Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Brasília-DF. Terapias pós-Modernas Elaboração Karina Santos da Fonseca Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................. 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA .................................................................... 5 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 7 UNIDADE ÚNICA TERAPIAS PÓS-MODERNAS..................................................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 TERAPIAS PÓS-MODERNAS ....................................................................................................... 9 CAPÍTULO 2 AS ESCOLAS E AS TERAPIAS PÓS-MODERNAS .......................................................................... 17 CAPÍTULO 3 ABORDAGENS TERAPÊUTICAS PÓS-MODERNAS ....................................................................... 25 CAPÍTULO 4 EQUIPE REFLEXIVA .................................................................................................................. 30 CAPÍTULO 5 CONTRIBUIÇÕES TERAPÊUTICAS .............................................................................................. 46 PARA (NÃO) FINALIZAR ..................................................................................................................... 62 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 64 4 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico- tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 5 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Praticando Sugestão de atividades, no decorrer das leituras, com o objetivo didático de fortalecer o processo de aprendizagem do aluno. 6 Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Exercício de fixação Atividades que buscam reforçar a assimilação e fixação dos períodos que o autor/ conteudista achar mais relevante em relação a aprendizagem de seu módulo (não há registro de menção). Avaliação Final Questionário com 10 questões objetivas, baseadas nos objetivos do curso, que visam verificar a aprendizagem do curso (há registro de menção). É a única atividade do curso que vale nota, ou seja, é a atividade que o aluno fará para saber se pode ou não receber a certificação. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 7 Introdução O Assistente Social, no exercício de suas atribuições, possui a necessidade do conhecimento das Terapias Pós-Modernas. Por isso, torna-se relevante a obtenção de informações sobre a equipe reflexiva, as contribuições terapêuticas e as ferramentas conversacionais. Este Caderno de Estudos, portanto, tem o objetivo de proporcionar informações acerca das Terapias Pós- Modernas, com o compromisso de orientar os profissionais da área de Serviço Social para que possam desempenhar suas atividades com eficiência e eficácia. Objetivos » Aprofundar os conhecimentos teóricos sobre Equipe Reflexiva da Terapia Pós-moderna. » Conhecer os aspectos relevantes sobre as contribuições terapêuticas. » Levantar informações relevantes sobre ferramentas conversacionais. 9 UNIDADE ÚNICATERAPIAS PÓS- MODERNAS CAPÍTULO 1 Terapias Pós-Modernas Família: grupo de pessoas ligadas entre si por laços de casamento ou de parentesco, ou conjunto de ancestrais ou descendentes de um indivíduo ou linhagem. Larousse Cultural, 1992. No Brasil, podemos destacar como grandes nomes da Terapia Familiar dentre outros: Marilene Grandesso, Maria José Esteves, Terezinha Féres, Rosa Macedo, Sandra Fedulo, Roberto Faustino (Recife), Rosana Rapizzo e Luiz Carlos Prado. É possível compreendermos que o sistema familiar vive interações que repercutem no seu desempenho, tanto em seu ambiente interno como externo. Desta forma, conseguimos entender um dos principais pilares da Terapia Familiar que é a circularidade que estuda atenciosamente as sequências interacionais dos familiares para um olhar mais aprofundado acerca dos fatores que estão “segurando” o padrão comportamental familiar. Sabe-se que todo sistema faz parte de um sistema maior, por esse motivo, é importante relacionar a família observando-se sua rede de subsistemas mediante a leitura de contextos mais amplos, ou seja: indivíduo, grupo, comunidade, sistema de crenças, cultural, político. A família é compreendida como um sistema aberto, e, dependendo de como “administra” suas relações, poderá “trabalhar” para diante de um desafio, problema, continuar na sua zona de conforto e não propiciar a mudança, ficando na homeostase. Pode também “trabalhar” no favorecimento da mudança buscando condições de superação e novos significados. É importante ressaltar que a Terapia Familiar dos dias atuais tem seus paradigmas baseados na Ciência Pós-Moderna e se apoia nos seguintes conceitos: » Complexidade (não existe só uma realidade): base no multiverso; há diferentes olhares, múltiplos significados acerca de um mesmo fato. 10 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS » Imprevisibilidade: compreender que as imprevisibilidades existem, pois muitos fatos não estão sob o nosso controle. » Intersubjetividade:influências recíprocas entre o observador e a realidade observada: negação da neutralidade. Ou seja, enquanto participante do processo terapêutico, o terapeuta, também, coloca nesse percurso suas vivências. A Teoria Sistêmica nos ensina a olhar como a vida das pessoas é moldada pelas interações tanto com seus familiares como pelos contextos nos quais estão inseridos. O contexto familiar é compreendido de forma menos objetiva e mais complexa, na qual se vai em busca dos diversos significados dos membros familiares e da família como um todo. O terapeuta familiar deverá atuar como um facilitador, ajudando nesse processo de curar feridas e também de mobilizar talentos e recursos. Para tal é preciso que ao trabalhar no processo terapêutico familiar, o terapeuta possa se aprofundar nos seguintes pontos significativos: » contexto relacional; » circularidade dos comportamentos: individual e familiar, emocional, afetivo, cognitivo; » padrão de comportamento familiar-abertura /fechamento à mudança; » estrutura familiar: subsistemas, fronteiras, triângulos, alianças, colisões, hierarquia, papéis; » heranças familiares e suas influências: proximidade e diferenciação, sentimento de pertencer à família através dos seus valores e aprendizados, mas também se trabalhar em busca de um sentido de autoria própria: autonomia; » esse olhar familiar é transgeracional focando a família de origem e a família nuclear. muitas vezes, trabalhamos com a compreensão de três gerações; » processos de comunicação; » crenças, valores, significados; » ciclos de vida familiar; » função do sintoma na família; 11 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I O terapeuta familiar sistêmico procura desenvolver uma epistemologia voltada à atenção de como evolui na sua forma de conhecer, atuar, mediante a observação atenta dos seus valores, sua visão de mundo, e a forma através da qual faz a integração desses fatores ao contexto terapêutico. Seu olhar é, continuadamente, voltado ao contextual, ao relacional, sem esquecer também o valor do fator individual em cada sistema familiar, refletindo o terapeuta, que ao mesmo tempo que é parte integrante do sistema. Contextualizando uma visão pós-moderna sistêmico-si-cibernética, dentro do conceito da Terapia familiar, Maria José Esteves (1980) coloca que é importante reforçar os seguintes pontos: » entender que a família é um sistema aberto e que o terapeuta não está a serviço de reparar ou consertar a disfunção. Importante o trabalho cooperativo entre família e terapeuta voltando o olhar à família também como recurso e não só dificuldade; » a intersubjetividade do terapeuta deverá ser compreendida e incluída no contexto do sistema: o terapeuta deverá, ao mesmo tempo que faz parte do sistema, dele tomar distância para refletir conteúdos que são seus e das famílias; » sabendo que não existe apenas uma realidade, o terapeuta precisa estar consciente das suas ideias que tem acerca das patologias, estruturas disfuncionais, seus preconceitos, das suas demandas, para que colocando tudo isso em parênteses, possa estar aberto para visões alternativas; » essencial que o terapeuta aja como facilitador da autonomia do cliente, uma vez que ele tem a função de “arquiteto do diálogo” que incentiva condições e facilita a abertura para a criação do espaço dialógico; » o terapeuta deverá compreender que adotar o pensamento circular não significa anular o pensamento linear que faz parte da sobrevivência de todos nós. Importante é focalizar ideias, sentimentos e ações, compreendendo como esses se entrelaçam e contribuem ao sentido de autoria das famílias, olhando também as condições de interdependência dessas situações; » fundamental ao terapeuta pós-moderno é investir, continuadamente, no exercício de aprender sobre terapia familiar, aprender como fazer esse tipo de terapia e aprender como ser um terapeuta de família. 