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Capítulo 4 A abordagem Piagetiana “Papai, por favor, corte este pinheiro – ele faz o vento. Depois que você cortar ele, o tempo vai ficar bom e a mamãe me leva para um passeio”. “Mamãe, quem nasceu primeiro, você ou eu?” (Helen Bee, A criança em desenvolvimento.) Ouvir crianças pequenas dizerem coisas como essas do trecho transcrito acima normalmente nos desconcerta, ao mesmo tempo que nos encanta e diverte. Nossa atenção se volta então para o modo peculiar que a criança tem de pensar sobre as coisas e de estabelecer relações entre elas. As peculiaridades do pensamento e da lógica das crianças despertaram o interesse de Jean Piaget, que se preocupou principalmente com a questão de como o ser humano elabora seus conhecimentos sobre a realidade, chegando a construir, no decorrer de sua história, sistemas científicos complexos e com alto nível de abstração. Ele acreditava que muito da resposta a essa indagação poderia ser encontrado no estudo do desenvolvimento do pensamento da criança. Quem foi Piaget? Jean Piaget nasceu em 1896, em Neuchâtel, na Suíça, e faleceu em 1980, aos 84 anos de idade. Desde menino Piaget interessou-se por questões científicas, estudando moluscos, pássaros, conchas marinhas e mecânica. Aos 10 anos, publicou as observações que fez sobre um pardal parcialmente albino e, aos 11 anos, começou a trabalhar como assistente do diretor do Museu de História Natural de sua cidade. Concluiu seus estudos em Ciências Naturais em 1915 e, em 1918, doutorou-se nessa mesma área. Interessado também por filosofia, encontrou na leitura da obra de Bergson, A evolução criadora, elementos que o ajudaram a formular a questão à qual se dedicaria por toda a vida: explicar a forma pela qual o homem atinge o conhecimento lógico-abstrato que o distingue das outras espécies animais. Embora se tratasse de uma questão tipicamente filosófica, a Piaget interessava abordá-la cientificamente. Ao longo de seu trabalho, assumiu, então, o desafio de construir uma teoria do conhecimento baseada na biologia e em que as especulações filosóficas estivessem ancoradas na pesquisa empírica. O elo que Piaget encontrou entre a filosofia e a biologia foi a psicologia do desenvolvimento. A elaboração da teoria explicativa da gênese do conhecimento no homem levou Piaget a formular propostas teóricas e metodológicas inovadoras quanto à natureza dos processos de desenvolvimento da criança e que contrariavam as teses do inatismo- maturacionismo e do comportamentalismo. O fundamento básico de sua concepção do funcionamento intelectual e do desenvolvimento cognitivo é o de que as relações entre o organismo e o meio são relações de troca, pelas quais o organismo adapta-se ao meio e, ao mesmo tempo, o assimila, de acordo com suas estruturas, num processo de equilibrações sucessivas. Determinar as contribuições das atividades do indivíduo e das restrições do ambiente na aquisição do conhecimento foi o foco do seu trabalho experimental. No período de 1921 a 1925, Piaget concentrou-se na coleta de dados que permitissem esboçar os princípios e os fundamentos de sua teoria do conhecimento. Abordou temas gerais, como a relação entre pensamento e linguagem (1923), o desenvolvimento, na criança, do julgamento e do raciocínio (1924), da representação do mundo (1926), da causalidade física (1927) e do julgamento moral (1927). Esses estudos foram retomados, revistos e aprofundados ao longo das décadas seguintes. No período de 1925 a 1931, com o nascimento de seus três filhos, Piaget dedicou-se à observação meticulosa do desenvolvimento dos bebês, elaborando análises sobre a construção do real e o desenvolvimento da inteligência. Na década de 30, ajudado por seus colaboradores, concentrou a pesquisa na gênese das noções de quantidade, número, tempo, espaço, velocidade, movimento, mensuração, lógica e probabilidade. Na década de 40, abordou o desenvolvimento da percepção. A partir dos anos 50, Piaget voltou-se para a sistematização teórica