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CLÁSSICOS DA HISTÓRIA: EDWARD PALMER THOMPSON AULA 1 Profª Bárbara Araújo Machado 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula iremos conhecer um pouco sobre a trajetória intelectual e política de um dos maiores historiadores do século XX: Edward Palmer Thompson. Nosso objetivo é, mais do que elencar dados biográficos, entender o lugar de Thompson nos campos intelectual e político em que se inseria, para então caracterizar sua contribuição para o campo da História e para o debate marxista. Primeiramente, procuraremos caracterizar Thompson como um “intelectual orgânico”, conforme a proposição de Antonio Gramsci, observando suas vinculações a movimentos sociais de esquerda ao longo de toda a vida. Em seguida, comentaremos brevemente algumas de suas principais obras, em especial as traduzidas e publicadas no Brasil. A partir desse primeiro panorama, caracterizaremos em linhas gerais o campo do marxismo britânico a partir da segunda metade do século XX, para conhecer os debates intelectuais travados por Thompson neste campo. Daremos atenção, principalmente, para sua identificação de duas tradições no marxismo: uma tradição dogmática, ortodoxa e “vulgar”, contra a qual ele se posicionou com veemência, e uma tradição de crítica ativa, com a qual procurou se vincular. TEMA 1 – UM INTELECTUAL ORGÂNICO DA CLASSE TRABALHADORA Para entender a contribuição de E.P. Thompson para o campo da História, é preciso, antes de tudo, conhecer um pouco sobre sua trajetória. Isso porque sua produção acadêmica está intimamente ligada com sua luta política, já que sua concepção de intelectual, particularmente no campo da esquerda, guardava íntima relação com a concepção gramsciana de “intelectual orgânico” (Gramsci, 2006). O marxista italiano Antonio Gramsci se afastou da noção tradicional de intelectual, como designação de um indivíduo que analisa a sociedade como quem paira sobre ela. Para Gramsci, a função de intelectual é orgânica na medida em que está ligada aos interesses de uma classe social específica (organicidade), e tem como objetivo atuar para organizar a vontade coletiva de acordo com esses interesses (organização) (Machado, 2015). Nesse sentido, E.P. Thompson foi um intelectual orgânico ligado à classe trabalhadora. Esteve vinculado ao longo da vida a organizações políticas de esquerda, como o Partido Comunista britânico, com o qual rompeu em 1956 ao 3 engajar-se na construção de uma “Nova Esquerda” (New Left). Como estudante, Thompson participou do movimento estudantil na Universidade de Cambridge, até interromper seus estudos para engajar-se na luta contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial. Ingressou na Universidade de Leeds como professor no Departamento de cursos “extra-muros”, atuando no curso noturno voltado para trabalhadores durante dezenove anos (Alvito, 2012). Seu contato cotidiano com a classe trabalhadora inglesa foi sem dúvida uma importante fonte de trocas que influenciou a elaboração de sua obra magna, A formação da classe trabalhadora na Inglaterra, publicada em 1963. Com o estrondoso sucesso dessa obra, Thompson foi convidado para lecionar na Universidade de Warwick, mas deixa a vida “intramuros” ao descobrir que a universidade pretendia expulsar um estudante por motivos políticos. A demissão de Thompson foi acompanhada pela publicação de um livro de crítica à comercialização da universidade, ousado movimento que, na visão de outro célebre historiador britânico, Eric Hobsbawm, causou “uma retaliação do establishment universitário à rebeldia de Thompson” (Alvito, 2012), na medida em que o historiador não voltou mais a receber convites para lecionar em universidades inglesas. Mais tarde, Thompson ingressou no Partido Trabalhista inglês e, nos anos 1980, torna-se importante liderança no movimento pacifista e antinuclear na Europa. Trabalhou por breves períodos como professor em universidades norte- americanas e, até o fim da vida, permaneceu associado à luta dos trabalhadores por melhores condições de vida. TEMA 2 – PRINCIPAIS OBRAS A formação da classe operária inglesa é considerada “uma das obras historiográficas mais importantes do século XX” (Decca, 1995, p. 111), cujo sucesso no meio intelectual pegou de surpresa o próprio autor (Mattos, 2012, p. 20). Afinal, segundo ele próprio, o público alvo do livro não era o acadêmico, mas as esquerdas e o movimento operário (Thompson, 2015). Na obra, o autor aborda o “fazer-se” (“the making”, traduzido no título brasileiro como “a formação”) da classe operária como “um processo ativo”, fazendo assim uma intervenção definitiva na discussão marxista sobre classe social (Thompson, 2015). 