12 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS Vivemos hoje na terapia familiar a uma multiplicidade de abordagens tantas quantos forem os terapeutas em questão. Contudo, a ausência de um purismo de abordagens não significa uma anarquia epistemológica se considerarmos os marcos referenciais da pós-modernidade como seus denominadores comuns. Uma coerência epistemológica une as práticas pós-modernas de terapia em torno de alguns pressupostos teóricos comuns que organizam a ação dos terapeutas: » a consciência de que o terapeuta coconstrói no sistema terapêutico em ação conjunta com a família a definição do problema e das possibilidades de mudança; » a crença de que toda mudança só pode se dar a partir da própria pessoa e da sua organização sistêmica autopoiética, sendo responsabilidade e especialidade do terapeuta a organização da conversação terapêutica; » a mobilização dos recursos da família, da comunidade, das redes de pertencimento, legitimando o saber local de pessoas e contextos; » uma concepção não essencialista de self compreendido como construído no contexto das relações e práticas discursivas; a visão da pessoa como autora de sua história e existência, competente para a ação, para o agenciamento de escolhas a partir de um posicionamento autorreflexivo, moral e ético, podendo criar e expandir suas possibilidades existenciais; » a ênfase sobre os significados socialmente construídos na linguagem e nos espaços dialógicos, sendo construídos nos discursos emergentes e, ao mesmo tempo, responsáveis por suas transformações; » a crença no diálogo, definido como um cruzamento de perspectivas como uma prática social transformadora para todos os envolvidos independente de seu lugar como terapeuta e cliente; » a ênfase nas práticas de conversação e nos processos de questionamento como recurso para gerar reflexão e mudança, conforme expande os horizontes de terapeutas e clientes; » a adoção de postura hermenêutica em que a compreensão é coconstruída intersubjetivamente pelos participantes da conversação; » a ênfase muito mais no processo do que no conteúdo das histórias compreendendo as narrativas como locais e, portanto, idiossincráticas. 13 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I Refletindo sobre o panorama atual da Terapia Familiar podemos considerar que sua consistência decorre de uma epistemologia unificadora pós-moderna apoiada numa hermenêutica contemporânea construída na intersubjetividade, envolvendo a pessoa do terapeuta como coconstrutor das realidades com as quais trabalha. A prática dessas terapias ditas pós-modernas envolve um trânsito do terapeuta entre teoria e prática de modo epistemologicamente coerente, de acordo com os meios que se lhe apresentem mais úteis e despertem seu entusiasmo e criatividade enquanto interlocutor qualificado. Enquanto uma prática social transformadora esta terapia se organiza a partir dos contextos locais e das histórias culturais de distintas comunidades linguísticas. O respeito pela diversidade e multiplicidade de contextos com seus saberes locais implica numa terapia construída a partir da aceitação da responsabilidade relacional do terapeuta, legitimando os direitos humanos de bem-estar e de exercício da livre escolha. Os imensos desafios que se apresentam para o terapeuta vindos do campo da saúde mental, das instituições voltadas para o cuidado e tratamento da pessoa, dentro de uma perspectiva pós-moderna, convidam para a humildade na construção do conhecimento e conduzem, cada vez mais para uma ação transdisciplinar numa instância de trocas colaborativas entre os distintos domínios de saber e no uso de técnicas como recursos a serviço do bem-estar. O caráter autorreferencial e de reflexo presente nas terapias pós- modernas, desafiam o terapeuta a tornar explícitos os seus pré-juízos, os seus valores, suas opções ideológicas, nos limites da sua subjetividade, estabelecendo parâmetros para a clínica que pratica harmonizando de forma estética teoria e prática a serviço do bem-estar das famílias que são atendidas. O pensamento pós-modernoTemos encontrado uma pluralidade de entendimentos para o que pode ser chamado de pós-modernismo, desde a sua apresentação à Psicologia na conferência de Aarhus na Dinamarca, em 1989 (HOLZMAN; MORSS, 2000). Embora nem todos esses entendimentos sejam coerentes entre si, o pós-modernismo pode ser compreendido como uma mudança paradigmática que surge da crise do modelo epistemológico da modernidade, colocando em xeque dentre outras coisas: » a separação entre um mundo real e um mundo da experiência; » a segurança das representações claras e distintas como fundamento de um conhecimento válido, ou seja, a existência de verdades imutáveis como base para a construção do conhecimento; 14 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS » a possibilidade de separação entre um sujeito epistêmico, apto para empreender um conhecimento confiável de origem insuspeita, e o objeto de seu conhecimento, ou seja, a possibilidade de um conhecimento objetivo. A influência dos “neokantianos” e da nova física de Heisenberg, no início do Século XX, colocou em descrédito os parâmetros para o pensamento que, desde o século XVII, sustentavam a busca do conhecimento válido. A rejeição do sonho Iluminista de avanço seguro através da razão e da ciência (KVALE, 1992), resultou na rejeição dos discursos hegemônicos e monovocálicos que marginalizam vozes minoritárias, dissidentes e desviantes, apontando para as implicações políticas dessa marginalização. É neste lugar que podemos situar trabalhos como os de Foucault, Derrida, Baudrillard e Lyotard. O conhecimento como um processo ativo, construído e não descoberto, apoia-se na ideia de que a compreensão humana é uma construção negociada entre redes conceituais das pessoas em transações no mundo. Assim, o pensamento pós-moderno questiona as metanarrativas, o discurso privilegiado de sujeitos epistêmicos com acesso também privilegiado a uma realidade independente e a busca de verdades universais. Dentro desta nova perspectiva, ao invés de uma espécie de “tribunal dos fatos” fora da esfera do “simplesmente humano”, conforme Ibañez (1992) refere-se à tradição da modernidade, o modelo de pensamento da pós-modernidade deixando de lado critérios de validade do conhecimento transportados por uma linguagem configurada como uma representação icônica do mundo real propõe a coerência e a viabilidade como valores epistêmicos. Não tem sentido, portanto, dentro desta nova perspectiva a busca de parâmetros para interpretação acurada da realidade na pretensa produção de um conhecimento independente do sujeito cognoscente da cultura e da história. Enquanto no discurso da modernidade o conhecimento pode ser concebido como um processo sem sujeito, no discurso pós-moderno a existência do objeto do conhecimento implica necessariamente a presença do sujeito cognoscente (IBAÑEZ, 1992), criando uma crise ontológica que resulta no nascimento de uma consciência histórica de uma era em que todos somos protagonistas (MIRÓ, 1994). Assim, o pós-moderno pode ser considerado como um posicionamento crítico, uma postura filosófica que propõe uma nova visão da pessoa humana e do mundo. O conhecimento passa a ser compreendido como uma prática discursiva socialmente construída, cujo caráter local e contextual legitima múltiplas narrativas, resultando no multiperspectivismo de diferentes abordagens dirigidas para a construção de significados úteis para os propósitos humanos. Se sujeito e objeto se interconstituem podemos falar na singularidade e na multiplicidade dos contextos e das culturas, na generatividade da linguagem para a definição do self e do mundo e da aceitação do pressuposto de que conhecer implica em 15 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I conviver com a incerteza, a imprevisibilidade e o desconhecido. Muitas são as questões que o pensamento pós-moderno evoca, muitas delas de natureza ideológica e política organizadas em torno de possibilidades de poder que o conhecimento pode assumir e, outras tantas, em torno de questões epistemológicas e hermenêuticas as quais pretendo abordar na consideração das terapias que podem ser ditas pós-modernas. Terapias pós-modernas Dentro de uma concepção pós-moderna, as abordagens terapêuticas e suas metáforas teóricas estabelecem tipificações do mundo da experiência, sendo, também, histórica e culturalmente contingentes (GRANDESSO, 1997). Nesse sentido, os conceitos teóricos pelos quais nós terapeutas construímos nossas compreensões das pessoas que nos procuram e dos dilemas que elas vivem, são construções sociais úteis, não devendo ser reificadas como se correspondessem a uma realidade pré-existente, independente do terapeuta em questão. O terapeuta pode ser considerado como um agente de transformação social para a qual contribui sua experiência pessoal, profissional e posicionamento político, implicando necessariamente uma ética das relações cujos traços mais significativos são a consciência e a autorreflexividade, nos dizeres de Gergen (1989, 1994, 1991 e 1998), e a consciência de que as práticas e métodos terapêuticos não são ideologicamente neutros. Quando atuamos como terapeutas estamos construindo uma certa forma de mundo, legitimando um determinado conjunto de relações sociais e de forma de tratamento e valorização das pessoas. O pensamento da pós-modernidade configurado como um guarda-chuva paradigmático para a prática da terapia, manifesta-se em um conjunto de princípios e derivações práticas organizadas pelos enfoques construtivistas e construcionista social. Embora haja uma pluralidade de enfoques ditos construtivistas e construcionistas social (construtivismo radical, construtivismo crítico ou psicológico, construtivismo moderado, construtivismo dialético, construtivismo cultural, construtivismo epistemológico, construtivismo hermenêutico, construtivismo terapêutico, construtivismo social, construcionismo social, construcionismo social responsivo retórico, dentre outros), cujo detalhamento foge aos propósitos deste trabalho, todos eles se definem pós-modernos manifestando sua oposição a uma epistemologia objetivista e suas implicações tecnológicas baseadas no poder (GRANDESSO, 1998, 2000). O pensamento