Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio Emmanuel Bastos A diversidade das “celebrações” nosso patrimônio imaterial para Patrimônio SUMÁRIO 1. Introdução .................................................................................. 83 2. O Círio de Nazaré ........................................................................ 84 3. A Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha .... 86 4. A Festa de Iemanjá, Brasil afora ............................................... 88 5. Como patrimonializar uma celebração .................................... 91 6. Celebrar a diversidade .............................................................. 94 Referências bibliográfi cas ............................................................. 95 1. INTRODUÇÃO ão nomeadas celebrações, as festas e rituais que marcam a vivência coletiva de um grupo social, sendo consideradas im- portantes para a sua cultura, memória e identidade. Aconte- cem em territórios específicos e podem estar relacionadas à reli- gião, à prática de determinados ofícios, aos ciclos do calendário etc. Essas celebrações são eventos de socia- bilidade durante um determinado momento do ano, quando há mobilização e organiza- ção dos indivíduos e grupos com regras di- ferenciadas, distribuição de papéis sociais, preparo e consumo de bebidas e comidas, produção de vestuário, trajetos e percursos. Na lista de bens culturais já inscritos no Livro de Registro das Celebrações do Insti- tuto Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como integrantes do patrimônio imaterial brasileiro, estão: • O Círio de Nossa Senhora de Nazaré (PA); • O Complexo Cultural do Boi Bumbá do Médio Amazonas e Parintins (AM); • O Complexo Cultural do Bumba Meu Boi do Maranhão (MA); • A Festa do Divino Espírito Santo de Paraty (RJ); • A Festa do Divino Espírito Santo de Pirenópolis (GO); • As Festividades do Glorioso São Se- bastião na Região do Marajó (PA); • A Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio em Barbalha (CE); • A Festa de Sant´Ana de Caicó (RN); • A Festa do Senhor Bom Jesus do Bonfim (BA); • A Procissão do Senhor dos Passos de Santa Catarina (SC); • Ritual Yaokwa do Povo Indígena Ena- wene Nawe (MT); • Romaria de Carros de Bois da Festa do Divino Pai Eterno de Trindade (GO); • Festa do Bembé do Mercado de Santo Amaro (BA). Apresentaremos, neste módulo, alguns exemplos de celebrações, ressaltando a di- versidade cultural que elas representam. Imagine quantos povos diferentes, com suas respectivas culturas, que aqui já esta- vam ou chegaram nesse território que hoje chamamos Brasil, contribuíram para a exis- tência dessas celebrações. Afinal, tradições são inventadas, sustentadas e reinventadas a partir das trocas culturais entre os indivídu- os e grupos que recebem e repassam, oral e gestualmente, seus pensamentos e hábitos. Preparem-se conhecer algumas des- sas celebrações tradicionais que ilustram nosso módulo. SE LIGA! Você conhece alguma das celebra- ções citadas? Leu sobre elas? Viu na televisão ou no cinema? Assistiu a um documentário? Vivenciou de perto? Conhece alguma outra celebração que não consta nesta lista? Compare seus conhecimentos prévios com o que você está desco- brindo agora, neste módulo. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 83 2. O CÍRIO DE NAZARÉ Círio de Nazaré ocorre há mais de duzentos anos na cidade de Be- lém, estado do Pará. É considerada uma das maiores festividades católicas das Américas. Em razão de sua impor- tância histórica, foi o primeiro bem cultural inscrito no Livro de Registro das Cele- brações, pelo Iphan (2004). Depois, em 2013, foi considerado pela Unesco (Orga- nização das Nações Unidas para a Educa- ção, Ciência e Cultura) como Patrimônio Cultural da Humanidade. História e mito se fundem para contar como a celebração começou. Por volta de 1700, o caboclo Plácido José dos Santos encontrou, num igarapé, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Nazaré e a levou para casa. No dia seguinte, ao acor- dar, a imagem não estava onde ele havia colocado. Foi até o tal igarapé, o local onde ela havia sido encontrada, e lá estava ela. O fato teria ocorrido novamente nas semanas seguintes, até que a imagem foi levada à sede do Governo do Pará e ficou protegida por guardas. Ainda assim, ela teria voltado ao lugar onde foi vista pela primeira vez. Go- tas de orvalho e carrapichos em seu manto eram a “prova” da sua longa caminhada. Seu descobridor, então, construiu uma pequena capela em homenagem à santa. 