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FUNDAMENTOS DO BIOGÁS Conceitos básicos e digestão anaeróbia Projeto “Programa de Capacitação” (GEF Biogás Brasil) Este documento está sob licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International License. O GEF Biogás Brasil permite a citação deste material, desde que a fonte seja citada. Contato: contato@gefbiogas.org.br COMITÊ DIRETOR DO PROJETO Global Environment Facility Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Ministério de Minas e Energia Ministério do Meio Ambiente Centro Internacional de Energias Renováveis Itaipu Binacional PARCEIROS Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas Associação Brasileira de Biogás Nome do produto: Fundamentos do Biogás Componente Output e Outcome: Componente 2.1.4 Elaborado por: Centro Internacional de Energias Renováveis – CIBiogás Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial - UNIDO Colaboraram para a realização deste documento: Eliana Mira de Bona Leidiane Ferronato Mariani Jessica Yuki de Lima Mito Leonardo Pereira Lins Coordenador do documento: Felipe Souza Marques Revisão pedagógica: Iara Bethania Rial Rosa Data da publicação: Foz do Iguaçu, maio/2020 FICHA TÉCNICA mailto:contato@gefbiogas.org.br O Projeto “Aplicações do Biogás na Agroindústria Brasileira” (GEF Biogás Brasil) reúne o esforço coletivo de organismos internacionais, instituições privadas, entidades setoriais e do Governo Federal em prol da diversificação da geração de energia e de combustível no Brasil. A iniciativa é implementada pela Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO) e conta com o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) como instituição líder no âmbito nacional. O objetivo principal é reduzir a dependência nacional de combustíveis fósseis através da produção de biogás e biometano, fortalecendo as cadeias de valor e de inovação tecnológica no setor. A conversão dos resíduos orgânicos provenientes da agroindústria e de empreendimentos diversos, muitas vezes descartados de forma insustentável, pode se tornar um diferencial competitivo para a economia brasileira, além de reduzir a emissão de gases de efeito estufa nocivos à camada de ozônio e ao meio ambiente. O biogás e o biometano podem ser utilizados para a geração de energia elétrica, energia térmica ou combustível renovável para veículos, e seu processamento resulta em biofertilizantes de alta qualidade para uso agrícola. Os benefícios se estendem tanto ao pequeno produtor agrícola, que reduz os custos de sua atividade com o reaproveitamento de resíduos orgânicos, quanto ao desenvolvimento econômico nacional, já que um setor produtivo mais eficiente ganha competitividade frente à concorrência internacional. Indústrias de equipamentos e serviços, concessionárias de energia e de gás, produtores rurais e administrações municipais estão entre os beneficiários diretos do projeto, que conta com US $ 7,828,000 em investimentos diretos. Com abordagem inicial na região Sul do Brasil, em especial no oeste do estado do Paraná, a iniciativa pretende impactar todo o país. Entre seus resultados previstos estão a compilação e a divulgação de dados completos e atualizados sobre o setor, a oferta de serviços e recursos para capacitação técnica e profissional, a criação de modelos de negócio e de pacotes tecnológicos inovadores, a produção de Unidades de Demonstração seguindo padrões internacionais, a disponibilização de serviços financeiros específicos para o setor, a ampliação da oferta energética brasileira, e articulações indispensáveis entre a alta gestão governamental e entidades setoriais para a modernização da regulamentação e das políticas públicas em torno do tema, deixando um legado positivo para o país. APRESENTAÇÃO FUNDAMENTOS DO BIOGÁS Aula 1 – Conceitos básicos e digestão anaeróbia Data da Publicação: Maio 2020 Sumário 1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11 2. CONCEITOS GERAIS SOBRE O BIOGÁS ..................................................................... 11 2.1. História do biogás ........................................................................................................ 14 2.2. Processo de produção e aproveitamento energético do biogás ................................ 17 3. DIGESTÃO ANAERÓBIA ............................................................................................ 19 3.1. Caracterização dos substratos e potencial de produção de biogás ............................ 21 3.2. Processo de biodigestão anaeróbia ............................................................................ 23 3.3. Pré-tratamento do substrato ...................................................................................... 25 3.3.1. Separação de sólidos e mistura do substrato ..................................................... 25 3.3.2. Trituração de substrato ....................................................................................... 26 3.3.3. Aquecimento do substrato .................................................................................. 27 3.4. Tecnologias de digestão anaeróbia para produção de biogás .................................... 29 3.4.1. Regime de alimentação ....................................................................................... 29 3.4.2. Classificação dos biodigestores por tecnologias ................................................. 29 3.4.3. Classificação dos biodigestores por porte ........................................................... 42 3.4.4. Eficiência das tecnologias na produção de biogás .............................................. 44 3.4.5. Aterros sanitários ................................................................................................ 47 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 49 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 50 Lista de Figuras FIGURA 1 - BIODIGESTOR MODELO LAGOA COBERTA – APLICADO NO TRATAMENTO DE EFLUENTES DA SUINOCULTURA NO SUL DO BRASIL. ............................................................. 13 FIGURA 2 - BIODIGESTOR MODELO INDIANO – APLICADO AO USO DOMÉSTICO NO NORDESTE DO BRASIL. ................................................................................................................. 14 FIGURA 3 - BIODIGESTOR MODELO CSTR (REATOR TANQUE-AGITADO CONTÍNUO) - APLICADO NA UNIDADE DE DEMONSTRAÇÃO ITAIPU (FOZ DO IGUAÇU, PR).................... 14 FIGURA 4 - CADEIA DE PRODUÇÃO E USO DO BIOGÁS ................................................................... 18 FIGURA 5 - DIAGRAMA DA CADEIA PRODUTIVA DE BIOGÁS .......................................................... 19 FIGURA 6 - VANTAGENS E DESVANTAGENS DO PROCESSO ANAERÓBIO EM RELAÇÃO AO AERÓBIO.......................................................................................................................................... 20 FIGURA 7 - ETAPAS DA DIGESTÃO ANAERÓBIA ................................................................................ 24 FIGURA 8 - CONJUNTO DE TELAS UTILIZADAS PARA SEPRAÇÃO DE SÓLIDOS GROSSEIROS EM UMA UNIDADE DE PRODUÇÃO DE SUÍNOS. .............................................................................. 26 FIGURA 9 - CAIXA DE AREIA COMDEPOSIÇÃO DE SÓLIDOS FIXOS, PARA TRATAMENTO DE DEJETOS DE SUÍNOS..................................................................................................................... 26 FIGURA 10 - RELAÇÕES ENTRE TEMPERATURA E CRESCIMENTO DE MICRO-ORGANISMOS DE DIFERENTES CLASSES TÉRMICAS ............................................................................................... 27 FIGURA 11 - BIODIGESTOR MODELO INDIANO – VISTA FRONTAL ................................................ 30 FIGURA 12 - BIODIGESTOR MODELO INDIANO ................................................................................. 30 FIGURA 13 - VISTA SUPERIOR DE UM BIODIGESTOR MODELO CHINÊS. ...................................... 31 FIGURA 14 - ESQUEMA DE CONCEPÇÃO DE BIODIGESTOR MODELO CHINÊS ............................. 32 FIGURA 15 - BIODIGESTOR DE LONA COBERTA – BLC .................................................................... 33 FIGURA 16 - DESENHO ESQUEMÁTICO DE UM BIODIGESTOR DE FLUXO TUBULAR. ................. 33 FIGURA 17 - BIODIGESTOR PLUG-FLOW (FLUXO TUBULAR). ......................................................... 34 FIGURA 18 - BIODIGESTOR DE FLUXO TUBULAR – BOLSA DE GEOMEMBRANA. ......................... 35 FIGURA 19 - ESQUEMA DE FUNCIONAMENTO DE BIODIGESTOR DE FLUXO ASCENDENTE – UASB ................................................................................................................................................. 36 FIGURA 20 - FOTO DE UM REATOR TIPO UASB ................................................................................. 38 FIGURA 21 - BIODIGESTOR EM FASE SÓLIDA E EM BATELADA, COM RECIRCULAÇÃO DE INÓCULO.......................................................................................................................................... 39 FIGURA 22 - EXEMPLOS DE CONFIGURAÇÕES ESPECIAIS NA FERMENTAÇÃO A SECO .............. 39 FIGURA 23 - BIODIGESTOR DE MISTURA COMPLETA – RESÍDUOS ANIMAIS E VEGETAIS ........ 