como no desenvolvimento da identidade histórica. (SCHMIDT; GARCIA, 2005. p. 301). A identidade histórica nada mais é do que saber quem somos, tanto como indivíduos como coletivamente, na passagem do fluxo do tempo (PAIS, 1999). A consciência histórica é usada como guia para orientação temporal das pessoas, pois é por meio dela que os sujeitos interpretam a realidade e se localizam no tempo e no espaço. Rüsen (2001, p. 57) afirma que: [...] A consciência histórica está fundada nessa ambivalência antropológica: o homem só pode viver no mundo, isto é, só consegue relacionar-se com a natureza, com os demais homens e consigo mesmo se não tomar o mundo e a si mesmo como dados puros, mas sim interpretá-los em função das intenções de sua ação e paixão, em que se representa algo que não são. Rüsen (2010, p. 53) define consciência histórica da seguinte forma: A atividade mental de interpretação do passado com vistas a compreender o presente e prospectar o futuro. Assim, ela combina o passado, presente e futuro em uma ideia alinhada de que se trata a mudança temporal. Ela sintetiza as experiências do passado com um critério de sentido que é efetivo na vida prática do presente e guia as ações em relação ao futuro. Na didática da história esta orientação esta orientação ao futuro deve protagonizar um papel importante pois os estudantes devem aprender como ser mestres do futuro de suas vidas como cidadãos adultos nas demandas da cultura histórica de seus países. 5 A partir desta definição, nota-se que aprender história está intimamente relacionado com a capacidade de desenvolver narrativas, contar a sequência de fatos históricos em ordem inteligível, a fim de estabelecer um sentido temporal aos acontecimentos. Assim, “a aprendizagem da história é um processo de digestão de experiências do tempo em formas de competências narrativas”. (RÜSEN, 2010, p. 74) TEMA 2: A NARRATIVA HISTÓRICA E A SUA RELAÇÃO COM A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA No texto de 2010, Rüsen desenvolve a noção de que a consciência histórica é o lugar em que o passado fala, e para que isso ocorra ele deve ser questionado. No cotidiano, nos deparamos com a presença constante dos elementos do passado inseridos na cultura histórica do presente. Assim, os sujeitos operam diariamente realizando pequenas e grandes decisões, solucionando as carências de orientação temporal a partir de conceitos elaborados sobre o passado por meio de narrativas históricas. A narrativa histórica expressa pelas pessoas é a materialização de suas consciências históricas, tornadas inteligíveis pelas palavras e conceitos. É por meio de narrativas que se fundamenta o pensamento histórico e o conhecimento histórico científico. O autor afirma que: A narrativa constitui a consciência histórica ao representar as mudanças temporais do passado rememoradas no presente como processos contínuos nos quais a experiência do tempo presente pode ser inserida interpretativamente e extrapoladas em uma perspectiva defuturo. As mudanças no presente, experimentadas como carentes de interpretação, são de imediato interpretadas em articulação com os processos temporais rememorados do passado; a narrativa histórica torna presente o passado, de forma que o presente aparece como sua continuação no futuro. (RÜSEN, 2001, p. 64) 6 Porém, é importante ressaltar que nem toda narrativa é histórica, pois existe a relação determinante e obrigatória com os fatos e a plausibilidade histórica, em oposição às narrativas literárias e ficcionais. A narrativa histórica é fundamentada pela experiência – seja pessoal ou a partir da experiência de outrem – e pela lembrança. A rememoração de fatos passados no processo de lembrança não abrange o todo da consciência histórica, que opera complementarmente com as situações de presente e de futuro. A consciência histórica age a partir do presente, usando elementos do passado. Rüsen (2001, p. 62) compara o passado com uma floresta, em que: O passado é, então, como uma floresta para dentro da qual os homens, pela narrativa histórica, lançam seu clamor, a fim de compreenderem, mediante o que dela ecoa, o que lhes é presente sob a forma de experiências do tempo (mais precisamente: o que mexe com eles) e poderem esperar e projetar um futuro com sentido. A condição para que uma narrativa possa ser considerada histórica é que o passado seja interpretado com relação à experiência e que a narrativa passe a ter uma função. Ou seja, é uma interpretação do passado e serve para torná-la presente. O passado, por meio da narrativa, dá sentido ao presente, o que quer dizer que motiva, interpreta, orienta o presente, de forma que a relação do homem com o mundo possa ser pensada na perspectiva do tempo. (RÜSEN, 2001, p. 155 -156). O mesmo autor descreve três características da narrativa histórica que possibilitam que ela sirva como guia na orientação da vida prática das pessoas (RÜSEN, 2010). A primeira delas é