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Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) Fundada em São Paulo, no ano de 1948, pelo empresário, produtor e engenheiro italiano Franco Zampari, que se torna o diretor administrativo do Teatro, foi a companhia estável de maior projeção dos anos 1950, que solidificou os princípios do teatro moderno brasileiro. A atmosfera era pré-Ditadura Militar, quando os questionamentos acerca de um país mais democrático moviam o PCB (Partido Comunista do Brasil), numa luta revolucionária para a libertação nacional. Era o início das repressões e redução do espaço político daqueles que questionavam o Estado. Não obstante, foi um período de progresso para o ramo das artes e a cultura nacional. Fervoroso admirador do teatro, Zampari resolve escrever e montar nos jardins de sua casa a comédia “A Mulher de Braços Alçados”, onde armou um palco e montou acomodações para 400 pessoas. O evento tornou-se notório na cidade, atraindo a atenção de atores de teatro amador. Verificando que a cidade não dispunha de espaço suficiente para abrigar as produções da época, vindas dos amadores, o empresário decide construir um teatro, localizado até hoje na Rua Major Diogo, no bairro do Bexiga: o velho edifício passa por uma reforma total, sendo aparelhado com a mais moderna infraestrutura de carpintaria, iluminação e palco. O teatro foi inaugurado com o monólogo “La Voix Humaine”, de Jean Cocteau, declamado em francês por Henriette Morineau e a peça “A Mulher do Próximo”, de Abílio Pereira de Almeida. Percebendo que apenas em um regime amador a instituição não teria futuro, Zampari contrata os melhores entre os amadores e importa o diretor italiano Adolfo Celi, para iniciar as atividades. O conjunto, agora profissional, entra em cena com “Nick Bar... Álcool, Brinquedos e Ambições”, texto de William Saroyan, em 1949. Tal texto retrata um bar próximo ao cais do porto de São Francisco, Estados Unidos, onde se reúnem os fracassados, desesperançados, marginais e vagabundos. Enfocando as consequências do entreguerras e o clima vivido no período da Grande Depressão, o autor situa, em tom lírico, essa pequena população descrente da vida. Retrata, ainda, por meio de estereótipos, um microcosmo da vida americana na época. Celi havia montado o texto na Itália antes de sua vinda ao Brasil e, a partir dele, de certo modo, estabelece o padrão que o TBC segue nos anos subsequentes: um texto interessante, capaz de criar oportunidade para interpretações marcantes, reunindo num ambiente levemente exótico um punhado de figuras humanas assinaladas por algum traço característico. O elenco conta com Cacilda Becker, que vive Kitti Duval, Maurício Barroso, Fredi Kleemann, Carlos Vergueiro, Madalena Nicoll, Célia Biar, Marina Freire, Ruy Affonso, Waldemar Wey e vários estreantes, oriundos dos grupos amadores de então. O italiano figurinista e cenógrafo Aldo Calvo impressiona ao reconstituir o ambiente degradado do enredo. O grande trunfo da encenação, porém, é a homogeneidade do elenco, manejando com habilidade as convenções da teatralidade. O crítico Décio de Almeida Prado anota: “O trabalho dos amadores paulistas já vinha sendo de primeiríssima ordem nesses últimos tempos, mas sempre no sentido da maior naturalidade e discrição possível. Celi modificou ligeiramente tais características, dando ao elenco do TBC um senso de espetáculo, mais teatralidade, uma tonalidade mais agressiva e mais viva, de acordo, aliás, com o caráter da peça. O rendimento que obteve dos atores, nesse ponto, foi excelente”. O sucesso da montagem propicia a abertura de um bar, anexo ao TBC, onde os artistas fazem as refeições ou se reúnem ao fim dos espetáculos, denominado exatamente Nick Bar, logo frequentado pela alta sociedade da cidade. Na parede do fundo, um painel reproduz uma cena da peça e os cardápios, pintados à mão por Noemia Mourão, apresentam desenhos alusivos à montagem. No mesmo ano, Alfredo Mesquita transfere a Escola de Arte Dramática (EAD), criada no ano anterior, para um andar superior do edifício; sendo igualmente aberto o Museu de Arte Moderna (MAM), este com Ciccillo Matarazzo à frente, noutro local. Em 1950, é inaugurada a Companhia Vera Cruz de Cinema, com Zampari capitaneando a inciativa. Tais iniciativas são um bloco de empreendimentos que visam atualizar e reciclar o cenário cultural paulistano. O TBC e a Vera Cruz são geridos por uma sociedade de ações, comportando um conselho administrativo; mas obedecem, de fato, às atuações de seus idealizadores. Com