41 FIGURA 24 - UNIDADE DE DEMONSTRAÇÃO ITAIPU DE BIOMETANO ........................................... 41 FIGURA 25 - BIODIGESTOR DE MISTURA COMPLETA COM AGITAÇÃO ......................................... 42 FIGURA 26 - EXEMPLOS DE BIODIGESTORES MODERNOS ADAPTADOS PARA APLICAÇÕES DOMÉSTICAS (BIOGÁS HOME) .................................................................................................... 44 FIGURA 27 - PRODUÇÃO DE BIOGÁS POR QUATRO DIFERENTES TIPOS DE DIGESTORES ANAERÓBIOS .................................................................................................................................. 46 FIGURA 28 - ESQUEMA DE ATERRO SANITÁRIO ................................................................................ 47 FIGURA 29 - FOTO DE ATERRO SANITÁRIO ....................................................................................... 48 Lista de Tabelas TABELA 1 - CARACTERÍSTICAS DE ALGUNS SUBSTRATOS PARA PRODUÇÃO DE METANO ....... 22 TABELA 2 - CAPACIDADE DE GERAÇÃO DE BIOGÁS DE REATORES UASB E BCL PARA DEJETOS DE SUÍNOS ...................................................................................................................................... 23 TABELA 3 - FAIXA TERMAL E TEMPO DE RETENÇÃO TÍPICO NA DIGESTÃO ANAERÓBIA. ......... 28 TABELA 4 - CLASSIFICAÇÃO DAS TÉCNICAS DE GERAÇÃO DE BIOGÁS CONFORME DIFERENTES CRITÉRIOS. ............................................................................................................. 44 Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 9 Apresentação do Curso Seja bem-vindo ao nosso curso sobre produção e uso de biogás para geração de energia elétrica, térmica e produção de biometano. Nosso objetivo é que você entenda a origem do biogás, como ocorre sua produção pelo processo de biodigestão, as etapas envolvidas na aplicação energética do biogás e a destinação adequada ou aplicação do digestato para a fertilização do solo. Para isso, o curso foi estruturado em três aulas, a saber: Aula 1: Conceitos básicos e digestão anaeróbia; Aula 2: Características e aplicações do biogás e do digestato; Aula 3: Operação e manutenção de plantas de biogás, arranjos de viabilidade econômica e panorama do biogás. Assim, na primeira aula você terá acesso aos conteúdos sobre o processo de produção e aproveitamento energético do biogás, as características dos substratos, dados sobre potencial de produção de biogás, pré-tratamento do substrato e tecnologias de digestão anaeróbia para tratamento e produção de biogás. Na segunda aula, o foco do estudo estará voltado a apresentação das principais características e aplicações do biogás, englobando aspectos sobre tratamento, armazenamento e transporte do biogás. Por fim, na última aula (Aula 3) informações a respeito da operação, monitoramento e manutenção de plantas de biogás serão repassadas. Além disso, na Aula 3 os temas arranjos tecnológicos, modelos de negócio e viabilidade técnica, econômica e financeira, serão abordados. Dessa forma, você terá uma visão geral sobre o biogás como uma fonte de energia e poderá aplicar isso no planejamento e análise de projetos. Além disso, o conhecimento que você irá adquirir possibilitará que você decida em quais temas gostaria de se aprofundar e, assim, escolher quais serão os próximos cursos da nossa plataforma a realizar. Espero que esteja animado. Bons estudos e um ótimo trabalho. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 10 Desenvolvimento Proporcionado Nesta aula será proporcionado o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades que poderão ser colocados em prática por você ao longo do curso e após a finalização das atividades propostas: COMPETÊNCIAS: 1. Conhecimento básico de digestão anaeróbica 2. Identificar processos de produção de biogás e determinar os métodos para seu aproveitamento energético; 3. Conhecimento de técnicas para avaliação do potencial de produção de biogás; 4. Noção de pré-tratamentos existentes para os substratos disponíveis para digestão anaeróbia. HABILIDADES: 1. Criterioso; 2. Observação. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 11 1. INTRODUÇÃO Para iniciar a apresentação dos conteúdos neste curso, primeiramente serão expostos os conceitos gerais, o contexto histórico e o processo de produção e aproveitamento energético do biogás. Após a análise destes conteúdos, o estudo estará focado na caracterização dos substratos, dados sobre potencial de produção do biogás, processo de biodigestão anaeróbia e pré-tratamento do substrato. Ademais, serão abordadas as tecnologias de digestão anaeróbia para produção de biogás e o regime de alimentação dos biodigestores. Estes conteúdos serão importantes para situá-los sobre o contexto do biogás e sua relevância. Além disso, a partir das informações desta Aula 1, será possível avançar no conteúdo e aprender efetivamente sobre a aplicação do biogás para geração de energia e produção e uso de biometano. 2. CONCEITOS GERAIS SOBRE O BIOGÁS A digestão anaeróbia ou biodigestão de materiais orgânicos é um processo fermentativo em que a matéria orgânica complexa é degradada a compostos mais simples, sendo uma maneira eficiente de tratar quantidades consideráveis de resíduos, e reduz o seu poder poluente. Esse processo ocorre por meio da ação de diversos grupos de micro-organismos, principalmente os que não necessitam de oxigênio para o seu crescimento, conhecidos como micro-organismos anaeróbios, que interagem simultaneamente até a formação dos produtos finais. O composto de gases proveniente desse processo é chamado de biogás, sendo constituído principalmente por metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2), contendo também pequenas quantidades de hidrogênio (H2), amônia (NH3) e outros gases traço. O processo de digestão anaeróbia é comum no meio ambiente, pois ocorre naturalmente com todamatéria orgânica que entra em decomposição, tais como: resíduos acumulados em lixões, aterros sanitários ou em lagoas de armazenamento de efluentes. Nesses casos, a parte do resíduo ou efluente que está em contato com o ar é digerida por micro-organismos aeróbios, e a parte que não está em contato com o ar, por micro-organismos anaeróbios. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 12 Porém, com tecnologias adequadas, como os biodigestores, a biodigestão anaeróbia pode ser utilizada para o tratamento de resíduos sólidos e líquidos, pois há um processo de reciclagem e recuperação desses materiais, que acaba por produzir, além do biogás, uma parte líquida digerida, conhecida como digestato. Essa bioestabilização da fração orgânica tem sido largamente estudada nas últimas décadas e aplicada para o tratamento de resíduos de diversas origens, com o intuito de desenvolver alternativas tecnológicas de aproveitamento energético e de redução de impactos ambientais. Dentre esses resíduos possíveis de serem tratados, pode-se citar o esgoto urbano, resíduo orgânico urbano, dejetos da produção de animais e efluentes de indústrias, tais como abatedouros de animais, fecularias, usinas de açúcar e etanol, entre outros. Definição Digestão anaeróbia: É um processo mediado pela ação microbiana, por meio da atividade conjunta de vários grupos de células anaeróbias, em diferentes níveis tróficos, que convertem matéria orgânica complexa em gases e lodo. Digestão aeróbia: Realizada por organismos que necessitam de oxigênio para a conversão da matéria orgânica (aeróbicos), tem como produtos o gás carbônico (CO2), água (H2O) e lodo. Para fixar: Em geral, a biodigestão consiste na conversão microbiológica de substratos orgânicos, através de associações simbióticas entre diferentes grupos de micro-organismos que é realizado em fases, e resulta como produto final gases e lodo, chamado também de biogás e digestato. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 13 Além disso, como grande parte do biogás é composto por metano (CH4) isso lhe confere características de alto poder calorífico, podendo ser utilizado como fonte de energia para a geração de energia elétrica, térmica e na produção de biometano e gás carbônico (CO2). Há atualmente uma gama muito grande de modelos de biodigestores, sendo cada um adaptado a uma realidade e a uma necessidade de biogás. A Figura 1, Figura 2 e Figura 3, trazem exemplos de alguns modelos de biodigestores. Figura 1 - Biodigestor modelo lagoa coberta – aplicado no tratamento de efluentes da suinocultura no sul do Brasil. Fonte: Imagem aérea – CIBiogás (2017) Para saber mais: Cada biodigestor possui especificidades distintas, devendo ser utilizado para determinados contextos e condições ambientais de acordo com a necessidade do projeto. Em nossas próximas aulas, discutiremos mais sobre o assunto e, em outros cursos, aprofundaremos nossos conhecimentos sobre a instalação, uso e manutenção de biodigestores. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 14 Figura 2 - Biodigestor modelo indiano – aplicado ao uso doméstico no nordeste do Brasil. Fonte: Pontal Nova (2017). Figura 3 - Biodigestor modelo CSTR (reator tanque-agitado contínuo) - aplicado na Unidade de Demonstração Itaipu (Foz do Iguaçu, PR). Fonte: CIBiogás (2020). 