justamente a mobilização das experiências do tempo a partir das recordações armazenadas na memória. Tal mobilização permite que os sujeitos entendam o presente e vislumbrem possibilidades de futuro possíveis. A segunda característica da narrativa em relação à orientação temporal, é a continuidade que ela estabelece entre passado, presente e futuro. Dessa forma, é possível atribuir sentido para a vida pessoal e para a cultura. A terceira característica se relaciona com a permanência e com a mudança, características temporais adotadas pelo autor como maneira de conceber a 7 passagem do tempo histórico. A permanência, isso é, os elementos que não se modificam em determinado recorte temporal, torna capaz o estabelecimento de estruturas identitárias (como o conceito de nação, de cultura e em última instância o conceito de si mesmo). A mudança ocorre em todo o tempo, mas as permanências asseguram que possamos compreender a cultura histórica e sua dinâmica. Não devemos nos limitar à concepção de narrativa histórica como produto exclusivo da produção metodológica e historiográfica de historiadores, com base em fontes e investigações arqueológicas. A narrativa histórica é a voz, portanto condicionada à linguagem, que permite que todos os seres humanos deem sentido para suas vidas e para a humanidade como um todo. TEMA 3: OS TIPOS DE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA A consciência histórica é considerada por Rüsen (2010) como passível de divisão em quatro formas distintas, não estanques, numa tipologia que auxilia a compreender o pensamento histórico. As categorias seriam: Tradicional, Exemplar, Crítica e Genética. Como a consciência histórica se expressa na narrativa, pode-se também categorizar textos expressos ou narrados oralmente nas mesmas categorias. Isso não significa, contudo, que o sujeito se encontre numa fase específica da consciência histórica, pois o pensamento histórico é complexo e pode conter elementos de várias categorias em diferentes frases. A consciência histórica do tipo “Tradicional” está voltada à permanência de elementos do passado, que são considerados de valia por terem se mantido no transcorrer do tempo. Os sujeitos revelam saudosismo e admiração pelas formas de vida do passado, e não fazem uso da crítica às novas circunstâncias do presente. Rüsen (2010) afirma que: As orientações tradicionais guiam externamente a vida humana por meio de uma afirmação das obrigações que requerem consentimento. Essas orientações tradicionais definem a “unidade dos grupos sociais ou das sociedades em seu conjunto, entretanto mantêm o sentimento de uma origem comum. 8 Retomando a problematização do início desta aula, a partir da história entre os brancos e os índios Guarani, é possível descrever quatro respostas pautadas pelos diferentes tipos de consciência histórica. Um membro da família Moraes que refletisse de acordo com a lógica da consciência tradicional, diante desta situação, ao se deparar com o pedido de socorro de um índio Guarani em fuga não hesitaria em abrigá-lo e ajudá-lo, independentemente do crime que tenha cometido. Assim, o passado e a tradição se sobrepõem ao contexto do presente, como um imperativo moral. A dívida dos Moraes com os guaranis é eterna e deve ser respeitada. A segunda categoria de consciência histórica é a “Exemplar”. Um pouco mais elaborada que o tipo “Tradicional”, porém também muito difundida no senso comum, esta forma de pensar parte do pressuposto de que existem regras morais universais na História. Assim, cada acontecimento isolado do passado pode ser a base para o estabelecimento de uma generalização, uma lição de moral aprendida, que pode ser utilizada no futuro em situações semelhantes. Os exemplos do passado podem ser inspiradores ou servirem de lição negativa, nas quais os comportamentos dos antepassados devem ser evitados. No exemplo dos Moraes e dos guaranis, a acolhida do índio em fuga ocorreria, mas desta vez o membro da família dos brancos poderia justificar sua atitude de outra maneira. Desta vez, não só porque o passado deve ser mantido, mas porque o tratado de reciprocidade dentre os povos citados representa uma regra moral indissolúvel e tomada como exemplo de conduta. O terceiro tipo de consciência histórica é a consciência histórica “Crítica”. Ela se constitui pela inversão da tradição. Nega-se e recusa-se os comportamentos justificados pela continuidade do passado, quebrando regras antigas e buscando novas formas de comportamentos. Na problematização colocada no início do texto, o sujeito operando com uma consciência histórica crítica negaria ajuda ao índio. A princípio, este sujeito iria explicar a história da criança perdida e questionaria a veracidade deste acontecimento, desobrigando-o a cumprir o acordo. Dessa forma são apresentados diversos 9 argumentos históricos-críticos para o não cumprimento da promessa. O passado, distante no tempo, seria questionado e relativizado