4 Em 1978, publicou A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser, título que evoca sua característica de “excelente polemista”, como o caracterizou Edgar de Decca (1995, p. 111). O livro consiste em uma contundente crítica ao pensamento de Louis Althusser, filósofo marxista francês de visão estruturalista, e seus seguidores, bem como “um acerto de contas com tudo o que considerava herança do dogmatismo stalinista” (Mattos, 2012, p. 20). Edgar de Decca chama atenção para a importância de se conhecer, além da produção historiográfica de Thompson, seus livros sobre pacifismo e a questão nuclear, publicados na década de 1980, momento em que o historiador “radicalizou ainda mais sua crítica às instituições estatais” (Decca, 2012, p. 118). Em 1991, publica Costumes em comum, em que traz uma contribuição fundamental para os estudos da cultura dentro de uma perspectiva do materialismo histórico. É marcante na obra de Thompson sua aproximação com a literatura e a poesia. Seu primeiro livro, William Morris: romantic to revolutionary (William Morris: de romântico a revolucionário), e seu último, sobre o romântico William Blake, revelam uma abordagem marxista da literatura que não a considera como mero aspecto superestrutural ou reflexo direto de uma base econômica, mas como parte integral das relações sociais. No Brasil, uma coletânea de textos fundamentais de Thompson, intitulada A peculiaridade dos ingleses e outros artigos, foi publicada em 2001, e constitui- se aqui como uma obra de grande importância, ao trazer textos de caráter predominantemente teóricos até então indisponíveis para o português. TEMA 3 – O MARXISMO BRITÂNICO E A NEW LEFT REVIEW Segundo Edgar de Decca, para entender Thompson e a geração de historiadores A qual pertenceu, “devemos situá-los como uma geração que viveu a crise do comunismo depois da morte de Stalin” e as denúncias dos crimes do stalinismo pelo governo soviético de Kruschev (Decca, 2012, p. 110). Até 1956, intelectuais marxistas como Eric Hobsbawm, Chistopher Hill e o próprio Thompson constituíam o chamado “Grupo de Historiadores do Partido Comunista Britânico”. Enquanto alguns continuaram ligados ao PC após as denúncias contra o stalinismo, como no caso de Hobsbawm, Thompson fez parte do grupo desligado do partido. 5 Em 1959, após algumas tentativas editoriais de curta duração, membros desse grupo criam a New Left Review (Falcon, 1997, p. 91), espaço no qual Thompson travou “um dos debates mais quentes dentro do marxismo inglês e europeu, criticando acidamente dois editores da revista, Perry Anderson e Tom Nairn, por seu marxismo teórico e abstrato, completamente afastado das tradições da cultura popular da Inglaterra” (Decca, 1995, p. 111). Thompson defendia que a New Left Review deveria ter como objetivo fazer do marxismo efetivamente uma teoria da práxis, isto é, uma teoria “que orientasse a ação política” e “que ajudasse a entender o processo de constituição da vida cotidiana das classes populares” inglesas (Decca, 2012, p. 112). Quando Perry Anderson assume a direção da New Left Review, ela torna-se umarevista teórica de grande importância no debate marxista dos anos 1960, mas afastada dos propósitos concretos defendidos por Thompson, o que resulta no seu afastamento da revista em 1963. TEMA 4 – CONTRA UM MARXISMO “VULGAR” Com a ênfase na dimensão cultural da classe apresentada em A formação da classe operária inglesa, Thompson pretendeu atacar “duas ortodoxias”: “a história econômica quantitativa e o marxismo dogmático” (Thompson, citado por Mattos, 2012, p. 24). A visão de Thompson identificava no marxismo duas tradições distintas. A primeira tratava-se de um “marxismo vulgar”, que “derivava diretamente, sem qualquer mediação, a consciência e a ação coletiva da classe de seu lugar nas relações de produção” (Mattos, 2012, p. 25). Essa derivação guardaria íntima relação com as interpretações da metáfora de base e superestrutura formulada por Marx. Em A miséria da teoria, o marxista inglês ataca frontalmente a leitura stalinista da metáfora, que, em suas palavras, “produziu uma caricatura do marxismo” segundo a qual uma ‘superestrutura’ era reduzida a confirmar ou legitimar a base. Essa ‘base’ (escreveu Stalin em 1950) ‘é a estrutura econômica da sociedade num determinado estágio de desenvolvimento’ e a ‘superestrutura consiste das opiniões políticas, jurídicas, religiosas, artísticas e filosóficas da sociedade’. (Thompson, 1981, p. 91) Nessa leitura, portanto, todas as relações sociais “superestruturais” refletiriam ou derivariam de uma estrutura econômica, sem qualquer tipo de mediação. 