da epistemologia genética, deixando a seus colaboradores os estudos em psicologia. Em 1955 fundou o Centro Internacional de Epistemologia Genética, onde reuniu cientistas de diferentes áreas (matemáticos, biólogos, psicólogos, lógicos) interessados em pesquisar problemas epistemológicos. Na década de 70, já trabalhando exclusivamente nas pesquisas do Centro de Epistemologia, Piaget dedicou-se à investigação dos mecanismos de transição que impulsionam e explicam a evolução do desenvolvimento cognitivo. Sua vasta produção é um marco de enorme importância para a psicologia e para os estudos do homem no século XX. Procurando compreender como o homem elabora o conhecimento, Piaget desenvolveu o que chamou de psicologia genética. A palavra genética, que ele próprio aplicou à sua psicologia, refere-se à busca das origens e dos processos de formação do pensamento e do conhecimento. A infância é considerada como um período particular do processo de formação do pensamento, que só se completa na idade adulta. É importante, então, não confundir as contribuições dadas por Piaget à compreensão do desenvolvimento cognitivo da criança com uma “psicologia da criança”. Ele não se dedicou a estudar o pensamento infantil motivado por um interesse pela infância em si e também não elaborou sua psicologia genética movido pelo interesse por questões propriamente psicológicas. O centro de seu trabalho e de todos os seus estudos é o desenvolvimento do conhecimento. A formação de Piaget em Ciências Naturais levou-o a buscar compreender o conhecimento com base na biologia. Em sua concepção, conhecer é organizar, estruturar e explicar a realidade a partir daquilo que se vivencia nas experiências com os objetos do conhecimento. No entanto, experiência não é a mesma coisa que conhecimento. Este pressupõe a organização da experiência num sistema de relações. Por exemplo, “a humanidade atravessou alguns milênios sem perceber a relação entre vida e calor do sol; conhecer algo a respeito do calor solar seria inserir o calor sentido na pele num sistema de relações que permite compreendê- lo como condição de existência da vida” (Chiarottino, 1988). Conhecimento e adaptação: os processos de assimilação e acomodação Mas como se dá a inserção de um objeto de conhecimento num sistema de relações? Segundo Piaget, isso ocorre fundamentalmente por meio da ação do indivíduo sobre o objeto. Ao agir sobre o meio, o indivíduo incorpora a si elementos que pertencem ao meio. Através desse processo de incorporação, chamado por Piaget de assimilação, as coisas e os fatos do meio são inseridos em um sistema de relações e adquirem significação para o indivíduo. Ao ler estas páginas, por exemplo, você está assimilando o que está escrito (objeto de conhecimento), conforme vai estabelecendo relações com as idéias e os conhecimentos que já possui. As idéias e os conceitos do texto são organizados e estruturados a partir do que você já conhece. Só assim o texto tem algum sentido para você. Mas, ao mesmo tempo que as idéias e os conceitos do texto são incorporados ao sistema de idéias e conceitos que você possui, essas idéias e conceitos já existentes são modificados por aquilo que você leu (assimilou). Esse processo de modificação que se opera nas estruturas de pensamento do indivíduo é chamado por Piaget de acomodação. Tal modo de conceber o funcionamento cognitivo é decorrente do modelo biológico em que Piaget se baseou. Segundo esse modelo, a inteligência é um caso particular de adaptação biológica. Um organismo adaptado ao meio é aquele que mantém um equilíbrio em suas trocas com o meio. Ou seja, é aquele que interage com o ambiente mantendo um equilíbrio entre suas necessidades de sobrevivência e as dificuldades e restrições impostas pelo meio. Essa adaptação toma-se possível graças aos processos de assimilação e de acomodação (que, juntos, constituem o mecanismo adaptativo), comum a todos os seres vivos.Assim, a inteligência é assimilação por permitir ao indivíduo incorporar os dados da