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FILOSOFIA POLÍTICA AULA 1 Prof. Antonio Charles Santiago Almeida 2 CONVERSA INICIAL A filosofia nasce quando os mitos não conseguem explicar a realidade. Mais precisamente, quando as pessoas não reconhecem no mito a validade explicativa, mas uma espécie de recurso pedagógico para facilitar a compreensão. Desse modo, tem-se a inauguração dessa forma de pensar e de explicar a realidade. Logo, a filosofia é uma forma de compreensão e explicação da realidade, se debruçando sobre diversas temáticas. A partir daí o filósofo se torna o amigo da sabedoria e por isso passa a investigar as manifestações que se dão no mundo sensível e no mundo inteligível. Nesse sentido, a filosofia se aproxima da política e passa a explicá-la, ou seja, tem-se a denominada filosofia política. Desse modo, no primeiro momento, a filosofia política tem uma preocupação capital, especialmente nas investigações de Platão e de Aristóteles, no que se refere à cidade, o lugar de realização da vida pública. O pensamento político-filosófico tem como princípio, nesse momento histórico, compreender e explicar a vida em coletividade e a ordenação da vida pública. Desse modo, nós estudaremos a filosofia política à luz desses dois autores, focando os conceitos de cidade ideal e cidade real para formalização conceitual de cidade no sentido político-filosófico, sobretudo, no espaço Grego Antigo. CONTEXTUALIZANDO A discussão em torno da relação entre mito e filosofia é bastante ampla, pois o mito nunca deixou de existir, pelo contrário; os filósofos sempre recorreram a eles para clarificar a realidade, como Platão. Todavia, o mito deixou ser explicativo para se tornar um recurso pedagógico, isto é, não tem mais a função de explicar a realidade em si, mas facilitar a sua explicação dentro de um procedimento filosófico. Nesse contexto de ruptura com os mitos, a filosofia passa a ganhar terreno e reconhecimento, pois usa procedimentos racionais ao invés de religiosos e mitológicos na compreensão da realidade. Nesse sentido, a filosofia se desdobra com diversos olhares e se estende como observadora das 3 realidades – e uma dessas realidades é, sem dúvida alguma, a realidade política. Com relação à política, mais precisamente a filosofia política, observa-se uma preocupação com a vida humana, ou seja, a organização da vida em sociedade. Por isso, buscaremos aqui discutir os conceitos de cidade no sentido da idealidade e realidade, ou seja, debater sobre a cidade ideal e a cidade real. Observamos a existência da relação do mito com a política. A filosofia pode ter rompido com os mitos, mas a pergunta é: A política, do ponto de vista filosófico, rompeu com os mitos? Observe que Platão, ao descrever sua cidade ideal, recorre a um discurso que é mitológico, isto é, fala de uma cidade que existe no mundo inteligível e pensa o gestor dessa cidade como o filósofo, considerado o filósofo-rei, pois, para Platão, somente com esse governante será possível construir uma cidade justa. Nesse sentido, faço a seguinte pergunta: nos dias atuais, pode se falar de uma ruptura da política com os mitos? Ou a política encontra-se carregada de discursos mitológicos? Pense, nessa questão, o mito como símbolos, fábulas e narrativas fantasiosas. Proponho que você conceitue, do ponto de vista político-filosófico, a cidade e sua função no espaço da Grécia Antiga e sua relação com a cidade contemporânea. Pense na seguinte situação: Você recebeu o poder de edificar uma cidade. Por isso, alguém próximo a você sugeriu que escolhesse uma das cidades desenhadas na filosofia antiga, a saber, a cidade ideal (Platão) e a cidade real (Aristóteles). E você recebeu de bom grado a sugestão. Qual seria, de sua escolha, a cidade a efetivar? Reflita e, a partir da sistematização dos conceitos platônico e aristotélico de cidade, decida e justifique a resposta. Voltaremos a essa problemática ao final do tema! TEMA 1 - MITO E POLÍTICA – UMA OBSERVAÇÃO À LUZ DE PLATÃO Você sabe da relação existente entre o mito e a filosofia e que é muito comum, nos livros de história, a relação hierárquica existente entre eles, ou 4 seja, do mito nasce a filosofia e da religiosidade nasce a ciência no espaço grego antigo. Por isso, para muitos historiadores, especialmente Julían Marías, o espaço Grego antigo faz, sobretudo com