como base para decisões no presente. A quarta e última categoria dos tipos de consciência histórica é a “Genética”, no sentido de criação ontológica. Haveria no presente o reajuste aos novos contextos e mudanças na História. O passado orienta não por ser imutável e reificado (consciência histórica tradicional), por oferecer regras universais (consciência histórica exemplar) ou pela simples negação (consciência histórica crítica), mas a cada nova escolha e mudança os elementos são reconsiderados e analisados. A consciência histórica genética pode levar a decisões que mantenham tradições ou as subvertam totalmente. Porém, a sua operação indica decisões conscientes a partir de novos critérios e contextualização. Rüsen (2010) afirma que: [...] as narrativas genéticas lembram as transformações que levam dos modos de vida alheios para modos mais apropriados. Elas apresentam a continuidade de desenvolvimentona qual a alteração dos modos de vida é necessária para a sua permanência. E formam a identidade pela mediação entre permanência e mudança em direção a um processo de autodefinição (em alemão isto é chamado de Bildung ‘formação’). O descendente da família Moraes, a partir de uma consciência genética, pode chegar à conclusão de que seja errado esconder a situação da polícia e aconselhar o índio a entregar-se. Porém se compromete a ajudá-lo, por exemplo, contratando um advogado para defendê-lo. A promessa de sempre abrigar um índio Guarani que se encontre em perigo é narrada, contudo é indicado que a ação esteja de acordo com as mudanças ocorridas com o passar do tempo, ou seja a promessa é interpretada à luz do presente. TEMA 4: PESQUISAS ACERCA DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA Como pudemos perceber, a partir da definição do que é consciência histórica e através da história entre a família Moraes os indígenas, este conceito 10 faz parte do nosso cotiado e é importante para nos situarmos no mundo e nos relacionarmos com a natureza e consigo mesmo. Diante da importância do uso e o desenvolvimento da consciência histórica, foram desenvolvidas diversas pesquisas no campo da Educação Histórica que buscam compreender a consciência histórica no âmbito escolar. Pais (1999) estabelece uma ponte entre a maneira pela qual os jovens entendem e interpretam seu tempo e o passado, com a forma na qual a sociedade em questão se organiza política e socialmente. Assim, compreender a consciência histórica dos jovens estabeleceria um quadro de análise consistente das sociedades. Este autor também afirma que os sentidos do tempo são estabelecidos pelos próprios sujeitos, não sendo possível a afirmação de uma realidade de sentido extrínseca às pessoas de cada época. Para Pais (1999, p. 111), a consciência histórica: [...] não se refere apenas a marcadores culturais que aquarelam a História, tornando-a tendencialmente uniforme para a dada geração. A consciência histórica transporta também um sentido de continuidade por parte de gerações sucessivas de uma dada unidade cultural, com identidade própria, e comporta ainda memórias partilhadas sobre determinados acontecimentos do passado que dão força simbólica a essa unidade cultural – memórias e reminiscências que se projetam no futuro, através da forma como cada geração olha o destino coletivo da unidade cultural que caracteriza sua comunidade. É este sentido de continuidade, é esta memória partilhada de destinos coletivos que caracterizam também a consciência histórica. Nesse sentido, a consciência histórica pode ser analisada tanto como constituinte da identidade pessoal como marcador de características coletivas de determinado tempo histórico. Estudá-la, então, torna-se relevante em diversas maneiras. Gevaerd (2009) apresenta em seu doutoramento a pesquisa “A narrativa histórica como uma maneira de ensinar e aprender história: o caso da história do Paraná”, usando a tipologia de Rüsen para classificar os tipos de narrativa e aprendizagem histórica que predominam em estudantes do ensino fundamental. Como conclusão, a pesquisadora aponta a consciência histórica do tipo tradicional como predominante não apenas nas narrativas dos 11 estudantes, como também no material didático e nas explicações orais da professora em questão. Já Germinari (2010) estudou a consciência histórica de jovens em Curitiba, em tese intitulada: “A história da cidade, consciência histórica e identidades de jovens escolarizados”. Este pesquisador intencionou o estudo da consciência histórica especificamente em relação à cidade de Curitiba, ou seja, de que forma os jovens, moradores da cidade, a compreendem historicamente? Os resultados instigantes apontaram contradições latentes entre a vida prática experienciada pelos sujeitos e as narrativas que produzem, fortemente influenciadas pelo discurso dos órgãos oficiais. Assim, a formação histórica realizada por propagandas e pelo ensino tradicional pode influenciar a consciência