Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Manual de Direito PENAL Parte Geral e Parte Especial JAMIL CHAIM ALVES 2020 • Penal_Chaim.indb 3• Penal_Chaim.indb 3 30/03/2020 13:49:0630/03/2020 13:49:06 95 Cap. 2 • EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al a lei; legalidade estrita (somente as leis, emanadas do legislador, podem estabelecer delitos e fixar penas); leis claras e escritas; separação das funções estatais; proporcionalidade das penas (a severidade da punição deve ser proporcional à gravidade do delito); humanidade das penas (abolindo-se a pena de morte e a tortura); personalidade das penas (a sanção não deve passar da pessoa do delinquente); infalibilidade na aplicação das penas (a perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causa impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade). Outros pensadores que tiveram notável partici- pação na reforma do sistema punitivo foram Char- les-Louis De Secondat (Barão de Montesquieu), François Marie Arouet Voltaire, John Howard, Jeremy Bentham e Denis Diderot. 7. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO 7.1. Ordenações do Reino de Portugal Ordenações Afonsinas – Foram promulgadas em 1446, por D. Afonso V, contendo elementos de Direito Canônico, Direito Germânico e de Direito Romano. Era o regime jurídico vigente em Portugal, aqui também aplicado no início da colonização. Não existiam os princípios penais e processuais penais, sendo previstas sanções cruéis, quando não a pena capital, para a maior parte das infrações. Ordenações Manuelinas – Editadas em 1514, por D. Manuel. Não se distanciavam das Ordenações Afonsinas, sendo marcadas pela crueldade de suas punições. Ordenações Filipinas – Entraram em vigor em 1603, pelas mãos de D. Filipe II. A matéria penal estava disciplinada no livro V. Ainda não eram conhecidos, à época, os princípios de direitos penal, tais como legalidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana. Era um ordenamento excessi- vamente rigoroso, cominando para a maior parte dos delitos a pena de morte, inclusive mediante tortura. Além da pena capital, previa outras sanções graves, como os açoites e o corte de membro. Segundo Heleno Cláudio Fragoso, “a legislação penal do Livro V era realmente terrível, o que não constitui privilégio seu, pois era assim toda a legis- lação penal de sua época. A morte era a pena comum e se aplicava a grande número de delitos, sendo executada muitas vezes com requintes de crueldade. (...) Havia ainda penas infamantes, mutilações, confisco de bens e degredo. As penas dependiam da condição dos réus e empregava-se amplamente a tortura, (...) sem haver proporção entre as penas e os delitos (...)”2. 7.2. Código Criminal de 1830 Proclamada a Independência do Brasil, o impe- rador D. Pedro I incumbiu os penalistas Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Clemente Pereira, então deputados, da elaboração de um projeto de Código Penal. Cada um deles apresentou um projeto diferente, ambos muito elogiados. Em 31 de agosto de 1829, uma Comissão bila- teral formada para examinar os projetos apresentou o resultado do seu trabalho, assinalando a adoção do projeto de Vasconcelos como base, mas sem desconsiderar o projeto de Clemente Pereira. Organizou-se outra Comissão na Câmara dos Deputados, com a finalidade de dar redação defi- nitiva ao projeto, o que ocorreu em 19 de outubro de 1830. Em 16 de dezembro de 1830, após aprovação pela Câmara e pelo Senado, foi promulgado o Código Criminal, sob a égide da Constituição de 1824, que, por sua vez, foi influenciada pela Revolução Fran- cesa. O Código Imperial foi um diploma bastante aplaudido. Adotou os postulados da escola clássica de direito penal e contemplou diversos princípios de direito penal, tais como a legalidade e a irre- troatividade da lei penal. A pena de prisão, que não era prevista nas Ordenações Filipinas, foi cominada para quase todos os crimes, havendo duas espécies: a prisão simples, na qual os réus deveriam permanecer reclusos nos presídios; e também a pena de prisão com trabalho, na qual os condenados deveriam diariamente rea- lizar trabalhos dentro do recinto das prisões. Dentre as várias inovações trazidas pelo Código de 1830, merece destaque a criação do dia-multa rendimento. É neste diploma que a multa aparece sob a forma de dias-multa, em razão da busca por uma sanção que se adequasse à capacidade econô- mica do condenado. A principal crítica feita a este diploma diz res- peito à manutenção da pena de morte, dos açoites e da pena de galés. 2. Lições de direito penal: parte geral, p. 70-71. • Penal_Chaim.indb 95• Penal_Chaim.indb 95 30/03/2020 13:49:1430/03/2020 13:49:14 96 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves 7.3. Código Penal de 1890 A abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, trouxe a necessidade de adaptar o Código Criminal de 1830 à nova realidade. Foi então que o deputado João Vieira De Araújo apresentou ao Ministro da Justiça um anteprojeto de revisão do Código Criminal. Para analisá-lo, foi indicada uma Comissão formada por João Batista Pereira (relator), Visconde de Assis Martins e José Rodrigues Torres Neto. Em 10 de outubro de 1889, esta Comissão recomendou a completa reforma da legislação penal, e não uma simples revisão. Diante disso, o Ministro dos Negócios e da Justiça, Cândido de Oliveira, incumbiu João Batista Pereira do projeto. Porém, com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, seu traba- lho foi interrompido. O Ministro da Justiça do Governo Provisório, Campos Salles, novamente solicitou a elaboração do projeto a Pereira, que terminou seu trabalho em pouco mais de três meses. O projeto foi então submetido a exame de uma Comissão integrada por José Júlio de Albuquerque Barros, Francisco de Paula Belfort Duarte e Luís Antonio dos Santos Werneck. Esta Comissão ado- tou o projeto quase na íntegra, sendo que em 11 de outubro de 1890, o Decreto 847 mandou execu- tar o novo Código. O diploma apresentava graves defeitos e defi- ciências. Conforme magistério de Heleno Cláudio Fragoso, “o Código Penal de 1890 apresentava graves defeitos de técnica, aparecendo atrasado em relação à ciência de seu tempo. Foi, por isso mesmo, objeto de críticas demolidoras, que muito contri- buíram para abalar o seu prestigio e dificultar sua aplicação”3. Todavia, este diploma trouxe alguns avanços, podendo-se destacar a consagração do princípio da dignidade humana (art. 44) e a abolição da pena de morte. Ademais, agasalhou o instituto do livra- mento condicional e fez referência a penitenciárias agrícolas (art. 48). 7.4. Consolidação das Leis Penais de 1932 Com o passar do tempo, numerosas leis foram editadas com o fim de corrigir as falhas do Código de 1890, tornando extremamente difícil sua consulta. 3. Lições de direito penal: parte geral, p. 74. Vicente Piragibe, em primoroso estudo, reuniu tais disposições, resultando deste trabalho a Con- solidação das Leis Penais, adotada pelo Governo republicano por meio do Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932. A Consolidação não foi um Código novo, mas sim uma coletânea da legislação vigente à época. 7.5. Código Penal de 1940 Com a instalação do regime ditatorial, em 10 de novembro de 1937, o Ministro da Justiça Fran- cisco Campos incumbiu Alcântara Machado da redação de um anteprojeto de Código Penal. Em maio de 1938, Alcântara Machado entregou ao governo um anteprojeto da Parte Geral do Código Penal e, em abril de 1940, o projeto definitivo. O trabalho foi submetido a uma comissão revi- sora formada por Nelson Hungria, Roberto Lyra, Vieira Braga e Narcélio de Queiroz, com a partici- pação de Antonio Jose da Costa e Silva e sob a presidência do Ministro Francisco Campos. Em 7 de dezembro de 1940, o presidente Getú- lio Vargas sanciona o Decreto-lei 2848 (queinsti- tui o Código Penal), entrando em vigor em 1º de janeiro de 1942. O Código manteve a pena privativa de liberdade como forma de punição por excelência. A importante matéria referente ao cumprimento das penas de prisão, especialmente quanto à legalidade, huma- nidade, personalidade e outros princípios relevantes, foi descurada pelo legislador de 1940, com sacrifí- cio da perspectiva de ressocialização do delinquente e do processo de integração que ele deve manter com a sociedade”4. Previa o Código de 1940, na sua redação origi- nal, duas espécies de penas: principais (artigo 28) – reclusão, detenção e multa – e acessórias (artigo 67) – perda da função pública, eletiva ou de nomea- ção, interdições de direitos e publicação da sentença. Não contemplava penas alternativas. 7.6. Código Penal de 1969 Atendendo ao clamor revisionista e considerando as profundas modificações pelas quais passava a sociedade brasileira, resolveu o Governo Jânio Quadros elaborar um novo diploma penal. Nelson Hungria, que foi incumbido de redigir o texto básico, apresentou seu anteprojeto em 1963. 