Platão, a passagem da doxologia para a epistemologia. Pois bem, por isso não devemos estabelecer uma hierarquia entre mito e filosofia, mas sim classificá-los como saberes diferenciados, ou seja, formas diferentes de compreender a realidade. Todavia, no que diz respeito à relação existente entre mito e política, devemos fazer algumas considerações: Não é comum, do ponto de vista filosófico, relacionar mito e política, pois a política trata da realidade concreta e o mito opera nos mundos subjetivo e religioso. Política é consenso, gestão da coisa pública e, acima de tudo, organização da vida coletiva. Por isso, não existe qualquer relação com o mito, quer dizer, com noções e explicações mitológicas. Temos que observar que o conceito de mito, sobretudo nesse primeiro momento, é trabalhado com vistas ao universo Grego Antigo. O mito foi concebido quando ainda não haviam as cidades constituídas como elemento de sobrevivência humana do ponto de vista político e jurídico, logo, os mitos serviam ao propósito de ordenamento da vida moral: as pessoas se valiam deles para explicar a realidade e ordenar a vida individual e coletiva. Pois bem, pensemos na relação que existe, no sentido filosófico, entre mito e política. Para tanto, consideremos o filósofo Platão que usa dos mitos para, justamente, detalhar conhecimento, ou seja, faz do mito um recurso pedagógico de facilitação do conhecimento. Veja que no livro VII de A República, a alegoria da caverna, comumente conhecida como mito da caverna, Platão faz uso do mito para explicar que alguns homens são, por natureza, conhecedores da verdade, ou seja, nasceram para esse fim. Por isso, na alegoria platônica, essa tipologia de homem, o filósofo-rei, não suporta as correntes que representam a ignorância, por isso se liberta e tem como objetivo conduzir os demais homens acorrentados, ou seja, retirá-los da caverna e conduzi-los à luz. Decerto que esse homem que se liberta da caverna é o filósofo-rei, pelo fato de conhecer a verdade, isto é, o mundo inteligível, ou seja, as coisas como elas são. Os sofistas eram filósofos, mas no sentido pejorativo, isto é, o sábio 5 que se faz pela retórica e não pela sua condição de natureza. No entendimento de Platão, no livro VI de A República: Mas na tua opinião, em que diferem dos cegos os que não têm na sua alma nenhum modelo luminoso nem podem, à maneira dos pintores, vislumbrar o verdadeiro absoluto (...) Veja que Platão se refere aos sofistas que não são filósofos, mas tentam sê-lo e usam da retórica, mas não dispõem da natureza de filósofo. Jacques Brunschwig (1993, p. 951), no texto Dicionário de Obras Políticas, organizado por Châtelet, Duhamel e Pisier, faz uma leitura política da filosofia platônica: O que caracteriza o filósofo é o tipo de realidade de que ele gosta e que ele conhece: não as realidades mundanas, sensíveis, como o belo, em si distintas das coisas belas, e outras normas transcendentes. O autor faz referência ao texto de A República, especialmente no que diz respeito ao filósofo-rei. Pois bem, perceba que o mito apresentado faz referência ao filósofo-rei, aquele quetem o papel de conduzir os homens acorrentados à verdade, isso porque, na leitura de Jacques Brunschwig, o tipo de realidade que o filósofo aspira difere da realidade que os homens comuns aspiram, que observam e desejam o aparente, o sensível, o imediato. Desse modo, tais homens não podem conduzir a política e somente o filósofo-rei tem, por natureza, essa função na filosofia platônica. No livro VI, Sócrates faz a defesa de que é preciso que o filósofo, conhecedor das verdades, conduza o Estado, pois, segundo ele, o doente, rico ou pobre, carecendo de cuidados médicos, busca um médico e não um marinheiro. Assim, diz Sócrates, deve ser com as demais ciências. Desse modo, no entendimento platônico, articulado nos livros VI e VII de A República, o filósofo é de natureza, por isso mesmo somente um homem se desprende das correntes e tem o poder de voltar à caverna para libertar os demais. Nas palavras de Sócrates (1990, p. 198): Lembra-te da descrição feita por nós há pouco do caráter que é preciso ter recebido da natureza para se tornar um homem nobre e bom. A discussão que tratamos aqui é justamente no sentido de chamar a atenção para o seguinte fato: o mito, no sentido pedagógico, faz com que a política seja