histórica até mesmo mais fortemente do que a própria experiência de realidade do cotidiano. Estes dois exemplos de pesquisa nos dão pistas de que a diversidade cultural, em sua historicidade, não pode limitar-se a um trabalho sectário em relação ao presente. As divisões entre pessoas, os preconceitos, os conflitos étnico-raciais, de gênero e de orientação e identidade sexual, possuem raízes históricas e desdobramentos temporais, entrelaçados com tradições políticas, filosóficas e religiosas. Dessa forma, o desenvolvimento da consciência histórica dos estudantes, visando ao tipo genético, pode contribuir com a empatia e compreensão da conjuntura atual. Um exemplo marcante é a maneira pela qual o passado pode trazer um peso negativo ao presente, em forma de traumas ou tabus difíceis de serem abordados no presente. A história como um fardo é o tema de investigação de Borries (2011), ao estudar como jovens lidam com assuntos delicados. No caso da Alemanha, por exemplo, é inevitável o constrangimento dos estudantes alemães ao abordarem os horrores da Segunda Guerra Mundial e do nazismo. Os sentimentos trazidos à tona do passado incluem também a relação de identidade histórica e pessoal dos alunos, os quais muitos possuem ancestrais que protagonizaram tais fatos históricos. 12 Borries salienta que o passado obscuro não deve ser esquecido, mas, pelo contrário, trabalho e superado por entre aqueles que se constrangem e se envergonham. Este autor trabalhou na construção de livros didáticos comuns entre países que apresentam narrativas oficiais conflitivas, como Alemanha e Polônia, visando à superação do etnocentrismo nestas nações no que se refere a conflitos do passado. Sobre estes projetos, Borries (2001, p. 183) avalia que A reconciliação via história e o enfrentamento com a história ‘como um fardo’ acontece em longo prazo, como projeto e programa (para indivíduos bem como para a sociedade). É necessária reflexão e (auto) reflexão, não somente mais conhecimento histórico, mas, mais auto distanciamento, empatia e – tanto quanto possível – viver o luto como um bem. Isto pode ser encorajado na escola, mas principalmente através de questionamento individual, atividades e sensibilização pública. No caso do Brasil, um fato do passado que pode ser pensado como uma história traumática, que traz consequências negativas para muitas pessoas no presente é o processo de escravização. Além de diversos povos africanos serem trazidos à força e serem culturalmente desconsiderados, após a proibição legal da escravidão foram deixados à margem da sociedade, sem reparações públicas socioeconômicas, o que faz com que a desigualdade social e o preconceito continuem se perpetuando até hoje. TEMA 5: A RELAÇÃO ENTRE OS TIPOS DE CONSCIÊNCIAS HISTÓRICA Os sujeitos não possuem apenas um tipo de consciência histórica e nela produzem narrativas. É possível, por exemplo, que a mesma pessoa apresente narrativas tradicionais e críticas sobre assuntos distintos. O processo do pensamento histórico é dinâmico e em grande parte subjetivo. A relação com o passado que os sujeitos estabelecem dependem de inúmeras variáveis na aprendizagem histórica, que ocorrem não somente em ambientes formais como a escola e a universidade. 13 Nos textos mais recentes de Rüsen (como o de 2015), a consciência histórica crítica é posta como catalizadora de mudanças nas formas de atribuição de sentido. A crítica possibilita a quebra de paradigmas e o salto qualitativo. Porém, em si, a crítica só estabelece melhoria na aprendizagem histórica quando sustentada por proposições novas, pautadas em critérios humanistas e objetivos. A interligação dos quatros tipos de geração de sentido, ou seja, das formas de manifestação das consciências históricas, podem ser visualizadasna imagem abaixo. Figura 1: Esquema dos níveis de competência no aprendizado histórico Fonte: Rüsen, 2015. Nessa imagem podemos ver que a atribuição de sentido não ocorre de forma igual e linear, assim como não sofre uma progressão obrigatória. O tipo de consciência histórica irá depender das relações que o sujeito estabelece com determinada experiência passada e é articulada por meio da perspectiva da crítica. Nesse aspecto, é importante ressaltar que a consciência histórica não depende da memória e da experiência de vida do sujeito. A aprendizagem histórica possibilita que as pessoas transcendam a temporalidade de sua experiência de vida e, por meio da empatia, consigam se colocar no lugar daqueles que protagonizaram os feitos do passado. É, portanto, indispensável o trabalho racional e intelectual de ensino de História para que se promova acréscimos qualitativos dos tipos de consciência histórica visando à categoria genética, que permite ao indivíduo emancipar-se das imposições ideológicas da tradição. 