84 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 2. O CÍRIO DE NAZARÉ inscrito no Livro de Registro das Cele- brações, pelo Iphan (2004). Depois, em 2013, foi considerado pela Unesco (Orga- nização das Nações Unidas para a Educa- ção, Ciência e Cultura) como Cultural da Humanidade História e mito se fundem para contar como a celebração começou. Por volta de 1700, o caboclo Plácido José dos Santos encontrou, num igarapé, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Nazaré e a levou para casa. No dia seguinte, ao acor- dar, a imagem não estava onde ele havia colocado. Foi até o tal igarapé, o local onde ela havia sido encontrada, e lá estava ela. O fato teria ocorrido novamente nas semanas seguintes, até que a imagem foi levada à sede do Governo do Pará e ficou protegida por guardas. Ainda assim, ela teria voltado ao lugar onde foi vista pela primeira vez. Go- tas de orvalho e carrapichos em seu manto eram a “prova” da sua longa caminhada. Seu descobridor, então, construiu uma pequena capela em homenagem à santa. 84 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE84 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE A notícia do “milagre” se espalhou e a cada ano aumentava o número de pessoas indo à cabana, ofertando ex-votos para reconhe- cer as graças alcançadas. A partir de então a Coroa Portuguesa decidiu aproveitar as peregrinações e passou a estimular a reali- zação de grandes feiras, a fim de estimular a movimentação econômica para Belém. A palavra círio tem origem no latim e sig- nifica “vela grande”. O primeiro Círio teria acontecido em junho de 1793. O então governador da província fi- cou doente e prometeu que se sobrevivesse faria uma procissão para conduzir a imagem do local mítico do seu achado até a igrejinha construída para a sua devoção, hoje transfor- mada na Basílica de Nazaré. Assim foi feito. Como a procissão inicialmente era realizada à noite, usavam-se os círios, ou seja, as velas. Mestiços e indígenas de diversos gru- pos vinham juntar-se aos colonos locais e comercializar baunilha, tabaco, cacau, gua- raná, urucum, ceras, velas e outros artigos religiosos. “Apesar da iniciativa do primeiro Círio ter partido de um governante, histori- camente a procissão representa o predo- mínio de uma romaria de origem popular sobre as fórmulas tradicionais de origem oficial.” (Iphan, 2006 p.18). A festa inicia-se oficialmente na terça- -feira que antecede ao segundo domingo de outubro, estendendo-se por mais 15 dias. A primeira atividade é a descida da imagem original, que permanece durante todo ano no altar da Basílica de Nazaré. Ela é colo- cada num pedestal, no altar-mor, durante o restante da quadra nazarena, para ficar mais próxima dos devotos. No último dia da festa, logo antes da missa do Recírio, é feita a celebração da subida, quando a imagem retoma seu lugar, até o ano seguinte. Recírio Uma procissão de despedida, com missa campal, que marca o retorno da santa à redoma de cristal. Já a imagem peregrina segue nas procissões de trasladação, antes do Círio propriamente dito. O percurso tem aproxi- madamente cinco quilômetros. Perpassa parte do centro histórico de Belém, por lu- gares como o Mercado Ver-o-Peso. A santa é conduzida em carreata, da Basílica até a Igreja Matriz de Nossa Senhora das Graças, que fica em Ananindeua, município vizinho de Belém. Lá, permanece durantea noite, acompanhada por uma vigília de fiéis. Depois, a imagem segue em romaria flu- vial pelo rio Guajará, até o porto de Belém, acompanhada de barcos, canoas, jet skis, encontrando lá os moto-romeiros. Iluminados por velas, milhares de fiéis la- vam a berlinda circundada por uma corda. O tamanho