2.1. História do biogás Em 1667, Thomas Shirley observou que a decomposição de matéria orgânica nos pântanos gerava um gás, o qual inicialmente foi chamado de gás dos pântanos ou fogo fátuo. No entanto, ele não tinha conhecimento de como ocorria esta formação e de que gás se tratava. Após Shirley, quem estudou esse fenômeno foi Alessandro Volta, em 1776. Este pesquisador foi quem realmente descobriu a presença de metano no gás dos pântanos. Já no século XIX, Ulysse Gayon, aluno de Louis Pasteur (cientista francês que vislumbrou a possibilidade de utilizar biogás como combustível para aquecimento e iluminação), realizou a fermentação anaeróbia de uma mistura de estrume e água, a 35º C, conseguindo obter 100 litros de gás por m3 de matéria. Em 1884, Louis Pasteur, ao apresentar à Academia das Ciências as pesquisas e experiências do seu aluno, Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 15 considerou que essa fermentação poderia constituir uma fonte de aquecimento e iluminação. Entretanto, no ano de 1859, em Bombaim, na Índia, foi realizada a primeira experiência de utilização direta de biogás, sendo construída a primeira instalação operacional destinada a produzir gás combustível para um hospital de hansenianos (CASTAÑÓN, 2002). Nessa mesma época, pesquisadores de diversos países, como Alemanha e França, estabeleceram as bases teóricas e experimentais da biodigestão anaeróbia. Já em 1895, deu-se a primeira experiência europeia, com a utilização do biogás para iluminação de algumas ruas da cidade de Exeter, na Inglaterra, a qual seguiram outras experiências motivadas, principalmente, pelo entusiasmo inicial que este processo atingiu. Em 1910, Sohngen verificou que a fermentação de materiais orgânicos produz compostos reduzidos, tais como hidrogênio, ácido acético e gás carbônico. Demonstrou também que ocorre a redução de CO2 para a formação de metano. Segundo Costa (2006), nesta época, este combustível não conseguiu substituir os tradicionais, só voltando a ser utilizado na década de 40, impulsionado pela crise energética provocada pela II Guerra Mundial. Durante e depois da Guerra, alemães e italianos, entre os povos mais atingidos pela devastação dos conflitos, desenvolveram técnicas para obter biogás de dejetos e restos de culturas. Nas décadas de 50 e 60, a relativa abundância das fontes de energia tradicionais, petróleo, gás natural, hídrica e carvão mineral principalmente, desencorajaram a recuperação do biogás na maioria dos países desenvolvidos. No entanto, na Índia e na China, com poucos recursos de capital e energia, o biogás desempenhou um papel de certa importância, sobretudo em pequenos aglomerados rurais. Em 1939, o Instituto Indiano de Pesquisa Agrícola, em Kanpur, desenvolveu a primeira usina de gás de esterco. Segundo Nogueira (1986), o sucesso obtido animou os indianos a continuarem as pesquisas, criando, em 1950, o Gobar Gás Institute. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 16 Tais pesquisas resultam em grande difusão da metodologia de biodigestores como forma de tratar os dejetos de animais para a obtenção do biogás e o aproveitamento do efluente líquido final com propriedades fertilizantes, o digestato. Esse trabalho pioneiro, realizado no Norte da Índia, permitiu a construção de quase meio milhão de unidades de biodigestores no interior daquele país. A utilização do biogás como fonte de energia motivou a China a adotar a tecnologia a partir de 1958, onde, até 1972, já haviam sido instalados 7,2 milhões de biodigestores na região do Rio Amarelo, que possui condições climáticas favoráveis à produção de biogás. A partir da crise energética dos anos 70, o gás metano dos digestores anaeróbios voltou a despertar o interesse, tanto por países desenvolvidos como países em desenvolvimento. No entanto, em nenhum país o uso desta tecnologia alternativa foi tão acentuada, no sentido de quantidade de plantas, como na China e Índia. De acordo com Costa (2006), nos últimos anos o biogás não é mais encarado apenas como um subproduto obtido a partir da decomposição anaeróbia, mas se tornou alvo de intensas pesquisas que são impulsionadas pelo aquecimento da economia nos últimos anos e pela elevação acentuada do preço dos combustíveis fósseis, no intuito de criar novas formas de produção energética que possibilitem a redução do uso dos recursos naturaisnão renováveis. Em 1997, a Comissão Europeia publicou o Relatório Branco sobre Fontes Renováveis de Energia (White Paper on Renewable Energy Sources) em que define a produção de fontes renováveis de energia como prioritária. Este documento propôs que pelo menos 12% do consumo energético da União Europeia (UE) fosse constituído por fontes renováveis de energia até 2010. Assim, a produção de biogás em plantas de larga escala cresceu muito nos países da UE, principalmente na Alemanha, Áustria e Itália, chegando a 17.358 plantas Para saber mais: Há vários marcos na história que apresentam preocupações com o meio ambiente a nível mundial, dentre eles: Estocolmo-72 (1972), Relatório Brundtland (1987), Protocolo de Kyoto (1997), Rio+10 (2002) e Acordo de Paris (2015). Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 17 em 2015, que, juntas, geraram 9,8 Mega Tonelada Equivalente de Petróleo (Mtep) de biogás, que é aplicado, principalmente, na geração de energia elétrica e calor. Além disso, também vem crescendo a produção de biometano e injeção na rede de gás natural nesses países, principalmente na Suécia e Alemanha. Porém, vale ressaltar que, para alcançar esses resultados a maioria dos países da UE usam, além de resíduos e efluentes, cultivos energéticos como substrato para a biodigestão, como o milho. Considerando a importância que a biodigestão tem, atualmente, no processo de produção de biogás como uma fonte de energia, elaboramos esse curso com o objetivo de abordar esse tema, como também de toda a cadeia produtiva, indo desde os princípios da biodigestão, passando pelo uso do digestato e do biogás, até o planejamento de projetos de biogás. 2.2. Processo de produção e aproveitamento energético do biogás O processo de produção e aproveitamento energético de biogás envolve, basicamente, as seguintes etapas: pré-tratamento do substrato; digestão anaeróbia no biodigestor; armazenagem, tratamento e valorização do digestato; tratamento, armazenamento e transporte de biogás; aplicação do biogás na geração de energia elétrica e/ou calor; e, produção, armazenamento e transporte de biometano. Todos esses processos podem ser observados na Figura 4. Para fixar: Cultivos energéticos são plantas de crescimento rápido, com objetivo único: ser matéria prima para a obtenção de energia de outras substâncias combustíveis, tais como cana- de-açúcar, milho e girassol. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 18 Figura 4 - Cadeia de produção e uso do biogás Fonte: Strippel et al. (2016). Conforme a Figura 4, pode-se observar que as diferentes fontes de matéria- prima (biomassa) são acumuladas em tanques ou vasos, sendo encaminhadas para processos de lavagem e pré-tratamento (1- 4). A seguir a biomassa passa por filtros para redução de possíveis odores e para sanitização (5 - 6) e é encaminhada para o biodigestor (7). Observa-se o biogás produzido e armazenado no biodigestor e a saída de segurança do biogás (8 e 10). O digestato (acumulado no biodigestor) é comumente estocado (12) ou ainda tratado (13) por meio de separação, secagem e/ou peletização para utilização em plantações na forma de biofertilizante. Já o biogás gerado (9) pode ser distribuído e utilizado de diferentes formas: na geração de energia elétrica, térmica e na produção de biometano (11) (STRIPPEL et al., 2016). Por meio da Figura 5 é possível observar os processos de forma mais simplificada. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 19 Figura 5 - Diagrama da cadeia produtiva de biogás Fonte: Autoria própria. Nas próximas aulas, todos esses processos serão explicados e, adicionalmente, serão apresentados outros temas transversais ao setor de biogás que são importantes para que você o entenda. Dentre os assuntos, estão os temas: (1) operação; (2) monitoramento; (3) segurança; (4) manutenção de plantas de biogás; (5) análise de viabilidade econômica de projetos; (6) estudos de casos práticos; (7) a situação do setor de biogás no Brasil e no mundo; e, (8) perspectivas de avanço do setor e das tecnologias. 3. DIGESTÃO ANAERÓBIA Antes de apresentar os conteúdos relacionados à digestão anaeróbia, alguns termos técnicos mais adequados para o processo de biodigestão serão disponibilizados, a saber: • Os efluentes, resíduos ou qualquer tipo de matéria orgânica que entra no biodigestor como matéria-prima de um processo de biodigestão, é chamado de substrato. O termo substrato é mais adequado que biomassa, dejeto, resíduo e esterco. • A fração líquida resultante do processo de biodigestão é denominada de digestato, podendo ou não ser utilizada como fertilizante, conforme sua disponibilidade, composição e características. O termo digestato é mais adequado que biofertilizante. Além disso, você também deve entender quais são as vantagens e desvantagens do processo de digestão anaeróbia em relação ao aeróbio, que são apresentadas no desenho esquemático da Figura 6. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 20 Figura 6 - Vantagens e desvantagens do processo anaeróbio em relação ao aeróbio. Fonte: Adaptado de Chernicharo (2008). Para a produção de biogás por meio da digestão anaeróbia, o primeiro passo é conhecer as características dos substratos que podem ser utilizados e analisar as possibilidades de misturas e melhoria do potencial de produção de biogás. O segundo passo é preparar esse substrato para que o processo ocorra com mais eficiência dentro do biodigestor, o que chamamos de pré-tratamento do substrato. Com isso, o substrato é destinado ao biodigestor para que ocorra o processo de digestão anaeróbia em si, podendo ser utilizadas diversas tecnologias com diferentes características. Na sequência analisaremos os aspectos referentes a essa temática. A codigestão é um processo utilizado principalmente para melhorar os rendimentos da digestão anaeróbica de resíduos orgânicos sólidos devido aos seus inúmeros benefícios. Por exemplo, a diluição de compostos tóxicos, o aumento da carga de matéria orgânica biodegradável, o melhor equilíbrio de nutrientes, o efeito sinérgico de micro-organismos e o melhor rendimento de biogás. Esse processo de mistura demanda um estudo mais aprofundado das características, disponibilidade dos substratos e um pré-tratamento mais avançado. Porém, é interessante para alcançar maior estabilidade na biodigestão, eficiência na produção de biogás, controle da sazonalidade da disponibilidade de substratos, e na melhoria das características do digestato. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 21 3.1. Caracterização dos substratos e potencial de produção de biogás Como estudado, os substratos utilizados na biodigestão podem ser provenientes de diversas atividades. Devido a isso, é importante conhecer os substratos que serão utilizados, pois a sua composição irá influenciar a escolha do biodigestor, manejo a ser adotado e também a eficiência do biodigestor na geração de biogás. Basicamente o que define o potencial de produção de biogás de um substrato é a concentração de Sólidos Totais Voláteis (SV), parâmetro relacionado à fração biodegradável do substrato, a matéria orgânica. Os Sólidos Totais (ST) indicam a quantidade de matéria orgânica e mineral do substrato. O potencial máximo de produção de metano de um substrato pode ser dado em metros cúbicos de metano por quilo de sólidos voláteis (m3 CH4 kg.SV-1) ou em metros cúbicos de metano por quilo de substrato (m3 CH4 kg.Substrato-1). Na Tabela 1 é possível verificar as características de alguns substratos e o potencial máximo de produção de metano.Definição É possível utilizar apenas um tipo de substrato na biodigestão, o que se denomina de monodigestão, ou misturar diferentes substratos, processo denominado de codigestão. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 22 Tabela 1 - Características de alguns substratos para produção de metano Substratos ST (%) SV/ST (%) m3 CH4.kgSV-1 m3 CH4.kg substrato-1 Agricultura Palha de Trigo1 86 92 0,188 0,148 Milho - resíduos da colheita1 35 92 0,251 0,081 Resíduos da limpeza de grãos1 89 94 0,316 0,267 Silo de milho (planta verde)1 33 96 0,306 0,097 Pecuária Dejetos de bovino de leite (com restos de ração)1 8,5 85 0,193 0,014 Dejetos de bovino2 8-11 75 - 82 0,12 - ,3 0,012 – 0,018 Dejetos de suíno2 7 75 - 85 0,2 – 0,45 0,025 – 0,030 Esterco de galinhas2 32 63 - 80 0,15 – 0,27 0,042 – 0,054 Indústria Vinhaça de Cana¹ 3-5 75 - 85 0,376 0,006 Torta de filtro de Cana3 25 70 0,262 0,047 Polpa de Café3 20 93 0,244 0,045 Polpa da laranja3 12-30 94,5 0,227 0,024 Glicerina1 100 99,5 0,425 0,423 Efluente de cervejaria2 5 85 0,340 0,0016 Efluente de fábrica de laticínios3 4 88 0,295 0,0011 Efluente de abatedouro3 8 77 0,236 0,0014 Resíduos Sólidos Urbanos Resíduos municipais (misturados) 4 30 - 40 50 - 60 0,270 – 0,390 0,041 – 0,094 Resíduos orgânicos (separados) 5 30 - 40 70 - 80 0,210 – 0,227 0,044 – 0,089 Restos de alimentos5 15 – 20 85 – 95 0,467 – 0,510 0,059 – 0,097 Resíduos da caixa de gordura5 25 – 45 90 – 95 0,650 – 0,780 0,146 – 0,333 Tratamento de esgoto Lodo de esgoto flotado6 35- 38 97 - 98 0,531 – 1,350 0,336 – 0,980 Esgoto7 - - - 0,00072 – 0,00112 É importante entender que esses parâmetros são gerados em laboratório, onde o ambiente é controlado e monitorado, e podem variar muito conforme as características da atividade produtiva e da região onde o substrato é produzido. Por exemplo, na 1 Fonte: http://www.lfl.bayern.de/iba/energie/049711/?sel_list=8%2Cb&strsearch=&pos=lef 2 Fonte: PROBIOGÁS, 2015. 3 Fonte: Handreichung Biogasnutzung, 2004. 4 Fonte: Tekoa Engenharia e Consultoria LTDA (2011) por carga de BN Umwelt GmbH. 5 Fonte: PROBIOGÁS, 2015. 6 Fonte: KTBL, 2016. 7 Fonte: Metcalf & Eddy, 2003. http://www.lfl.bayern.de/iba/energie/049711/?sel_list=8%2Cb&strsearch=&pos=lef Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 23 pecuária, que pode variar conforme a dieta dos animais e o modo de limpeza das instalações. Além disso, cada tecnologia de biodigestão suporta diferentes quantidades de sólidos totais, o que demanda que alguns substratos sejam diluídos. Também é necessário considerar que, ainda que o potencial máximo de produção de biogás seja alto nas análises laboratoriais, na prática, a produção real será menor, pois pode variar conforme o tipo de biodigestor, temperatura, manejo, pH, etc. A capacidade de geração de biogás também dependerá da eficiência do biodigestor, podendo variar de acordo com o tipo do digestor e a condição operacional a qual ele é submetido. É necessário conhecer os parâmetros e assim empregá-los de forma que o manejo seja adequado. A Tabela 2 apresenta como os parâmetros, valores da qualidade de biogás e seu potencial de produção podem variar conforme a tecnologia. Tabela 2 - Capacidade de geração de biogás de reatores UASB e BCL para dejetos de suínos Geração de biogás Qualidade do biogás Potencial de produção (m3d-1) H2S (ppm) CO2 (%) CH4 (%) (m3 biogás kg.SV-1) (m3 CH4 kg.SV-1) UASB escala piloto8 0,69 189 25 74 1,56 1,15 UASB9 0,83 124 21 76 1,43 1,09 BCL10 0,32 322 29 67 0,31 0,21 BCL11 0,21 536 34 62 0,33 0,20 UASB – Reator Anaeróbio de Fluxo Ascendente; BCL - Biodigestor do tipo Lagoa Coberta Assim, os parâmetros que estão disponíveis nas publicações devem ser utilizados apenas para as estimativas iniciais e estudos prévios de viabilidade. Porém, para a elaboração do projeto técnico e planejamento da operação da planta, é importante conhecer o substrato que será utilizado por meio de análises de laboratório e testes em biodigestores em escala piloto. 3.2. Processo de biodigestão anaeróbia O mecanismo de decomposição anaeróbia e, consequentemente, a geração de biogás, desenvolve-se pela ação de um consórcio de micro-organismos que agem de forma interdependente na conversão da matéria orgânica, bem como na síntese de novas células bacterianas, assegurando energia e nutrientes necessários para o seu próprio crescimento e reprodução. 8 Fonte: Costa e Kunz, 2007. 9 Fonte: Kunz, 2007. 10 Fonte: Kunz et. al, 2005. 11 Fonte: Vivan et. al, 2008. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 24 O processo é complexo, tanto pelo número de reações bioquímicas, quanto pela quantidade de micro-organismos envolvidos, dividindo-se em quatro principais etapas: Hidrólise, Acidogênese, Acetogênese e Metanogênese. Um esquema sobre esse processo pode ser visto na Figura 7. Para que os micro-organismos se reproduzam e cresçam, é necessário ter um meio de cultura apropriado, sendo importante manter a uniformidade na característica do substrato e das condições físico-químicas durante o processo de biodigestão anaeróbia. Figura 7 - Etapas da digestão anaeróbia Fonte: Strapasson et al. (2014). O substrato é o "alimento" para os micro-organismos poderem metabolizar, e, assim, reproduzir novas células (anabolismo) e produzir energia (catabolismo) para o seu crescimento. Ele deve conter vários elementos diferentes, tais como: fonte de energia, receptores de elétrons, estrutura para a produção de novas células, diferentes tipos de vitaminas e macro e micronutrientes (metais). Em adição ao substrato, os micro-organismos requerem um ambiente adequado para crescer e reproduzir. Os principais fatores abióticos que influenciam a produção de biogás são: presença de oxigênio no ambiente; temperatura; potencial de hidrogênio (pH); alcalinidade; sulfato; acidez; tamanho das partículas; produção e consumo de ácidos orgânicos; e nutrientes. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 25 3.3. Pré-tratamento do substrato O substrato que será destinado ao biodigestor precisa passar por processos de pré-tratamento na grande maioria dos casos. São processos que permitem retirar partículas grandes ou inertes, triturar, aquecer, misturar, entre outros. 