4. DOTTI. Curso de direito penal: parte geral, p. 279. • Penal_Chaim.indb 96• Penal_Chaim.indb 96 30/03/2020 13:49:1430/03/2020 13:49:14 97 Cap. 2 • EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al Em 1964, o ministro da justiça, Milton Campos, designou uma comissão revisora, da qual fizeram parte, além de Nelson Hungria – próprio autor do anteprojeto -, Roberto Lyra e Hélio Tornaghi. Após a Revolução de 31 de março de 1964, a revisão se atrasou, até que em 9 de fevereiro de 1965, o próprio ministro Milton Campos dissolveu a comissão e formou outra, composta por Nelson Hungria, Hélio Tornaghi e Heleno Cláudio Fragoso, entregando a Aníbal Bruno a presidência. O anteprojeto foi submetido a nova revisão, agora constituída por Heleno Cláudio Fragoso, Benjamin de Moraes Filho e Ivo D Áquino, e pro- mulgado pelo Decreto nº 1004 de 21 de outubro de 1969, baixado pela Junta Militar, no exercício da Presidência da República. Estabelecia o novo diploma uma vacatio de poucos meses, prazo que foi sucessivamente pror- rogado. Nesse período, o novo Código sofreu pro- fundas alterações determinadas pela Lei nº 6016/73, até que o governo Geisel decidiu revogá-lo defini- tivamente em 1978, através da Lei nº 6578, sem vigorar um dia sequer. Continua vigorando até os dias atuais o Código de 1940, cuja parte geral seria profundamente alterada pela Lei 7.209, de 11 de julho de 1984. É de se ressaltar que as modificações trazidas nesta reforma foram notoriamente inspiradas no Código Penal de 1969, ou seja, no projeto de Nelson Hungria. TABELAS RESUMO – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL Tempos Primitivos No início, o crime era considerado um atentado contra os deuses. Os fenômenos da natureza eram vistos como reações sobrenaturais provocadas por essas divindades em razão da transgres- são de algum tabu (vingança divina). As punições tinham o objetivo de aplacar a cólera divina. Posteriormente, evoluiu-se para a vingança privada, que podia tanto envolver um indivíduo quanto o seu grupo social. Surge a chamada lei de talião (“olho por olho, dente por dente”), que determinava uma reação proporcional ao mal praticado. Em seguida, a evolução ocorre no sentido de restringir a vingança privada, que passa a ser limi- tada pelo talião e pela composição com a vítima (denominada preço da paz). Esta composição, inicialmente voluntária, passa a ser imposta pelo Estado e, posteriormente, abo- lida, passando as penas a serem exclusivamente públicas. Direito Grego Na Grécia antiga (época lendária), o crime e a pena continuaram a possuir cunho religioso. Havia o predomínio da vingança privada. Esta concepção começou a se modificar por meio da contri- buição de pensadores e filósofos, que desenvolveram o estudo da ciência política (Sócrates, Pla- tão, Aristóteles e Protágoras). O direito penal grego evolui para um período político (época histórica), assentando-se a pena não mais sobre fundamento religiosos, mas sobre bases morais e civis. Direito Romano Nos primórdios de Roma, as sanções tinham por fundamento a religião, resultando quase sem- pre no sacrifício do autor do delito. Destacava-se a figura do chefe da família (pater familias), que possuía amplos poderes e aplicava as punições ao seu grupo conforme seu próprio arbítrio. No período do Reinado (753 a.C.), a punição manteve seu caráter sagrado, mas começa a se fir- mar o período da vingança pública. A laicização do Direito ocorre com a Lei das XII Tábuas (século V a.C.). Os delitos foram divididos em públicos (acarretavam persecução pública e recebiam sanções a cargo do Estado) e privados (autorizavam uma reação privada, na qual a interferência estatal se restringia a regular seu exer- cício). A partir de 200 a.C., proíbe-se definitivamente a vingança privada. Durante o Império, ocorre novamente o recrudescimento das sanções, voltando-se a aplicar a pena de morte e criando-se novos tipos de punição. • Penal_Chaim.indb 97• Penal_Chaim.indb 97 30/03/2020 13:49:1430/03/2020 13:49:14 98 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves Direito Germânico Na época primitiva, não havia leis escritas, sendo o direito consuetudinário. Havia duas catego- rias de delitos, públicos (aplicava-se ao ofensor a perda da paz, que o excluía do grupo familiar, equiparando-o aos animais do campo e podendo ser morto por qualquer pessoa) e privados (o ofensor era entregue à vítima ou seus parentes, para exercerem a vingança). A partir de 481 d.C., inicia-se a monarquia franca, surgindo um Estado unitário. Com o forta- lecimento do poder estatal, a vingança de sangue dá lugar à composição voluntária, em que o ofensor pagava certa quantia para compensar o prejuízo causado pelo delito. Em relação ao pro- cesso, vigoravam as ordálias ou juízos de Deus, provações cruéis que quase sempre tinham des- fecho terrível para o suspeito. Direito Canônico Ordenamento jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana, teve sua primeira consolidação por volta do ano 1140. Em sua origem, era aplicável somente a pessoas sujeitas à disciplina religiosa. Com o crescimento da influência da Igreja sobre o Estado, foi se estendendo a todas as pessoas. O direito canônico dividia os crimes em três espécies: delicta eclesiástica (ofendiam o direito divino e eram castigados com penitências; de competência exclusiva dos tribunais eclesiásticos); delicta mera secularia (atentavam contra a ordem jurídica laica e eram punidos com penas comuns; de competência dos tribunais do Estado, em regra); delicta mixta (atentavam tanto contra a ordem divina quanto contra a humana, e poderiam ser julgados tanto pelos tribunais do Estado quanto pela Igreja que, neste caso, também aplicava penas). Período Humanitário No final do século XVIII, verifica-se uma tendência de reforma nas leis e na administração da jus- tiça, propiciada por um extraordinário movimento de ideias, ao qual se denominou Iluminismo. Verdadeiro marco do direito penal ocorre em 1764, com a publicação, em Milão, da obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria. A obra constitui um libelo con- tra a pena de morte e as arbitrariedades da época, pregando a humanização das penas. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO Ordenações do Reino de Portugal Ordenações Afonsinas – Promulgadas em 1446, por D. Afonso V, constituíam o regime jurídico vigente em Portugal, aqui também aplicado no início da colonização. Não existiam os princípios penais e processuais penais, sendo previstas sanções cruéis, quando não a pena capital, para a maior parte das infrações. Ordenações Manuelinas – Editadas em 1514, por D. Manuel. Não se distanciavam das Ordenações Afonsinas, sendo marcadas pela crueldade de suas punições. Ordenações Filipinas – Entraram em vigorem 1603, pelas mãos de D. Filipe II. A matéria penal estava disciplinada no livro V. Ainda não eram conhecidos, à época, os princípios de direitos penal. Era um ordenamento excessivamente rigoroso, cominando para a maior parte dos delitos a pena de morte, inclusive mediante tortura, além de açoites e o corte de membros. Código Criminal de 1830 Foi um diploma bastante aplaudido. Adotou os postulados da escola clássica de direito penal e contemplou diversos princípios de direito penal, tais como a legalidade e a irretroatividade da lei penal. A pena de prisão, que não era prevista nas Ordenações Filipinas, foi cominada para quase todos os crimes. Dentre as várias inovações trazidas pelo Código de 1830, merece desta- que a criação do dia-multa rendimento. A principal crítica feita a este diploma diz respeito à manutenção da pena de morte, dos açoi- tes e da pena de galés. Código Penal de 1890 O diploma apresentava graves defeitos e deficiências, sendo bastante criticado. Todavia, trouxe alguns avanços, podendo-se destacar a consagração do princípio da dignidade humana e a abo- lição da pena de morte. Ademais, agasalhou o instituto do livramento condicional e fez referên- cia a penitenciárias agrícolas. Consolidação das Leis Penais de 1932 Com o passar do tempo, numerosas leis foram editadas com o fim de corrigir as falhas do Código de 1890, tornando extremamente difícil sua consulta. Vicente Piragibe reuniu tais disposições, resultando deste trabalho a Consolidação das Leis Penais, adotada pelo Governo republicano por meio do Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932. Não foi um Código novo, mas sim uma coletânea da legislação vigente à época. • Penal_Chaim.indb 98• Penal_Chaim.indb 98 30/03/2020 13:49:1430/03/2020 13:49:14 99 Cap. 2 • EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al Código Penal de 1940 Manteve a pena privativa de liberdade como forma de punição por excelência. Previa o Código de 1940, na sua redação original, duas espécies de penas: principais (reclusão, detenção e multa) e acessórias (perda da função pública, eletiva ou de nomeação, interdições de direitos e publica- ção da sentença). Não contemplava penas alternativas. É o diploma utilizado até hoje, embora tenha passado por diversas alterações. A maior delas ocorreu em 11 de julho de 1984, com a aprovação da Lei 7.209, que modificou profundamente a parte geral do Código Penal. Continua vigorando até os dias atuais, embora a parte geral tenha sido alterada pela Lei 7.209/ 1984. As modificações trazidas nesta reforma foram notoriamente inspiradas no Código Penal de 1969 (projeto de Nelson Hungria que nunca chegou a entrar em vigor). • Penal_Chaim.indb 99• Penal_Chaim.indb 99 30/03/2020 13:49:1430/03/2020 13:49:14 Capítulo 3 ESCOLAS PENAIS As denominadas “escolas penais” foram corren- tes de pensamento surgidas ao longo da história, cada qual apresentando uma forma particular de compreender e investigar o delito, o criminoso e a sanção. 