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CIÊNCIA POLÍTICA E TEORIA GERAL DO ESTADO Felipe Scalabrin Formas de governo Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir as formas de governo. � Contrastar as formas de governo com a separação de poderes. � Explicar a crise da separação dos poderes e os reflexos na democracia. Introdução Neste capítulo, você estudará as formas de governo. Com base em uma análise histórica, analisará a evolução da classificação das formas de go- verno, a forma como ocorreu a separação de poderes e como tal divisão reflete no progresso de uma sociedade democrática. Cada tema deste capítulo é fundamental para que você entenda o funcionamento político do Brasil e de outros povos. Formas de governo Para compreender as atuais formas de governo, é importante analisar como o tema foi discutido por pensadores como Platão, Aristóteles, Políbio, Maquiavel, Bodin, Hobbes, Vico, Montesquieu, Hegel, Marx e Bobbio. Para tanto, o estudo da concepção filosófica e política de governo desenvolvida por esses teóricos permitirá analisar as atuais formas e sistemas de governo, bem como a crise na separação de poderes. Para o professor José Geraldo Brito Filomeno, o governo “é um conjunto dos órgãos do Estado que colocam em prática as deliberações dos órgãos legislativos” (FILOMENO, 2016, p. 97). Para os filósofos gregos anteriores a Cristo, Platão e Aristóteles, o governo deveria ser analisado a partir de duas vertentes: a pura (ideal) e a impura ou degenerada. Para Platão, as formas de governo ideais seriam a monarquia e a aristocracia, consideradas formas únicas. Já as formas corruptas de governo seriam a oligarquia, a timocracia, a democracia e a tirania. A oligarquia seria a forma corrompida da aristocracia, enquanto a tirania é a forma corrompida da monarquia. Para Platão, a timocracia seria a transição entre a constituição ideal e as formas corruptas de governo. Segundo Bobbio (1997), para Aristóteles, não havia distinção de significado entre governo e constituição. Em razão disso, para Aristóteles (apud BOBBIO, 1997, p. 55), o governo é o “poder exercido por um só, por poucos ou por muitos”. Assim, a politeia (constituição — estrutura que dá ordem à cidade, determi- nando o funcionamento de todos os cargos públicos e, sobretudo, da autoridade soberana), para Aristóteles, seria responsável por dar forma ao sistema. Aristóteles classificou as formas de governo como puras e impuras. As formas puras de governo seriam o reino (monarquia), a aristocracia e a politia (timocracia); e as formas impuras seriam a tirania, a oligarquia e a demagogia. Para Aristóteles, as formas impuras seriam as degenerações das formas puras de governo, ou seja, a tirania em contraposição ao reino (monarquia), a oligarquia em contraposição à aristocracia e a demagogia em contraposição à politia (timocracia). Para o doutrinador José Geraldo Brito Filomeno, a classificação aristotélica tem um “caráter quantitativo, de acordo com o número dos que exercitam o poder político, e qualitativo ou valorativo, de acordo com o posicionamento dos que exercem o mesmo poder, em face do bem comum” (FILOMENO, 2006, p. 101). Segundo o professor Celso Bastos (2004), Aristóteles sofisticou o esquema das formas de governo elaborado por Platão — assim, para cada forma pura ou ideal, agregou uma forma de governo considerada degenerada. Para o historiador Políbio (200 a.C.–118 a.C.), as formas de governo se classificavam em monarquia, tirania, aristocracia, oligarquia, democracia e oclocracia (oclos latim — multidão, governo das massas). Ainda de acordo com Políbio, essas formas formavam um movimento cíclico, ou seja, a pro- blemática de uma forma de governo desencadearia outra forma de governo e assim sucessivamente. Nesse sentido, veja as palavras de Políbio, citadas por Bobbio (1997, p. 67) no livro a Teoria das formas de governo: Em primeiro lugar se estabelece sem artifício e naturalmente o governo de um só, ao qual segue (e do qual é gerado por sucessivas elaborações e corre- ções) o reino. Transformando-se este no regime mau correspondente, isto é, 97Formas de governo na tirania, pela queda desta última se gera o governo