pós-moderno na prática clínica reflete-se na mudança das metáforas teóricas que os terapeutas usam mudando das metáforas organizadas em torno do 16 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS conceito de homeostase da Cibernética de Primeira Ordem, das metáforas bélicas do grupo de Milão, tão bem descritas num artigo de Cecchin (1992) para as ecológicas em torno do conceito de coevolução, cocriação e coparticipação (FREEDMAN; COMBS, 1996). A história deste mais de meio século de terapia familiar pode ser descrita a partir dos desdobramentos que passaram a configurar o discurso terapêutico pós-moderno em torno de outras metáforas teóricas que, passando pela pessoa do terapeuta e seu engajamento num processo autorreflexivo, abandonando a noção de descoberta, organizaram as narrativas teóricas e as práticas terapêuticas em torno do conceito de coconstrução, tanto dos problemas como de suas soluções. O pensamento pós-moderno trouxe para a terapia familiar uma mudança dos modelos informados pela Cibernética de Primeira Ordem, com sua ênfase nos padrões de interação e nas organizações familiares baseadas nas noções Parsonianas de estrutura e papel para os modelos condizentes com uma Cibernética de Segunda Ordem, com ênfase na construção de significados, nos modelos dialógicos e nas metáforas narrativas e hermenêuticas. Dentre as palavras-chave comumente empregadas pelos muitos modelos terapêuticos pós-modernos, destacam-se: sistemas linguísticos, narrativa, conversação, diálogo, histórias, significado, cultura. As teorias que os terapeutas adotam são, neste referencial pós-moderno, lentes provisórias (conforme o dizem ANDERSON; GOOLISHIAN, 1988), não derivando seu valor de qualquer pretenso valor verdade, mas sim de sua utilidade como marco gerador e organizador de significadosúteis para a compreensão dos dilemas humanos e favorecimento de uma prática terapêutica geradora de mudança. As técnicas, dentro desta concepção, somente podem ser compreendidas como criadoras de contextos propícios para a mudança terapêutica, derivando seu valor de sua generatividade para favorecer transformações criativas. Dessa maneira, uma teoria passa a ser considerada útil conforme ofereça subsídios para a construção de significados que façam sentido para organizar a experiência vivida pela família e a evolução do sistema terapêutico. 17 CAPÍTULO 2 As escolas e as terapias pós-modernas A família poderia assim se constituir de uma instituição normalizada por uma série de regulamentos de afiliação e aliança, aceitos pelos membros. Alguns desses regulamentos envolvem: a exogamia, a endogamia, o incesto, a monogamia, a poligamia, e a poliandria (MINUCHIN, 1990). Escola estrutural Na década de 1950 a Teoria Estruturalista tornou visível o conflito entre as teorias Clássica e das Relações Humanas. A primeira considerava a organização formal sob uma visão de que para as empresas serem eficientes, deveria ter o foco na estrutura e na forma. Já a última valorizou a teoria informal, as pessoas e os grupos internos. A Abordagem Estruturalista criou uma teoria mais abrangente, entendendo a empresa como uma organização aberta, ou seja, tendo grande interação com o ambiente externo direto e indireto. Além do conceito de homem organizacional, dos inevitáveis conflitos e dos incentivos mistos dentro da organização. A Escola Estruturalista surgiu em decorrência do declínio do movimento das relações humanas no final da década de 1950 com os seguintes aspectos: » oposição entre os aspectos formais e os defendidos pelos autores da escola clássica informais valorizados pelos autores da Escola de Relações Humanas; » a necessidade de visualizar a organização como um todo e não de forma compartimentada e isolada. A organização lida com muitas variáveis complexas de ordem interna e externa. Ela tanto influencia como pode ser influenciada pelo ambiente externo direto e indireto; » a repercussão dos resultados dos estruturalistas na compreensão das organizações como um todo integrado e complexo. 18 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS Conceito de estruturalismo O estruturalismo é um método analítico e comparativo que estuda os elementos ou fenômenos em sua totalidade salientando seu valor de posição. Os estruturalistas preocupam-se com as relações e interconexões das partes na constituição e na compreensão de todos. O estruturalismo esta alicerçado na totalidade e na reciprocidade para facilitar o entendimento de que o todo é o maior que a simples soma das partes. Fundamentos da escola estruturalista O homem organizacional: é aquele que desempenha diferentes papéis em organizações diversas. Para cada papel desempenhado, o homem deve adotar posturas/ comportamento, como a flexibilidade, tolerância, capacidade de adiar as recompensas e permanente desejo de realização. A necessidade de o homem relacionar seu comportamento com o de outras pessoas com o fim de atingir um objetivo, gera a organização social. Na organização social, encontramos o elemento comportamento, gerado pelo estímulo, e o elemento estrutura, que é formado por categorias de comportamento ou conjuntos de comportamentos agrupados. Os conflitos inevitáveis: para os estruturalistas, o conflito entre grupos é um processo social fundamental, pois é o grande elemento propulsor do desenvolvimento, embora isso nem sempre ocorra. O movimento estruturalista não só reconheceu o conflito como inevitável, mas também como muitas vezes desejável para tirar os empregados da zona de conforto. Ele deve estimular a mudança, ou seja, a passagem do estado estável para o estado instável. A administração de conflitos requer a conservação de um nível adequado de conflitos em um grupo. Pouco conflito gera estagnação. Muito conflito gera rupturas e brigas internas. Ambos os casos são prejudiciais para o grupo. Dessa forma, compete ao gestor manter um nível adequado de conflitos por meio da utilização de técnicas de resolução e estimulação de conflitos. O conflito nas organizações pode ser decorrente tanto dos atributos estratégicos, estruturais, processuais e ambientais quanto de desempenho. Fatores como origem, educação, experiência e treinamento moldam cada empregado em uma personalidade única com um conjunto particular de valores. O resultado é que 19 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I as pessoas podem ser vistas pelas outras como ríspidas, indignas de confiança, difíceis, estranhas de lidar. Essas diferenças pessoais podem estimular o conflito. As técnicas geralmente utilizadas na resolução de conflito são a abstenção, acomodação, imposição ou coerção, acordo ou conciliação e colaboração. Os incentivos mistos: os estruturalistas consideram importantes tanto os incentivos e recompensas psicossociais quanto os materiais, bem como as influências mútuas. Os símbolos e os significados também devem ser prezados e compartilhados pelos outros, como a esposa, os colegas, os amigos, os vizinhos. Embora as recompensas sociais sejam importantes, elas não diminuem a importância das recompensas materiais. Alguns autores identificaram a corrente que foi denominada corrente estruturalista cujo enfoque foi estabelecer uma crítica sobre o que tinha sido escrito até então dentro desse campo. Com isso foram passados em revista os conceitos da Escola Clássica, de Relações Humanas e da Burocracia, tomando-se novamente a retórica sobre organizações e sua complexidade. As escolas anteriormente estudadas tinham visão parcial dos elementos que compunham uma organização. E é impróprio considerarmos que o Estruturalismo constitui por si só um corpo teórico com inovações conceituais sobre a administração, mas não o é considerá-lo a forma organizada de analisar os mesmos problemas já abordados de maneira fragmentada. Ao estudarmos a organização sob a óptica estruturalista estamos necessariamente fazendo uma análise globalizante de todos os fatores que compõem o todo organizacional. Mais que isso, estamos reconhecendo a integração e interdependência desses fatores. Outro aspecto importante do conceito de estruturalismo é a influência que esses fatores exercem uns sobre outros, onde surge a necessidade de reconhecer a existência de um ambiente onde eles se inserem. A finalidade da organização, em um sentido amplo, depende de alguma combinação dos seguintes fatores: das hipóteses concernentes à natureza do homem, da unidade de análise, ou seja, dos níveis institucionais, individuais e organizacionais e, por último, do ponto de partida da organização. Minuchin é o principal teórico da Escola Estrutural e para ele a família é um sistema que se define em função dos limites de uma organização hierárquica. O sistema familiar diferencia-se e executa suas funções através de seus subsistemas. As fronteiras de um subsistema são as regras que definem quem participa de cada subsistema e como participa. Para que o funcionamento familiar seja adequado, estas fronteiras devem 20 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS ser nítidas. Quando as fronteiras são difusas, as famílias são aglutinadas; fronteiras rígidas caracterizam famílias desligadas. Famílias saudáveis emocionalmente possuem fronteiras claras. A estrutura não é, para Minuchin (1974), uma entidade imediatamente acessível ao observador. É no processo de união com a família que o terapeuta obtém os dados, escalonamento do stress e a utilização dos sintomas. A terapia estrutural é uma terapia de ação e o sintoma é visto como um recurso do sistema para manter uma determinada estrutura. Escola estratégica A Escola Estratégica (HALEY, 1985; MADANES, 1984) é um