6 Para Thompson, base e superestrutura eram uma “analogia espacial” “mecânica e insatisfatória”, que foi “petrificada em conceito” (Thompson, 1981, p. 119; 175). Essa metáfora estaria, assim, dotada de uma inerente tendência ao reducionismo ou ao determinismo econômico vulgar, classificando atividades e atributos humanos ao dispor de alguns destes na superestrutura (lei, arte, religião, ‘moralidade’), outros na base (tecnologia, economia, as ciências aplicadas), e deixando outros ainda a flanar, desgraçadamente, no meio (linguística, disciplina de trabalho). (Thompson, 2001, p. 256) Thompson, então, rejeita a metáfora “base x superestrutura” como radicalmente inadequada. Critica a própria noção de econômico, pois a considera limitada, preferindo o conceito de modo de produção, referente, para ele, à totalidade. TEMA 5 – A TRADIÇÃO DE CRÍTICA ATIVA DO MATERIALISMO HISTÓRICO Contra a tradição “vulgar”, “idealista e teleológica” do marxismo, Thompson defendia uma “‘tradição marxista aberta, exploratória e autocrítica’, que ele preferiu chamar de materialismo histórico” (Mattos, 2012). Procurando se filiar a essa tradição de “‘crítica aberta’ e ‘razão ativa’” (Mattos, 2012), Thompson retornou à categoria de “totalidade”, argumentando que o materialismo histórico supera a visão do processo social como uma “história ‘setorial’ – como história econômica, política ou intelectual [...] – mas como uma história total da sociedade, na qual todas as outras histórias setoriais estão reunidas” (Thompson, 1981, p. 82). Para superar essa visão mecanicista do marxismo vulgar, Thompson retorna à Marx, na analogia que o alemão faz do processo histórico nos Grundrisse. Nesses escritos, Marx afirma que as relações de produção configuram uma “iluminação geral, em que são imersas todas as cores e que modifica suas tonalidades particulares. É um éter especial a definir a gravidade específica de tudo o que dele se destaca” (Marx, citado por Thompson, 2001, p. 254). Thompson opõe essa noção de “iluminação geral” e “éter especial” à metáfora da superestrutura derivando de uma base econômica. Segundo ele, “no lugar da noção de primazia do econômico [...], o que essa passagem enfatiza é a simultaneidade da manifestação de relações produtivas particulares em todos os sistemas e áreas da vida social”. Com isso, o autor não pretende questionar a centralidade do modo de produção, mas sim “a ideia de ser possível 7 descrever um modo de produção em termos ‘econômicos’ pondo de lado, como secundárias (menos ‘reais’), as normas, a cultura, os decisivos conceitos sobre os quais se organiza um modo de produção” (Thompson, 2001, p. 254). No materialismo histórico, portanto, a visão mecânica, abstrata e economicista dá espaço para a noção de totalidade, de modo de produção e de determinação. Para Thompson, a determinação não aparece como um movimento mecânico cujo sentido vai do econômico para o restante das relações sociais, mas como uma “iluminação geral”, conforme Marx, em que determinar significa “‘estabelecer limites’, ‘exercer pressões’, ‘definir ‘leis de movimento’ como ‘lógica do processo’” (Thompson, 1981, p. 176). Trazendo esse debate para um âmbito mais concreto e próximo, esse belo trecho de A miséria da teoria explicita a preocupação de Thompson com a materialidade das relações, resumindo um pouco de sua proposta quanto ao materialismo histórico: o real não está ‘lá fora’ e o pensamento dentro do silencioso auditório de conferências de nossas cabeças, aqui dentro. Pensamento e ser habitam um único espaço, que somos nós mesmos. Mesmo quando pensamos, também temos fome e ódio, adoecemos ou amamos, e a consciência está misturada ao ser; mesmo ao contemplarmos o ‘real’, sentimos a nossa própria realidade palpável. (Thompson, 1981, p. 27) NA PRÁTICA A tradição intelectual e filosófica do marxismo é, com mais frequência do que outras correntes de pensamento, desqualificada e pesadamente criticada tanto no meio acadêmico quanto fora dele. Isso pode guardar relação com seu caráter necessariamente vinculado a um horizonte político que não apenas caracteriza a história das relações sociais, como uma história de luta de classes, mas indica caminhos de intervenção sobre essa realidade, no sentido contrário à exploração de seres humanos por outros seres humanos. No meio acadêmico, o marxismo tem sido criticado muitas vezes como economicista, no sentido de que reduziria a diversidade da realidade social aos aspectos “econômicos” (em sentido limitado) da estrutura social. A vida e a obra de E. P. Thompson trazem, para esse debate, uma nova ótica. Ao caracterizar duas tradições no marxismo, uma ligada a um dogmatismo stalinista e a um estruturalismo rígido, e outra capaz de uma crítica ativa e que compreende as relações sociais em sua totalidade, Thompson ataca diretamente o determinismo economicista. 