experiência. É também acomodação, pois os novos dados incorporados acabam por produzir modificações no funcionamento cognitivo da pessoa. Logo, “a adaptação intelectual, como qualquer adaptação, é exatamente o equilíbrio progressivo entre o mecanismo assimilador e a acomodação complementar” (Azenha, 1994: 26). Ao mesmo tempo que, por meio do processo de assimilação/acomodação, o indivíduo adapta-se ao meio (elaborando seu conhecimento sobre ele), o seu próprio funcionamento cognitivo vai se estruturando, se organizando. Uma das primeiras formas de organização cognitiva é o esquema. A noção de esquema A criança, ao nascer, é dotada de reflexos que são reações automáticas desencadeadas por certos estímulos. Esses reflexos (como o de sucção e o de preensão) possibilitam ao bebê lidar com o ambiente. É através deles que elementos do meio ambiente (como a chupeta, o seio materno, a mamadeira, o patinho de borracha, etc.) vão sendo assimilados pela criança. A assimilação, como vimos, provoca uma transformação dos reflexos, que gradativamente vão se diferenciando e se tomando mais complexos e flexíveis, deixando de ser simples respostas estereotipadas a estímulos determinados. Esse processo dá origem a esquemas de ação, tais como pegar, puxar, sugar, empurrar, etc. Para entender o que é um esquema de ação, pensemos no esquema de preensão. Um bebê pode pegar, por exemplo, um pequeno cubo de madeira, uma bola, a mamadeira ou o dedo de alguém. Relativamente a cada um desses objetos, a ação de pegar apresenta pequenas diferenças quanto aos movimentos que a criança realiza. No entanto, em todas essas situações a ação da criança apresenta determinadas características que permitem chamá-la de pegar e que a diferenciam de outras ações, como puxar, balançar ou empurrar. O esquema de ação é, justamente, o que é generalizável em uma ação, o que permite reconhecê-la e diferenciá-la de outras ações, independentemente do objeto a que se aplica. É por meio dos esquemas de ação que a criança começa a conhecer a realidade, assimilando-a e atribuindo-lhe significações. Quando pega a mamadeira, ela a relaciona a seu esquema “pegar” e atribui-lhe o sentido de um objeto “que se pega”. Mas a criança também aplica à mamadeira o esquema “sugar”. Essas assimilações provocam transformações nos esquemas “pegar” e “sugar”, à medida que eles são acomodados ao objeto mamadeira. Os esquemas “pegar” e “sugar” acabam então por se coordenar. Segundo Piaget, os reflexos, como o de preensão, possibilitam ao bebê lidar com elementos do ambiente, assimilando-os. A organização do real, por meio da ação, marca o início do desenvolvimento cognitivo da criança. Vê-se que, mediante sucessivas assimilações e acomodações, o bebê vai conhecendo os objetos de seu mundo imediato. Eles são organizados em objetos “para olhar”, “para pegar”, “para sugar”, “para empurrar”, “para morder”, “para olhar e pegar”, “para pegar e sugar”, “para pegar e morder”, e assim por diante. A organização do real por meio da ação marca o início do desenvolvimento cognitivo da criança. De acordo com Piaget, os esquemas de ação ampliam-se, coordenam-se entre si, diferenciam-se e acabam por se interiorizar, transformando-se em esquemas mentais e dando origem ao pensamento. Esse desenvolvimento contínuo dos esquemas se dá no sentido de uma adaptação cada vez mais complexa e diferenciada à realidade. A noção de equilibração O processo de desenvolvimento depende, na perspectiva piagetiana, de fatores internos ligados à maturação, da experiência adquirida pela criança em seu contato com o ambiente e, principalmente, de um processo de auto-regulação que ele denomina equilibração. Para Piaget, a equilibração é uma propriedade intrínseca e constitutiva da vida mental. Por meio dela é que se mantém um estado de equilíbrio ou de adaptação em relação ao meio. Toda vez que, em nossa relação com o meio, surgem conflitos, contradições ou outros tipos de dificuldade, nossa capacidade de auto-regulação ou equilibração entra em ação, no