desta corda variou com o tempo. Hoje, mede aproximadamente 450 metros. Ao final da procissão, os devotos se amontoam para retirar pedaços do sisal, que afirmam ser milagroso. Devotos seguem descalços, formando um grande cordão hu- mano. Cerca de dois milhões de pessoas se- guem a imagem até a Basílica de Nazaré. A santa repousa durante uma semana, ex- posta ao público, até que acontece o Recírio. A celebração possui sentidos sagrados, mas também profanos, numa performance que se interconecta. Um elemento essen- cial é o arraial: ponto de encontro, local de comércio, das brincadeiras, da comida, da bebida e do jogo. É onde se encontram o velho e o novo da festa. O almoço do Círio ainda é muito tradicional para os paraenses. O pato no tucupi e a mani- çoba são os pratos típicos servidos, num even- to que é prática religiosa e reunião familiar. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 85 contece em Barbalha, mu- nícipio do Cariri cearense, na primeira quinzena de ju- nho, encerrando-se no dia 13 de junho, data atribuída à morte do santo português. A festa é registrada como patrimônio imaterial bra- sileiro, desde 2015. No ano de 2018, aproveitando os es- tudos utilizados no dossiê do Iphan, recebeu também da Secretaria Estadual da Cultura o registro de patrimônio imaterial do Ceará. É a celebração da narrativa da vida e obra de santo Antônio de Lisboa ou santo Antônio de Pádua, nascido no século XIII. Reconheci- do por sua oratória, reunia fiéis eruditos e populares. Foi muito importante na coloni- zação africana pelos portugueses, sendo in- corporado pelas culturas congo-angolanas, bakongos e luandas. Sua figura recebeu di- versas patentes militares e, como tal, foi de- votado por essa categoria profissional. 3. A FESTA DO PAU DA BANDEIRA DE SANTO ANTÔNIO DE BARBALHA Marca também o início das festas juni- nas, tão tradicionais no Brasil. É o período do solstício de inverno, quando acontecem as colheitas, a renovação e a preparação da terra para as atividades agrícolas vindouras. Treze dias antes do dia 13 de junho, acontece a trezena de santo Antônio, momento organizado pela Igreja Matriz da cidade, que motiva os fiéis a refletir na fé do santo padroeiro da cidade. Logo após, no dia 13, acontece a procissão, quando a ima- gem percorre as ruas da cidade no carro- -andor, levado pelos fiéis. Há também o outro lado da festa, o profano, cujo corte do “pau” para o haste- amento da bandeira de santo Antônio, em frente à Igreja Matriz, acontece 15 dias antes das festividades litúrgicas. Foi em 1928 que a prática se instituciona- lizou, a partir da doação de um mastro pelo capitão João Teles, que era retirado do sítio São Joaquim, mas já acontecia há muito tempo. A derrubada é empreendida com um 86 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE PARA OS CURIOSOS No seu bairro, cidade ou estado existem indivíduos ou grupos que se expressam por meio dessas manifestações culturais ou por outras semelhantes? ato de louvor. Os cortadores vão em carava- na e selecionam a madeira. O cortador e car- regador mais experiente é eleito capitão do “pau”. É ele quem faz o primeiro corte sim- bólico da derrubada e dá orientações para o trabalho seguir até o fim do carregamento. Na poeira avermelhada que se levanta, sur- gem as brincadeiras e disputas corporais. Os carregadores dançam, bebem e se divertem. O consumo tradicional da pinga por vezes pro- voca acidentes e acende o frequente debate acerca dos valores morais desses carregado- res. Opinam Igreja e o poder público, mas os protagonistas da atividade reafirmam sua vi- vacidade com o esforço do carregamento. O percurso do carregamento é de quase 7 quilômetros, indo da zona rural até a praça da Matriz. As mulheres não participam do corte, mas se tornam alvo do evento, às vezes sem consentimento, arrastadas para o contato com o “pau”. Esfregar-se nele e entoar os cânti- cos e orações para arrumar um bom casamen- to é um dos papéis femininos correntes. Depois do carregamento, quando che- gam ao local da Igreja Matriz, ocorre o has- teamento e a amarração da bandeira, que é