dos melhores. Quando a aristocracia por sua vez degenera em oligarquia, pela força da natureza, o povo se insurge violentamente contra os abusos dos governantes, nascendo assim o governo popular. Com o tempo, a arrogância e a ilegalidade dessa forma de governo levam à oclocracia. Anos mais tarde, o filósofo Nicolau Maquiavel (1469–1527), autor do livro O príncipe, inovou com uma classificação bipartida de governo, separando-o em república (soma da aristocracia e democracia) e principado (monarquia). De acordo com Maquiavel (2003, p.1), “Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm autoridade sobre os homens foram e são repúblicas ou principados”. Com relação à república, é atualmente classificada em república parlamentar e república presidencialista; já a monarquia se classifica em monarquia absolutista, monarquia constitucional e monarquia parlamentar ou dualista. Para Maquiavel, a república possui características próprias, como a tempora- lidade do governante na posição de líder do Estado, ao passo que, na monarquia, em razão da hereditariedade, eleição e cooptação (declaração de sucessão do trono), o rei ou monarca ocupará a posição de regente por tempo indeterminado. Para o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588–1679), autor do livro Leviatã, o governo consistiria na existência de um poder soberano indivisível responsável por determinar a condução do Estado. Por consequência, não haveria razão em diferenciar as formas de governo como formas puras, impuras ou mistas. Para o jurista Jean Bodin (1530–1596) e para o filósofo Giambattista Vico (1668–1774), as formas de governo se classificavam em monarquia, aristocracia e democracia (república popular). Convém ressaltar que Vico, assim como Políbio, analisou as formas de governo a partir de uma vertente cíclica. Para o jurista Montesquieu (1689–1755), seriam consideradas formas de governo a república (o povo ou parte dele possui o poder soberano de governar), a monarquia ou principado (o poder é governado por um indivíduo mediante normas preestabelecidas) e o despotismo (o poder é governado ao prazer de um indivíduo sem a observância de normas). Já para o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770–1831), seriam consideradas formas de governo a monarquia, a aristocracia, a democracia, a oligarquia, a oclocracia e o despotismo. Contudo, Karl Marx (1818–1883) inovou ao não classificar o governo em formas, pois, para o autor, não havia importância e sentido na classificação do governo, mas o estabelecimento de um governo único, no qual não haveria a divisão de classes sociais (concepção política socialista). Para Norberto Bobbio (1909–2004), em consequência da temporalidade da ditadura e diferenciação do despotismo e da tirania, a ditadura seria uma forma positiva de governo. Formas de governo98 As classificações filosóficas políticas de governo desenvolvidas por esses pensadores foram vitais para a compreensão da realidade funcional de um povo. Reflita quais seriam as formas de governo adotadas pelos diversos países na atualidade. Governo e separação de poderes Para o filósofo inglês John Locke (1632–1704), o poder derivava de um pacto e de um contrato social, em consequência do estado de natureza e da relação entre governante e governado. Para Locke, os poderes deveriam estar em equilíbrio e se dividiriam em Executivo (zelar pelo cumprimento das leis), Legislativo (poder supremo e fiduciário do Estado), Federativo e de prerrogativa (poder de trabalhar segundo discrição para o bem público sem prescindir da lei e ainda às vezes contra ela). O Poder Executivo apresentaria atividade contínua com a finalidade de conduzir os assuntos internos e externos dos Estados e de julgar e aplicar penas àqueles que descumprissem asleis. O Legislativo deveria trabalhar na busca por legislar em observância ao princípio da legalidade. O Poder Federativo seria o poder conferido ao Estado de relacionar-se com outras pessoas e comunidades alheias à república. Já a prerrogativa seria a permissão concedida pelo povo aos seus governantes, para que, no caos do silêncio da lei sobre determinados temas, realizassem ações de livre eleição, mesmo