modelo pragmático voltado essencialmente para a clínica. Sua preocupação é com a solução do problema e com a identificação dos comportamentos que mantêm o problema. Para cada resolução de problema,são traçadas estratégias específicas. Há um plano geral que inclui a primeira entrevista a qual tem lugar muito importante, pois além de explorar o problema, estabelece as metas e as atribuições que cabem a todos. Progressivamente vão sendo planejadas intervenções que requerem cooperação de todos até o estágio de resolução do problema e uma fase posterior de manutenção dos ganhos obtidos. O termo estratégico é utilizado para descrever qualquer terapia em que o terapeuta realiza ativamente intervenções para resolver problemas. A visão estratégica define o sintoma como expressão metafórica ou analógica de um problema representando, ao mesmo tempo, uma forma de solução insatisfatória para os membros do sistema em questão. A abordagem terapêutica é pragmática: trabalham-se as interações e evitam-se os porquês. O principal objetivo é mudar o comportamento manifesto do paciente. São utilizadas instruções paradoxais que consistem em prescrever comportamentos que, aparentemente, estão em oposição aos objetivos estabelecidos, mas que visam a mudanças em direção a eles. A instrução paradoxal é mais frequentemente utilizada sob a forma de prescrição de sintoma, isto é, encorajando- se aparentemente o comportamento sintomático. Para Watzlawick et al. (1967) o uso do paradoxo leva a substituir a ação do duplo vínculo patogênico por um duplo vínculo terapêutico. Escola de Milão Refere-se à escola da psicoterapia sistêmica desenvolvida pelos psiquiatras e psicanalistas milaneses Mara Selvini Palazzoli, Luigi Boscolo, Gianfranco Cecchin e Giuliana Prata. Esse grupo de estudiosos afastou-se da psicanálise na década de 1970 e dava ênfase ao tratamento da família como um todo, priorizando a observação do 21 “jogo” intrafamiliar, ou seja, das regras internas e implícitas que regem a família – e que, normalmente servem de apoio à sintomática. Foi então desenvolvido um modelo sistêmico de intervenção familiar, que é utilizado no atendimento de famílias anoréticas e ou com problemas sérios emocionais. Partindo da hipótese de que a família é um sistema autorregulado que se governa através de regras, Palazzoli et al.( 1978 ) relata suas pesquisas com diferentes grupos de famílias e conclui que as famílias de anoréticos são caracterizadas pela presença de redundâncias comportamentais e por regras particularmente rígidas, enquanto as famílias com um paciente psicótico, embora a rigidez do modelo base, apresentam enorme complexidade nas modalidades transacionais. Um princípio terapêutico fundamental para o grupo de Milão é a conotação positiva dos comportamentos apresentados pela família. Quando se qualificam como positivos os comportamentos sintomáticos, motivados pela tendência homeostática do sistema e não os comportamentos. Outro tipo de intervenção utilizada pelo grupo de Milão é o ritual familiar, ou seja, uma ação ou uma série de ações das quais todos os membros da família são levados a participar. A prescrição de um ritual visa evitar o comentário verbal sobre as normas que perpetuam o jogo em ação. No ritual familiar novas regras substituem tacitamente as regras precedentes. Para elaborar um ritual o terapeuta deve ser bastante observador e criativo. O ritual é rigorosamente específico a uma determinada família. A neutralidade é a posição de que o sistema deve ser visto em todas as suas partes, e todas têm a mesma importância na sua expressão. Na prática é fazer aliança com todos os membros da família. Além do valor da equipe como um importante recurso no atendimento, a Escola de Milão trouxe questionamento sobre intervalo entre as sessões, como um outro recurso terapêutico (BOSCOLO, CECCHIN, HOFFMAN; PENN, 1993). Nichols e Schwartz (2006-2007) consideram que a Escola de Milão pode ser vista como estratégica (na origem de seus conceitos e prescrições) e com ênfase na adoção de rituais, que são ações prescritas para dramatização da conotação positiva. Escola Construtivista No final da década de 1970, utilizando os conceitos da cibernética de segunda ordem e de sua aplicação aos sistemas sociais, surge a Escola Construtivista. A partir da concepção de retroalimentação evolutiva de Prigogine (1979), considera-se que a evolução de um sistema ocorre através da combinação de acaso e história em que, a cada patamar, surgem novas instabilidades que geram novas ordens, e assim sucessivamente. Nesta 22 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS perspectiva em que os sistemas vivos são considerados como hipercomplexos e indeterminados, instabilidade e a crise ganham um novo sentido no sistema familiar. A crise não é mais um risco, mas parte do processo de mudanças assim como o sintoma. Sendo assim, os terapeutas de família da Escola Construtivista passam a considerar a autonomia do sistema familiar partindo do estudo dos sistemas auto-organizados da cibernética de segunda ordem, e dos sistemas autopoéticos postulados por Humberto Maturana (1990). Ocorre, neste enfoque, uma ruptura entre o sistema familiar/observado e o terapeuta/ observador. O sistema surge como construção de seus participantes. O terapeuta estará interessado não mais no comportamento a ser modificado, mas no processo de construção da realidade da família e nos significados gerados no sistema. A ênfase é deslocada do que é introduzido no sistema pelo terapeuta para aquilo que o sistema permite a ele selecionar e compreender. Alguns terapeutas estratégicos podem ser citados como tendo incluído posteriormente na sua prática o modo de pensar construtivista; entre eles, os do grupo de Milão. Palazzoli et al. (1980) estabelecem três princípios indispensáveis ao trabalho terapêutico: a formação de uma hipótese, a circularidade e a neutralidade. A hipótese formulada deve ser testada ao longo da sessão; se rejeitada, o terapeuta procurará outras, baseando-se nos dados obtidos na verificação da primeira hipótese. Todas as hipóteses devem ser sistêmicas, ou seja, devem incluir todos os membros da família e fornecer uma conjetura que explique a função da relação. A circularidade diz respeito à capacidade do terapeuta de conduzir a sessão baseando-se nos feedbacks recebidos da família como resposta à informação que solicitou em termos relacionais. A neutralidade consiste numa atitude de imparcialidade do terapeuta que se alia a cada membro da família, neutralizando qualquer tentativa de coalizão ou sedução de qualquer componente do grupo familiar. O enfoque construtivista, proposto a partir de uma ótica sistêmica de segunda ordem, questiona, portanto o poder do terapeuta na terapia familiar e as intervenções terapêuticas diretivas. A ênfase não é colocada na pergunta, mas na construção da interação e a ação do terapeuta pretende explorar as construções onde surgem os problemas. A Terapia Sistêmica de Família mudou juntamente com o mundo que já não é mais o mesmo. As ideias pós-modernas com contribuições dos aportes filosóficos abordando as questões da linguagem, as teorias sobre a construção conjunta de significado, as questões de gênero, a ética, as contribuições da nova física e os novos conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro e da mente formaram um pano de fundo para o surgimento de novas escolas de Terapia de Família. 23 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I Sem abandonar completamente os pressupostos anteriores, novas abordagens terapêuticas passaram a explorar as narrativas dos diversos membros de uma família em busca de diferentes descrições para os problemas e de mais recursos para o funcionamento da família, sempre se perguntando sobre o que seria adequado em cada contexto sociocultural. O terapeuta deixou de ser um observador externo, um especialista em detectar problemas, para se transformar em um articulador, um mediador de conversações preocupado em conhecer como determinada família se organiza e opera. E também os significados construídos e compartilhados por seus membros. Nesse meio tempo, o desenvolvimento de nossas teorias da terapia temcaminhado rapidamente em direção a uma posição mais hermenêutica e interpretativa. Esta posição enfatiza os sentidos à medida que eles são criados e vivenciados pelos indivíduos nas conversações. Na busca por esta nova base teórica, desenvolvemos um conjunto de ideias que conduzem nosso entendimento e explicações à arena dos sistemas em movimento, que existem somente nos caprichos do discurso, da linguagem e da conversação. É uma posição firmada nos domínios da semântica e da narrativa que se apoia principalmente no princípio segundo o qual a ação humana acontece em uma realidade de entendimento criada pela construção social e do diálogo. Deste ponto de vista, as pessoas vivem e compreendem seu viver por meio de realidades narrativas construídas socialmente que conferem sentidos e organização à sua experiência. (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1998, p.36) Sem negar importância do conhecimento do especialista, o pós-modernismo põe em evidência o conhecimento local, o conhecimento trazido pelas histórias e narrativas pessoais. Geertz (1978), inspirado em Ryle – filósofo inglês representante da geração influenciada pelas teorias de Wittgentein sobre a linguagem – menciona dois tipos de narrativas ou descrições: as descrições superficiais, que buscam analisar os significados culturais a partir do ponto de vista do especialista, determinando o que eles são; e as descrições ou narrativas densas que analisam os significados a partir do ponto de vista dos atores interessando-se por quem eles são. O pós-modernismo trouxe novas metáforas para a questão da comunicação. Chamamos a atenção para sua etimologia, que mostra a mesma origem das palavras ― comum –, ―comuna–, ―comungar–: todas se originaram da expressão latina commune. Além da ideia da transmissão de informações, comunicação remete ao processo de construção de um sentido comum através da relação mediada pela linguagem. 