confeccionada pelos devotos. A bandeira fica flamulando até o fim das festividades que se espalham por toda cidade com apresentação de grupos tradicionais e shows musicais. Aliás, esta celebração é a mistura de muitos folgue- dos, ritmos e sons ocupando o espaço público de Barbalha, numa festividade onde o sagra- do e o profano caminham de braços dados. Outro evento que marca a festa é a “mis- sa regional”, com a participação de poetas, repentistas e violeiros que improvisam cânticos para o santo. Os integrantes dos grupos tradicionais (reisados, bandas ca- baçais, lapinhas, penitentes, incelências etc.) participam do ofertório. A música, em especial os instrumentos usados pelas bandas cabaçais, como o pife (pífano) e a zabumba, cumprem papel fun- damental nas atividades. Acompanham a missa matinal e “batem música” pela cidade, na zona rural e urbana. Há ainda as famosas quermesses, sempre presente nas festas ju- ninas, aquecendo desde cedo o comércio local e a vida noturna, após a missa. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 87 partir da década de 1980, acontece uma transforma- ção na sociedade brasileira. Motivados pelas lutas de re- sistência à ditadura civil-mi- litar, com acúmulo teórico e prático de estudos sobre as culturas afro-brasileiras e organizados em movimen- tos reivindicatórios, ativis- tas iniciam o reconhecimento da cultura afro-brasileira e indígena como depositá- rias da memória de significativa parcela da população nacional. Foi a primeira vez, em 1986, dentro da Fundação Pró-Memória, hoje Iphan, que um templo afro-brasileiro foi tombado e passou a ser reconhecido como herança cultural na- cional: o Ilê Axé Nassô Oká. Também conhe- cido como Casa Branca, esse é o primeiro espaço de culto afro-brasileiro onde se reco- nheceu “o valor do acervo de bens culturais neles encerrados” (SERRA, 2005 p.171). Uma das principais manifestações da cultura afro-brasileira é a celebração à Ie- manjá, considerada a mãe de todos os ori- xás, que habita as águas salgadas dos oce- anos. Esta divindade é adorada Brasil afora, em várias cidades e, desde a última década, as festividades em torno dela vêm sen- do reconhecidas como patrimônio cul- tural em diferentes locais do país. Desde 2011, a festa realizada nas praias cariocas da cidade do Rio de Janeiro é regis- trada como patrimônio imaterial estadu- al. Sua imagem é lembrada especialmente no dia 31 de dezembro, quando assistimos ao já famoso ritual de pular as ondas durante a virada do ano. Uma das mais famosas festas de Ieman- já é a da cidade da Salvador, no dia 2 de fe- vereiro. Na capital baiana, Iemanjá é sincre- tizada com Nossa Senhora dos Navegantes (Candeias), a “protetora dos pescadores”. O antigo Mercado dos Peixes do Rio Ver- melho é o ponto de encontro de milhares de devotos e turistas que chegam para agra- decer as graças alcançadas, ofertando pre- sentes que seguirão de barco para o mar. Recentemente, em 1º de fevereiro de 2020, a celebração foi registrada como patrimô- nio imaterial municipal. Numa reelaboração do simbolismo das águas, a festa também é realizada em lo- cais onde não há mar. É o caso da Festa de Iemanjá no Lago Paranoá, em Brasília, que tornou-se patrimônio distrital, no ano de 2018. Em Belo Horizonte, capital mineira, a celebração foi registrada pelo munícipio em 2019 e acontece às margens da Lagoa da Pampulha, em um parque arborizado. Em Fortaleza, Ceará, os festejos para a orixá também foram patrimonializados pelaSecretaria Municipal de Cultura (SecultFOR). Orixá Palavra em iorubá, que significa: ori- cabeça; xá-deus. Em outras palavras, o deus/deusa que protege sua cabeça. Trata-se de uma designação genérica para divindades cultuadas por povos africanos trazidos para o Brasil, aqui incorporadas por outras matrizes religiosas. 