que fossem contrários ao texto legal. É possível perceber que o atual Poder Judiciário, na divisão de poderes estabelecida por Locke, era exercido pelo Poder Executivo. Mas, para Montes- quieu (1689–1755), os poderes estatais se dividiam em Executivo, Legislativo e Judiciário. No livro O espírito das leis, publicado em 1748, Montesquieu (1973, p. 21) declarou que “em cada estado existem três classes de poder, o Legislativo, o executivo das coisas pertencentes ao direito das pessoas e o Executivo dos que pertencem ao civil”. Quanto a estes, o filósofo observou que o último se chamaria Poder Judicial e, o outro, Poder Executivo do Estado. Dessa forma, Montesquieu inovou ao estabelecer três formas independentes de poder, até hoje adotadas pelos governos atuais. Para Montesquieu, a divisão jurídica das distintas funções de poderes somente poderia limitar-se ao uso ilegal do poder e garantir a liberdade e os direitos das pessoas. O Legislativo seria um órgão representativo da vontade do povo destinado à criação de leis. Além disso, também poderia apreciar, nos termos da lei, as ações 99Formas de governo do Executivo e dos seus membros. Já o Executivo seria um órgão com a função de cumprir as normas elaboradas pelo Legislativo e teria o poder de vetar leis elabo- radas pelo Legislativo. Em contraposição, o Poder Judiciário seria um órgão cuja função seria julgar crimes e conflitos entre pessoas; por isso, deveria ser temido, já que teria a legitimidade de privar a liberdade daquele que descumprisse a lei. Para o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), autor do célebre livro Contrato social, o Poder Legislativo pertence somente ao povo, visto que o Poder Executivo consistiria em atos particulares. Dessa forma, para Rousseau, não seria certo que o órgão responsável por elaborar a lei fosse responsável pela sua execução — por isso, era necessário um governo soberano, pois a monarquia não era a única forma de governo, mais bem a soberania popular. Para Tocqueville (1805–1859), o Poder Legislativo dividia-se em duas assembleias (Senado e Câmara dos Deputados), compostas por representantes eleitos por cidadãos. O Poder Executivo seria conduzido por um governante eleito pelo povo, com a função de ser chefe do Estado com mandato temporal e com poder regulado pelo Senado. Já o Poder Judiciário, assim como entendeu Montesquieu, seria um órgão de grande poder, pois teria a finalidade de julgar casos particulares. Além disso, segundo Tocqueville, o Judiciário atuaria quando invocado e, por recorrer à Constituição para justificar a maior parte de suas decisões, detinha significativo poder político. O que é possível pensar sobre a atual força dos Poderes Executivo, Legis- lativo e Judiciário? Para saber mais sobre o processo, leia A constituição reinventada pela jurisdição cons- titucional (SAMPAIO, 2002). Separação de poderes e democracia atual Para o doutrinador José Sampaio (2002, p. 430): Nos dias atuais pode-se falar de múltiplas interpretações do princípio da divisão dos poderes de acordo com a organização do sistema de governo sem que se possa indicar um modelo paradigmático desse princípio, que venha a servir de referência necessária a modelos concretos adotados pelos sistemas Formas de governo100 constitucionais. Antes, há uma ideia — de separação de poderes, guiadas por um fim — de evitar tiranias e garantir o funcionamento equilibrado do governo, que assume diversas formas em diferentes contextos sociopolíticos. Vale dizer que não há modelo de divisão de poderes senão uma variedade de conformações que vem a assumir na prática. Os filósofos, ao pensarem na separação dos poderes, não poderiam imaginar que, em consequência do aumento da corrupção e dos interesses pessoais, a autonomia dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário seria ameaçada e deixaria de existir, pois, na realidade atual, é cada vez mais frequente a intervenção política do Poder Legislativo em desprezo do Poder Judiciário. Países como Brasil e Espanha, por exemplo, são testemunhas da perseguição ao Poder Judiciário, que, em razão de leis chamadas popularmente de leis da mordaça, viram o trabalho e a autonomia do Judiciário