1. ESCOLA CLÁSSICA Os ideais consagrados pelo Iluminismo, crista- lizados na obra do Marquês de Beccaria, “Dos Delitos e das Penas” (1764), serviram de fundamento à chamada Escola Clássica, nome dado pelos posi- tivistas com sentido pejorativo. A Escola Clássica teve dois grandes períodos1: a) teórico-filosófico – sob a influência do Ilumi- nismo, de cunho nitidamente utilitarista, pre- tendeu adotar um Direito Penal fundamentado na necessidade social. Este período, iniciado com Beccaria, foi representado por Gaetano Filangieri, Domenico Romagnosi e Giovanni Carmignani; b) ético-jurídico – é o período em que a metafísica jusnaturalista passa a dominar o Direito Penal, acentua-se a exigência ética de retribuição, representada pela sanção penal. Os principais nomes desta fase foram Pelegrino Rossi, Fran- cesco Carrara e Enrico Pessina. Contudo, os maiores expoentes desta escola foram Beccaria e Carrara: o primeiro foi o precursor do Direito Penal liberal, enquanto o segundo foi o criador da dogmática penal. Na verdade, Carrara é quem simboliza a expressão definitiva da Escola Clássica, eternizando sua identificação como a “Escola Clássica de Carrara”. Entre os postulados da Escola Clássica, pode-se destacar: o crime é um ente jurídico, pois consiste 1. BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 111. na violação do direito; a responsabilidade penal se funda no livre-arbítrio, ou seja, o homem é livre para escolher qualquer caminho (inclusive o do crime), enfrentando as consequências de seus atos; a pena é uma forma de retribuição pelo crime cometido, tendo o sentido de expiação e restabelecimento do equilíbrio do sistema, violado pelo delito (inspiração em Kant e Hegel); método racionalista e dedutivo (lógico), pois o Direito é considerado uma ciência. 2. ESCOLA POSITIVA A Escola Positiva surge no final do século XIX, época de predomínio do pensamento positivista. O início desta fase ocorre com a publicação de “O Homem Delinquente” (1876), de Cesare Lombroso. As teorias evolucionistas de Darwin e Lamarck eram expressão das ideias dominantes. Além destes, esta escola sofreu influência da doutrina materialista (Buchner, Haeckel e Molenschott), sociológica (Comte, Spencer, Ardigó e Wundt), frenológica (Gall), fisionômica (Lavater) e ainda dos estudos de Villari e Cattaneo2. A Escola Positiva contrapôs, ao individualismo abstrato da Escola Clássica, a necessidade de defesa do organismo social contra a ação do delinquente, priorizando os interesses sociais. A ideia de resso- cialização do delinquente foi relegada a segundo plano e a aplicação da pena passou a ser vista como reação do corpo social contra a atividade anormal dos indivíduos. A pena perde seu tradicional cará- ter vindicativo-retributivo, reduzindo-se a um provimento utilitarista; seus fundamentos não são a natureza e a gravidade do crime, mas a persona- lidade do réu, sua capacidade de adaptação e espe- cialmente sua periculosidade3. 2. BITENCOURT; PRADO. Elementos de direito penal, p. 31. 3. COSTA, Fausto. El delito y la pena em la historia de la filosofia, p. 153. • Penal_Chaim.indb 100• Penal_Chaim.indb 100 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 101 Cap. 3 • ESCOLAS PENAIS Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al Nos dizeres de Fragoso, “o movimento positivista [...] tem por base a ineficácia do sistema penal clássico, como meio de repressão à criminalidade, defendendo a substituição do princípio da retribui- ção (fundado no livre-arbítrio), por um sistema de prevenção especial, com base no estudo antropoló- gico do homem delinquente e do crime como fato social, retornando à ideia de defesa social acentuada à época do Iluminismo”4. Suas principais características são: a) O Direito Penal é produto social, criação do homem; b) a responsabilidade penal se fundamenta na respon- sabilidade social, derivada do determinismo (vida em sociedade); c) o delito é fenômeno natural e social (fatores individuais, físicos e sociais); d) a pena é um meio de defesa social, com função pre- ventiva; e) o método é o indutivo experimental; f) os objetos de estudo do Direito Penal são o crime, o delinquente, a pena e o processo; g) busca subs- tituir a pena por medidas de segurança5. A Escola Positiva apresenta três fases, cada qual com sua característica predominante e seu expoente máximo: a) Fase antropológica – Cesare Lombroso (“O Homem Delinquente”, 1876) iniciou a aplicação do método experimental no estudo da crimi- nalidade. Além disso, desenvolveu a teoria do criminoso nato, defendendo que o criminoso estaria pré-determinado à prática de infrações penais por razões antropológicas, nele presentes de modo atávico6. Lombroso teve o mérito de fundar a Antropologia Criminal, buscando uma explicação causal do comportamento antissocial do criminoso por meio do estudo antropológico; b) Fase sociológica – Enrico Ferri (“SociologiaCriminal”, 1892) negava a ideia de livre arbítrio e da responsabilidade moral do agente, susten- tando uma responsabilidade social. Para ele, “todo homem é sempre responsável por qualquer ação antijurídica realizada por ele, unicamente porque e enquanto vive em sociedade”7. Fun- damentava a punição na defesa social, tendo por finalidade primordial a prevenção de novos crimes; c) Fase jurídica – Raffaele Garofalo (“Crimino- logia”, 1885) deu sistematização jurídica à Escola 4. Lições de direito penal: parte geral, p. 56. 5. PRADO. Tratado de Direito Penal: parte geral: volume I, p. 75. 6. O termo atavismo consiste na hereditariedade biológica de características psicológicas. 7. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime, p. 282. Positiva, estabelecendo, basicamente, os seguin- tes princípios: “a) a periculosidade como fun- damento da responsabilidade do delinquente; b) a prevenção especial como fim da pena, que, aliás, é uma característica comum da corrente positivista; c) fundamentou o direito de punir sobre a teoria da Defesa Social, deixando, por isso, em segundo plano os objetivos reabilita- dores; d) formulou uma definição sociológica do crime natural, uma vez que pretendia supe- rar a noção jurídica. A importância do conceito natural de delito residia em permitir ao cientista criminólogo a possibilidade de identificar a conduta que lhe interessasse mais”8. 3. TERCEIRA ESCOLA A chamada Terceira Escola (Terza Scuola Italiana, também conhecida como Escola Crítica), teve como expoentes Emanuele Carnevale, Bernardino Ali- mena e Giuseppe Impallomeni. Seu marco inicial ocorreu em 1891, com a publicação do artigo Una terza scuola di Diritto Penale in Italia, de Emanuele Carnevale. A Terza Scuola teve posição intermediária em relação às predecessoras, apresentando as seguintes características: a) a responsabilidade penal é baseada na imputabilidade moral, sem o livre-arbítrio, que é substituído pelo determinismo psicológico: o homem está determinado pelo motivo mais forte, sendo imputável quem tiver capacidade de se deixar levar pelos motivos. Aos que não possuem tal capa- cidade, deve ser aplicada medida de segurança e não pena; b) o crime é contemplado no seu aspecto real, como um fenômeno social e individual; c) a pena tem função defensiva ou preservadora da sociedade9. 4. ESCOLA MODERNA ALEMÃ A Escola Moderna Alemã (Paul Anselm von Feuerbach, Franz Von Liszt, Van Hamel e Adolphe Prins) também buscou conciliar postulados da Escola Clássica e da Escola Positiva. As principais características dessa escola são: a) distinção entre o Direito Penal e as demais ciên- cias criminais (como a Criminologia, a Sociologia e a Antropologia), adotando-se para o Direito Penal o método lógico-abstrato e para as outras o método indutivo-experimental; b) o delito é considerado, 8. BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 117. 9. PRADO. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 176. • Penal_Chaim.indb 101• Penal_Chaim.indb 101 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 102 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves ao mesmo tempo, um fato jurídico e um fenômeno humano-social; c) aplicação de pena aos imputáveis e de medidas de segurança aos inimputáveis, como um duplo meio de luta contra o delito; d) função finalística da pena – mesmo sem perder o caráter retributivo, prioriza a finalidade preventiva da sanção, particularmente a prevenção especial, orien- tada conforme a personalidade do delinquente; e) desenvolvimento da política criminal10. 5. ESCOLA TÉCNICO-JURÍDICA A Escola Técnico-jurídica, surgida em 1905, teve como principais representantes Arturo Rocco, Karl Binding e Vincenzo Manzini. Em contraposição à grande preocupação da Escola Positiva com aspectos sociológicos e antropológicos do delito, pregava que o Direito Penal não poderia ser confundido com essas ciências causal-explicati- vas. Enquanto ciência normativa, deveria ser com- preendido sob um ponto de vista jurídico. Nessa ótica, o objeto da ciência penal se restrin- giria ao ordenamento jurídico positivo, e o trabalho do penalista consistiria em interpretar o texto legal, limitado ao aspecto gramatical (exegese); ordenar sistematicamente o seu conteúdo e dele extrair princípios e critérios de interpretação e integração (dogmática); e, por fim, propor reformas, caso a lei se mostre deficiente (crítica). Pode-se apontar como as principais caracterís- ticas da Escola Técnico-Jurídica: a) o delito é pura relação jurídica, de conteúdo individual e social; b) a pena constitui uma reação e uma consequência do crime (tutela jurídica), com função preventiva geral e especial, aplicável aos imputáveis; c) a medida de segurança – preventiva —, é aplicável aos inim- putáveis; d) a responsabilidade é moral (vontade livre); e) o método utilizado é técnico-jurídico; e f) rejeição ao emprego da filosofia no campo penal11. 6. ESCOLA CORRECIONALISTA A Escola Correcionalista surge na Alemanha, em 1839, com a publicação da obra “Comentatio na poena malum esse debeat”, de Karl David August Röeder. O autor defende que a pena tem finalidade reeducativa, sem o objetivo de castigo ou vingança. Por essa razão, poderia ser aplicada sem prazo determinado, cessando quando se tornasse desne- cessária. 10. PRADO. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 77. 11. PRADO. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 79. Pedro Dorado Montero, inspirado em Röeder, difundiu a teoria na Europa, propondo a implanta- ção de métodos corretivos e tutelares para lidar com o delinquente, retirando da pena o caráter de castigo. Na mesma esteira de pensamento se funda a doutrina de Concepción Arenal, que entendia não haver criminosos incorrigíveis, somente incorrigidos. As principais características da escola correcio- nalista são: a) o delinquente é visto como um ser incapaz para o Direito, um ser limitado por uma anomalia da vontade, e que portanto precisa de ajuda; b) a sanção penal representa um bem, podendo ser indeterminada (sem prazo de duração); c) o arbítrio judicial deve ser ampliado no que se refere à individualização da pena; d) a função penal deve ser vista como preventiva e de tutela social; e) a responsabilidade penal deve ser entendida como responsabilidade coletiva, solidária e difusa12. Esta doutrina é considerada o sustentáculo da teoria socializadora da pena, que viria a se consolidar com a vertente humanitária da Nova Defesa Social. 7. DEFESA SOCIAL A Escola da Nova Defesa Social teve início em 1945, sendo intitulada inicialmente Defesa Social, com a doutrina de Filippo Gramatica. Almejava a supressão do direito penal, da res- ponsabilidade penal, da pena e do sistema tradicio- nal de processo penal, propugnando a ressocializa- ção do delinquente. O Direito Penal deveria ser substituído por um direito de defesa social, cuja finalidade seria adaptar o indivíduo à ordem social e não a sanção de seus atos. Posteriormente, surge uma doutrina mais mode- rada, denominada Nova Ordem Social, nome retirado do livro homônimo de Marc Ancel, publi- cado em 1954. As ideias fundamentais da Nova Ordem Social estão compiladas no chamado Programa Mínimo, estabelecido pela Sociedade Internacional de Defesa Social, fundada em 1949. Seus principais postulados são: a) realizar um exame crítico das instituições vigentes, com o fim de melhorar e humanizar a ação punitiva, seja para reformar ou para abolir as instituições; b) vincular todos os ramos do conhe- cimento capazes de contribuir para a visão completa do fenômeno criminal; c) construir um sistema de política criminal que assegure os direitos humanos e promova os valores essenciais da humanidade, 12. PRADO. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 80. • Penal_Chaim.indb 102• Penal_Chaim.indb 102 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 103 Cap. 3 • ESCOLAS PENAIS Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al rechaçando, por conseguinte, o sistemaneoclássico punitivo-retributivo. No tocante às penas, a doutrina da Nova Ordem Social, rechaça a pena de morte e o uso indiscriminado das penas privativas de liber- dade, mantendo um duplo tratamento para a cri- minalidade: quanto aos ilícitos menores haveria a descriminalização, enquanto que para as infrações mais graves ocorreria o caminho oposto, ou seja, a criminalização13. 13. ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Os Grandes Movimentos Atuais de Política Criminal, p. 149-150. TABELA RESUMO – ESCOLAS PENAIS ESCOLA EXPOENTES CARACTERÍSTICAS Clássica 1ª fase – Gaetano Filangieri, Domenico Romagnosi e Giovanni Carmignani 2ª fase – Pelegrino Rossi, Francesco Carrara e Enrico Pessina O crime é um ente jurídico (violação do Direito). A responsabilidade penal é baseada no livre-arbítrio. A pena tem caráter retributivo, com sentido de expiação e restabelecimento do equilíbrio do sistema (inspiração em Kant e Hegel). Prega a legalidade, a humanidade e a proporcionalidade das punições (rea- ção ao Absolutismo). Método racionalista e dedutivo. Positiva Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo O crime é fenômeno natural e social. Nega a ideia de livre-arbítrio; a responsabilidade penal é baseada na respon- sabilidade social, derivada do determinismo. A melhor forma de punição é a medida de segurança por prazo indeterminado A pena é um meio de defesa social, com função de prevenir crimes. Método indutivo-experimental. Terceira Escola (Terza Scuola ou Escola Crítica) Emanuele Carnevale, Bernardino Alimena e Giuseppe Impallomeni Escola eclética, busca conciliar os postulados das escolas anteriores. O crime é fenômeno social e individual. A responsabilidade penal é baseada na imputabilidade moral (determinismo psicológico). Podem conviver tanto as penas (imputáveis) quanto as medidas de segurança (inimputáveis) A pena tem função de defesa ou preservação da sociedade. Método lógico-abstrato e dedutivo, rejeitando o método indutivo-experimental. Moderna Alemã Paulo Anselmo de Feuerbach, Franz Von Liszt, Van Hamel e Adolphe Prins Também é uma escola eclética, buscando conciliar os postulados das escolas clássica e positiva. Distinção entre o Direito Penal e as demais ciências criminais (reação à exces- siva confluência dos diversos ramos feita pela Escola Positiva). O delito é considerado, ao mesmo tempo, um fato jurídico e um fenômeno humano-social Aplicação de pena (imputáveis) e de medidas de segurança (inimputáveis), como um duplo meio de luta contra o delito. Sem perder o caráter retributivo, prioriza a finalidade preventiva da sanção, particularmente a prevenção especial, orientada conforme a personalidade do delinquente. Emprego tanto do método lógico-abstrato (para o Direito Penal) quanto do indutivo-experimental (para as demais ciências). Técnico- Jurídica Arturo Rocco, Karl Binding e Vincenzo Manzini O delito é relação jurídica de caráter individual e social. A responsabilidade é moral, sendo o homem dotado de livre-arbítrio. São aplicáveis tanto penas (imputáveis) quanto medidas de segurança (inim- putáveis). Método técnico-jurídico. O objeto da ciência penal se restringe ao ordena- mento jurídico positivo, consistindo o trabalho do penalista em interpretar o texto legal (exegese); ordenar sistematicamente o seu conteúdo e dele extrair princípios e critérios de interpretação e integração (dogmática); e propor even- tuais reformas (crítica). Rejeita o emprego da filosofia no âmbito penal. • Penal_Chaim.indb 103• Penal_Chaim.indb 103 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 104 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves Correcionalista Karl David August Röeder, Dorado Montero e Concepción Arenal O crime é um ente jurídico, criação do homem. A responsabilidade penal é coletiva e solidária. O delinquente é um indivíduo incapaz, e que, portanto, precisa de auxílio. A pena tem finalidade de cura ou emenda, e não de castigo, devendo ser inde- terminada (sem prévia duração). Defesa Social Filippo Gramatica e Marc Ancel O crime é um mal, desestabilizador da sociedade. O criminoso precisa ser adaptado à ordem social. A pena tem finalidade de defesa social (proteger a sociedade contra os crimi- nosos e também proteger seus membros para não caírem na criminalidade). Preconiza a humanização das punições e o respeito aos direitos humanos. Rejeita o sistema punitivo-retributivo, bem como a pena de morte e o uso indiscrimi- nado das penas privativas de liberdade. • Penal_Chaim.indb 104• Penal_Chaim.indb 104 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 Capítulo 4 MODELOS DE DIREITO PENAL 1. INTRODUÇÃO A partir do século XX, surgiram diversas cor- rentes de pensamento relacionadas ao controle da criminalidade e ao papel do Direito Penal nessa tarefa. Entre os sistemas propostos, encontram-se, em um dos extremos, o abolicionismo penal e, do outro, o direito penal máximo (aqui representado pelos movimentos de lei e ordem, tolerância zero e direito penal do inimigo). No meio termo, situam- -se os modelos de direito penal mínimo (destacan- do-se o garantismo penal). DIREITO PENAL MÍNIMO ABOLICIONISMO PENAL DIREITO PENAL MÁXIMO Noutro vértice, surge a justiça restaurativa, baseada na consensualidade e no engajamento de todos os envolvidos (autor do fato, vítima e comu- nidade), buscando a reparação dos danos causados pelo crime e a reintegração social do ofendido e do infrator. 2. ABOLICIONISMO PENAL O abolicionismo penal, enquanto movimento acadêmico, surge a partir do início da década de 1970, tendo como expoentes Louk Hulsman (Holanda), Thomas Mathiesen e Nils Christie (Noruega). A doutrina abolicionista faz uma crítica arrasa- dora ao sistema punitivo, afirmando que ele só tem servido para legitimar e reproduzir as desigualdades e injustiças sociais, representando uma instância seletiva e elitista1. Defende, assim, a eliminação do sistema penal ou, em algumas vertentes abolicio- nistas, um amplo processo de descriminalização (a conduta deixa de ser considerada crime), de despenalização (a conduta continua sendo crime, mas a pena é retirada) e de mitigação do rigor das penas. Entre as razões apontadas para a eliminação do direito penal, destacam-se as seguintes: a) já vivemos em uma sociedade sem direito penal – a cifra negra, ou seja, as infrações praticadas e que não são leva- das ao conhecimento das autoridades, é altíssima, podendo chegar a 90%. Todos esses casos já são resolvidos fora da justiça criminal; b) anomia – as normas do sistema não cumprem as funções espe- radas, não protegem nem a vida, nem a propriedade, nem as relações sociais; c) seletividade e estigmati- zação do sistema punitivo – o sistema cria e reforça as desigualdades, selecionando determinados grupos de pessoas como clientela habitual. O condenado fica marcado perante a sociedade e é impulsionado a se comportar conforme o rótulo que recebe; d) burocracia – cada instituição tem estrutura com- partimentalizada (Magistratura, Ministério Público, polícia, penitenciárias etc.), atuando como agência independente. Dessa forma, diluem-se as responsa- bilidades, e nenhuma acaba se preocupando com o que ocorrerá com o acusado ou com a vítima. Estes, por sua vez, desconhecem as regras que orientam o processo e ficam impedidos de buscar uma solu- ção para o conflito entre si; e) a vítima não interessa ao sistema penal – o ofendido tem lugar secundá- rio ou nenhum lugar; f) a pena não cumpre suas finalidades – a pena não exerce a função