4. A FESTA DE IEMANJÁ, BRASIL AFORA 88 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Ela acontece há pelo menos cinquenta anos, na Praia do Futuro, no dia 15 de agosto, em- bora desde 2014 também se realize na Praia de Iracema, no dia 14. A aprovação do Com- phic (Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico e Cultural de Fortaleza) ocorreu em 2017, ratificando o trabalho de pesquisa etnográfica para compor o dossiê do registro, elaborado entre 2016 e 2017. Se- gundo Ismael Pordeus (2002), desde a década de 1950, Mãe Júlia Condante se estabeleceu em Fortaleza e institucionalizou a Umbanda, criando um local para cultuar Iemanjá, con- forme foi ensinado no Rio de Janeiro. A União Espírita Cearense de Umbanda (Uecum), entidade fundada por Mãe Júlia, é a principal responsável pela organização da cerimônia. No dia 14 à noite, os umbandistas se põem a dançar, tocar e cantar na Praia de Iracema, maior polo turístico da capital. É, sobretudo, um espírito de comunhão que tenta quebrar barreiras do racismo arraiga- do na sociedade brasileira. A Umbanda representa uma religiosida- de de acolhida dos excluídos e marginaliza- dos, tal como Iemanjá, a mãe de todos, que não deixa ninguém desamparado. Umbanda Religião originalmente brasileira que nasceu da miscelânea entre os cultos tradicionais indígenas (como a jurema sagrada, o terecô maranhense, a pajelança etc.), os cultos às divindades africanas, vindos especialmente da Bahia e do Rio de Janeiro, com forte inspiração bantu, o catolicismo popular e o espiritismo (como referências cristãs). Praia de Iracema Área considerada “Bem de Relevante Interesse Cultural”, por meio do Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria da Cultura de Fortaleza (SecultFOR). Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 89 Nas primeiras horas da manhã do dia 15, da sede da Uecum, no centro da cidade, sai um cortejo em carro aberto até a Praia do Futuro, com a imagem de Iemanjá. Quem consegue segui-lo, escuta os tambores sin- copando a marcha, enquanto mães e pais de santo entoam as cantigas dos orixás, cabo- clos, pretos velhos e outros guias espirituais. Os participantes levam consigo as ofertas que serão entregues para a orixá numa jan- gada que irá percorrer o trajeto mar adentro. Ao longo do dia, revezam-se as músicas na extensa faixa de areia. Os tambores, as maracas e agogôs criam a orquestra semioló- gica para evocar as entidades, compartilhan- do conhecimento e conforto com os fiéis. Nas primeiras horas da manhã do dia 15, Em tempos de crescimento de deno- minações religiosas que demonizam essas religiões de matriz indígena e africana, a estratégia do “povo de santo” é aparecer na esfera pública e tentar reafirmar sua influên- cia na cultura nacional. Esses grupos têm denunciado o racis- mo religioso (não apenas a intolerância religiosa, termo bastante usado até pouco tempo). Em outras palavras, a questão não é tolerar uma religião diferente. O problema é que as agressões, em geral, são desferi- das especialmente contra as religiões de matriz afro-indígenas, diferente do que acontece com outras denominações que não são alvo desses agressores. Além das dificuldades originadas no ra- cismo de feição religiosa, os organizadores da Festa de Iemanjá sofrem também com questões práticas do cotidiano da cidade. Algumas dessas situações estão rela- tadas no dossiê do registro, que prevê sugestões e indicações para dirimir os pro- blemas que dificultam a realização da festa. Mesmo com algumas precariedades, é per- ceptível a singularidade e a originalidade da Festa de Iemanjá em Fortaleza. 90 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 5. COMO PATRIMONIALIZAR UMA CELEBRAÇÃO pós ilustrarmos nosso mó- dulo com a descrição de al- gumas dessas celebrações – esperamos que vocês pro- curem conhecer as demais –, vamos entender como é possível patrimonializá-las. Muitas manifestações culturais do povo brasilei- ro só ganharam status de patrimônio cultural após a publicação do Decreto nº 3.551/2000, do Iphan, que re- gulamentou o artigo 216 da Constituição Fe- deral Brasileira de 1988, definindo o conceito de patrimônio cultural imaterial, discipli- nando o seu registro e criando o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). O PNPI, posteriormente, foi regulamen- tado pela Portaria Iphan nº 200/2016, que criou uma Política de Salvaguarda do Pa- trimônio