sentido de superá-los. Quando, por exemplo, um bebê tenta pegar um objeto pendurado sobre o berço, o objeto pode oferecer alguma resistência a seu esquema de pegar, que, em desequilíbrio, obriga-o a modificá-lo ou a coordená-lo com outro esquema, como o de puxar. Essa atividade da criança – a acomodação ou coordenação de seus esquemas de ação – é desencadeada graças à sua capacidade de auto-regulação, com o objetivo de compensar a resistência oferecida pelo objeto e alcançar um novo estado de equilíbrio. Quando falamos em alcançar um novo estado de equilíbrio, queremos destacar que o processo de equilibração não consiste numa volta ao estado anterior, mas leva a um estado superior em relação ao inicial. No caso de nosso exemplo, o fato de a criança não conseguir pegar o objeto já indica que seus esquemas precisam ser aperfeiçoados. A reequilibração, por meio da acomodação ou da coordenação de seus esquemas, implica uma ultrapassagem da situação anterior, uma abertura para novas possibilidades de ação. A concepção sobre estágios de desenvolvimento Poderíamos dizer, então, que o desenvolvimento, na concepção piagetiana, é fundamentalmente um processo de equilibrações sucessivas que conduzem a maneiras de agir e de pensar cada vez mais complexas e elaboradas. Esse processo apresenta períodos ou estágios definidos, caracterizados pelo surgimento de novas formas de organização mental. Os estágios se sucedem numa ordem fixa de desenvolvimento, sendo um estágio sempre integrado ao seguinte. Além disso, cada estágio se caracteriza por uma maneira típica de agir e de pensar e constitui uma forma particular de equilíbrio em relação ao meio. A passagem de um estágio a outro se dá através de uma equilibração cada vez mais completa. Ou seja, a criança passa de um estágio a outro de seu desenvolvimento cognitivo quando seus modos de agir e pensar mostram-se insuficientes ou inadequados para enfrentar os novos problemas que surgem em sua relação com o meio. Essa insuficiência é compensada pela atividade da criança, que acaba por engendrar modos mais elaborados de ação e pensamento. O modelo de desenvolvimento cognitivo de Piaget destaca quatro períodos principais: o sensório-motor (do nascimento até aproximadamente os 2 anos de idade), o pré-operatório (dos 2 aos 7 anos), o operatório concreto (dos 7 aos 11 anos) e o operatório formal (dos 11 aos 15 anos). Os estágios do desenvolvimento cognitivo O período sensório-motor O desenvolvimento cognitivo se inicia a partir dos reflexos que gradualmente se transformam em esquemas de ação. Do nascimento até os 2 anos de idade, aproximadamente, a criança passa do nível neonatal, marcado pelo funcionamento dos reflexos inatos, para outro em que ela já é capaz de uma organização perceptiva e motora dos fenômenos do meio. De início, reflexos inatos respondem aos estímulos do meio. Luz, sons, contrações faciais. A cabeça volta-se para a direção de onde vêm os sons. Calor, frio, fome, cheiros, choros... O corpo reflete o mundo e ainda não se diferencia dele. A criança age sobre o mundo. Ela repetidamente chupa o dedo, suga a pontinha da manga da roupa: movimentos não intencionais, centralizados no seu próprio corpo, se repetem sempre. O reflexo inato de sugar assimila, incorpora novos elementos do meio (o dedo, a roupa) e ao mesmo tempo vai sendo transformado por eles (acomodação), pois sugar o seio é diferente de chupar o dedo, que também é diferente de sugar a própria roupa. “Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por conseguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, combiná-los, separá-los e juntá-los”, afirma Piaget (1983: 14). A consciência da criança sobre o meio externo se expande lentamente, conforme suas ações se deslocam de seupróprio corpo para os objetos. A mão agarra, achega o objeto ao corpo, à boca que experimenta, empurra-o para longe de si. As pernas agitam-se em esperneios. Puxar, empurrar, contrair, distender, apanhar, largar, juntar, espalhar, apertar, afrouxar, são ações que