preventiva (o suposto efeito dissuasório da ameaça penal não se realiza), nem ressocializa os condenados (basta- 1. SHECAIRA. Criminologia, p. 366. • Penal_Chaim.indb 105• Penal_Chaim.indb 105 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 106 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves -se ver os elevados índices de reincidência). A execução da pena é estéril, porque não transforma o condenado, e irracional, porqueo destrói e ani- quila2. Não existe entre os autores uma completa coin- cidência de métodos, pressupostos filosóficos e táticas para alcançar os objetivos propostos. Há distintas vertentes de pensamento, como a fenome- nológica de Louk Hulsman, a preferência marxista de Thomas Mathiesen e a fenomenológica-historicista de Nils Christie3. Louk Hulsman entende que o direito penal é um problema em si mesmo e, diante de sua inuti- lidade para resolver os conflitos, deve ser abolido em sua totalidade4. O autor propõe a sua substitui- ção por outras instâncias de solução de conflitos (assistencial, educativa, terapêutica, compensatória etc.). Defende que o abolicionismo deve ocorrer em duas frentes: abolicionismo institucional (supressão da justiça criminal) e o abolicionismo acadêmico (abolição da forma tradicional de estudar o crime, passando-se a adotar uma postura crítica e desa- fiadora dos discursos dominantes, calcados na ideia de uma justiça criminal natural e necessária. Envolve uma mudança de linguagem, abolindo-se as expres- sões “crime” e “criminoso”, sendo substituídas por “situações-problema”). Thomas Mathiesen vincula a existência do sistema penal à estrutura produtiva capitalista, propugnando pela abolição não apenas do sistema penal, mas de todas as estruturas repressivas da sociedade. Para o autor, o movimento abolicionista deve ser algo sempre inacabado, mantendo-se em constante relação de oposição às estruturas de poder, para manter sua vitalidade5. Mathiesen também denuncia a irracionalidade do sistema prisional e a ineficácia da pena para atingir suas finalidades6. 2. SHECAIRA, Criminologia, p. 369-374. 3. ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas. p. 103-107. 4. Nesse prisma, asseveram Louk Hulsman e Jacqueline Bernat De Celis que é “preciso abolir o sistema penal. Isto significa romper os laços que, de maneira incontrolada e irresponsável, em detrimento das pessoas diretamente envolvidas, sob uma ideologia de outra era e se apoiando em um falso consenso, unem os órgãos de uma máquina cega cujo objeto é a produção de um sofrimento estéril. Um sistema desta natureza é um mal social. Os problemas que ele pretender resolver – e que, de alguma forma, resolve, pois nunca faz o que pretende – deverão ser enfrentados de outra maneira” (Penas Perdidas. O Sistema Penal em Questão. p. 90-91). Ver também: HULSMAN, Louk; MARTEAU, Juan Felix; SINGER, Helena. Práticas punitivas: um pensamento diferente uma entrevista com o abolicionista penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 14, p. 13. 5. ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas. p. 104-105. 6. MATHIESEN, Thomas. Juicio a la prison, p. 223. Nils Christie aproxima-se de Hulsman em alguns aspectos e de Mathiesen em outros. Quando ques- tiona o conceito de crime e sua artificialidade, quando explicita a necessidade de formas horizon- tais de resolução de conflito, bem como quando afirma que o debate acerca do sistema penal deve ser suscitado nas universidades, aproxima-se de Hulsman. Ao utilizar-se da história como funda- mento para sua argumentação teórica, ao criticar diretamente e com exemplos a irracionalidade do sistema carcerário e ao analisar alguns determina- dos pontos em perspectiva marxista, aproxima-se de Mathiesen7. Um dos pontos defendidos pelo autor é a diminuição da dor, enquanto castigo, provocada pelo homem como meio de controle social8. \dpz- Christie se considera um abolicionista minimalista, reconhecendo a necessidade excepcional do sistema penal para lidar comportamentos absolutamente inaceitáveis9. O abolicionismo tem sido alvo de críticas tão severas e arrasadoras quanto as que dirigiu, tempos antes, ao sistema penal. Como observa Silva Sánchez, a doutrina abolicionista perdeu força nos últimos anos, e já não é mais uma referência intelectual10. Parte das críticas consiste na utopia das pro- postas abolicionistas, incompatíveis com o grau de complexidade e desenvolvimento alcançado pelas sociedades modernas em geral. Os adeptos do abo- licionismo dirigem suas críticas a casos triviais e de bagatela e, partir daí, questionam todo o sistema. Porém, não tentam justificar suas proposições em casos de criminalidade violenta ou outros delitos mais graves, que permeiam a realidade do sistema penal.11. Outra crítica recorrente dirigida ao abolicionismo diz respeito às consequências negativas advindas da supressão da instância formal de controle punitivo. Como acentua Massimo Pavarini, o processo de burocratização dos sistemas penais modernos é interpretado negativamente pelos abolicionistas, como expropriação do poder punitivo, originaria- mente em poder da sociedade civil. Ocorre que, na formação do Estado moderno, este processo de 7. ANGOTTI. Breves notas sobre o abolicionismo penal. Revista Brasileira De Ciências Criminais, v. 80, p. 247-279. 8. Mais detidamente em: CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. 9. Cf. entrevista concedida pelo autor ao IBCCRIM, na íntegra em: OLIVEIRA; FONSECA. Conversa com um abolicionista minimalista, Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 21, p. 13, jan. 1998. 10. Aproximação ao direito penal contemporâneo, p. 68. 11. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Aproximação ao direito penal contemporâneo, p. 40-41. • Penal_Chaim.indb 106• Penal_Chaim.indb 106 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 107 Cap. 4 • MODELOS DE DIREITO PENAL Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al assunção pelo Estado foi bastante desejado como condição necessária para a tutela das liberdades individuais, contra os riscos de abuso por parte dos atores sociais mais fortes12. Ferrajoli, por sua vez, observa que a eliminação do Direito Penal poderia fazer ressurgir a vingança privada que, na ausência das penas, poderia advir da parte do ofendido ou de forças sociais ou ins- titucionais solidárias a ele. A tudo isso, Silva Sanchez acrescenta que, das variáveis jurídico-penais que influenciam na dis- suasão da prática de um delito, a mais importante é a certeza da punição. E uma das contribuições mais significativas do Direito Penal é justamente o incremento dessa certeza, apoiada na estrutura do Estado, em seus aparelhos policial e judicial13. É bem verdade que as doutrinas abolicionistas possuem méritos. Ao afirmarem a desnecessidade do sistema penal e denunciarem a irracionalidade das prisões, os abolicionistas fomentam um salutar debate sobre a banalização do direito penal e do encarceramento em massa na sociedade contempo- rânea, bem como a necessidade de formas alterna- tivas para solucionar certos conflitos, fora do sistema penal ou, ao menos, sem o uso da pena de prisão. O ideal, como assevera Pavarini, é fazer bom uso das teorias abolicionistas, sem ser abolicionista14. ABOLICIONISMO PENAL Proposta Eliminação do sistema penal ou, em algumas verten- tes abolicionistas, um amplo processo de descriminali- zação, despenalização e atenuação do rigor das penas. Fundamento Cifra negra elevada; O sistema penal é desnecessário, seletivo, estigmati- zante e burocrático; As penas não cumprem suas finalidades. Críticas ao abolicionismo Propostas utópicas; O direito penal limita o poder punitivo. Ao se retirar o direito penal, retira-se também essa limitação; A eliminação do sistema penal, com o aparato estatal de persecução penal, reduziria a certeza da punição. 12. Il sistema della giustizia penale tra riduzionismo e abolizionismo. Dei delitti e delle pene. Rivista di studi sociali, storici e giuridici sulla questione criminale, ano 3, n. 3, p. 525-553. 13. Aproximação ao direito penal contemporâneo, p. 380. 14. Il sistema della giustizia penale tra riduzionismo e abolizionismo. Dei delitti e delle pene. Rivista di studi sociali, storici e giuridici sulla questione criminale, ano 3, n. 3, p. 525-553. 3. DIREITO PENAL MÁXIMO (LEI E ORDEM, TOLERÂNCIA ZERO E A TEORIA DAS JANELAS QUEBRADAS) Direito penal máximo é o modelo de direito penalcaracterizado pela excessiva severidade, bem como pela incerteza e imprevisibilidade das conde- nações e das penas, voltado a assegurar que nenhum culpado fique impune, mesmo que algum inocente possa ser condenado15. Trata-se do modelo preconizado pelas políticas de “lei e ordem” e de “tolerância zero”, inseridas no movimento que a criminologia denomina rea- lismo de direita. De acordo com Shecaira, é no período dos governos Reagan/Bush nos EUA e Thatcher na Inglaterra, na década de 1980, que o neoconserva- dorismo recebe a feição atualmente conhecida como “lei e ordem”, tendo como representantes Van Den Haag, James Wilson, Edward Benfield, Freda Adler, entre outros16. O discurso oficial de “lei e ordem” prega que, se o sistema não combate eficientemente a crimi- nalidade, é porque não é suficientemente repressivo, fazendo-se necessário criminalizar mais, aumentar os aparatos policiais, judiciários e penitenciários, ampliar as penas de prisão e reduzir as garantias penais e processuais penais básicas17. Suas ideias podem ser sintetizadas em: sanções mais longas e duras, quando não a própria pena de morte; menor poder discricionário ao juiz, impe- dindo, notadamente em sede de execução, a flexi- bilização do cumprimento da pena privativa de liberdade; ampliação das medidas cautelares deten- tivas; extremo rigor nos regimes de cumprimento de pena, descartando a ideia da recuperação do condenado como uma de suas principais finalida- des18. Paralelamente ao movimento de “Lei e ordem”, surge nos Estados Unidos o programa de “tolerân- cia zero”, originado da teoria das janelas quebra- das19. 15. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 102-103. 16. Criminologia. p. 349-350. 17. ANDRADE. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre a deslegitimização e a expansão. Revista Ultima Ratio, ano 1, n. 1, p. 397-417. 18. SHECAIRA. Criminologia, p. 350. 19. SHECAIRA. Criminologia, p. 350. • Penal_Chaim.indb 107• Penal_Chaim.indb 107 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 108 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves Essa teoria foi apresentada no artigo “Broken Windows”, publicado por James Wilson e George Kelling, em 1982. Os autores procuraram estabele- cer uma relação entre desordem e criminalidade, partindo da seguinte ideia: se um prédio tiver algumas janelas quebradas, isso passará a mensagem de abandono, de que ninguém ali se preocupa com a ordem, servindo como estímulo para que vânda- los destruam outras. Por isso, é preciso repará-las. A conclusão é que desordem gera mais desordem, e que pequenas transgressões, se não forem coibidas, podem incentivar a prática de crimes mais graves20. No artigo, Wilson e Kelling se reportam a uma experiência conduzida pelo psicólogo americano Philip Zimbardo, em 1969. Zimbardo deixou um veículo estacionado em um Palo Alto, cidade de classe alta na Califórnia, e outro no distrito do Bronx, em Nova Iorque, local considerado pobre e perigoso à época. O automóvel que estava na Cali- fórnia permaneceu intacto por mais de uma semana, enquanto o veículo no Bronx foi alvo quase imediato de furtos de peças. Em seguida, o pesquisador quebrou a janela do primeiro automóvel. Pouco depois, este carro também passou a ser vandalizado e teve peças furtadas. A teoria das janelas quebradas acabou ganhando notoriedade, servindo de fundamento para o pro- grama de “tolerância zero”, que emergiu na década seguinte nos Estados Unidos e se estendeu para diversos outros países da Europa e da América. Em 1993, Rudolph Giuliani é eleito prefeito de Nova York e adota um programa de “tolerância zero” contra a criminalidade, alardeado como res- ponsável por transformar radicalmente a cidade, tornando-a segura. Porém, muitos estudos contestam a teoria das janelas quebradas. Aponta-se que as taxas de cri- minalidade caíram em diversas outras cidades americanas na década de 1990, mesmo naquelas que não adotaram uma política de tolerância zero. Loic Wacquant relaciona diversos fatores que teriam contribuído para essa redução, entre eles: a) consi- derável crescimento econômico ocorrido nessa época, que gerou empregos e afastou os jovens da crimi- nalidade; b) estruturação e estabilidade do tráfico de drogas, provocando a redução da violência entre criminosos para regular a competição; c) queda da população jovem, mais propensa à criminalidade de rua; d) taxas de criminalidade excepcionalmente 20. Theory of broken windows. Atlantic Monthly, v. 249, p. 29-38. altas no início dos anos 1990, estatisticamente propensas a retornarem ao padrão de normalidade21. Como observa Jacinto Nelson de Miranda Cou- tinho, a preocupação da teoria da janela quebrada se resume à manutenção da ordem, identificando o delinquente como alguém que precisa ser contro- lado, removido e observado. Todavia, é ingenuidade acreditar que, ao se retirar as crianças do semáforo e os mendigos das ruas, o problema criminal estará resolvido. O que acontece com eles depois disso não é problema dos teóricos, que estabelecem um raciocínio simples: se eles não estão lá, é porque não existem22. Um desses problemas, aliás, é a dificuldade ainda maior que essas pessoas enfren- tarão para obter emprego, ostentando passagem criminal23. Ademais, no contexto atual, em que o crime se organizou, se internacionalizou e se sofisticou24, não é justificável supor que a repressão penal de ninharias trará reflexo significativo na redução da criminalidade de maior monta. De outra banda, mesmo quando for necessário reprimir condutas de menor gravidade, pode-se fazê-lo por meio de outros ramos do Direito (apli- cando-se multas administrativas, por exemplo), reservando-se o Direito Penal para a criminalidade verdadeiramente grave. 21. The Scholarly Myths of the new law and order doxa, Socialist Register, v. 42, p. 93-115. No mesmo sentido: SRIDHAR, C.R. Broken Windows and Zero Tolerance: Policing Urban Crimes”. Economic and Political Weekly, v. 41, n. 19, p. 1841-1843. 22. Teoria das janelas quebradas: e se a pedra vem de dentro. Boletim IBCCRIM. v.11, p. 6-8. 23. Out of Trouble, but criminal records keep men out of work. New York Times, 28.02.2015. Disponível em: <https://www. nytimes.com/2015/03/01/business/out-of-trouble-but- criminal-records-keep-men-out-of-work.html>. 24. Em 2010, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) elaborou um relatório alertando para a globalização do crime. Segundo o documento, a abertura no comércio, finanças, viagens e comunicações também deu azo ao surgimento de massivas oportunidades para criminosos fazerem seus negócios prosperarem: “O crime organizado se diversificou, tornou-se global e alcançou proporções macroeconômicas: bens ilícitos originários de um continente são traficados em outro e vendidos em um terceiro. As máfias, atualmente, são um verdadeiro problema transnacional: uma ameaça à segurança, especialmente em países pobres e cheios de conflitos. O crime está alimentando a corrupção, infiltrando- se nos negócios e na política, e prejudicando o desenvolvimento. Cf. United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). The globalization of crime: a transnational organized crime threat assessment. United Nations Publication. Viena: United Nations Publication, 2010. • Penal_Chaim.indb 108• Penal_Chaim.indb 108 30/03/2020 13:49:1530/03/2020 13:49:15 109 Cap. 4 • MODELOS DE DIREITO PENAL Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al DIREITO PENAL MÁXIMO Proposta Aumentar as criminalizações e a severidade das penas, bem como reduzir a impunidade. Coibir infrações de menor gravidade, para evitar que se transformem em delitos de maior monta. Fundamento Teoria das janelas quebradas (broken windows theory); Redução da criminalidade na cidade de Nova York nos anos 1990 demonstra o sucesso do programa de “tole- rância zero”. Crítica Não foi demonstradaa relação entre desordem e crimi- nalidade; diversas cidades que não adotaram o programa de tolerância zero também tiveram redução da crimi- nalidade nos anos 1990, decorrente de outros fatores; Desrespeito aos direitos humanos; Sobrecarga dos tribunais e das prisões, revelando-se insustentável a longo prazo. 4. DIREITO PENAL DO INIMIGO A teoria do direito penal do inimigo foi apre- sentada por Günther Jakobs ao proferir uma pales- tra em Frankfurt, em 1985, sem receber muito destaque. Porém, em 1999, na Conferência do Milênio, em Berlim, a teoria causou grande reper- cussão25. Dois anos após os ataques terroristas contra os Estados Unidos ocorridos em 11 de setembro, de 2001, Jakobs publica a obra Direito Penal do Inimigo, e a partir daí a teoria ganha ainda mais visibilidade. Para Jakobs, a função do Direito Penal é a pro- teção do próprio sistema. Quando uma pessoa infringe uma norma, está quebrando a confiança social de que iria segui-la, impondo-se a pena para reafirmar a vigência do sistema. Contudo, existem sujeitos que não oferecem perspectiva mínima de que irão cumprir as normas, afastando-se de maneira intencional e duradoura do Direito. São os “inimigos”, que rejeitam radi- calmente as regras e não desejam fazer parte do sistema, mas destruí-lo26. Aqueles identificados como inimigos perderiam o status de pessoa e, conse- 25. PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre o Direito Penal do Risco e o Direito Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 12, n. 47, p. 31-45. 26. Nos dizeres de Jakobs, “quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas” (Direito Penal do Inimigo, moções e críticas, p. 42). quentemente, não teriam as garantias processuais reconhecidas aos cidadãos. Haveria, assim, dois tipos de direito penal: o direito penal do cidadão, que contempla um amplo sistema de direitos e garantias, aplicável ao cidadão que comete desvios; e o direito penal do inimigo, um regramento diferenciado para aqueles que estão fora do sistema e não têm o status de pessoa. Como exemplos de inimigos, Jakobs cita os delinquentes econômicos, terroristas, membros de organizações criminosas, autores de delitos sexuais e de outros delitos graves e perigosos. O autor menciona os ataques terroristas de 11 de setembro como manifestação inequívoca de atos típicos de inimigo27. A ideia de que certos indivíduos, ao violarem o pacto social, perderiam o status de cidadãos e seriam excluídos da sociedade, não é nova. Esta noção remonta a diversos filósofos contratualistas, tais como Immanual Kant, Jean-Jacques Rousseau, Johann Gottlieb Fichte e Thomas Hobbes28. Poderíamos sintetizar as características do direito penal do inimigo, em contraposição ao direito penal do cidadão, da seguinte forma: DIREITO PENAL DO CIDADÃO DIREITO PENAL DO INIMIGO Incidência de direitos e garantias individuais. Flexibilização de direitos e garantias individuais. Volta-se ao cidadão (sujeito de direito), quando comete desvios. Volta-se ao inimigo (não- -pessoa) excluído do sistema por não oferecer garantia mínima de que cumprirá as normas, tendo-se afastado de maneira intencional e duradoura do Direito. 27. Direito Penal do Inimigo, moções e críticas, p. 30. 