24 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS O pensamento da pós-modernidade, associado a uma prática clínica sistêmica, manifesta-se em um conjunto de princípios e derivações práticas em torno dos enfoques conhecidos como construtivismo e construcionismo social... Posso dizer que, em linhas bem gerais, a oposição dá-se entre uma visão de construção do conhecimento centrada no indivíduo, no caso do construtivismo, e uma centrada na construção social, no caso do construcionismo. (GRANDESSO, 2000, p.56) Para Benjamim, a experiência é fundamental; não a experiência isolada, mas sim a experiência de uma pessoa em interação com seu contexto pessoal, familiar, social, político, espiritual. E a narrativa que surgirá dessa experiência será sempre uma forma artesanal de comunicação, cujo sentido surge a cada vez que é narrada, a cada encontro entre narrador e ouvinte, que, estando em interação, em comunicação, construirão em conjunto o sentido do que vivem. 25 CAPÍTULO 3 Abordagens terapêuticas pós-modernas De acordo com Minuchin (1999), as famílias são como sistemas sociais e, por essa razão, é necessário prestar atenção nas características de qualquer sistema, pois uma parte influência a outra e todo o sistema passa por períodos de estabilidade e mudança, como também o poder dessas diferentes partes pode ser desigual como em qualquer estrutura. O trabalho com as famílias considera as motivações individuais, relacionais e sociais, permitindo uma abordagem contextualizada de sentido sistêmico, ou seja, passar da preocupação com o produto à preocupação com o encontro entre o sujeito e o produto num contexto sociocultural, como defende Sudbrack (2001). O modelo sistêmico postula que os problemas relacionados ao uso de drogas situam-se na interação do indivíduo com seu contexto, existindo uma interação dinâmica entre variáveis individuais, ambientais e a substância química. Parece-nos, então, um modelo abrangente e, portanto, o mais indicado para dar conta da complexidade do fenômeno. A epistemologia ecossistêmica de Bateson (1976, 1979) propõe a visão de contexto, em oposição à visão dicotomizada de indivíduo e ambiente. O contexto indica um conjunto vivo – o ecossistema – composto de um organismo e de seu ambiente, indissociáveis, e ligados pela constância na relação. O ecossistema inclui o indivíduo em relação com seu ambiente. Seguindo-se a proposta de Bateson da visão de contexto como elemento fundamental de toda comunicação e significação, não se deve isolar o fenômeno de seu contexto, pois cada fenômeno tem sentido e significado dentro do contexto em que se produz. Esta proposta de trabalho segue, também, os fundamentos da epistemologia da complexidade nas ideias de Morin (1992, 1996, 1996a), quando nos fala do desafio de não separar o objeto de seu meio, de não ser redutor e disjuntivo; que a complexidade é um desafio que o real nos traz, pois a realidade é complexa. Morin (1996) coloca que o objetivo do conhecimento não é descobrir o segredo do mundo, mas dialogar com o mundo. O pensamento complexo luta contra a mutilação, não contra a incompletude, diz este autor (1992). O pensamento complexo tende para o pensamento multidimensional. 26 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS Com a teoria se reconhece a instabilidade, a indeterminação, a desordem, a ordem a partir das flutuações, a auto-organização, o acaso. Transpondo-se a perspectiva do caos na visão da complexidade, como propõe Ausloos (1995). A epistemologia construtivista (VON GLASERSFELD, 1988, 1995; VON FOERSTER, 1987,1988; WATZLAWICK, 1988, 1995) nos afasta da pretensão de objetivar e atingir uma realidade (a realidade é uma construção), e toda observação inclui o observador (como observadores, somos sempre parte do que observamos). O construtivismo reinsere o sujeito no processo de conhecimento. O cientista não é mais um observador neutro, mas ao contrário, as teses científicas são concebidas como criadas pelo e para o ser humano, a fim de apreender uma natureza complexa e desordenada (CAILLÉ, 1981 apud SUDBRACK, 1997). A palavra chave no construtivismo é escolher: o terapeuta construtivista tem por objetivo resgatar no grupo as possibilidades deste reinvestir em outros níveis de leitura, de complexificar suas relações com o mundo (SUDBRACK, 1994). A família, então, é vista como recurso, como um sistema que tem competências. Trabalhar em terapia sobre a competência supõe uma grande confiança na capacidade do sistema familiar em resolver problemas. Ausloos (1995) coloca que todas as famílias têm competências, mas em certas situações elas não sabem as utilizar, não sabem que as têm, estão impedidas de utilizá-las, ou ainda, impedem a si próprias de as utilizar por diferentes razões. O papel do terapeuta ou equipe terapêutica, como ativadora deste processo de competência familiar. Sobre este aspecto Ausloos (1995) refere que o papel do terapeuta é de trabalhar com a família para encontrar ou descobrir o que ela sabe para reinventar soluções e para resolver seus problemas. A psicologia que tradicionalmente tem seu foco de ação centrado na identificação de problemas/doenças em busca de soluções ‘curas’ é convocada a propor novas formas de intervenção que deem conta das realidades atuais. E para que possamos construir estas perspectivas diferentes de intervenção clínica é preciso que modifiquemos alguns paradigmas tecnicistas. Inclusive compreendendo a intervenção clínica segundo propõe Figueiredo (1996), ou seja, o ethos da clínica psicológica é o de uma escuta diferenciada das aflições pelas quais passam as pessoas, aquilo que não é dito mas que gera tensões e conflitos. O paradigma proposto então é o ético-estético, ou seja, a produção de vida e a construção de cidadania, escutando-se o cotidiano como expressão das práticas humanas num determinado tempo e lugar com diferentes possibilidades de interpretação. Acreditamos que com esta perspectiva de atendimentos às famílias, estamos ampliando as possibilidades de os psicólogos se aproximarem das demandasatuais da sociedade, 27 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I já que a identificação dos problemas com o abuso de drogas é tema recorrente e cada vez mais crescente. A sociedade em constante processo de mudança aponta para vivências e sofrimentos da coletividade que se alteram, cabendo a psicologia propor novas estratégias de enfrentamento desta realidade. De acordo com Minuchin (1999), as famílias são como sistemas sociais e, por essa razão, é necessário prestar atenção nas características de qualquer sistema, pois uma parte influência a outra e todo o sistema passa por períodos de estabilidade e mudança, como também o poder dessas diferentes partes pode ser desigual como em qualquer estrutura. A terapia familiar tem como objetivos, na perspectiva de Cordioli (1998), melhorar a comunicação entre os membros, desenvolver a autonomia e a individualização das diferentes pessoas, descentralizar e tornar mais flexíveis os padrões de liderança e de tomada de decisões, reduzir conflitos interpessoais, além de melhorar o desempenho individual. Do mesmo modo, sua personalidade e comportamento são moldados pelo que a família permite e espera dele. Para Minuchim (1999), o indivíduo é a menor unidade do sistema familiar. O mesmo autor salienta que ele contribui para a formação de padrões familiares. As diferentes temáticas que emergiram dos atendimentos familiares realizados possuem desdobramentos a partir de um conflito central. O conflito que motivou o atendimento familiar num primeiro momento é identificado em um dos membros da família. Entretanto, no decorrer dos encontros realizados, a família começa a identificar como os demais familiares envolvem-se na conflitiva apresentada inicialmente, assim como, começam a perceber novas possibilidades de entendimento daquele conflito e a possibilidade uma mudança nos padrões de funcionamento familiar. O espectro de possibilidades de terapias que podem ser consideradas pós-modernas é bastante amplo. Podemos enumerar uma farta variedade de abordagens, organizadas de forma razoavelmente consistente, tanto do ponto de vista teórico, como das práticas clínicas derivadas, que podem ser ditas pós-modernas. Este trabalho propõe-se a oferecer um panorama atual do campo das terapias pós-modernas, tendo como referência principal a terapia familiar, embora não seja a intenção inventariar e classificar exaustivamente tal espectro. Abordagens narrativas É um pressuposto dessas abordagens que as pessoas vivem suas vidas através de histórias; que as histórias organizam e dão sentido à experiência e que os problemas existem na linguagem, sendo capturados nas histórias dominantes, coautoriadas nas 28 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS comunidades linguísticas das pessoas, tendo uma dimensão canônica. Entre suas variações, gostaria de destacar: » A terapia narrativa com ênfase nas micropráticas transformativas e na organização de histórias qualitativamente ‘melhores’ para o sistema, em torno dos “estranhos atratores”, fazendo referência à teoria do caos. Estes