14 Rüsen (2001, p. 63-64) reforça este aspecto diferenciador entre memória e consciência histórica a partir da valorização da racionalidade: A lembrança flui natural e permanentemente no quadro de orientação da vida prática atual e preenche-o com interpretações do tempo; ela é um componente essencial da orientação existencial do homem. A consciência histórica não é idêntica, contudo, à lembrança. Só se pode falar de consciência histórica quando, para interpretar experiências atuais do tempo, é necessário mobilizar a lembrança de determinada maneira: ela é transposta para o processo de tornar presente o passado mediante o movimento da narrativa. A mera subsistência do passado na memória ainda não constitutivo da consciência histórica. Para a constituição da consciência requer-se uma correlação expressa do presente com o passado – ou seja, uma atividade intelectual que pode ser identificada e descrita como narrativa (histórica). Assim, apontamos que os sujeitos não apresentam tipos exclusivos de consciência histórica, mas sim que realizam relações diversas com o passado, dependendo de suas lembranças, experiências passadas e principalmente da maneira pela qual sua aprendizagem histórica foi processada. Os aspectos do passado são assim interpretados por meio da subjetividade, desenvolvendo formas diferentes de consciência histórica dependendo da problemática do seu presente. SÍNTESE Como foi relatado nesta aula, para Rüsen (2001, 2010), assim como para Pais (1999), a consciência histórica é indispensável para que os sujeitos vivam, possam se localizar e orientar através do tempo. A disciplina de História deve contribuir para a formação desta consciência e não poderá fazer isso apenas trabalhando com fatos para serem decorados. A história serve para a formação dos sujeitos, o que auxiliaria em muitos momentos de suas vidas. Também percebemos nesta aula que, dependendo da indagação, suas narrativas demonstraram uma consciência histórica tradicional, podendo em outros momentos considerá-las como genética. As recentes pesquisas realizadas no Brasil no campo da Educação Histórica vêm constituindo 15 inovações no campo da aprendizagem histórica, que na prática ainda é amplamente dominada por práticas tradicionais e pouco efetivas de ensino. A forma pela qual nos relacionamos com o passado fundamenta sobremaneira as relações no presente e contribuem para que se construa uma educação fundamentada no princípio da dignidade humana na educação para a práxis da diversidade cultural na educação. REFERÊNCIAS BORRIES, B. V. Coping with Burdening History. In: BJERG, Helle; LENZ, Claudia; THORSTENSEN, Erik (eds.). Historicizing the uses of the past: scandinavian perspectives on history culture, historical consciousness and didatics of history related to world war II. Bielefeld:Transcript, 2011 GERMINARI, G. D. A história da cidade, consciência histórica e identidade de jovens escolarizados. 187f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. GEVAERD, R. T. F. A narrativa histórica como uma maneira de ensinar e aprender história: o caso da história do Paraná. 300f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2009. PAIS, J. Consciência Histórica e Identidade: os jovens portugueses num contexto europeu. Oeiras: Celta, 1999. RÜSEN, J. Razão Histórica: teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. trad. Estevão de Rezende Martins. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2001. ______. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral. In: SCHMIDT, M.A.; BARCA, I.; MARTINS, E.R. Jörn Rüsen e o Ensino de História. Curitiba: Editora UFPR, 2010, p.51-78. ______. Teoria da História: Uma Teoria da História como Ciência. Tradução: Estevão C. de Rezende Martins. Curitiba: Editora UFPR, 2015. SCHMIDT. M; GARCIA, T. Perspectivas da consciência histórica e a da aprendizagem em narrativas de jovens brasileiros. Tempos Históricos, v. 12, n. 1, p. 81-96, jan./jun. 1998. 16 SCHMIDT. M; GARCIA, T. A formação da consciência histórica de alunos e professores e o cotidiano em aulas de história. Cad. Cedes, Campinas, v. 25, n. 67, p. 297-308. set./dez. 2005. Texto obrigatório RÜSEN, J. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral. In: SCHMIDT, M.A.; BARCA, I.; MARTINS, E.R. Jörn Rüsen e o Ensino de História. Curitiba: Editora UFPR, 2010, p. 51-78. Abordagem teórica Entrevista – Jörn Rüsen Algumas ideias sobre a interseção da meta-história e da didática da história Marília Gago* Entre vista realizada por e-mail, dias 1, 2 e 28 de março de 2016. Tradução: Tradioma, Porto, Portugal. Disponível em: <https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/245/163>. Abordagem Prática RÜSEN, J. Formando a Consciência histórica – para uma didática humanista da História. In.: SCHMIDT, M.A. et al (orgs) Humanismo e Didática da História. Curitiba: WA Editores, 2015. p.19-42; Saiba Mais: RÜSEN, J. Temporalizando a Humanidade: O Humanismo no Pensamento Histórico. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qLCQxm3B7L4>.
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