28. Rousseau, por exemplo, afirmava que o indivíduo, ao infringir o contrato social, o deixava de ser membro do Estado e se tornava um inimigo: “(...) todo malfeitor, ao atacar o direito social, torna-se, por seus delitos, rebelde e traidor da pátria; cessa de ser um de seus membros ao violar suas leis, e chega mesmo a declarar-lhe guerra. A conservação do Estado passa a ser então incompatível com a sua; faz-se preciso que um dos dois pereça, e quando se condena à morte o culpado, se o faz menos na qualidade de cidadão que de inimigo. Os processos e a sentença constituem as provas da declaração de que o criminoso rompeu o tratado social, e, por conseguinte, deixou de ser considerado membro do Estado. Ora, como ele se reconheceu como tal, ao menos pela residência, deve ser segregado pelo exílio, como infrator do pacto, ou pela morte, como inimigo público, pois um inimigo dessa espécie não é uma pessoa moral; é um homem, e manda o direito da guerra matar o vencido” (Do contrato social, p. 18). • Penal_Chaim.indb 109• Penal_Chaim.indb 109 30/03/2020 13:49:1630/03/2020 13:49:16 110 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves DIREITO PENAL DO CIDADÃO DIREITO PENAL DO INIMIGO Aplicação de penas, base- adas na culpabilidade, com prazo determinado. Aplicação de medidas de segurança, baseadas na peri- culosidade, sem prazo deter- minado. Toma por base o fato ocor- rido (retrospectivo). Toma por base o futuro, o perigo que o inimigo repre- senta (prospectivo). Direito penal do fato (pune o agente por um fato que ele praticou). Direito penal de autor (pune o agente por ser quem é). Atos preparatórios punidos excepcionalmente. Atos preparatórios punidos como regra, para evitar cri- mes mais graves. Ex.: criminoso ocasional. Ex.: delinquentes econômi- cos, terroristas, membros de organizações criminosas e autores de delitos sexu- ais (Jakobs). A teoria do direito penal do inimigo, não sem razão, tem sido objeto de ferrenhas críticas. Com propriedade, Luis Gracia Martín ataca a distinção entre pessoa e não pessoa. Afinal, o direito penal deve tratar todo homem como pessoa responsável, e nenhum ordenamento pode estabe- lecer regras e procedimentos de negação da digni- dade do ser humano. Um Estado que assim proceda será, além de injusto, desvinculado do Direito29. Francisco Muñoz Conde questiona a quem caberia definir quem é inimigo e como ele seria definido, apontando ser esta teoria incompatível com o princípio da isonomia, com o Estado de Direito e com o reconhecimento sem exceções a todos dos direitos humanos fundamentais30. Cancio Meliá, por sua vez, afirma ser injustifi- cável a dicotomia direito penal do cidadão e direito penal do inimigo, pois aquele conteria um pleonasmo e este uma contradição em seus termos31. Com efeito, “direito penal do inimigo” não é propriamente direito, mas antes um “não-direito penal” do ini- migo. 29. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo, p. 165. 30. As reformas da parte especial do direito penal espanhol em 2003: da “tolerância zero” ao “direito penal do inimigo”. Ciências Penais, v. 4, p. 53-82. 31. Direito Penal do Inimigo, moções e críticas, p. 61. DIREITO PENAL DO INIMIGO Proposta (Günther Jakobs) Regramento diferenciado para os “inimigos”. Aqueles que não oferecem garantia cognitiva mínima de que cumprirão as normas, afastando-se de maneira inten- cional e duradoura do Direito, não fazem jus às garan- tias processuais reconhecidas aos cidadãos. Características principais Ver quadro comparativo acima. Fundamento Quem está fora do pacto social e almeja destruí-lo, perde o status de pessoa e os direitos de quem integra o pacto. Essa noção remonta a filósofos contratualistas, tais como Kant, Rousseau, Fichte e Hobbes. Crítica A concepção de “inimigo” muda de acordo com o momento histórico e o contexto social; Um Estado Democrático de Direito jamais pode divisar seres humanos em “pessoas” e “não pessoas” (desres- peito aos direitos humanos). 5. DIREITO PENAL MÍNIMO 5.1. Considerações gerais Direito penal mínimo é o modelo de direito penal caracterizado pelo seu reduzido âmbito de incidência, bem como pelo grau máximo de tutela da liberdade dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, voltado a assegurar que nenhum inocente seja punido, mesmo que algum culpado possa ser absol- vido32. As diversas correntes minimalistas apresentam como traço comum a ideia de que o Direito Penal deve se autolimitar,renunciando interferir em todos os aspectos da vida social, e quando o fizer, deve reduzir a severidade de suas sanções. A pena deve ser utilizada apenas como ultima ratio em relação à política social e às formas de controle extrapenal e, dentre as sanções penais, a pena privativa de liberdade deve ser reservada como última opção, para os delitos mais graves que não possam ser controlados com instrumentos menos rigorosos33. Enquanto o abolicionismo pretende a eliminação do sistema penal e o direito penal máximo prega o aumento e maior severidade das punições, o minimalismo surge como uma posição intermediá- 32. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 102-103. 33. MARINUCCI, Giorgio. Dolcini, Emiliano. Derecho penal “mínimo” y nuevas formas de criminalidad. Revista de Derecho Penal y Criminologia, n. 9, p. 147-167. • Penal_Chaim.indb 110• Penal_Chaim.indb 110 30/03/2020 13:49:1630/03/2020 13:49:16 111 Cap. 4 • MODELOS DE DIREITO PENAL Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al ria, defendendo a máxima contração do direito penal, evitando interferir na vida privada das pes- soas, senão quando estritamente necessário. Há, portanto, uma ligação umbilical entre o direito penal mínimo e o princípio da intervenção mínima. 5.2. Garantismo O maior expoente do minimalismo é Luigi Ferrajoli, que, na obra Direito e Razão, formula as bases do garantismo penal, considerado o paradigma das doutrinas minimalistas. O sistema garantista (também denominado cog- nitivo ou de legalidade estrita) resulta da adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais: 1º) Não há pena sem crime Nulla poena sine crimine Princípio da retributivi- dade ou da consequen- cialidade da pena em relação ao delito 2º) Não há crime sem lei Nullum crimen sine lege Princípio da legalidade ou da reserva legal 3º) Não há lei penal sem neces- sidade Nulla lex (poenalis) sine necessitate Princípio da necessi- dade ou da economia do direito penal 4º) Não há necessidade sem injuria Nulla necessitas sine injuria Princípio da ofensividade ou da ofensividade do evento 5º) Não há injúria sem ação Nulla injuria sine actione Princípio da materiali- dade ou da exterioriza- ção da ação 6º) Não há ação sem culpa Nulla actio sine culpa Princípio da culpabili- dade ou da responsabi- lidade pessoal 7º) Não há culpa sem sentença Nulla culpa sine judicio Princípio da jurisdicio- nalidade 8ª) Não há sentença sem acusação Nullum jucidium sine accusatione Princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação 9º) Não há acusação sem prova Nulla accusatio sine probatione Princípio do ônus da prova ou da verificação 10º) Não há prova sem defesa Nulla probatio sine defensione Princípio do contraditó- rio ou da defesa, ou da falseabilidade Segundo Ferrajoli, esses dez princípios definem o modelo garantista, ou seja, as regras do jogo fundamental do direito penal. Trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível34. 34. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 91. O direito penal mínimo, dito garantista, é o modelo que me parece mais adequado, devendo-se evitar as posições extremadas do abolicionismo e do direito penal máximo. Se a aplicação desmesu- rada do Direito Penal é contraproducente, como tem apontado a criminologia crítica e os abolicio- nistas, também é verdade que ele é um instrumento imprescindível para proteção de bens jurídicos. Portanto, a melhor opção é buscar o aprimoramento do Direito Penal, rechaçando a ingerência estatal indevida na esfera privada dos cidadãos e, ao mesmo tempo, promovendo a ampliação de sua eficiência. O que é garantismo hiperbólico monocular e garantismo integral? Garantismo hiperbólico monocular é uma nomen- clatura com conotação pejorativa, significando uma ampliação exagerada e desproporcional dos direitos e garantias individuais (daí “hiperbólico”), levando em consideração apenas os interesses do réu (por isso “monocular”). Em contraposição, garantismo penal integral é aquele almeja resguardar não somente os direitos do réu (garantismo negativo), mas também o da sociedade (garantismo positivo). Está relacionado à ideia da dupla face da proporcionalidade, que pre- ceitua a proibição do excesso e também a proibição da proteção deficiente. = + GARANTISMO INTEGRAL garan�smo nega�vo garan�smo posi�vo Interesses do réu Interesses da sociedade 5.3. Direito de intervenção Trata-se de teoria formulada por Winfried Has- semer, membro da escola de Frankfurt. Na visão do autor, o Direito Penal clássico não é eficiente para combater a criminalidade moderna (delitos econômicos, ambientais, comércio interna- cional de armas e drogas etc.), e não pode se des- naturar para tentar alcançar essa eficiência. Portanto, o Direito Penal deve ficar restrito ao núcleo duro da criminalidade, tutelando somente os bens jurí- dicos individuais clássicos (vida, liberdade individual, patrimônio etc.) em face de lesão ou perigo concreto de lesão, mantendo sua característica de ultima ratio. Surge então o Direito de Intervenção, que seria um novo campo do direito, localizado entre o Direito Penal e o Administrativo, voltado ao enfrentamento • Penal_Chaim.indb 111• Penal_Chaim.indb 111 30/03/2020 13:49:1630/03/2020 13:49:16 112 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves da criminalidade moderna, admitindo a flexibiliza- ção de garantias individuais, mas, em