compreendida como ordenamento do espaço público, mas ligada à natureza do indivíduo. Em outros termos, ainda no sentido platônico, a política 6 é uma virtude que nasce com o sujeito e cujo objetivo é a promoção da vida pública. Ainda nas palavras de Platão (199, p. 2006): Com efeito, num governo adequado, os filósofos teriam desfrutado de mútuo prestígio e se teriam tornado úteis ao Estado e ao cidadão. A utilidade é, justamente, a organização da vida coletiva. Pois bem, após a narrativa de que um homem se desprende das correntes, deixa a caverna e faz um caminho abrupto até encontrar a luz, começa um debate para se saber a função da lei no sentido de assegurar a ordenação do Estado, pois, segundo Platão (1999, p. 231): Esqueces uma vez mais, meu amigo, que a lei não se ocupa de garantir uma felicidade excepcional a uma classe de cidadãos, mas esforça-se por realizar a felicidade de toda a cidade. (...) Perceba que o filósofo tem por obrigação, na gestão do Estado, de assegurar a felicidade a todos os indivíduos, pois, segundo Platão, não se governa para um grupo, mas para o Estado, cuja finalidade é o assegurar uma cidade autêntica, onde os valores da justiça e do sumo bem sejam capitais para a efetivação da felicidade de todos homens. Felicidade no sentido de conhecimento, contemplação do que é verdadeiro, sumo bem que se encontra no mundo inteligível. TEMA 2 - PLATÃO: A CIDADE IDEAL Platão é, dentre outras coisas, conhecido como o filósofo da cidade ideal. Essa compreensão é, em certo sentido, verdadeira, pois basta observar a obra A República para compreender a razão desta perspectiva. No livro IX da obra (1999, p. 319), Sócrates finda com a seguinte afirmação: Mas talvez haja um modelo no céu para quem quiser contemplá-lo e, a partir dele, regular o governo da sua alma. Aliás, não importa que essa cidade exista ou tenha de existir um dia: é somente as suas leis, e de nenhuma outra, que o sábio fundamentará a sua conduta. Entenda que Platão, usando o personagem Sócrates, conclui o livro IX após um longo debate em torno dos tipos de governo. A exposição começa no livro VIII e debate no livro IX sobre o homem tirânico. A discussão tem como propósito, no livro, de analisar a tirania, mas a questão que cabe a nós é discutir como a compreensão filosófica da cidade ideal é tratada no pensamento platônico. 7 Por isso, observa-se como Sócrates faz a conclusão do livro IX, onde chega a dizer que não importa se essa cidade existe ou existirá no mundo sensível, mas que certamente existe nos céus para que o homem possa regular sua vida na terra. Pois bem, a preocupação platônica é no sentido de postular uma cidade perfeita, que não se encontra no mundo sensível, mas no mundo inteligível e por isso pode, por meio de suas leis, como bem disse Sócrates, orientar a vida dos sábios. Veja que a idealidade é no sentido de não existir essa cidade no mundo terreno, compreendida como algo perfeito, capaz de realizar a existência humana. A cidade que se tem no mundo tangível é a cidade imperfeita, onde quem governa não é o filósofo, mas o seu oposto. Se voltarmos ao livro VI de A República, vamos encontrar a discussão em torno do filósofo-rei, pois, de acordo com Platão (199, p. 209), fazendo uso do seu personagem capital, Sócrates: Se nunca aconteceu, nos séculos passados, que um filósofo fosse obrigado a se encarregar do governo de um Estado, ou se nos dias de hoje isso se dá em alguma remota região de bárbaros, ou se realmente algum dia vier a acontecer, poderemos então afirmar que existiu, existe ou existirá uma república semelhante à nossa, quando a musa filosófica se tornar senhora de uma cidade. Observe que existe um estreitamento entre o filósofo e a filosofia, ou seja, o homem sábio que deve governar, pois o filósofo é amigo da sabedoria, isto é, do saber. Por essa razão, segundo Sócrates, quando a musa filosofia tornar-se senhora da cidade haverá justiça no sentido pleno. Isso significa que a sabedoria só pode ser operada pelo filósofo, o amigo do saber que tem uma relação de imbricação e é desprendido do mundo sensível, isto é, da vulgaridade mundana, condição dos não filósofos, pois, nas palavras de Sócrates (1999, p. 205): Por semelhantes motivos, que ideias e opiniões podem advir do trato dessas almas vulgares e incultas com a filosofia? Com certeza, nada além de