atratores caracterizam-se como opções potenciais que surgem nos pontos de bifurcação das histórias desestabilizadas pela conversação terapêutica, conforme o trabalho de Sluzki (1992;1998). » A terapia narrativa com ênfase nos processos reflexivos e na abertura das palavras para os significados por elas construídos, bem como no processo de questionamento como contexto generativo em relação à mudança. Destaca-se neste enfoque o trabalho de Tom Andersen (ANDERSEN, 1987; 1991; 1992; 1995; 1997) e o de Peggy Penn, o qual enfatiza a importância das diferentes vozes, a que vem da escrita, a que vem dos diálogos internos, além da que decorre das distintas conversações (PENN, 1985; 1998; 2001). » A terapia narrativa com ênfase na desconstrução das histórias dominantes e das práticas subjugadoras do self. A proposta de externalização, situando a pessoa e o problema como entidades distintas, contribui para desessencializar o self, ao tornar conhecidos os contextos organizadores das narrativas opressoras das quais as pessoas constroem empobrecidas visões de si mesmas e restritas possiblidades existenciais. A reconstrução narrativa, decorrente do trabalho terapêutico, caracteriza este modelo de terapia como sendo de reautoria da autobiografia. Considere-se, neste sentido, o trabalho de Michael White, David Epston, Jill Freedman e Gene Combs (WHITE, 1988; 1991; 1993; WHITE; EPSTON, 1990; FREEDMAN; COMBS, 1996). Abordagens colaborativas Estas abordagens terapêuticas são organizadas em torno da definição dos sistemas humanos como sistemas linguísticos, geradores de linguagem e significado, organizadores e dissolvedores de problemas. Este é o caso da terapia de base dialógica, portanto, uma conversação de duas mãos de trocas colaborativas, de Harlene Anderson e do saudoso Goolishian (ANDERSON, 1994 1997; ANDERSON; GOOLISHIAN, 1992; 1988; GOOLISHIAN; ANDERSON, 1994; GOOLISHIAN; WINDERMAN, 1988), em que o expert é o cliente. O processo de terapia é a conversação terapêutica na qual o 29 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I terapeuta é um participante ativo e “arquiteto do diálogo”, forma de conversação na qual o terapeuta e o cliente participam do codesenvolvimento de novos significados, novas realidades e novas narrativas, a partir de uma postura terapêutica de genuíno não saber. Abordagens pós-modernas críticas Podemos incluir aqui as propostas como a Just Therapy do grupo do Family Centre da Nova Zelândia (WALDEGRAVE, 1990; 2000). Charles Waldegrave, Kiwi Tamasese e Wally Campbell, organizam sua abordagem terapêutica em torno de conceitos de equidade e justiça social, considerando que muitos dos problemas e saúde mental e de relacionamentos, decorrem das consequências das diferenças de poder e de injustiças sociais. O grupo propõe que se considerem as influências do macrocontexto socioeconômico, político, cultural, étnico, de gênero e espiritual no microcontexto familiar. Para esses terapeutas há significados preferidos para as narrativas emergentes, edificados em torno de valores promovendo a igualdade de gênero, a autodeterminação cultural, pertencimento e espiritualidade. Tal proposta coloca o terapeuta no lugar de um profissional engajado com a transformação das políticas sociais mais amplas, comprometido com uma ética da igualdade e legitimação da pessoa, encorajando uma metodologia de ação/reflexão que considere não apenas indivíduos, casais e famílias, mas comunidades, sociedades e países. Abordagens estrutural e estratégica pós-modernas Redefinidas de acordo com uma epistemologia construtivista, tais abordagens acompanharam a evolução da Cibernética de Primeira para a de Segunda Ordem e podem ser consideradas pós-modernas. Considere-se, neste sentido, a terapia centrada nas soluções de Shazer (MILLER; de SHAZER, 2000) que, partindo das exceções em relação à manifestação de um problema, inicia um jogo de linguagem para a construção de lugares aptos para o encontro de soluções, baseadas na conduta do terapeuta e no seu uso de técnicas. Acima de tudo, tais releituras são feitas dentro de uma nova concepção epistemológica que redefine a abordagem quanto à noção do conhecimento, a prática clínica no que se refere ao uso das técnicas e papel do terapeuta. 30 CAPÍTULO 4 Equipe reflexiva “Numa terapia orientada para o crescimento, a questão central é a de focar sobre a expansão do significado da experiência e a ampliação dos horizontes de vida”. (WHITAKER,1990, p.59) Ao pensarmos sobre o processo terapêutico com olhar sobre a transgeracionalidade primeiramente consideraremos a postura do terapeuta no setting. A partir do momento em que se inicia uma terapia, terapeuta e família formam um sistema, no qual o terapeuta sai da postura de mero observador e atua dentro da configuração que se estrutura, relembrando da premissa sistêmica na qual aonde existem elementos em relação, há a um sistema operando. Enfocaremosum terapeuta que baseia a sua prática, em uma posição narrativa, que considera que os sistemas humanos são geradores de linguagens e sentidos, (incluindo o sistema terapêutico), os quais são construídos socialmente dialogicamente, em uma troca de mão dupla, na qual novos sentidos são criados. O terapeuta passa a ser um observador- participante que exercita a sua “arte” ao fazer perguntas terapêuticas a partir de uma posição de não saber, que objetiva a criação dialógica de uma nova narrativa, que dá um novo sentido para a vida (MCNAMEE; GERGEN, 1998). A inclusão do observador, a coconstrução, a autorreferência e a significação da experiência na conversação são características da intersubjetividade, que junto à complexidade e instabilidade, fundamenta o pensamento sistêmico (VASCONCELLOS, 2002). Para o terapeuta, é fundamental se auto-observar, percebendo quais são os sentimentos, sensações, imagens que aparecem nas situações durante a sessão terapêutica, pois este conteúdo lhe servirá de guia para a realização do tratamento. Esta autopercepção está relacionada com o conhecimento que o terapeuta tem de sua própria vida, sua história e dinâmica familiar. Para um terapeuta trabalhar com os fenômenos transgeracionais, faz-se fundamental que ele mesmo tenha passado pela experiência de identificar quais os padrões predominantes em sua família, mitos, crenças, tema, conflitos de lealdade para observar sua influência na prática profissional identificando quais possíveis dificuldades e facilidades no desempenho de sua função terapêutica. Além de o terapeuta ter a experiência de fazer sua terapia pessoal, uma forma de o terapeuta entrar em contato com a transgeracionalidade de sua família é durante a formação em terapia familiar confeccionar o Genograma de sua família de origem. O modo como o Genograma é feito, dispõe as informações da família graficamente de 31 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I forma a oferecer uma visão compreensiva dos complexos padrões familiares. A utilização do Genograma proporciona uma visão do quadro geracional de uma família e de seu movimento através do ciclo de vida: “Os genetogramas são retratos gráficos da história e do padrão familiar, mostrando a estrutura básica, a demografia e os relacionamentos da família” (CARTER; MCGOLDRICK, 1985, p.144). As informações reunidas através do Genograma incluem nomes e idades de todos os membros da família; datas exatas de nascimentos, casamentos, separações, divórcios, mortes, abortos e outros acontecimentos significativos; indicações datadas das atividades, ocupações, doenças, lugares de residência e mudanças no desenvolvimento vital; e as relações entre os membros da família. Por meio dos Genogramas, ao acessar os principais mitos e crenças que norteiam a vida da família atendida, que a acompanham há gerações e determinam os padrões de relacionamentos é possível criação de hipóteses sobre o problema clínico da família. Com isso, é possível fazer determinadas predições sobre os processos futuros que a família vivenciará baseando-se na utilização do Genograma. De acordo com Bowen (apud WENDT; CREPALDI, 2007), passado e presente são examinados para se obter possíveis informações sobre o futuro. Ao chegarem para a terapia, as famílias encontram-se focadas no momento presente, paralisadas pelos seus problemas e sentimentos ou ansiosas por um momento futuro, perdendo a consciência do movimento contínuo da vida que inclui passado, presente e futuro, junto às transformações dos relacionamentos familiares. “Quando o senso de movimento é perdido ou distorcido, a terapia pode devolver o senso da vida como um processo e movimento desde e rumo a” (CARTER; MCGOLDRICK, 1985, p.13). Whitaker (1990) recomenda expandir o entendimento familiar dos sintomas através de sua extensão para o passado, para as gerações prévias. Outro método é impeli-los para frente, em direção às novas gerações. Ao supor que os sintomas têm continuidade através das gerações, é possível acessar ao rico mundo simbólico que percorre a família extensiva. Sequências comportamentais que formam padrões tornam-se organizadas em torno de temas, que frequentemente servem como metáforas para o tipo de sintoma que é escolhido. A palavra tema quer dizer uma questão específica emocionalmente carregada, em torno da qual há um conflito periódico. Visto que há muitos temas em toda a família, o terapeuta procura aquele que é mais relevante para o sintoma. O entendimento destas crenças e temas serve de base para a intervenção terapêutica (PAPP, 1992). A compreensão das crenças e dos temas é deduzida, por meio da escuta da linguagem metafórica, no rastreamento de sequências comportamentais. “O