contrapartida, sem contemplar penas privativas de liberdade35. O Direito de intervenção disporia de instrumen- tos mais adequados para enfrentar a criminalidade moderna, pois estaria adaptado à tutela de bens coletivos e de infrações de perigo abstrato, à pre- venção em lugar da repressão, à punição de pessoas jurídicas etc36. O modelo proposto por Hassemer, semelhante a um direito administrativo sancionador, sofre crí- ticas: de forma injusta e classista, reserva a prisão aos crimes tradicionais, privilegiando a criminalidade moderna com sanções de outra natureza; é retró- grada, pois mantém o Direito Penal centrado nos problemas do passado; dificuldade para se identifi- car quais bens jurídicos devem ser amparados pelo Direito Penal e quais pelo Direito de Intervenção37. Criminalidademoderna Núcleo duro da criminalidade Afeto ao Direito Penal, que deve tutelar somente os bens jurídicos individuais clássicos (vida, liberdadeindividua, patrimônio etc.). Enfrentada pelo Direito de Intervenção, novo campo do Direito,admi�ndo a flexibilização de garan�as individuais, embora sem prever penas priva�vas de liberdade 35. Nos dizeres do autor, “recomenda-se regular aqueles problemas das sociedades modernas, que levaram à modernização do Direito Penal, particularmente, por um ‘Direito de Intervenção’, que esteja localizado entre o Direito Penal e o Direito dos ilícitos administrativos, entre o Direito Civil e o Direito Público, que na verdade disponha de garantias e regulações processuais menos exigentes que o Direito Penal, mas que, para isso, inclusive, seja equipado com sanções menos intensas aos indivíduos. Tal Direito ‘moderno’ seria não só normativamente menos grave, como seria também faticamente mais adequado para acolher os problemas especiais da sociedade moderna” (Características e crises do moderno direito penal, Revista de Estudos Criminais, v. 2, n. 8, p. 54-66). 36. HASSEMER. Perspectivas de uma moderna política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 8, p. 41-51. 37. Mais detidamente em: OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Hassemer e o direito penal brasileiro: direito de intervenção, sanção penal e administrativa, p. 81-92 e 265-271. DIREITO PENAL MÍNIMO Proposta Redução do âmbito de incidência do direito penal e maximização da liberdade das pessoas. Garantismo penal (Luigi Ferrajoli) Considerado o paradigma das doutrinasminimalistas. O modelo garantista é cristalizado em dez axiomas (ver tabela acima). Direito de intervenção (Winfried Hassemer) Novo campo do direito, localizado entre o Direito Penal e o Administrativo, voltado ao enfrentamento da crimi- nalidade moderna, admitindo a flexibilização de garan- tias individuais, embora sem contemplar penas priva- tivas de liberdade. 6. VELOCIDADES DO DIREITO PENAL Trata-se de terminologia concebida por Silva Sán- chez, destacando as três velocidades do direito penal38: Direito penal de primeira velocidade – Modelo de Direito Penal clássico, que utiliza preferencial- mente a pena privativa de liberdade, mas com estrito respeito aos direitos e garantias individuais. Direito penal de segunda velocidade – Admite a flexibilização de garantias penais e processuais, porém aliadas à adoção das medidas alternativas à prisão (penas restritivas de direito, pecuniárias etc.)39. Direito penal de terceira velocidade – Consiste numa mistura das características acima, utilizan- do-se da pena privativa de liberdade (Direito Penal de primeira velocidade), mas permitindo a flexibi- lização de direitos e garantias (Direito Penal de segunda velocidade). Compatível com o chamado direito penal do inimigo (estudado oportunamente). 1ª VELOCIDADE 2ª VELOCIDADE 3ª VELOCIDADE Pena privativa de liberdade Medidas alternativas à prisão Pena privativa de liberdade Respeito aos direitos e garantias individuais Flexibilização de direitos e garantias individuais Flexibilização de direitos e garantias individuais 38. La expansión del derecho penal, p. 159-167. 39. A segunda velocidade do direito penal apresenta pontos de contato com o Direito de Intervenção de Hassemer (restrição de direitos e garantias, sem aplicação de pena de prisão). Porém, enquanto Hassemer visualiza o Direito de Intervenção como ramo autônomo do direito, a segunda velocidade de Sánchez integra o próprio Direito penal (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Hassemer e o direito penal brasileiro: direito de intervenção, sanção penal e administrativa, p. 79). • Penal_Chaim.indb 112• Penal_Chaim.indb 112 30/03/2020 13:49:1630/03/2020 13:49:16 113 Cap. 4 • MODELOS DE DIREITO PENAL Pa rt e I – In tr od uç ão a o D ire ito P en al Alguns falam em direito penal de quarta velo- cidade, aspecto do neopunitivismo aplicável em face de agentes que exercem ou exerceram a função de chefes de Estado e, nessa condição, praticaram graves violações a tratados internacionais de pro- teção a direitos humanos. Em outros termos, pra- ticaram crimes de lesa humanidade, ficando sujei- tos ao direito penal internacional. Para Daniel Pastor, os organismos internacionais têm considerado, de modo surpreendente, que a reparação à violação dos direitos humanos é alcan- çada por meio do castigo penal, algo a ser obtido sem controle e ilimitadamente, até mesmo com desprezo aos direitos fundamentais do acusado. Acredita-se, assim, em um poder penal absoluto40. Vale observar que o Estatuto de Roma criou o Tribunal Penal Internacional, primeiro tribunal penal internacional permanente, competente para proces- sar e julgar os crimes que afetam a comunidade internacional no seu conjunto (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão41). 7. JUSTIÇA RETRIBUTIVA X JUSTIÇA RESTAURATIVA A justiça retributiva se identifica com os siste- mas penais tradicionais, baseando-se na imposição unilateral e horizontal, pelo Estado, de um castigo àquele que praticou uma infração penal. Em suma, retribui-se o mal do crime com o mal da pena. A justiça restaurativa surge como uma espécie de justiça consensual, buscando a reparação dos danos causados pelo delito, por meio da participa- ção conjunta e ativa dos envolvidos (acusado, vítima e membros da sociedade). O objetivo é a realização de um acordo (chamado acordo restaurativo) que atenda às necessidades do ofendido e da coletividade, ao mesmo tempo em que promova a ressocialização do infrator. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles)42. 40. La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa del desprestigio actual de los derechos humanos. Nueva Doctrina Penal. Buenos Aires, p. 73-114. 41. Art. 5º do Estatuto de Roma. 42. Ver Resolução 2002/12, intitulada “Basic principles on the use of restorative justice programmes in criminal matters”, editada pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Este documento traz regras básicas norteadoras da utilização de programas envolvendo Justiça Restaurativa. Disponível na internet em <http://www.restorativejustice.org>. O modelo de justiça restaurativa surgiu em 1975, pelas mãos do psicólogo americano Albert Eglash, e remonta à noção de restituição criativa, sugerida ao término dos anos 50 pelo próprio Eglash, para reformar o modelo terapêutico. Outros precursores da justiça restaurativa são Allan Horwitz (1990), Howard Zehr (1990) e Lode Walgrave (1993), que publicaram trabalhos examinando modelos de jus- tiça diversos do retributivo. Segundo magistério de Renato Sócrates Gomes Pinto, a justiça restaurativa é “um processo estri- tamente voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou mais media- dores ou facilitadores, e podendo ser utilizados técnicas de mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator”43. O autor formula um esclarecedor quadro com- parativo entre a justiça retributiva e a restaurativa, resumido abaixo44: JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA O crime é um ato contra a sociedade, representada pelo Estado O crime é um ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade Primado do interesse público (monopólio estatal da Justiça Criminal) Primado do interesse das pessoas envolvidas e da comunidade (Justiça Cri- minal participativa) Culpabilidade individual vol- tada para o passado Responsabilidade pela res- tauração compartilhada coletivamente e voltada para o futuro Indisponibilidade da ação Penal Disponibilidade da ação penal Os atores principais são as autoridades (representando o Estado) e os profissionais do Direito Os atores principais são as vítimas, os infratores, as pessoas da Comunidade e as ONGs. Processo decisório a cargo de autoridades (Policial, Dele- gado, Promotor, Juiz) Processo decisório com- partilhado com as pessoas envolvidas (vítima, infrator e comunidade) 43. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 19-39. 44. Justiça Restaurativa. Carta Forense, n. 51, p. 45, ago. 2007. • Penal_Chaim.indb 113• Penal_Chaim.indb 113 30/03/2020 13:49:1630/03/2020 13:49:16 114 MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves Penas desarrazoadas e despro- porcionais em regime carce- rário desumano, cruel, degra- dante e criminógeno; ou penas alternativas ineficazes (ces- tas básicas) Proporcionalidade e razo- abilidade das obrigações assumidas no acordo res- taurativo (reparação, resti- tuição, prestação de servi- ços comunitários etc.) O infrator raramente tem par- ticipação, fica alienado dos fatos processuais e não é efe- tivamente responsabilizado, mas punido pelo fato O infrator participa ativa e diretamente, é inteirado das consequências do fato para a vítima e comunidade e contribui para a decisão restaurativa A vítima recebe pouca ou nenhuma atenção, ocupando lugar periférico no processo. Não tem participação, nem pro- teção, mal sabe o que se passa.
Compartilhar