frivolidades, opiniões sem fundamentos, sem sentido, sem consistência, enfim, apenas sofismas. Pois bem, de volta ao conceito de idealidade, no sentido filosófico, mais precisamente, político-filosófico, corresponde a maneira de pensar a cidade 8 como espaço de vida pública, vida efetiva, mas não, necessariamente, vida feliz, uma vez que a cidade não tem como objetivo capital a filosofia como a musa soberana. Em outros termos, não é de interesse público, de todos os indivíduos, o governo do filósofo, mas o governo do não filósofo, uma vez que este, na perspectiva platônica, não governa para a felicidade dos indivíduos, mas com intuito de satisfazer os desejos deles. A felicidade aqui não é a mesma trabalhada por Aristóteles. Pelo contrário, felicidade é, no pensamento platônico, o encontro do homem com o mundo inteligível, o encontro com a verdade em si mesma. Em outros termos, a alegoria da caverna, exposição trabalhada no livro VII de A República, pode representar a felicidade, quer dizer, o homem que deixa a caverna, faz um caminho abrupto e, depois, de um longo período de sofrimento e de cegueira encontra a luz; a verdade em si mesma. Em tese, poderíamos dizer que A República, obra clássica de Platão, corresponde, sem sombra de dúvida, à cidade perfeita, ou ainda, ao desenho ideal de sociedade, onde existe um projeto recortado em torno da justiça e da organização da vida coletiva. E essa organização começaria, no entendimento platônico, quando cada homem cumprisse seu papel, seguindo sua natureza política. De acordo com Platão, a natureza política do homem pode se configurar como natureza do artesão (trabalhador), do guerreiro (guardião), e do filósofo (sábio). A realização da vida pública aconteceria, no entendimento platônico, quando cada indivíduo faz sua parte de acordo com sua natureza, trazendo harmonia e anulando a necessidade de conflitos. Entretanto, cabe ressaltar que realização da vida pública não é o mesmo querealização da existência humana na vida pública. O homem não se realiza, do ponto de vista da existência, com trabalho, mas com a contemplação, ou seja, a realização existencial é uma participação dele. Um dado importante na construção da cidade ideal é a educação. Para o filósofo, a educação deve auxiliar na compreensão da justiça e da vida em comunidade e fazer com que cada indivíduo tome conhecimento de sua natureza e a exerça na construção do espaço público. Desse modo, o papel da educação seria, sobretudo, formar o sujeito para reconhecer sua natureza e exercê-la em benefício da cidade. 9 TEMA 3 - ARISTÓTELES: A CIDADE REAL Aristóteles, discípulo de Platão, configura-se como o filósofo da cidade real. Esse título é, em grande medida, assegurado pela oposição ao pensamento platônico. Todavia, quero chamar sua atenção para o conceito de oposição, pois aqui a noção é de antagonismo, ou ainda, de uma posição bastante diferenciada do que pensou e sistematizou o seu mestre, o filósofo Platão. Faço a observação no sentido de esclarecer que existe uma influência preponderante da filosofia platônica no pensamento aristotélico, mas, no que compreende à cidade, comumente pensada por Aristóteles como polis, ocorre uma disparidade conceitual, pois Platão configura-se como um filósofo que, dentre outras coisas, defende a hierarquia e o elitismo político. Aristóteles, diferente de seu mestre, fala de uma organização natural da cidade, um espaço de realização da natureza humana no mundo sensível. Châtelet (1993, p. 53), no texto Dicionário das Obras Políticas, faz a seguinte observação do pensamento aristotélico, desenvolvido na obra A Política: Assim, a cidade, quadro no seio do qual a humanidade está em condições de realizar plenamente as virtudes ou potências que comporta sua natureza, é ela própria um fato da natureza, do mesmo modo que as relações de sangue e de coabitação. Veja que, na interpretação de Châtelet, a cidade aristotélica tem por obrigação natural potencializar as virtudes no sentido de desenvolvimento da vida humana no sentido pleno, ou seja, de realização da natureza humana. Pois bem, segundo Aristóteles, a cidade é o lugar da felicidade e da realização da pessoa humana. Desse modo, diferentemente de Platão, não se trata de uma contemplação de uma cidade que se encontra no mundo inteligível, mas sim de uma cidade que pode se realizar aqui no