Imaterial. Antes dos anos 2000, somente a dimen- são material do patrimônio nacional (edifi- cações, monumentos, coleções) era oficial- mente reconhecida e salvaguardada pelo Estado brasileiro, por meio do instrumento de tombamento, que poderia ser solicitado por qualquer pessoa física ou jurídica, de forma voluntária ou compulsória. A partir do Decreto nº 3.551/2000, ape- nas pessoas jurídicas, como associações da sociedade civil, instituições vinculadas ao Ministério da Cultura e Secretarias de Cultura (estaduais, municipais e do Distrito Federal), com a anuência dos detentores das refe- rências culturais de caráter imaterial, po- dem solicitar o registro dessas referências. COMO PATRIMONIALIZAR UMA CELEBRAÇÃO pós ilustrarmos nosso mó- dulo com a descrição de al- gumas dessas celebrações – esperamos que vocês pro- curem conhecer as demais –, vamos entender como é patrimonializá-las. Muitas manifestações culturais do povo brasilei- status de após a publicação do do Iphan, que re- gulamentou o artigo 216 da Constituição Fe- deral Brasileira de 1988, definindo o conceito discipli- Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). , posteriormente, foi regulamen- tado pela Portaria Iphan nº 200/2016, que do Pa- Antes dos anos 2000, somente a dimen- (edifi- oficial- pelo por meio do instrumento que poderia ser solicitado jurídica, de ape- , como associações da sociedade civil, instituições vinculadas ao Ministério da Cultura e Secretarias de Cultura (estaduais, municipais e do Distrito Federal), refe- de caráter imaterial, po- dessas referências. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 91 Nesse sentido, a solicitação de regis- tro deve estar acompanhada de infor- mações históricas sobre o bem (textos, fotografias, ilustrações, vídeos, gravações sonoras etc.), além de declaração formal da comunidade expressando seu conhe- cimento sobre os trâmites do registro. Quando o Iphan se certifica da anuência da comunidade, seus técnicos iniciam a ela- boração de um dossiê detalhado, mapeando as informações e estudos acerca da mani- festação cultural indicada. Depois, o dossiê é apresentado ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, órgão colegiado de decisão máxima dentro da instituição, for- mado por especialistas de diversas áreas do conhecimento, que representam órgãos go- vernamentais e da sociedade civil organiza- da. Apenas após o aceite do dossiê, por parte do Conselho, é que o bem pode ser registrado em um ou mais Livros de Registro (Saberes; Formas de expressão; Celebrações; Lugares). Posteriormente é elaborado um plano de salvaguarda para o bem registrado. Esse plano tem o objetivo de possibili- tar condições de continuidade ao bem, lis- tando iniciativas e ações a serem tomadas pelo poder público, a sociedade civil e os seus legítimos detentores. De acordo com as regras do Iphan, após dez anos do registro realizado, é necessário revalidar esse registro, com o objetivo de analisar as mudanças e permanências da atividade enquanto referência cul- tural, avaliando se ela continua a ser im- portante e quais as novas questões de sus- tentabilidade que se colocamdepois desse período de tempo. O Círio de Nazaré, por exemplo, foi revalidado em 2016. Além do registro, há outros instrumen- tos de valorização do patrimônio imate- rial, que tanto o Estado, como os próprios grupos sociais detentores, pode realizar. PARA OS CURIOSOS Para saber mais detalhes sobre a Política de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, leia o do- cumento Saberes, fazeres, gingas e celebrações: ações para a salvaguar- da de bens registrados como patri- mônio cultural do Brasil, 2002-2018, disponível em: portal.iphan.gov.br/ uploads/publicacao/sfgec.pdf 92 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE São os Inventários dos Bens Culturais, experiências cada vez mais participativas e protagonizada por agentes comunitários de um determinado território. Importante atentar ao seu papel em sua comunida- de na observância de novos possíveis bens culturais de natureza imaterial. O Iphan estabeleceu uma metodologia, tanto