o sucesso do empreendimento, logo o Teatro ganha vida própria, albergando um vasto repertório. Para dar conta das inúmeras produções, Franco Zampari importa novos diretores, tais como Ruggero Jacobbi, Flaminio Bollini e Luciano Salce. Em 1955, entusiasmado com o trunfo e na expectativa de abrir novas frentes, inaugura uma sala no Rio de Janeiro, além de excursionar por várias capitais do país. Os textos são escolhidos em função das dificuldades técnicas oferecidas, mas, igualmente, de olho na bilheteria, no gosto do público. Na temporada de 1949, são apresentados “Arsênico e Alfazema”, de Joseph Kesselring, e “Luz e Gás”, de Patrick Hamilton, ambos dirigidos por Celi, exercícios que antecedem a montagem de “Ele”, de Alfred Savoir; e “O Mentiroso”, de Carlo Goldoni, primeiras direções de Jacobbi na casa. Os tecidos dos figurinos são especialmente confeccionados na tecelagem Matarazzo; armas e adereços são forjados em metalúrgicas, contribuindo para o brilho e o sucesso, sem precedentes, até então. Em 1950, seguem-se “Entre Quatro Paredes (Huis Clos)”, de Jean-Paul Sartre, trazendo à cena o existencialismo como pano de fundo para a atitude amoral dos protagonistas; “Um Pedido de Casamento”, de Anton Tchekhov, ambas direções de Celi; e “Os Filhos de Eduardo”, de Marc-Gilbert Sauvajon, dirigido por Jacobbi e Cacilda Becker, realizações bem feitas que preparam outra grande produção: “A Ronda dos Malandros”, de John Gay, controvertida montagem de Jacobbi, que deixa abruptamente o cartaz e marca o desligamento do diretor da companhia. Ziembinski, considerado o primeiro encenador brasileiro, passa a integrar o conjunto e a dirigir encenações, tais como: “Assim Falou Freud”, de Anton Cwojdinski; “O Homem de Flor na Boca”, de Luigi Pirandello, entre outras. “A Importância de Ser Prudente”, de Oscar Wilde, marca a estreia do diretor Luciano Salce, que encena também “O Anjo de Pedra”, de Teneessee Williams, outra grande e irrepreensível produção. Ainda nessa temporada, numa criação considerada antológica, Cacilda Becker interpreta um garoto de 13 anos em “Pega Fogo”, de Jules Renard, e a peça permanece meses em cartaz. “Paiol Velho”, de Abílio Pereira de Almeida, é um dos raros textos de autor nacional levados a público pela companhia. A montagem de “Seis Personagens à Procura de um Autor”, de Luigi Pirandello, em 1951, marca mais um trunfo de Adolfo Celi, seguida imediatamente de outra produção ambiciosa: “Convite Ao Baile”, de Jean Anouilh, encenação de Luciano Salce. Merecem destaque as novas realizações “Ralé”, de Máximo Gorki, com Maria Della Costa à frente do elenco, única produção em que atua no TBC, e “A Dama das Camélias”, de Alexandre Dumas Filho, grandiosa encenação de Luciano Salce, comemoração dos três anos de existência do TBC, que ocupa o Theatro Municipal, destacando Cacilda Becker como protagonista. Em 1952, a montagem mais bem-acabada é “Antígone”, uma versão de Adolfo Celi que une a tragédia clássica de Sófocles e a versão moderna de Jean Anouilh num programa duplo. São montados muitos sucessos, e o TBC reverbera na comunidade teatral, cultural e intelectual de São Paulo (e do país). A primeira montagem de 1955 é “Santa Marta Fabril S. A.”, de Abílio Pereira de Almeida, sucesso estrondoso de crítica e público. Após um incêndio,que destrói parte dos equipamentos e figurinos, a companhia volta com boas encenações de Ziembinski para “Volpone”, de Ben Johnson, peça que confirma o talento de Walmor Chagas e “Maria Stuart”, de Schiller, que traz um grande embate cênico entre as irmãs Cacilda Becker e Cleide Yáconis. Porém, o mesmo ano marca a saída de um núcleo importante: Tônia Carrero, Adolfo Celi e Paulo Autran, que se desligam do TBC para fundar companhia própria no Rio de Janeiro. Os primeiros sinais de crise começam a aparecer nesse período. Ou porque algumas produções são muito caras e não propiciam retorno, ou porque alguns integrantes, descontentes com a falta de oportunidades internas, resolvem seguir carreiras independentes. Saem da companhia Sergio Cardoso e Nydia Licia; em 1956, saem Paulo Autran, Adolfo Celi, Tônia Carrero e Cleide Yáconis; e, noutra direção, Cacilda Becker leva Walmor Chagas para fundar o Teatro Cacilda Becker (TCB); entre 1957 e 1959, saem Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sérgio Britto, Ítalo Rossi e Gianni Ratto, que fundam o Teatro dos Sete. Em 1958, porém, surge uma realização de sucesso: “Um Panorama Visto da Ponte”, de Arthur Miller, encenação de D’Aversa. No mesmo ano, o Teatro de Arena