também se repetem. Os olhos acompanham os movimentos. O centro não é mais o corpo da criança, já que por intermédio dessas ações a criança manipula os elementos do meio. As ações agora são repetidas devido aos efeitos interessantes que produzem, analisa Piaget. Aos poucos, meios e fins vão sendo diferenciados e as ações começam a ganhar intencionalidade. A descoberta casual de que a argola agarrada produz movimentos e sons num brinquedo suspenso acima do berço leva a criança a repetir o movimento. Ela age para atingir um propósito. Os movimentos ficam mais complexos, mais amplos, como engatinhar, pôr-se de pé, andar. Nesse percurso o eu e o mundo tomam-se progressivamente distintos. O indivíduo e os objetos diferenciam-se e organizam-se no plano das ações exteriores, e a permanência dos objetos vai sendo construída. O brinquedo, que ao ser retirado da criança deixava de existir para ela, passa a ser procurado. A criança começa a perceber que os objetos, as pessoas, continuam existindo mesmo quando estão fora do seu campo de visão. Formam-se as primeiras imagens mentais dos objetos ausentes do meio imediato. São elas que possibilitam o desenvolvimento da função simbólica, mecanismo comum aos diferentes sistemas de representação (jogo, imitação, imagens interiores, simbolização). Com o desenvolvimento da função simbólica, a partir do segundo ano de vida, o eu e o mundo reorganizam-se num novo plano: o plano representativo. A criança reproduz, ou imita, utilizando gestos ou onomatopéias, o comportamento e os sons de um modelo ausente, representando-o de alguma forma simbólica no jogo do faz-de- conta. Por meio de uma imagem mental, um símbolo, começa a imaginar fatos, objetos, pessoas, acontecimentos que ocorreram em outras ocasiões, procurando relembrá-los. O espaço e o tempo se ampliam, à medida que o desenvolvimento da função simbólica a libera de agir somente em situações do meio imediato. Ela toma-se capaz de imaginar ações ou fatos sem praticá-los efetivamente. A criança repete seus atos, devido a seus efeitos interessantes, que ganham intencionalidade. O período pré-operatório Representando mentalmente o mundo externo e suas próprias ações, a criança os interioriza. É nesse período que ela se toma capaz de tratar os objetos como símbolos de outras coisas. O desenvolvimento da representação cria as condições para a aquisição da linguagem, pois a capacidade de construir símbolos possibilita a aquisição dos significados sociais (das palavras) existentes no contexto em que ela vive. Nesse momento, a criança deverá reconstruir no plano da representação aquilo que já havia conquistado no plano da ação prática. Assim, a diferenciação entre o eu e o mundo, que já tinha se completado no plano da ação, deverá ser elaborada no plano da representação. Centrada no seu próprio ponto de vista, a criança ainda não é capaz de se colocar no lugar do outro nem de avaliar seu próprio pensamento. Ela não considera mais de um aspecto de um problema ao mesmo tempo, fixando-se sempre em apenas um deles. Ao repartir o refrigerante com o irmão, a criança só considera a partilha justa se o líquido ficar em altura igual nos dois copos, mesmo que um deles seja visivelmente mais estreito. Ela considera apenas uma dimensão do problema (a altura do líquido no copo), a mais evidente em termos perceptivos. Não é ainda capaz de raciocinar levando em conta as relações entre as várias dimensões envolvidas (a largura e o formato do copo), e o tipo de percepção que tem dos objetos determina o tipo de raciocínio que faz sobre eles. Nas explicações que dá, o seu ponto de vista prevalece sobre as relações lógicas. Ela diz coisas como “Ficou de noite porque o sol foi dormir”, “Quem fez aquele rio foram os homens que moravam ali”. Ações humanas explicam os fenômenos naturais, elementos da natureza praticam ações humanas, são dotados de intencionalidade e qualidades humanas. Como a noção de permanência dos objetos, que leva muito tempo para ser elaborada no nível sensório-motor, os