interesse primário do terapeuta é com o uso do comportamento e em como a função de uma parte do comportamento está ligada com a função de uma 32 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS outra parte do comportamento, a fim de preservar o equilíbrio familiar” (PAPP, Op. cit. p.22). Os terapeutas do grupo de Milão recomendam a utilização de perguntas sobre o futuro, pois pensam que estas podem revelar muitos temas familiares, e serem transformadoras na medida em que questionam uma premissa. “Se uma família está organizada em torno de uma premissa criadora de um problema, as perguntas relativas ao futuro podem, também, desafiar o poder de tal premissa, evitando que se perpetue”. (BOSCOLO et al. 1993, p.51) A ação terapêutica pode ser em si pode ser considerada um ritual, que provoca uma estrutura espacial e rítmica aos encontros, e pode prescrever rituais singulares adaptados a cada contexto familiar, os quais permitem que sejam abordadas situações que seriam explosivas se abordadas de frente. A ritualização terapêutica poderá apoiar-se em diversos suportes mediáticos, bem como nas suas hibridações recíprocas (palavras, desenhos, cartas, “objetos metafóricos”, equipamentos técnicos—registros, sala equipada com um espelho unidirecional, pessoas dos terapeutas, jogos relacionais, jogos interinstitucionais etc.) (M. SELVINI apud MIERMONT, 1994). Em relação às situações de maltrato e abuso, os terapeutas que atuam de forma clássica, enfocam a urgência de proteção no presente perdendo de vista a história transgeracional Tilmans (2000), alerta sobre o risco que o terapeuta tem de que suas ações sejam “antiterapêuticas”, se ele não considera a história das três gerações familiares e sua complexidade, pois os pais que maltratam ou abusam de um filho, foram maltratados em sua infância, ou em outra etapa de sua vida. Portanto, olhar apenas para a situação de violência atual, pode agredir mais uma vez os pais que já foram maltratados. Culturalmente, na época em que os pais eram crianças, não havia uma proteção social em relação às crianças como existe hoje, acumulando neles então, sofrimentos e experiências destrutivas para a construção de um eu positivo, em meio a muita solidão. É necessário que terapeuta fale sobre este tema para proteger a criança maltratada que existe dentro do adulto. O adulto que comete uma violência é responsável por seus atos e ao mesmo tempo uma vítima que tem urgente necessidade de proteção e respeito. O terapeuta deve saber como proteger a criança, vítima atual, sem maltratar mais uma vez o adulto e sua criança interna. Para Byng-Hall (1998), o papel do terapeuta então seria propor um modelo de mudança no qual, ele ajudará a família se sentir segura o suficiente para arriscar a improvisar nos relacionamentos inseridos nos scripts familiares. A terapia serve desta forma, como uma base segura que facilita a mudança de um padrão inseguro para um seguro, na qual novos scripts podem ser criados. 33 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I Equipe Reflexiva Uma das mais contundentes mudanças que as ideias oriundas do Construcionismo Social acarretaram na clínica pode ser observada na terapia familiar, com o advento da Equipe Reflexiva, que emergiu dos trabalhos de Tom Andersen (1991). Na terapia familiar,por ele conduzida, depois de um longo tempo de germinação, segundo Andersen “a própria ideia forçou seu nascimento” (ibidem p. 33). Após várias situações de hipóteses e incômodos pessoais dos terapeutas com o processo paralisado, aconteceu de em determinado momento, a equipe observadora da sessão terapêutica propor um momento de interação com a família, no mesmo ambiente. O contexto clínico do surgimento da Equipe Reflexiva foi por uma mudança paradigmática. Neste caso, falamos da inclusão do observador no sistema por ele observado. Uma nova postura do terapeuta passou a ser estimulada com base nesse momento divisor águas. A partir de então, surge a prática da Equipe Reflexiva que, presente no consultório, num momento em que é solicitada pelo terapeuta de campo, faz uma reflexão sobre o que ouviu até ali. Espera-se que esse momento seja uma diferença facilitadora da mudança. Essa crítica curiosa, proposta a partir do Construcionismo tem como uma das bases a crença de que os significados, as verdades humanas sejam variáveis dependentes do discurso, das conversações, enfim, da linguagem. Tal posicionamento possibilita ao terapeuta construcionista considerar em sua avaliação e em todo o seu procedimento num caso clínico, as variáveis relacionadas ao ambiente construído a partir das práticas discursivas. Reflexão, curiosidade e irreverência Propõe-se neste trabalho, que os Processos Reflexivos devam ser contemplados em alguns elementos importantes, como a própria reflexão, a curiosidade e a irreverência. Para o caso da reflexão, trago uma discussão conceitual, a fim de posicionar o termo conceitualmente. No que se refere à curiosidade e a irreverência, propõe-se uma visita às ideias de Cecchin e uma discussão sobre características da função e do lugar de terapeuta, principalmente, mas não exclusivamente na Terapia Familiar. Sobre a reflexão, podemos partir dos estudos sobre as ideias de Tom Andersen, acerca da adoção de equipes reflexivas, trabalhando sob a orientação dos Processos Reflexivos. Na terapia familiar, por ele conduzida, depois de um longo tempo de germinação, 34 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS segundo Andersen “a própria ideia forçou seu nascimento” (p. 33, 1991). Após várias situações de hipóteses e incômodos pessoais dos terapeutas com o processo paralisado, aconteceu de em determinado momento, a equipe observadora da sessão terapêutica propor um momento de interação com a família, no mesmo ambiente. A partir desse momento divisor de águas, a terapia familiar conduzida por Andersen e seus discípulos vem delineando novas formas de tratamento e de concepção epistemológica da Terapia Sistêmica, agregando, inclusive, o estudo da cibernética como fonte de analogias epistemológica (RAPIZO, 2002). A abrangência dos estudos acerca dos Processos Reflexivos pode ser verificada nas ramificações pedagógicas ressaltadas por Schon (1988), num experimento que passou a criticar a relação de poder\saber entre professor e aluno: Um dia mostraram aos professores um vídeo sobre dois rapazes separados um do outro por uma tela opaca. Cada um dos rapazes tinha diante de si um conjunto de sólidos geométricos de diferentes tamanhos, formas e cores. Em frente de um dos rapazes estava um modelo fixo: defronte do outro, encontrava-se uma miscelânea de sólidos geométricos, que o segundo rapaz teria de transformar no modelo fixo seguindo as instruções do primeiro. À medida que os professores viam o filme, observavam que, embora as instruções do primeiro rapaz parecessem bem formuladas, o segundo estava cada vez mais confuso. Os professores diziam coisas como: O segundo rapaz parecia ser um aluno de aprendizagem lenta, não consegue estar atento durante muito tempo, não consegue seguir as instruções. Neste momento, uma das investigadoras salientou: Parece-me que o primeiro rapaz deu uma instrução errada, pois disse “põe o quadrado verde”, mas não existem quadrados verdes, só há quadrados laranja e as únicas coisas verdes são os triângulos. Uma das vantagens do vídeo é que pode ser revisto, e por isso os professores puderam voltar atrás e observar o filme uma vez mais. Com efeito, concluíram que as instruções do primeiro rapaz se referiam a um quadrado verde quando não havia quadrado dessa cor. À medida que continuavam a observar o filme, ficaram surpreendidos ao notar que, de fato, o segundo rapaz era exímio no cumprimento das instruções, encontrando sentidos em indicações sem nexo. Foi então que um dos professores notou algo de surpreendente: Aquilo que acabávamos de fazer, foi dar razão ao aluno. Essa expressão – dar razão ao aluno – inspirou os professores durante os restantes dois anos do seminário. 35 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I Este evento pode ser considerado de suma importância para as ideias de que falamos aqui .É o exemplo claro de uma mudança paradigmática prática. O autor acima citado fala na formação de professores como profissionais reflexivos. A reflexão sugerida por Andersen aparece como algo ouvido que é internalizado e pensado antes de uma resposta a ser dada (p.35, 1991). Na situação descrita acima, podemos encontrar justificativas para reflexões políticas, clínicas, filosóficas etc. Entretanto, penso ser importante sublinhar pelo menos dentre tantas analogias possíveis a partir do texto de Schon. Como pano de fundo, podemos estabelecer uma discussão sobre o que uma postura reflexiva pode provocar nas relações tradicionais porque não venho defender a erosão das relações de poder no cotidiano. Todavia, penso que devam ser criticadas todas. Dentro de um modelo tradicional o que significaria a atuação de um professor que reconstruísse a sua forma de ensinar baseado na contribuição de um aluno? Como isto seria possível se o aluno só tivesse a aprender? A analogia que proponho, ou a qual me rendo sem lutar, traz o exercício de colocar os pacientes no lugar de alunos. Que repercussões haverá quando nos dispusemos a rever toda a metodologia à qual fomos apresentados e pela qual fomos seduzidos, porque ela não está adequada a um paciente? Como ficará o meio acadêmico? Quais serão as consequências disso nos cursos de formação e especialização? Poderemos dizer que terapeutas comportamentais, por exemplo, poderão utilizar técnicas