mundo sensível, onde, por meio de instrumentos pedagógicos e políticos, o Estado (cidade) possa garantir a formalização da justiça no sentido de ajudar os indivíduos para o exercício de sua natureza política, como um animal político. Essa expressão não deve ser entendida como vulgarização ou barateamento do conceito, mas como um termo que sintetiza, em certo grau, a compreensão filosófica no sentido político do pensador Aristóteles. O animal político é, justamente, uma compreensão de natureza política, onde o sujeito é portador dessa condição, pois caso não seja um animal, no entendimento 10 aristotélico, será um Deus ou outra coisa qualquer, mas jamais homem, uma vez que a natureza do homem é de ser político, de realizar-se com o outro na esfera pública. Nas palavras de Aristóteles (2006, p. 5): Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver- se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto. A expressão aristotélica é bastante significativa no que diz respeito à natureza política do homem, como ele afirma na sequência do capítulo (2006, p. 5): Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e outros animais que vivem juntos. Segundo o autor, o homem, diferente dos animais, tem uma natureza política, ou seja, busca viver em comunidade de forma muito mais forte do que as abelhas e os outros animais. Nesse sentido, a realização do homem como animal político depende, em certa medida, da cidade, ou seja, do desenvolvimento da cidade como espaço público de organização da vida coletiva, pois somente na cidade o homem consegue, enquanto sujeito político, efetivar suas potencialidades e, de certa maneira, atingir sua felicidade, realização plena de sua humanidade. Nas palavras de Aristóteles (2006, p. 1), na obra já mencionada: Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem, seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as associações dos homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Aristóteles, na abertura da obra A Política, argumenta que a finalidade da sociedade é, justamente, a promoção de um bem, aqui entendido como felicidade. No seguimento da discussão do primeiro capítulo, Aristóteles se propõe a fazer a distinção entre o poder de um chefe de família e o poder de um chefe de Estado: desse modo, argumenta que é bastante diferente, pois o poder de família se restringe ao ambiente privado e o poder do Estado é justamente o poder de promoção do bem comum para todos os indivíduos e, por isso, segundo ele, difere muito do poder do chefe de família. Assim, na sequência do capítulo, ele continua (2006, p. 4): 11 A sociedade que se formou da reunião de várias aldeias constitui a cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o bem-estar. Veja que, diferente de Platão, Aristóteles se preocupa com a cidade no sentido terreno, isto é, a cidade tem por obrigação não só conservar a existência humana, mas algo maior, que seria buscar e promover a felicidade das pessoas que nela habitam. Desse modo, a noção de cidade real, no sentido aristotélico, compreende que o legislador seja capaz de assegurar, como fim para todos os indivíduos, o bem. E esse bem é, no sentido pleno, a felicidade dos indivíduos que, dentre outras coisas, significa a realização da existência humana na esfera pública. TEMA 4 - PLATÃO E ARISTÓTELES: CONVERGÊNCIAS PARA A NOVA POLIS A convergência para a compreensão da polis, no espaço grego antigo, pode ser representada a partir de um debate filosófico no sentido de compreender, conceitualmente, a cidade. Primeiro, vale destacar o que foi dito anteriormente, ou seja, para Platão a cidade é compreendida no sentido de uma idealidade política. Já segundo Aristóteles a cidade é definida nos termos de um realismo político, ou seja, lugar de capacidade para a efetivação da felicidade no mundo sensível, terreno. Pois bem, dito isso, após a compreensão de cada filósofo, Platão e Aristóteles, pode se chegar à conclusão de que a cidade é o lugar da efetivação da vida pública. Essa compreensão, no sentido grego, mais precisamente, compreensão filosófica do espaço grego antigo, esboça, como categoria, que a cidade tem por obrigação promover a justiça, uma vez que desta se espera o fundamento da ordenação pública e a realização das relações sociais e políticas. Em Platão, a discussão da justiça é bastante paradoxal, pois