serem cerceados. Os diversos escândalos envolvendo empresas privadas, principalmente com membros dos Poderes Legislativo e Executivo, demonstram a fragilidade desses poderes em cumprir as obrigações para as quais foram pensados e criados. Atualmente, é cada vez mais frequente haver denúncias de favorecimento entre membros dos poderes, com a finalidade única de manter os seus cargos e o seu poder político. No caso brasileiro, a Operação Lava-Jato, por exemplo, revelou a participação de membros dos três poderes em ações criminais de corrupção, ou seja, aqueles que deveriam legislar em benefício do povo e da nação passaram a legislar em benefí- cio próprio e de interesses privados, aqueles que deveriam cumprir as funções de administrar os interesses públicos passaram a administrar em benefício próprio e de terceiros e aqueles que deveriam sancionar e penalizar passaram a perdoar corruptos e a penalizar os mais desfavorecidos. Ora, você consegue perceber alguma semelhança com as formas degene- radas de governo? Para o doutrinador Luigi Ferrajoli (2014, p. 40): A crise do “alto” da democracia e de dissolução da representação, nesses úl- timos anos, foi a crescente integração dos partidos no Estado e o consequente desaparecimento de uma ulterior separação entre partidos e instituições com 101Formas de governo a sociedade. É cada vez mais estreita a relação entre dinheiro, informação e política: dinheiro para fazer política e informação, informação para fazer dinheiro e política, política para fazer dinheiro e informação, segundo um ciclo vicioso que se traduz no crescente condicionamento anti ou extra re- presentativo da ação do governo. De fato, a visão de Ferrajoli (2014) reflete o atual cenário mundial, pois é cada vez mais frequente a violação da democracia, que tem sido utilizada para interesses próprios e de certa minoria. Como uma Torre de Babel, percebe- -se que é utopia pensar em poderes autônomos e harmônicos entre si, visto a frequente relação entre os poderes públicos e os privados. No caso da Operação Lava-Jato, fica visível o fato de não ser mais possível separar corruptor e corrompido. Dada a força de grandes empresas, os poderes e os seus dirigentes, eleitos ou não pelo povo, tornaram-se reféns de empresas privadas e, como medidas extremistas, passaram a criar barreiras para se autodefenderem, em total desprezo às normas legais. Ainda segundo Ferrajoli (2014), tal situação é uma aberração institucional que comporta uma deformação do sistema político e da democracia incompa- ravelmente mais grave do que as formas tradicionais, ainda que patológicas e delinquenciais da corrupção. Convém destacar que, no passado, o jurista Tocqueville (1805–1859) já sinali- zava a crise da separação dos poderes na democracia, pois, segundo o prestigiado jurista, todo e qualquer projeto de lei que ferisse a Constituição de um país não deveria sequer ser apreciado — caso fosse, seria retido pelo Poder Judiciário. Contudo, na atualidade, com um poder cada vez mais limitado e sem recursos, o Judiciário se tornou refém dos demais poderes; em especial, do Executivo. A ideologia de Norberto Bobbio (1909–2004) de que o principal ponto característico da democracia seria o respeito à eleição e ao desejo do povo e das instituições, não às ações políticas em si, não reflete a realidade, principal- mente no casobrasileiro, com o mando e desmando de deputados, senadores, superjuízes e presidentes, que insistem em atuar como se fossem reis e sobe- ranos. Estaríamos diante do fim da democracia e do fortalecimento de formas degeneradas de governo — ou, na realidade, há somente uma crise de poderes? Formas de governo102 BASTOS, C. R. Curso de teoria do Estado e ciência política. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. BOBBIO, N. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília: Universidade de Brasília,1997. BONAVIDES, P. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2007. FERRAJOLI, L. Poderes selvagens: a crise da democracia italiana. São Paulo: Saraiva, 2014. FILOMENO, J. G. B. Teoria geral do Estado e da constituição. 10. ed. rev., atual. e ampl. 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