8 Assim, revela-se que a crítica ao economicismo está apenas parcialmente correta: criticar uma perspectiva economicista não significa criticar o marxismo como um todo, mas certa tradição dentro dele. Além disso, uma visão economicista pode se dar por fora do marxismo, considerando-se todo um campo de história econômica quantitativista, que “fatia” a realidade social, priorizando os aspectos econômicos, em sentido estrito, sobre os demais aspectos da realidade. Considerando esse quadro, fica claro o quanto é importante que nós, enquanto historiadores e educadores, busquemos qualificar e refinar os termos do debate público sobre o assunto, tornando explícitas as nuances dentro de um complexo campo intelectual e político, como é o marxismo. FINALIZANDO Nesta aula partimos do conceito de “intelectual orgânico”, de Antonio Gramsci, para entendermos o caráter unívoco da atuação intelectual e política do historiador marxista inglês Edward Palmer Thompson. Vinculado ao longo de toda vida a movimentos sociais ligados à classe trabalhadora, Thompson foi um intelectual engajado, sempre diante dos conflitos sociais, o que marcou sua trajetória profissional e sua produção intelectual profundamente. Sua experiência como professor em um curso noturno para trabalhadores, por exemplo, teve papel crucial na produção de sua obra magna: A formação da classe operária inglesa, cujo sucesso no âmbito acadêmico surpreendeu ao próprioautor. Por outro lado, seu profundo engajamento político também o custou uma carreira eminente no campo universitário britânico, como consequência de seu compromisso político contrário à mercantilização das relações (inclusive na academia). Abordamos algumas das principais obras do autor, desde A formação, obra que mudou a forma de compreender o conceito marxista de classe social. Outras obras, como A miséria da teoria, revelam seu gosto pela polêmica e seu compromisso com a crítica de um marxismo ortodoxo e “vulgar”. Obras como Costumes em comum e seus livros sobre escritores ingleses nos mostram sua abordagem da literatura, não como mero aspecto superestrutural ou reflexo direto de uma base econômica, mas como parte integral das relações sociais. Buscamos situar Thompson no campo intelectual e político de sua geração, a princípio ligado ao Grupo de Historiadores do Partido Comunista 9 Britânico, com o qual rompeu, aproximando-se da New Left Review. Abordamos sua polêmica com a revista, em especial com o editor e historiador Perry Anderson, que novamente marcava sua posição contrária a uma abordagem do marxismo de maneira excessivamente abstrata. Caracterizamos, por fim, o que Thompson considerava como um “marxismo vulgar”, notadamente resultante de uma interpretação literal da metáfora marxiana da base econômica versus superestrutura. Considerando a metáfora como algo que mais atrapalhou do que contribuiu para o campo do marxismo, Thompson a rejeitou por completo, preferindo o uso do conceito de modo de produção, no sentido de totalidade de relações sociais. Nesse debate, o conceito de determinação era defendido como fundamental por Thompson, que o retirou de uma acepção mecanicista e derivativa para entendê-lo como uma “iluminação geral”, na expressão de Marx, como um movimento de pressões e limites exercidos sobre os agentes sociais. 10 REFERÊNCIAS ALVITO, M. E. P. Thompson: uma vida extra-muros. Brasil de Fato, abr. 2012. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/content/edward-palmer- thompson-uma-vida-extra-muros/>. Acesso em: 5 jun. 2019. DECCA, E. S. de. E. P. Thompson: um personagem dissidente e libertário. Projeto História, São Paulo, n. 12, p. 109-118, out. 1995. FALCON, F. História das Ideias. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (Org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. GRAMSCI, A. Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: _____. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. v. 2. MACHADO, B. A. A Função de Intelectual: um diálogo entre Antonio Gramsci, Pierre Bourdieu e Edward Said. Teoria da História, ano 7, n. 13, p. 212-224, abr. 2015. MATTOS, M. B. E.P. Thompson e a tradição de crítica ativa do materialismo histórico. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2012. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2015. _____. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. _____. Folclore, antropologia e história social. In: _____. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001.