basta diz que os primeiros livros de A República versam sobre o conceito de justiça e tal temática é perpassada por quase, se não todas, as obras platônicas. Para Jaeger (2001, p. 756), na obra Paideia: O conceito platônico da justiça situa-se acima de todas as normas humanas e remonta até a sua origem na própria alma. É na mais íntima 12 natureza desta que deve ter o seu fundamento aquilo que o filósofo denomina justo. Veja que, segundo Jaeger, para Platão a justiça é como algo divino, ou seja, encontra-se no mundo inteligível e por isso é capaz de orientar a vida pública e a alma humana, sendo essa sua função basilar. Para elucidar essa questão, valecitar o mito do anel do mágico Giges, narrado na obra A República. Segundo Platão, havia um homem bom, um pastor de ovelhas que seguia sua rotina, mas que um dia encontrou um grande cavalo de madeira e no seu interior o corpo do mágico Giges, junto ao seu anel. O pastor retirou o anel e o levou consigo, mas durante a reunião com os demais pastores ele percebeu que, ao movimentar o anel, se tornava invisível, ou seja, com poderes ilimitados e diferente não só dos demais pastores, mas de todos os homens. O pastor, que até então era um homem simples, fiel à rotina e justo para com as leis e contratos de seu ofício, uma vez de posse do anel, isto é, de poder ilimitado, tomou a seguinte decisão: matou o rei e casou-se com a rainha, ou seja, violou as leis, desprezou os contratos e agiu como soberano acima da lei. A pergunta que Platão faz é: no sentido da justiça, ser justo é render-se quando não existem forças ou, independentemente da força e do poder, se curvar às leis e à justiça? Veja que o debate, no texto de A República, é alongado, mas interessa, nesse momento, discutir como a justiça, independente dos poderes, deve prevalecer, isto é, o homem deve buscar a justiça independentemente de sua posição social e política, segui-la e deixar orientar-se por ela. A adaptação do mito, extraído do livro II de A República, serve, nesse momento, para chamar sua atenção no que diz respeito à formalização da cidade no texto platônico. Veja que o mote da discussão é a justiça, que se encontra conectada muito mais ao indivíduo do que à ideia de cidade. A filosofia platônica busca, dentre outras coisas, formalizar de forma capital uma tipologia de homem. Por isso, a discussão filosófica no sentido político, sobretudo em A República, gira em torno da cidade ideal e, para além disso, busca teorizar sobre um tipo de homem: o filósofo. 13 Voltemos ao mito do anel do Giges e tomamos a pergunta que Jaeger (2001, p. 759), faz na obra A Paideia: “quem dentre nós, na posse de tal anel, teria na alma a firmeza adamantina necessária para resistir ao poder da tentação? ” A resposta pode não parecer simples, mas é plausível no texto platônico: o filósofo. É sobre essa alma que o texto platônico quer teorizar, ou seja, evidenciar em seu texto. A cidade, lugar ideal, é tratada de forma simples, como lugar de satisfação da vida humana que provê as necessidades humanas materiais. Veja o que diz Sócrates (1999, p.54) no livro II de a República: O que causa o nascimento a uma cidade, penso eu, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas; (...). Observe como a cidade é desenhada, isto é, a função que Platão outorga a ela: garantir a subsistência dos indivíduos, pois caso eles se bastassem, a cidade seria desnecessária. Desse ponto é que estabelecemos a convergência entre os filósofos Platão e Aristóteles. Perceba que, no caso da cidade ideal, a função é assegurar a existência material do homem, sua sobrevivência como sujeito de necessidades. No segundo caso, a cidade real tem por obrigação a realização da existência humana, isto é, o fim é o bem, a felicidade. A primeira cidade, desenhada por Platão, tem um caráter idealista justamente porque é combinada a partir de uma hierarquia que se faz em razão de uma natureza política, mais precisamente, em razão da tripartição da alma humana: alma de filósofo, alma de guerreiro e alma de artesão. Essa hierarquia da natureza política, uma vez combinada, é passível de garantir a subsistência de todos os indivíduos, uma vez que cada alma fará o seu papel no espaço público e em razão dessa harmonia a cidade sobreviverá, garantindo os provimentos materiais para os seus agentes-filhos. Aristóteles desenha