processos de raciocínio lógico e os conceitos demoram também um longo tempo para se desenvolver, a partir desses primeiros raciocínios (pré-lógicos) de que a criança se torna capaz com a representação. O período das operações concretas É apenas ao final do período pré-operatório, após equilibrações sucessivas, que o pensamento da criança assume a forma de operações intelectuais. As operações são ações mentais voltadas para a constatação e a explicação. A classificação e a seriação, por exemplo, são ações mentais. Essas ações são sempre reversíveis, ou seja, têm a propriedade de voltar ao ponto de partida. A criança torna-se capaz de compreender o ponto de vista de outra pessoa e de conceitualizar algumas relações. Portanto, é nessa fase que são estabelecidas as bases para o pensamento lógico, próprio do período final do desenvolvimento cognitivo. Ao final do período pré- operatório, o pensamento da criança começa a assumir a forma de operações intelectuais. Fonte: Nossa criança. Abril Cultural, 1970. v. 4. A reversibilidade do pensamento possibilita à criança construir noções de conservação de massa, volume, etc. O pensamento reversível pode ser definido como a capacidade de levar em consideração uma série de operações que, revertidas, conduzem ao estado inicial. É o que ocorre, por exemplo, com a noção de conservação de líquidos: uma criança, num nível operatório, é capaz de compreender que a quantidade de refrigerante contida em um copo permanece a mesma quando despejada em outro mais alto e mais estreito, embora o nível do líquido se torne mais elevado. Essa capacidade está relacionada à possibilidade de ela representar mentalmente a operação inversa – o líquido retornando ao copo original – e, desse modo, compreender que a quantidade se mantém invariável, a despeito das alterações perceptíveis. Assim, se for repartir o refrigerante com o irmão, despejando-o em dois copos de formatos diferentes, essa criança terá condições (diferentemente de uma criança menor) de considerar as múltiplas dimensões envolvidas no problema, estabelecendo relações entre altura e largura do copo e quantidade de líquido. Assim, por meio das operações – inicialmente só aplicáveis a objetos concretos e presentes no ambiente – os conhecimentos construídos anteriormente pela criança vão se transformando em conceitos. O período das operações formais Apenas na adolescência é que o indivíduo se torna capaz de pensar abstratamente, refletindo sobre situações hipotéticas de maneira lógica. As operações mentais que aplicava só a objetos podem ser aplicadas, agora, também a. hipóteses formuladas em palavras. O pensamento sobre possibilidades, sobre acontecimentos futuros, sobre conceitos abstratos apresenta-se cada vez mais articulado. O adolescente não tem mais necessidade de estar diante dos objetos concretos ou de operar sobre eles para relacioná-los. Ele transforma os dados da experiência em formulações organizadas e desenvolve conexões lógicas entre elas. O adolescente torna-se, enfim, capaz de pensar sobre o seu próprio pensamento, ficando cada vez mais consciente das operações mentais que realiza ou que pode ou deve realizar diante dos mais variados problemas. Essa consciência a propósito do próprio pensamento “pode ser presumida pelo seguinte tipo, muito citado, de perguntas de adolescentes: ‘Eu me surpreendi pensando acerca do meu futuro e então comecei a pensar por que estava pensando no futuro, e aí comecei a pensar por que eu estava pensando sobre por que eu estava pensando no meu futuro’” (Evans, 1980: 116). Pesquisando a criança:o método clínico Em 1919, trabalhando com Simon na padronização dos testes de inteligência, Piaget voltou sua atenção para as respostas tidas como erradas dadas pelas crianças que participavam dos testes. Começou a se preocupar com quais seriam as razões das falhas das crianças em compreender determinadas coisas, com qual seria o tipo de raciocínio implícito em suas respostas. Indagando-se sobre os processos de pensamento que estariam