para inventários, quanto para orientar os estudos dos dossiês de registro que são aprovados. É o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC ) que serve de base para obtenção de dados históricos, socioantropológicos e ambientais, com os quais se avaliará quais as melhores ações patrimoniais a serem tomadas. O Iphan não é o único órgão respon- sável pela preservação do patrimônio cultural no Brasil. Os estados e municípios brasileiros também possuem instituições responsáveis pela preservação patrimo- nial, que muitas vezes replicam, adequam ou aperfeiçoam a legislação federal apre- sentada, de acordo com a realidade local. Nesse sentido, muitos bens culturais podem não ser patrimonializados em âm- bito nacional, mas podem conseguir reco- nhecimento e proteção nas esferas estadu- ais e municipais. Há casos, como vimos, de bens que “acumulam” essa proteção, em diferentes níveis, no país. Aliás, vimos ainda nesse fascículo que há bens que são representativos não ape- nas para determinados grupos sociais de um munícipio, estado, região ou nação. São representativos para a história da humanidade. Nessas circunstâncias, a Unesco é a instituição internacional que se encarrega dos procedimentos necessários para a sua preservação, junto aos países detentores desse patrimônio. Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 93 6. CELEBRAR AS DIVERSIDADES ocê já percebeu que a cons- trução de um patrimônio cultural não ocorre do dia para noite. É necessária sua consolidação na memória coletiva de um expressivo contingente da sociedade. O tempo é fator fundamental nesta equação, aliado a uma ação coletiva dos sujeitos, que dá o tom do que vai servir de referência, do que ele- gemos para ser lembrado. Sempre que imaginamos uma “festa”, pensamos em momentos de lazer ou des- canso. Imaginamos uma perspectiva de oposição ao trabalho. Entretanto, as ativida- des ligadas às celebrações significam mais do que isso. São momentos de reorgani- zação social, de congregação e renova- ção dos laços fraternais. Há os momentos oficiais, de tom formal e racional, quando o sagrado se expressa nas orações, nas cami- nhadas. Mas há também momentos de brin- cadeira, euforia e crítica às condições precá- rias de vida de boa parte dos envolvidos. Em razão de nossa colonização católica portuguesa, as manifestações dessa origem já chegaram sedimentadas, mas a influên- cia indígena e negro-africana nas práticas culturais, religiosas ou não, estão presentes em boa parte do nosso cotidiano. Essa diversidade de visões de mundo é a riqueza da cultura brasileira. É a inovação so- ciotécnica que nos permitiu viver e sobreviver em meio a dificuldades do nosso território. Por mais que o Iphan tenha sido fundado em 1937, somente décadas depois que os monumentos e símbolos negros e indíge- nas tornaram-se, então, objetos de pre- servação. Deste modo, o Estado começou a reconhecer a importância da herança que esses povos imprimiram à formação da so- ciedade brasileira. Para Laura Cavalcanti (2019), o conceito de patrimônio cultural imaterial, do qual as celebrações fazem parte, foi o instrumen- to sensível para a incorporação de amplos e diversos conjuntos de processos culturais nas políticas públicas relacionadas à cultura e à construção de referências de identidade e memória para diferentes grupos sociais. A oralidade, as formas do conhecimento tradicional, os sistemas de valores, os mo- dos de vida, as expressões festivas e artís- ticas estão agora inclusas nas políticas pa- trimoniais. É o reconhecimento, finalmente, que somos grupos e sujeitos plurais, múltiplos e diferentes. SE LIGA! Após ler esse fascículo, pense: no seu bairro, município ou estado existem celebrações que poderiam ser elevadas à categoria de pa- trimônio imaterial brasileiro? Ou registradas como patrimônio imaterial estadual ou municipal? Como você poderia contribuir para o debate acerca da patrimonialização dessas celebrações? Mãos a obra! 94 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE REFERÊNCIAS ABREU, Regina. Patrimonialização das diferenças e os novos sujeitos