uma outra cidade e denomina esse espaço, a polis, de espaço de natureza, ou seja, a cidade faz parte da natureza humana, sendo um espaço político natural que tem como fundamento a subsistência material de seus indivíduos e para além disso deve garantir a felicidade deles e a realização da existência humana – uma vez que os indivíduos têm uma 14 natureza política, mas não no sentido hierárquico, mas como animais políticos, e devem se realizar nessa função natural. Nesse sentido, pode-se dizer que as duas cidades se completam, ou seja, convergem para o mesmo fim: no primeiro momento, a subsistência da vida humana e, no segundo momento, a realização da existência humana. Por isso, o espaço grego antigo, aqui representado pelos filósofos Platão e Aristóteles, colabora com os fundamentos de um Estado cuja característica capital é de proteção da vida humana e também assegura, no sentido pleno, a realização da vida como existência humana. TROCANDO IDEIAS Chegou a hora de compartilhar seus conhecimentos com os colegas de curso! Para isso, vamos analisar as seguintes frases dos filósofos dessa aula: "Quer conhecer um homem, dê-lhe poder." (Platão) "O homem guiado pela ética é o melhor dos animais; quando sem ela, é o pior." (Aristóteles) Ambas se referem à discussão sobre justiça apontada no mito do anel de Giges. Discuta com seus colegas no fórum o significado e os desdobramentos dessas afirmações, com foco no campo da política. Procure pensar em exemplos que corroborem ou questionem as afirmações, embasando seus comentários nos conteúdos estudados. NA PRÁTICA Você se lembra da reflexão sugerida no início da aula? Você recebeu o poder de edificar uma cidade. Por isso, alguém próximo a você sugeriu que escolhesse uma das cidades desenhadas na filosofia antiga, a saber, a cidade ideal (Platão) e a cidade real (Aristóteles). E você recebeu de bom grado a sugestão. Qual seria, de sua escolha, a cidade a efetivar? Reflita e, a partir da sistematização dos conceitos platônico e aristotélico de cidade, decida e justifique a resposta. Após chegar a uma conclusão, consulte a seguir as considerações sobre a atividade. 15 1. A cidade platônica tem sua preocupação centrada no indivíduo e dá pouca importância à coletividade. Desse modo, conceitos como justiça servem para que as almas se orientem no sentido de conduzir suas vidas no caminho do bem. 2. Caso tenha escolhido a cidade ideal desenhada por Aristóteles, você se preocupa com a vida no espaço coletivo e acredita que o homem é um animal político, isto é, um animal social. 3. No caso da cidade aristotélica, temos uma cidade que é natural, ou seja, que tem por obrigação auxiliar o homem na sua natureza política e a ser feliz com os demais homens. SÍNTESE Nesse capítulo, busquei trabalhar o pensamento grego antigo, mais precisamente, o pensamento político de Platão e de Aristóteles. Para tanto, circunscrevi a discussão em torno da cidade, isto é, como esses autores trabalham o conceito de cidade, sobretudo estabelecendo uma relação entre a cidade ideal e real. Desse modo, deixo para você refletir sobre o tema e sobre a relação de confronto e imbricação entre idealidade e realidade no que diz respeito às cidades platônica e aristotélica. Sugiro que faça a leitura do livro II de A República e reflita sobre o mito do anel de Giges, pensando a justiça e questionando se o justo só o é em razão da lei ou se é possível ser justo independente da força da lei, mesmo em posse de um poder acima dos outros homens, como o anel do mito. Sugiro também que faça uma leitura dos primeiros livros da obra de Aristóteles A Política, para formalizar a origem da cidade no pensamento aristotélico. Ainda, quando possível, faça uma leitura das obras de baseda aula e conheça os autores, pois são nomes capitais para uma boa compreensão da filosofia política. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2002. CHÂTELET, François. História das Ideias Políticas. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2000. 16 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MARÍAS, Julían. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2004. PLATÃO, A República. São Paulo: Nova Cultural, 1999. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os Gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
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