estreia “Eles Não Usam Black-Tie” e, no ano seguinte, o Teatro Maria Della Costa leva à cena “Gimba”, dois textos de Gianfrancesco Guarnieri, expondo a realidade brasileira com vigor. Um novo momento artístico é delineado no horizonte, atraindo o público, o que aumenta a crise do TBC, não só financeira, mas também artística e de repertório. Apesar da crise, Zampari recebe os prêmios Saci e Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT), pelos dez anos do TBC; recebe, também, o Título de Cidadão Paulistano e a Taça de Ouro do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo. Segundo notícias da época, em 1958 o empresário sofre um espasmo cerebral, afastando-se do teatro. A Vera Cruz, por outro lado, sorve os lucros do TBC. A crise financeira é contornada com a solicitação de uma ajuda financeira do Estado. Zampari chega a retornar à direção do teatro, mas, em 1960, entrega definitivamente a direção à Sociedade Brasileira de Comédia, administradora jurídica do empreendimento, passando a direção artística a Flávio Rangel, o primeiro diretor brasileiro a assumi-la. Recolhido e vendo o afastamento de seus amigos, Franco Zampari morre em 1966, tendo perdido sua imensa fortuna no TBC e na Vera Cruz. Desse modo, com o redirecionamento do repertório, inicia-se a fase nacionalista do TBC. A primeira peça encenada é “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes. Flávio dirige alguns sucessos de impacto, como “A Semente”, de Gianfrancesco Guarnieri, “A Escada”, de Jorge Andrade, ambos de 1961; “A Morte de um Caixeiro Viajante”, de Arthur Miller, “A Revolução dos Beatos”, de Dias Gomes e “Yerma”, de Frederico García Lorca, conduzido por Antunes Filho, em 1962; e “Vereda da Salvação”, de Jorge Andrade, última produção da companhia, em 1964. O TBC transforma o rumo da cena nacional. A partir da experiência da companhia, cujas atividades se estendem por 16 anos, consolida-se o advento da encenação moderna no país: a profissionalização dos atores, a simbiose entre divertimento e cultura sem perder de vista o fator da produtividade aferido pelo faturamento da bilheteria, o treinamento e a formação do ator no sentido de subordinação ao conceito do espetáculo, ou seja, aos parâmetros de encenação (a visão do diretor) e o investimento em uma oficina de produção teatral. Sobra sua importância na cena nacional, declara Miroel Silveira, amigo e fundador da EAD: “Ninguém que não tenha vivido naquele tempo em São Paulo pode imaginar o clima de euforia teatral que havia em relação ao TBC. O público era enorme. [...] Foi a maravilha que devemos indiscutivelmente a Franco Zampari. Ele, a despeito de sua enorme fortuna, não tinha o menor interesse pela bilheteria, somente o nível artístico dos espetáculos empolgava a ele. Seu maior sonho era reunir todo o teatro nacional em um grande truste controlado por ele, com dezenas de elencos atuando simultaneamente em São Paulo, no interior paulista, no Rio de Janeiro e em todo o Brasil. Ele quase conseguiu isso, no entanto sonhou alto demais. [...] É ao Franco que devemos o grande teatro que houve neste período em São Paulo. Além dele, Ziembinski e Paschoal Carlos Magno são nomes que nunca devem ser omitidos quando se fala do teatro brasileiro”. Alberto Guzik (1944 – 2010), crítico, autor e diretor teatral, além de grande pesquisador das atividades da companhia, comenta: “O tempo decorrido começa a derreter as paixões do debate e permite a emersão da verdadeira face dessa casa lendária. O feitio de seu repertório eclético até a extravagância é uma experiência irrepetida no Brasil, nessa intensidade. Em dezesseis anos, foram levadas ao palco da Major Diogo cento e quarenta e quatro obras, vista por quase dois milhões de pessoas. Para isso, como diz Paulo Autran, como diz Elizabeth Henreid, como dizem todos os atores saídos das fileiras do TBC, foi necessário muito trabalho”. Em depoimento a Maria Thereza Vargas (1929), Cacilda Becker destaca: “Até 1956 tudo conseguiu caminhar bastante bem, porém deste ano em diante, Zampari começa a lutar com dificuldades tremendas. [...] O governo não assistia o TBC. Zampari teria merecido apoio irrestrito de qualquer governo do mundo, mas o nosso nunca lhe ofereceu. (...) No enterro de Zampari, Alfredo Mesquita me disse: ‘O teatro brasileiro deve muito a muita gente, principalmente ao velho Ziembinski, a Paschoal Carlos Magno, mas sobretudo a Franco Zampari. Todos eles deram tudo o que tinham, mas Zampari deu mais, deu a vida.’”.
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