de direito. In: Patrimônios. Marseille: OpenEdition Press, 2015, p. 67-93. _______. Patrimônio cultural: tensões e disputas no contexto de uma nova ordem discursiva. In: Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, v. 1, 2007, p. 263-287. ALENCAR, Rívia Ryker Bandeira de. Saberes, fazeres, gingas e celebrações: ações para a salvaguarda de bens registrados como patrimônio cultural do Brasil, 2002-2018. Brasília-DF: IPHAN, 2018. http://portal.iphan.gov.br/uploads/ publicacao/sfgec.pdf CAVALCANTI, Laura Viveiros de Castro de. A proteção legal do Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. In: TAMASO, Izabela; GONÇALVES, Renata de Sá; VASSALLO, Simone. A antropologia na esfera pública: patrimônios culturais e museus. Goiânia: Editora Imprensa Universitária, 2019, p 48-80. COELHO, Geraldo. Uma crônica do maravilhosa. Legenda, tempo e memória no culto da Virgem de Nazaré. Belém: Imprensa Oficial do Estado, 1998. CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Oeiras: Celta Editora, 2009. IPHAN. Dossiê de registro da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha. Fortaleza: Ministério da Cultura, 2015. Disponível em http://portal. iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/ Dossie_festa_pau_da_bandeira_santo_ ant%C3%B4nio_barbalha.pdf IPHAN. Dossiê de registro do Círio de Nazaré. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 2006. Disponível em http:// portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/ PatImDos_Cirio_m.pdf PORDEUS JR, Ismael. Umbanda. Ceará em Transe. Fortaleza: Museu do Ceará, 2002 (Coleção Outras Histórias, v.16). PREFEITURA DE FORTALEZA. Relatório de Pesquisa da Festa de Iemanjá de Fortaleza. Fortaleza, 2018. SERRA, Ordep. Monumentos negros. Uma experiência. In: Afro Ásia, n.33, Salvador, 2005, 169-205 AUTOR Emmanuel Bastos de M. Lopes é mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutorando em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro do Observatório de Vulnerabilidades da Baía de Todos os Santos (OBSERVABAIA, PPGA_UFBA). Pesquisador sobre patrimônio das religiosidades afrobrasileiras, com experiência em mapeamentos, inventários sobre patrimônio cultural e acervos e coleções etnográficas. Foi professor substituto da Uece, departamento de Ciências Sociais, consultor da Prefeitura de Fortaleza e do Iphan-AL. ILUSTRADOR Daniel Dias é ilustrador e artista gráfico, com extensa produção em projetos editoriais, sendo a maior parte destinada ao público infantil e infantojuvenil. Seu trabalho tem como base a pesquisa de materiais e estilos, envolvendo estudo de técnicas tradicionais de pintura, desenho, fotografia e colorização digital. ILUSTRADOR Daniel Dias é ilustrador e artista gráfico, com extensa produção em projetos editoriais, sendo a maior parte destinada ao público infantile infantojuvenil. Seu trabalho tem como base a pesquisa de materiais e estilos, envolvendo estudo de técnicas tradicionais de pintura, desenho, fotografia e colorização digital. 95Formação de Mediadores de Educação para Patrimônio 95 Este fascículo é parte integrante do projeto Formação de Mediadores de Educação Patrimonial, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza, sob o nº 02/2019. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br EXPEDIENTE: FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Marcos Tardin Gerente Geral Raymundo Netto Gerente Editorial e de Projetos Emanuela Fernandes Analista de Projetos UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Viviane Pereira Gerente Pedagógica Marisa Ferreira Coordenadora de Cursos Joel Bruno Designer Educacional Thifane Braga Secretária Escolar CURSO FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE EDUCAÇÃO PARA PATRIMÔNIO Raymundo Netto Coordenador Geral, Editorial e Revisor Cristina Holanda Coordenadora de Conteúdo Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfi co Miqueias Mesquita Diagramador Daniel Dias Ilustrador Thaís de Paula Produtora ISBN: 978-85-7529-951-7 (Coleção) ISBN: 978-85-7529-957-9 (Fascículo 6) Realização Apoio Universidade Estadual do Ceará
Compartilhar