por trás das respostas erradas, Piaget desenvolveu um “método de observação que consiste em deixar a criança falar, anotando-se a maneira pela qual ela desenvolve o seu pensamento. A novidade consiste em deixar a criança falar, seguindo suas respostas: guiada por elas, a criança é encorajada a falar cada vez mais livremente. Dessa forma, é possível obter em cada domínio da inteligência um procedimento clínico de exame que é análogo ao que os psiquiatras adotaram como meio para a elaboração do diagnóstico. É a resposta da criança que determina parcialmente o próximo passo do experimentador” (Azenha, 1994: 105). Somente na adolescência nos tornamos capazes de pensar sobre o nosso próprio pensamento. Piaget chamou esse tipo de procedimento de método clínico. Em algumas investigações, a criança era incentivada a agir sobre objetos e depois a falar sobre o que havia feito. Uma das situações mais famosas utilizadas por Piaget começava com duas bolas iguais feitas com massa de modelar. Pedia-se à criança que as segurasse e perguntava-se se havia ou não a mesma quantidade de massa nas duas bolas. Quando a criança respondia afirmativamente, mudava-se a forma de uma das bolas, passando-a para a forma de uma salsicha, por exemplo, e novamente se perguntava à criança se havia na salsicha a mesma quantidade de massa que na bola. Algumas crianças diziam que sim, explicando que havia a mesma quantidade porque se se fizesse de novo uma bola, esta seria igual à primeira. Outras, mais novas, davam explicações como “esta tem mais porque é mais comprida”, referindo-se à salsicha. Por meio de situações desse tipo, Piaget procurava compreender a maneira de pensar da criança em diferentes idades. Para ele, não interessava se a criança acertava ou errava ao responder, mas sim a maneira como pensava no problema proposto. Seu objetivo era apreender o tipo de operação mental que a criança realizava (no caso desse exemplo, ele investigava as noções de conservação e a reversibilidade do pensamento da criança). Assim, com base nas pesquisas realizadas através do método clínico e também na observação direta de seus próprios filhos, especialmente nos dezoito primeiros meses de vida, Piaget, auxiliado por inúmeros colaboradores, foi gradativamente elaborando sua teoria sobre o desenvolvimento cognitivo da criança. Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a influência da abordagem piagetiana na escola Vimos que, na concepção piagetiana, o desenvolvimento da criança é um processo que depende essencialmente da equilibração, que é a capacidade natural de auto-regulação do indivíduo. As estruturas cognitivas da criança são elaboradas e reelaboradas continuamente a partir da sua ação (física ou mental) sobre o meio. De acordo com esse quadro teórico, a aprendizagem praticamente não interfere no curso do desenvolvimento. A ênfase nos processos internos e na atividade construtiva da própria criança resulta em uma concepção que considera a aprendizagem como dependente do processo de desenvolvimento. Ou seja, aquilo que a criança pode ou não aprender é determinado pelo nível de desenvolvimento de suas estruturas cognitivas. Segundo Piaget, tudo o que é transmitido à criança sem que seja compatível com seu estágio de desenvolvimento cognitivo não é de fato incorporado por ela. A criança pode imitar mecânica e externamente o adulto, mas não compreende (e, portanto, não conhece) o que está fazendo. As formulações de Piaget têm tido grande influência sobre a prática pedagógica, inclusive no Brasil. Ao destacarem o papel ativo da criança no processo de elaboração do conhecimento, têm sido responsáveis por idéias como: o papel fundamental da escola é dar à criança oportunidades de agir sobre os objetos de conhecimento; o professor não deve ser aquele que transmite conhecimentos à criança, mas sim um agente facilitador e desafiador de seus processos de elaboração; a criança é quem constrói o seu próprio conhecimento. Referência:
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