psicanalíticas, quando isso se adequar melhor a determinado paciente? Falamos aqui, inicialmente, de flexibilidade. Esta fatalmente estará ligada ao trabalho conduzido à luz dos Processos Reflexivos. Não uma flexibilidade desordenada, desavisada, mas antes, a condição de se beneficiar de outras ideias, ideias estranhas ao arcabouço teórico ao qual nos tenhamos afeiçoado. O tema da reflexão percorre um caminho eminentemente filosófico no que diz respeito à flexibilidade. Podemos considerar uma questão ética o pensamento crítico quanto à postura adotada pelo profissional em relação à suas convicções. É possível encontrar respaldo nas ideias de Feverabend (2010) quando este identifica o Relativismo Prático. Para ilustrar essa proposta, o autor apresenta a seguinte tese: [...] indivíduos, grupos e civilizações inteiras podem lucrar ao estudar culturas, instituições e ideias estrangeiras, por mais fortes que sejam as tradições que apoiam suas próprias ideias (por mais fortes que sejam os argumentos que servem de base a elas). Por exemplo, os católicos podem 36 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS se beneficiar ao estudar o budismo, médicos podem se beneficiar com um estudo de Nei Ching ou de um encontro com feiticeiros africanos, psicólogos podem se beneficiar de um estudo das maneiras como os romancistas e atores constroem um personagem, cientistas de um modo geral podem se beneficiar com um estudo de métodos e pontos de vista não científicos e a civilização ocidental como um todo pode aprender muito com as crenças, hábitos e instituições de povos “primitivos”. (p. 29, 2010). A relação que aqui fazemos entre reflexão e flexibilidadenão é absoluta nem pretende ser e antes, a apresentação de uma interpretação possível para o que se pode entender por reflexão. No campo conceitual, podemos obter várias definições e aplicações para o termo reflexão. È muito comum que as definições carreguem o sentido de uma ação reflexiva diante de algo apresentado ou vivenciado. Podemos visitar alguns comentários de Abbagnano (2007) sobre a definição feita por alguns grandes nomes da história da Filosofia: [...] mesmo não empregando o termo [reflexão], Aristóteles admite o fato óbvio de que o intelecto ‘pode pensar-se’. (...) Os escolásticos expressaram esta possibilidade com o termo reflexão. Tomás de Aquino diz: ‘uma vez que reflete sobre si mesmo, o intelecto entende, conforme essa reflexão, tanto o seu entender quanto a espécie por meio da qual entende. (p. 986, 2007). Ainda segundo Abbagnano podemos observar aqui o caráter essencial da reflexão, a partir da necessidade de refletir sobre si mesmo para então, entender o particular. Um trabalho focado na reflexão é menos simples do que afetivo. Pode ser encarada como uma postura frente ao que se nos apresentada. É comum, em nossos atendimentos, deparamos com situações que nos afetam e nos provocam. Cada uma dessas situações pode ser encarada como mais um momento em que o terapeuta deve escutar, acessar sua abordagem teórica de referencia, avaliar como deve proceder para fazer melhor o seu trabalho. A postura reflexiva vai além de uma pessoa autocrítica; é ainda, uma postura cuidadosa e atenta aos afetos em nós provocados pelo encontro com nossos pacientes. Segundo Leibniz, a reflexão é a atenção dada àquilo que está em nós, enquanto os nossos sentidos não conseguem acessar tal coisa (ABBAGNANO, 2007). Muito interessante, também, é a versão de Kant para a função da reflexão, afirmando que a reflexão não visa aos objetos em si para chegar aos conceitos. Antes disso, segundo 37 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I Kant (in ABBAGNANO, 2007), a reflexão “é um estado de espírito em que começamos a dispor-nos a descobrir as condições subjetivas que nos possibilitam chegar aos conceitos.” (p.986) Um caráter ressaltado ainda por Abbagnano que consideramos importante apara este trabalho é o caráter de ação criativa. Tal ideia, proposta por Hegel (IBID) está de acordo com os pressupostos do Construcionismo Social, quando afirma que “tal ação criativa traz à luz a verdadeira natureza daquilo que se investiga e, portanto, de algum modo produz tal natureza” (p. 986). Nas palavras de Hegel, segundo Abbagnano, podemos identificar algo que pode ser identificado como uma proposta de construção da realidade pelo sujeito. Uma vez que, na reflexão, se obtém a verdadeira natureza, e esse pensamento é minha atividade, essa verdadeira natureza é igualmente produto do meu espírito, do meu espírito como Sujeito pensante, de mim, na minha simples universalidade, como Eu que é sem dúvida por si, ou seja, da minha liberdade. (ibid. p. 987). Ainda temos, de acordo com o pensamento fenomenológico de Husserl, a reflexão retratada como uma espécie de percepção imanente, que se conecta imediatamente com o que é percebido (ibid.) Quando trazemos para discussão o termo irreverência, trazemos também, inevitavelmente conectado a ele, a curiosidade. A principal referencia teórica e inspiração para a proposta da irreverência e da curiosidade como elementos fundamentais para este trabalho está nas ideais do psicoterapeuta italiano Gianfranco Cecchun (1932-2004 ). Cecchun fez emergir Terapia Familiar os conceitos de curiosidade e de irreverência. Uma ideia importante e básica de seus estudos fala sobre a crítica ao saber apriorístico. Qualquer que seja, esse saber concorre para uma gama de preconceitos por parte do terapeuta, que na verdade, acabará eventualmente bloqueando o processo terapêutico, se tentar adaptar a problemática do paciente a um arcabouço teórico, antes de procurar investigar a situação e se relacionar genuinamente com a família. A observação das ideias de Cecchin que são tão bem exploradas e difundidas por seus predecessores, nos faz considerar a importância da crítica sobre o trabalho do profissional que conduz qualquer processo terapêutico. A irreverência e a curiosidade se mostram elementos básicos do conceito formulado por Cecchin, segundo Prati (2009), de irreverência teórica. De acordo com este princípio, procura-se constantemente criticar e investigar com curiosidade as teorias e práticas que surgem e são utilizadas na clínica. No trabalho de Prati observamos também as 38 UNIDADE I │TERAPIAS PÓS-MODERNAS palavras de McNamee (2004) que fala sobre a chamada promiscuidade teórica, que além de se preocupar com o olhar crítico e curioso, atenta a para o modo como os profissionais tomam decisões no processo terapêutico, caminhando no sentido de uma compreensão do que realmente “significa ser um terapeuta” e fazer um trabalho clínico. ( p.16) Nessa proposta, trazemos a necessidade de uma postura flexível e criativa. Devemos estar prontos para que um novo espaço se crie dentro da relação estabelecida. Uma nova forma de comunicação sempre terá vez. Nessa proposta, trazemos a necessidade de uma postura flexível e criativa. Devemos estar prontos para que um novo espaço se crie dentro da relação estabelecida. Uma nova forma de comunicação sempre terá vez caso estejamos atuando com uma atitude irreverente, curiosa e flexível. Na terapia familiar, muitas vezes somos como que convidados a adotar uma postura rígida e talvez mais acessível para nós. A facilidade inicial pode se transformar em problemas posteriores, que serão observados quando o processo estiver muito limitado. Nas palavras de McNamee: No campo da terapia de família, nossa preocupação é claramente ajudar as famílias a encontrarem modos produtivos de viver juntas, a inquestionável aceitação de que o método científico vai nos dizer qual teoria ou modelo é o certo para ser utilizado é mais do que limitante. Como observa Larner (2004), “ser científico é manter uma curiosidade investigativa sobre como por que a terapia funciona, e aceitar que a ciência pode não ser suficiente para explicar o processo” (p. 29). Uma ênfase dialógica (em oposição ao cientificismo) gera o tipo de irreverência (e curiosidade) exigida por uma terapia efetiva. A irreverência pode ser encarada, simplesmente, como o ato de não reverenciar. É uma recusa sem agressividade. Uma recusa que substitui o tom carrancudo de uma recusa comum por uma alternativa mais produtiva que esta curiosidade. O terapeuta irreverente surpreende a si mesmo, quando se vê aceitando participar de um processo para o qual uma linha teórica rígida e determinista aconselharia veementemente que ele se mantivesse distante. Segundo McNamee, se formos um pouco irreverentes, talvez possamos começar a ver cada modelo de terapia como uma forma potencialmente útil de construção com nossos pacientes. 39 TERAPIAS PÓS-MODERNAS│ UNIDADE I A abertura às surpresas do encontro pode ser uma das mais eficazes ferramentas de que o terapeuta dispõe. Cada encontro é novo, cada encontro é único, e não somos capazes de prever as forças que irão emergir dele. Entretanto, podemos limitar essas forças, caso nos mantenhamos firmemente olhando para um único lado do horizonte, caso nos detenhamos a pensar sobre a validação de nossa abordagem teórica de afinidade. Algumas palavras não combinam com o que procuramos trazer como objetivos de terapia: limitação é certamente uma delas. Quando uma forma de ver ou de lidar parece limitar as possibilidades de ação do sujeito em qualquer situação em que se encontre, a ampliação pode ser uma boa saída. É disso que falamos o tempo todo quando citamos a expressão mudança paradigmática. Para o caso deste trabalho não é diferente. A proposta de uma aproximação entre Fenomenologia e Construcionismo Social pode ser encarada como uma proposta de outra visão sobre as coisas.
Compartilhar