3.3.1. Separação de sólidos e mistura do substrato A separação sólido-líquida, envolvendo a digestão anaeróbia, é aplicada em substratos com materiais grosseiros, cujo objetivo é remover as partículas sólidas grosseiras em suspensão, impedindo a entrada de materiais inertes (sólidos fixos) no biodigestor, de modo a evitar a obstrução e acúmulo no sistema, onde a fração líquida tenha maior atuação dos micro-organismos. Dependendo do modelo do biodigestor, não é recomendado que os substratos sejam encaminhados sem passar pelo separador de sólidos, principalmente quando são usados em biodigestores sem agitação, como por exemplo biodigestor tipo lagoa coberta (denominado também de BCL). Essa separação facilita a degradação e estabilização da matéria orgânica nos processos posteriores, bem como diminui o Tempo de Retenção Hidráulica (TRH) favorecendo a produção de biogás. A separação de sólidos pode ser feita em diversos níveis, mas uma separação de sólidos simples com peneiras ou telas (Figura 8) ou caixa de areia (Figura 9) ajuda a remover os materiais inertes, evitando assoreamento nos biodigestores, além de entupimentos de bombas e linhas de transmissão. A caixa de homogeneização também auxilia na separação sólido-líquido, pois é responsável por armazenar os substratos brutos utilizados no processo de alimentação do sistema de tratamento, tendo por finalidade a agitação dos substratos, por meio de bomba de recalque, e a decantação da areia e de sólidos pesados. Para melhorar a eficiência da mistura aconselha-se atingir todosos pontos da caixa. A agitação é importante por possibilitar que o substrato esteja homogeneizado e uniforme quando for inserido no biodigestor, aumentando, assim, a eficiência da biodigestão, pois facilita o contato dos micro-organismos com o material que será degrado. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 26 Figura 8 - Conjunto de telas utilizadas para separação de sólidos grosseiros em uma unidade de produção de suínos. Fonte: CIBiogás (2016) Figura 9 - Caixa de areia com deposição de sólidos fixos, para tratamento de dejetos de suínos. Fonte: CIBiogás (2016) 3.3.2. Trituração de substrato O tratamento inicial do substrato difere em diferentes plantas, dependendo da matéria-prima utilizada. Às vezes, uma ou mais etapas de pré-tratamento estão envolvidas. Por exemplo, a utilização da trituração para aumentar a digestibilidade dos resíduos que são difíceis de quebrar. As culturas energéticas com altos teores de celulose, hemicelulose e lignina (por exemplo, palha, grama, silagem, alimentos, resíduos vegetais em geral) são degradadas lentamente na biodigestão, devido à sua estrutura complexa. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 27 A fim de maximizar a taxa de digestão de materiais ricos em celulose, é benéfico cortá-lo e/ou aplicar um processo de trituração para quebrar a estrutura complexa da celulose e torná-la mais acessível para a digestão como uso do calor ou tratamento químico. Quanto menor a partícula, mais acessível estará o substrato para que os micro- organismos realizem a biodigestão. Diminuir seu tamanho pode aumentar a taxa de degradação e proporcionar um maior rendimento na produção de biogás, pois há mais contato superficial entre substrato e micro-organismos. 3.3.3. Aquecimento do substrato Os processos anaeróbicos, como muitos outros sistemas biológicos, são fortemente dependentes da temperatura, pois a velocidade de reação dos processos biológicos depende da velocidade de crescimento dos micro-organismos e, por sua vez, da temperatura do meio, conforme pode ser observado na Figura 10. A temperatura é um dos fatores mais importantes na seleção das espécies, não influenciando apenas na atividade metabólica da população de micro-organismos, mas, também, no equilíbrio iônico e na solubilidade dos substratos. Para a atividade microbiana, são, normalmente, consideradas 3 faixas termais de temperatura: psicrófilo, mesófilo e termófilo. Dentro de cada faixa de temperatura, existe um intervalo para o qual ocorre a máxima taxa de crescimento, que é a determinação da temperatura ótima em cada uma das faixas de operação (Tabela 3). Figura 10 - Relações entre temperatura e crescimento de micro-organismos de diferentes classes térmicas Fonte: Madigan, M. et al. (2010). Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 28 Tabela 3 - Faixa termal e tempo de retenção típico na digestão anaeróbia. Micro-organismo de acordo com a classe termal Mínimo (°C) Ótimo (°C) Máximo (°C) Tempo mínimo de retenção Psicrófilos 4-10 15-18 20-25 70-100 dias Mesófilos 15-20 25-35 35-45 30-60 dias Termófilos 25-45 50-60 75-80 15-20 dias Fonte: Adaptado de Speece (1996). Os micro-organismos produtores de gás metano (metanogênicos) apresentam um crescimento máximo na faixa mesófila e na faixa termófila, mas, no geral, são mais sensíveis às flutuações de temperatura do que outros micro-organismos no processo, A escolha da temperatura de operação depende de fatores econômicos e operacionais, assim prefere-se a utilização de temperaturas mesófilas. Em geral, o aumento da temperatura ambiente leva ao aumento da velocidade de crescimento dos micro-organismos devido a aceleração do processo de digestão, favorecendo a maior produção de biogás. Contudo, é necessário tomar cuidado nessa abordagem pois, os micro- organismos metabólicos possuem sua própria faixa ideal de temperatura, como visto na Tabela 3. A variação da temperatura acima ou abaixo desse intervalo pode acarretar a inibição dos micro-organismos. O fator de temperatura e sua influência em outros parâmetros devem ser aprofundados em um curso mais específico. Afinal, é a temperatura o principal fator ambiental que controla o crescimento microbiano. Atenção: O calor faz com que os micro-organismos trabalhem mais rápido e se adaptem a esse clima. Mais material é degradado em menor tempo e o volume do biodigestor pode ser reduzido comparado com o mesmo material digerido em temperaturas menores. A alta temperatura pode aumentar a disponibilidade de certos compostos orgânicos por causa da solubilidade aumentada, contudo, pode levar a formação de elementos tóxicos mais rapidamente, havendo a liberação de grandes quantidades de ácidos graxos voláteis (AGV) e amônia. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 29 3.4. Tecnologias de digestão anaeróbia para produção de biogás O biodigestor é um sistema ou tecnologia que proporciona condições favoráveis para que a degradação da matéria orgânica seja realizada, por micro-organismos em ambiente anaeróbio, tratando os resíduos, e, produzindo biogás e digestato. 3.4.1. Regime de alimentação As características do substrato definem o regime de alimentação de uma planta de biogás, tendo, assim, impacto na escolha do tipo de tecnologia e na produção de biogás. Essencialmente, a classificação conforme o regime segue os seguintes tipos: contínuo, semi-contínuo e em batelada. • Contínuo: Neste sistema, a alimentação do digestor é ininterrupta, sendo a vazão de entrada igual a vazão de saída. Esse tipo de fluxo é utilizado principalmente para biodigestores que realizam o tratamento de esgoto industriais e urbanos. • Semi-contínuo: A alimentação é feita apenas uma vez até completar o TRH, posteriormente, são adicionadas novas cargas, onde o digestato é descarregado regularmente na mesma quantidade de substrato inserido. Este processo é mais usual em pequenas escalas, como em áreas rurais. • Batelada: Conhecido também como descontínuo, esses reatores trabalham com ciclos de alimentação, digestão e descarte. São alimentados uma única vez até se findar a biodigestão. Após isso, são esvaziados e alimentados novamente, iniciando um novo processo de fermentação. Esse regime é utilizado quando a concentração de sólidos no substrato é mais elevada, por exemplo: biodigestão de resíduos da avicultura ou de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU). 3.4.2. Classificação dos biodigestores por tecnologias Os biodigestores variam de acordo com sua complexidade e utilização. Os modelos de biodigestores mais utilizados são: indiano, chinês, fluxo tubular, fluxo ascendente e de mistura completa. A descrição detalhada de cada um destes dispositivos está disponível a seguir. Biodigestor modelo indiano Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 30 Normalmente, esses digestores são enterrados e verticais, possuem uma campânula móvel como gasômetro, e uma parede central, que divide o tanque de fermentação em duas câmaras, como mostra a Figura 11. O gasômetro na parte superior do biodigestor flutua conforme for a produção e consumo do biogás, aumentando o volume deste de modo que se desloca verticalmente e, portanto, mantendo a pressão no interior constante. Figura 11 - Biodigestor modelo Indiano – vista frontal Fonte: Strapasson et al. (2014). A parede divisória faz com que o material circule por todo o interior da câmara de fermentação. A Figura 12 apresenta a vista superior deste modelo de biodigestor. Figura 12 - Biodigestor modelo indiano Fonte: CIBiogás (2016). Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 31 Nesse biodigestor, a temperatura de fermentação não varia muito, pois como normalmente é construído enterrado no solo, sofre pouca variação de temperatura, favorecendo a ação dos micro-organismos. Contudo, pelo fato do biodigestor ser instalado no solo, éimprescindível todo o cuidado com infiltrações no lençol freático. Demanda trabalho manual para alimentação e retirada do digestato, sendo que o substrato deve ser bem diluído para evitar entupimentos no sistema de entrada e facilitar a circulação do material no interior do biodigestor. Este tipo de biodigestor é muito utilizado para aplicações domésticas por ser de baixo custo de construção e operação, principalmente em pequenas propriedades rurais. Contudo, a campânula costuma ter problemas de corrosão, se utilizado material metálico. Biodigestor modelo chinês É formado por uma câmara cilíndrica em alvenaria, para fermentação, com teto servindo para o armazenamento de parte do biogás produzido, ou seja, um gasômetro impermeável e fixo como pode ser visto na Figura 13. Figura 13 - Vista superior de um biodigestor modelo chinês. Fonte: Taller Biogás (2018). Como neste tipo de digestores não há gasômetro, o biogás é armazenado dentro do sistema, funcionando com base no princípio de prensa hidráulica, ou seja, se houver aumento de pressão em seu interior devido ao acúmulo de biogás, ocorrerão Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 32 deslocamentos do efluente da câmara de fermentação para a caixa de saída, e em sentido contrário se houver descompressão (Figura 14). Figura 14 - Esquema de concepção de biodigestor modelo chinês Fonte: Strapasson et al. (2014). Devido à perda de uma parcela do gás formado na caixa de saída para a atmosfera, o que faz reduzir parcialmente a pressão interna do gás, este tipo de biodigestor não é utilizado para instalações de grande porte, demandando também, trabalho para alimentação do substrato e retirada do digestato. Também tem uma relação custo-benefício atrativa, e semelhante ao modelo indiano, o substrato deverá ser fornecido continuamente, com baixas concentração de sólidos totais para evitar entupimentos do sistema de entrada e facilitar a circulação do material. Biodigestor de fluxo tubular (plug flow) – Lagoa coberta Neste modelo, também conhecido como lagoa coberta, canadense ou fluxo pistão, o substrato tem entrada contínua em uma das extremidades, passando através do biodigestor e sendo descarregado na outra extremidade. É construído com geometria piramidal (Figura 15), escavado no solo e impermeabilizado em alvenaria ou com material geossintético, normalmente PVC e PEAD, com as aberturas para a entrada do substrato e saída do digestato. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 33 Figura 15 - Biodigestor de lona coberta – BLC Fonte: Torres et al. (2012) A câmara é coberta por material geossintético flexível que infla conforme o gás é produzido, servindo como reservatório do biogás, e podendo ser retirada e limpa pelo fácil manuseio (Figura 16). Contém uma grande área de exposição ao sol, o que contribui para produção de biogás em regiões quentes (CASTANHO & ARRUDA, 2008), porém é mais sensível às variações térmicas, sendo mais recomendável para regiões de temperaturas constantes. Figura 16 - Desenho esquemático de um biodigestor de fluxo tubular. Fonte: CIBiogás (2016). Segundo a PROBIOGÁS (2015), esse tipo de sistema deve operar com um percentual de sólidos totais inferior a 5%. Entretanto, para um funcionamento eficiente do sistema, é aconselhável, como boas práticas, utilizar um teor de sólidos totais de no máximo 2% (CIBiogás, 2018). Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 34 A utilização destes biodigestores foi de grande interesse nos últimos anos no Brasil, sendo, atualmente o modelo mais utilizado no país, devido à fácil construção e pela evolução na tecnologia de geomembranas. O mercado de créditos de carbono também contribuiu para a popularização de sua utilização, devido a captura do biogás que seria emitido pelas lagoas anaeróbias. Na Figura 17 é possível observar uma foto de um biodigestor de fluxo tubular. Figura 17 - Biodigestor Plug-Flow (Fluxo tubular). Fonte: CIBiogás (2016). Uma variação do modelo de fluxo tubular é o uso de bolsas de geomembrana parcialmente enterradas e com cobertura que permita a entrada dos raios solares e aquecimento natural, como na Figura 18. Esse modelo é muito utilizado em escala doméstica em diversos países da América Latina e Caribe, podendo ter custos menores que os modelos chinês e indiano. Porém, demandam volume maior por exigirem um substrato com menor quantidade de sólidos. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 35 Figura 18 - Biodigestor de fluxo tubular – Bolsa de geomembrana. Fonte: RedBioLAC (2016) Outra variação desse modelo de biodigestor é a lagoa coberta com mistura mecânica, esse tipo de lagoa é uma adaptação dos reatores de mistura contínua e apresenta maior eficiência na produção de biogás se comparada às lagoas clássicas existentes, podendo operar com uma concentração de ST de 10 a 15% (PROBIOGÁS, 2015). De acordo com o monitoramento e acompanhamento das Unidades de Demonstração realizado pelo CIBiogás, recomenda-se que esse tipo de sistema opere com uma concentração máxima de ST de 6%. Para saber mais: Os biodigestores para aplicações domésticas e em zonas mais carentes devem ter características bem específicas para obterem um custo-benefício adequado à realidade dessas regiões. Para mais dados sobre este assunto, você, poderá acessar as informações disponibilizadas pela Red de Biodigestores para Latinoamérica y Caribe de 2016, Oportunidades para el desarrollo de un sector sostenible de biodigestores de pequeña y mediana escala en LAC. Disponível em: http://redbiolac.org/2016/11/ya-esta-disponible- la-publicacion-sobre-biodigestores-en-version-digital-descarguela- aqui/ http://redbiolac.org/2016/11/ya-esta-disponible-la-publicacion-sobre-biodigestores-en-version-digital-descarguela-aqui/ http://redbiolac.org/2016/11/ya-esta-disponible-la-publicacion-sobre-biodigestores-en-version-digital-descarguela-aqui/ http://redbiolac.org/2016/11/ya-esta-disponible-la-publicacion-sobre-biodigestores-en-version-digital-descarguela-aqui/ Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 36 Reatores do tipo filme fixo - UASB Dos reatores anaeróbios de filme fixo, o mais conhecido é o Upflow Anaerobic Sludge Blanket ou Reator Anaeróbio de Fluxo Ascendente com Manta de Lodo (UASB), que apresenta um alto desempenho na produção de biogás e caracteriza-se pelo fluxo ascendente dos efluentes. Na Figura 19, é possível observar a estrutura interna de um reator UASB. Sua peculiaridade está no fluxo ascendente contínuo na câmara de digestão, causado pela disposição da entrada da biomassa, que se dá na parte inferior da câmara. Ao se iniciar as operações, o perfil de sólidos no reator varia de muito denso e com partículas granulares de elevada capacidade de sedimentação, próximas ao fundo (leito de lodo), até um lodo mais disperso e leve, próximo ao topo do reator (manta de lodo). Figura 19 - Esquema de funcionamento de biodigestor de fluxo ascendente – UASB Fonte: Campos (1999). Como o biodigestor é vertical, a biomassa inserida passa primeiramente pelo leito de lodo e manta de lodo, e como ambas possuem uma densidade de micro- organismos muito elevada, há uma agilização no processo de digestão. Um dispositivo de separação de gases, sólidos e líquidos (separador trifásico) evita que o fluxo ascendente dos gases que se formam nos processos de estabilização carregue as partículas que se desgarram da manta de lodo, permitindo que estas Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 37 retornem à câmara de digestão, ao invés de serem arrastadas para fora do sistema junto com o digestato. Esse lodo gerado e armazenado no reator UASB deve ser retirado do fundo do tanque de forma equilibrada para não comprometer a flora bacteriana. Ademais, este modelo requer um maior controle na operação, pois a formaçãodos grânulos não é um processo simples, havendo baixa velocidade do crescimento dos micro-organismos metanogênicos, além de possuir uma construção estrutural mais complexa (JUNQUEIRA, 2014). Contudo, pode ou não ser adicionado um inóculo, uma vez que adicionado, promove a diminuição do tempo necessário para a bioestabilização anaeróbia dos resíduos, já que contribui para a melhora da densidade microbiana (PROSAB, 2003). Uma limitação destes reatores se baseia-se no fato de não tolerarem altas concentrações de sólidos na alimentação do sistema, necessitando uma boa separação prévia sólido-líquida. Na Figura 20, observa-se um biodigestor modular de fibra de vidro vertical rígido, semienterrado no solo, uma adaptação dos reatores de fluxo ascendente convencionais. Definição O inóculo é composto que contém micro-organismos típicos da digestão anaeróbica anterior, fornecendo ao novo substrato uma população adicional de micro- organismos já adaptados ao substrato. São retirados do interior de um biodigestor já em operação, fazendo com que acelere a adaptação da nova biodigestão. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 38 Figura 20 - Foto de um reator tipo UASB Fonte: JIE (2016). Biodigestores via seca Biodigestores em fase sólida, ou via seca, são mais comuns em operação por batelada, sendo alimentados com resíduos contendo entre 20 e 40% de ST, sendo normalmente utilizados para substratos como fração orgânica dos RSU, gramas, restos de alimentos, entre outros. A adição de água é dispensável nesse processo e a quantidade de sólidos no biodigestor afeta o seu volume e o processo de tratamento. Porém, devido à baixa concentração de água em sistemas de digestão em fase sólida, necessita-se de biodigestores com menores volumes (comparados às outras tecnologias estudadas nesse curso). Em contrapartida, tem-se a necessidade de bombas para recirculação do líquido proveniente de digestões anteriores, chamado de percolado ou lixiviado, sendo recirculado sobre a fração sólida e assim, inoculando o substrato e garantindo um nível de umidade no processo. Na Figura 21 observa-se o esquema desse sistema. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 39 Figura 21 - Biodigestor em fase sólida e em batelada, com recirculação de inóculo Fonte: Adaptado de Kothari et al. (2014). É possível regular a temperatura do processo e do líquido de percolação por um sistema de aquecimento embutido no piso no interior do reator, e por um permutador de calor que atua como reservatório para o líquido de percolação (SEADI, 2008). Porém, deve-se ressaltar que os reatores de via seca devem ser operados com um regime intermitente de recirculação, pois a recirculação contínua pode causar a diminuição na produção de metano acumulado pelo fato de contribuir para a acidificação do meio, lixiviando alguns compostos em que as arqueas metanogênicas não são capazes de metabolizar, inibindo-as (KUSH, 2013). A Figura 22 demonstra exemplos de três configurações de plantas com uso de biodigestores de via seca. Figura 22 - Exemplos de configurações especiais na fermentação a seco Fonte: BMELV (2010). O tempo de digestão da via seca é entre 2 a 4 semanas, dependendo do tipo de substrato. A seguir algumas características são apresentadas. • A produtividade de biogás é de 15 a 40% menor quando comparada com a via úmida; Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 40 • Produzem quantidades mais baixas de metano, mesmo a taxas mais elevadas de carga orgânicas; • Suporta substratos com maior concentração de sólidos, além de maior tamanho de partícula; • Não é necessária grande diluição dos substratos; • O biorreator precisa ser aberto para ser preenchido e/ou esvaziado; • Alimentação do biorreator é descontínua. Um exemplo é o uso desta rota por fermentação em bolsas de plástico, uma adaptação da tecnologia de silagem. Nela, uma bolsa de plástico impermeável a gases, deitada sobre uma placa aquecível de concreto, é alimentada com substrato por meio de um equipamento de enchimento. O biogás é capturado por uma tubulação de coleta e transportado até o local de aproveitamento do gás. A umidificação do substrato se restringe à percolação regular, até que o material a fermentar se encontre submerso. Biodigestor de mistura contínua (CSTR) Os reatores de mistura contínua, também conhecidos como Continuous Flow Stirred Tank Reactor (CSTR), utilizam um alto nível tecnológico para geração de biogás, controlando de maneira bastante confiável todo o processo de biodigestão (temperatura, agitação, entre outros). São muito utilizados na Europa, em países como a Alemanha, Áustria e Dinamarca, para geração de biogás para codigestão de resíduos animais e vegetais e semelhante ao UASB, pode ser ou não adicionado inóculo. Também chamado de modelo de mistura completa, o CSTR é constituído de concreto reforçado, com sistema de aquecimento no interior e exterior das paredes e no chão. Possui também isolamento ao redor das paredes e debaixo do piso, garantindo perda mínima de calor. É composto por um misturador, sistema de trituração, controladores de temperatura, sistema de controle dos parâmetros físicos, químicos e microbiológicos, todos no interior do biodigestor Figura 23. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 41 Figura 23 - Biodigestor de mistura completa – resíduos animais e vegetais Fonte: Curso de Operacionalização de Biodigestores (2016). A maioria dos sistemas são construídos com uma cobertura exterior e interior. A cobertura exterior protege dos elementos da atmosfera e a interna armazena o biogás. A Figura 24 apresenta uma foto do uso deste tipo de biodigestor em uma unidade de demonstração da Itaipu, instalada, operada e monitorada pelo CIBiogás. De acordo com as experiências do CIBiogás, recomenda-se que esse tipo de sistema opere com um teor de ST de no máximo 12%. Figura 24 - Unidade de Demonstração Itaipu de biometano Fonte: CIBiogás (2017). Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 42 A Figura 25 apresenta um biodigestor de mistura completa com agitação mecânica com agitador de eixo longo com demais equipamento desse sistema. Figura 25 - Biodigestor de mistura completa com agitação Fonte: BMELV (2010). 3.4.3. Classificação dos biodigestores por porte Os intervalos que classificam os biodigestores entre pequeno, médio e grande variam bastante dependendo da literatura utilizada. Uma referência a se utilizar é a Lei Alemã de Energias Renováveis (EEG) (2004), país líder nesse assunto nos últimos anos. Assim, a classificação por porte sugerida está descrita a seguir. Biodigestores de pequena, média e grande escala São biodigestores construídos com foco no tratamento de efluentes em atividades produtivas, podendo, também, ser instalados com foco específico na produção de biogás, visando uso para energia elétrica, onde, em alguns casos, são utilizados cultivos energéticos como substrato na biodigestão. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 43 Por serem de pequena, média e grande escala, demandam um nível tecnológico mínimo para manter a operação com pouca mão de obra e custos reduzidos de manutenção. Porém, isso varia muito conforme a disponibilidade de recursos, subsídios, substratos, clima, custo da mão de obra, entre outros fatores que implicam no sistema de implantação do biodigestor e na garantia da eficiência do processo e a viabilidade econômica do investimento. Biodigestores domésticos Os biodigestores domésticos são caracterizados por terem uma boa relação entre custo de instalação, operação, manutenção e eficiência. Além disso, são aplicados para pequenas vazões e regiões com poucos recursos financeiros. Há centenas de anos os modelos indianos e o chinês, apresentadosno capítulo 3.4.2, vêm sendo utilizados em regiões carentes para o tratamento de esgoto, resíduos de alimentos e efluentes de animais, para que haja produção de biogás e digestato. Porém, nas últimas décadas, seu uso cresceu em diversas regiões do planeta, como Ásia, África, América Latina e Caribe, devido ao aumento da demanda e difusão da tecnologia. Modelos com maior nível tecnológico vêm sendo desenvolvidos para uso doméstico nos últimos anos em busca de melhorar a sustentabilidade de regiões urbanas (Figura 26). Porém, nitidamente, tem custos mais elevados e não são acessíveis a todas Na Europa, em busca de aumentar o uso de fontes renováveis de energia, alguns países começaram a pagar mais pela energia elétrica gerada por essas fontes, o que é chamado de subsídio. Isso viabilizou o cultivo de grãos para armazenamento (silagem) e uso durante todo o inverno, inclusive no inverno rigoroso, para produção de biogás. No Brasil e na América Latina, em geral, a grande quantidade de efluentes e resíduos disponíveis para a biodigestão e a falta de subsídios, não incentivam os cultivos energéticos para produção de biogás. Exemplo Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 44 as classes sociais, e por isso ainda é mais utilizável, nessa categoria, os modelos indianos e o chinês. Figura 26 - Exemplos de biodigestores modernos adaptados para aplicações domésticas (Biogás Home) Fonte: Homebiogas (Disponível em: <https://homebiogas.com>). 3.4.4. Eficiência das tecnologias na produção de biogás A realização de um projeto de biogás está condicionada ao conhecimento profundo e multidisciplinar de todos os aspectos relacionados ao substrato, à tecnologia energética, legislação, administração, organização e logística. Considerando que o mercado oferece uma variedade incrível de opções técnicas, apresentaremos, brevemente, algumas tecnologias que estão atualmente disponíveis no mercado e os princípios para a escolha do substrato e da tecnologia a se usar. Existem inúmeras combinações entre componentes e equipamentos para utilização em uma planta de biogás, como também para a produção. As técnicas típicas são apresentadas na Tabela 4. Tabela 4 - Classificação das técnicas de geração de biogás conforme diferentes critérios. Critério Tipo Teor de matéria seca dos substratos - digestão úmida - digestão seca Regime de Alimentação - descontinua - semicontínua - contínua N° de fases do processo - uma fase - duas fases Temperatura do processo - psicrofílico - mesofílicos - termofílico Fonte: FNR (2010). Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 45 A consistência dos substratos depende do seu teor de matéria seca, o que justifica a classificação básica da tecnologia de biogás em técnicas de digestão seca e técnicas de digestão úmida. A digestão úmida se realiza com substratos bombeáveis, já a seca faz uso de substratos empilháveis. A diluição do substrato em água apresenta como vantagem a minimização dos riscos de choque de carga orgânica e/ou de cargas tóxicas ao processo de metanização, em função da diluição e solubilização da concentração desses compostos no meio líquido, bem como a digestão mais rápida do substrato devido a facilidade do contato dos micro- organismos com o material que será degrado. Conforme definições estipuladas em publicação de apoio do Ministério do Meio Ambiente da Alemanha, baseadas na Lei Alemã de Energias Renováveis (EEG) de 2004, na entrada, um teor de matéria seca de no mínimo 30% (base em massa) e uma carga orgânica volumétrica de no mínimo 3,5 kg matéria orgânica dia no biodigestor. Na digestão úmida, o substrato líquido pode ter um teor de matéria seca de até 12% (em massa). Na Europa, a maioria das plantas de biogás agrícolas adotam a digestão úmida, realizada nos típicos reservatórios circulares. A explicação detalhada dos tipos de biodigestores já foi vista no item 3.4.2. Na técnica de fluxo contínuo, o substrato é bombeado várias vezes ao dia para o biodigestor, onde a mesma quantidade de substrato carregada no biodigestor chega no reservatório de digestato por pressão ou retirada. Já a alimentação semi-contínua, uma carga de substrato não fermentado é introduzida no biodigestor no mínimo uma vez a cada dia de funcionamento. Comprovou-se que a alimentação em pequenas cargas várias vezes ao dia oferece uma produção de gás uniforme e a utilização mais eficiente do espaço do biodigestor. Sobre o número de fases em que um processo pode ser conduzido, caracteriza- se por bifásico quando as fases de hidrólise e metanização são realizadas em reservatórios diferentes, como também em diferentes condições, tais como, de pH e temperatura. Como já explicado no item 3.2 desse material, os micro-organismos são divididos em 3 categorias. Na prática, não há limites rígidos entre as diferentes faixas de temperatura, mas as variações bruscas podem prejudicar o seu desenvolvimento. Contudo, os micro-organismos metanogênicos possuem a capacidade de se adaptar a diferentes níveis de temperatura quando a sua variação é lenta e por isso a Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 46 estabilidade do processo depende muito mais da constância da temperatura do que do valor absoluto em si. A eficiência tecnológica de um sistema de produção de biogás também está relacionada ao bom aproveitamento do gás. Por exemplo, se o biogás é utilizado para a geração de energia elétrica, deve-se operar o motor com potência instalada para gerar o máximo possível, sem que haja a necessidade de queimar o biogás excedente por meio de um queimador ou flare. Na Figura 27 é apresentado um gráfico com a estimativa de produção de biogás de um substrato genérico por quatro diferentes tipos de digestores anaeróbios: lagoa coberta, mistura completa, filme fixo e fluxo em pistão. As colunas representam o valor médio de produção e a linha preta no meio de cada coluna é a barra de erros que representa os intervalos dos valores de produção obtidos. Figura 27 - Produção de biogás por quatro diferentes tipos de digestores anaeróbios Fonte: Adaptado de Cantrell et al. (2008). A produção de biogás e metano a partir do substrato utilizado reflete a eficiência de um sistema de produção. Normalmente, este parâmetro está relacionado com a carga orgânica adicionada. O modelo e o nível tecnológico do biodigestor a ser escolhido para geração de biogás é uma decisão do responsável técnico e do proprietário ou usuário. Contudo, é importante que se tenha ciência dos limites de cada tecnologia no que diz respeito à geração de biogás. Os biodigestores de fluxo tubular, por exemplo, têm como vantagem o seu baixo custo. No entanto, não se pode esperar que estes reatores operem com a mesma eficiência dos biodigestores de mistura completa com controle de temperatura. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 47 Portanto, a tecnologia instalada deve ser compatível com o substrato utilizado (características e quantidade disponível), com a expectativa de produção, com a demanda energética do local, com as características do meio (temperatura, declividade do terreno, radiação solar, etc.) com a capacidade de tratamento do efluente líquido e pela demanda por fertilizante. 3.4.5. Aterros sanitários Os aterros sanitários (Figuras 28 e 29) são locais em que os resíduos sólidos urbanos (RSU) são armazenados. Diferem dos lixões por terem impermeabilização do solo, cobertura para redução de odores e captura dos gases produzidos. Apesar de haver vários tipos de materiais além dos resíduos orgânicos, os aterros produzem biogás por serem um ambiente anaeróbio. O biogás de aterro possui uma menor concentração de metano (CH4) em relação ao biogás produzido em biodigestores, sendo composto, aproximadamente, por 45% de CO2 (dióxido de carbono), 50% de CH4 (metano), e o restante por 3% de N2 (nitrogênio),1% de O2 (oxigênio) e 1% de outros gases (LEONE, 2003). Figura 28 - Esquema de aterro sanitário Fonte: ABIDES (2016). Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 48 Figura 29 - Foto de aterro sanitário Fonte: Blog da Engenharia (2014). Devido à presença de altas concentrações de componentes que demandam um tratamento mais avançado e, assim, tornam o processo mais custoso, o biogás gerado nesses locais é normalmente queimados em flares no próprio aterro. Os fatores que influenciam diretamente a produção de biogás aterros estão relacionados ao tipo e quantidade de lixo depositado, à temperatura e ao índice de pluviosidade no local, ao teor de umidade na massa de lixo, ao grau de compactação do lixo, à forma construtiva do aterro, especialmente quanto à espessura e material utilizado na cobertura do lixo, à idade do aterro e à pressão barométrica (CHESF, 1987). Muitos especialistas não consideram os aterros como uma tecnologia adequada para a produção do biogás e muitas vezes não tratam desse assunto quando se fala de digestão anaeróbia. A questão é que, a partir do momento em que o resíduo orgânico é depositado em um aterro sanitário, o seu uso após o tratamento e como um biofertilizante, torna- se impossível. Assim, esses resíduos passam a ocupar um espaço sem poder ser reaproveitados. Em países desenvolvidos, a separação dos resíduos orgânicos é mais efetiva e estes são destinados ao processo de tratamento em biodigestores de mistura completa ou via seca. Porém, em países em desenvolvimento, diversos fatores dificultam a separação e destinação dos resíduos orgânicos das áreas urbanas para a digestão anaeróbia, tornando o aterro sanitário uma opção mais barata e acessível. Assim, mesmo que os aterros não sejam a melhor solução para os RSU devido as outras opções sustentáveis existentes, há muitos operando nos países em desenvolvimento, e o uso energético do biogás produzido pode garantir sua Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 49 sustentabilidade financeira e evitar que o RSU seja destinado a lixões, causando maior impacto ambiental. Nas próximas aulas, veremos sobre as características, aplicação e tratamento do biogás para uso energético. Além disso, aprenderemos sobre o digestato e suas propriedades para aplicação no solo. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta aula foi possível iniciar o aprendizado sobre o processo de produção e aproveitamento energético do biogás, analisando os conceitos gerais, contexto histórico, caracterização dos substratos, dados sobre potencial de produção do biogás, processo de biodigestão anaeróbia e pré-tratamento do substrato. Na próxima aula, para darmos continuidade ao estudo, estudaremos sobre as características do gás produzido na biodigestão, os tratamentos que o biogás necessita para ser utilizado, como também do biometano, e as aplicações energéticas de ambos os gases. Além disso, serão apresentadas informações sobre o digestato e sua aplicação para fertilização do solo. Conceitos Básicos e Digestão Anaeróbia 50 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABIDES. Aterro sanitário no Ceará começa a produzir biogás gerado pelo lixo. 2016. Disponível em: <http://abides.org.br/aterro-sanitario-no-ceara-comeca- a-produzir-biogas-gerado-pelo-lixo/>. Acesso em: 02 de outubro de 2017. BLOG DA ENGENHARIA. Biogás de aterros sanitários: o potencial energético dos resíduos. 2014. Disponível em: <https://blogdaengenharia.com/biogas-de-aterros-sanitarios-o-potencial- energetico-dos-residuos/>. Acesso em: 23 de setembro de 2017. BMELV. Guia Prático do Biogás: Geração e Utilização. Ed. 5. 2010. Disponível em: <http://web-resol.org/cartilhas/giz_- _guia_pratico_do_biogas_final.pdf> Acesso em 20 de setembro de 2010. Bundesforschungsanstalt für Landwirtschaf, 2004. CAMPOS, J. R. (1999). Tratamento de esgotos sanitários por processo anaeróbio e disposição controlada no solo. Projeto PROSAB. Rio de Janeiro: ABES. CASTANHO, D. S.; ARRUDA, H. J. Biodigestores. In: semana de tecnologia em alimentos. Ponta Grossa: UTFPR, 2008.Cantrell et al. (2008). CHERNICHARO, C. Reatores anaeróbios. Belo Horizonte: UFMG, 2008. CHESF - Companhia Hidroelétrica de São Francisco, 1987, Resíduos Sólidos Urbanos (Lixo). Departamento de Engenharia de Geração / Div.de Tecnologia de Energia. 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