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CAPÍTULO CINCO
A ARTE COMO
EXPRESSÃO
o EXPRESSIONISMO
Comumente chamada de expressionista é a arte alemã do início do século xx. O Ex-
pressionismo, na verdade, é um fenômeno europeu com dois centros distintos: o movimento
francês dos fouves ("feras") e o movimento alemão Die Brücke ("a ponte"). Os dois movimen-
(Osse formaram quase simultaneamente em 1905 e desembocam respectivamente no Cubis-
mo na França (1908) e na corrente Der blaue Reiter ("o cavaleiro azul") na Alemanha (1911).
A origem comum é a tendência antiimpressionista que se gera no cerne do próprio Impressio-
nismo, como consciência e superação de seu caráter essencialmente sensorial, e que se mani-
festa no final do século XIX com Toulouse-Lautrec, Gauguin, Van Gogh, Munch e Ensor.
Literalmente, expressão é o contrário de impressão. A impressão é um movimento do ex-
terior para o interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência (sujeito). A expres-
são é um movimento inverso, do interior para o exterior: é o sujeito que por si imprime o ob-
jeto. É a posição oposta à de Cézanne, assumida por Van Gogh. Diante da realidade, o Impres-
sionismo manifesta uma atitude sensitiva, o Expressionismo uma atitude volitiva, por vezes até
agressiva. Quer o sujeito assuma em si a realidade, subjetivando-a, quer projete-a sobre a rea-
lidade, objetivando-se, o encontro do sujeito com o objeto, e, portanto, a abordagem direta do
real, continua a ser fundamental. O Expressionismo se põe como antítese do Impressionismo,
mas o pressupõe: ambos são movimentos realistas, que exigem a dedicação total do artista à
questão da realidade, mesmo que o primeiro a resolva no plano do conhecimento e o segundo
no plano da ação. Exclui-se, porém, a hipótese simbolista de uma realidade para além dos li-
mites da experiência humana, transcendente, passível apenas de ser vislumbrada no símbolo
ou imaginada no sonho. Assim se esboça, a partir daí, a oposição entre uma arte engajada, que
tende a incidir profundamente sobre a situação histórica, e uma arte de evasão, que se conside-
ra alheia e superior à história. Somente a primeira (a tendência expressionista) coloca o proble-
ma da relação concreta com a sociedade e, portanto, da comunicação; a segunda (a tendência
simbolista) o exclui, coloca-se como hermética ou subordina a comunicação ao conhecimento
de um código (justamente o símbolo) pertencente a poucos iniciados.
O Expressionismo nasce não em oposição às correntes modernistas, mas no interior
delas, como superação de seu ecletismo, como discriminação entre os impulsos autentica-
mente progressistas, por vezes subversivos, e a retórica progressista, como concentração da
pesquisa sobre o problema específico da razão de ser e da função da arte. Pretende-se passar
do cosmopolitismo modernista para um internacionalismo mais concreto, não mais funda-
do na utopia do progresso universal (já renegada pelo socialismo "científico"), e sim na su-
228 CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
peração dialética das contradições históricas, começando naturalmente pelas tradições
nacionais. A obra de Cézanne, cuja enorme importância somente então começava a ser
avaliada, colocava sua premissa essencial: se o horizonte da arte coincide com o da cons-
ciência, não podem mais existir perspectivas históricas unívocas. Todavia, a pintura de
Van Gogh também era uma descoberta recente e desconcertante, e Van Gogh identifica-
va a arte com a unidade e a totalidade da existência, sem distinção possível entre sentido
e intelecto, matéria e espírito. No tema da existência insistem os dois maiores pensado-
res da época, Bergson e ietzsche, que exercem uma profunda influência sobre, respec-
tivamente, o movimento francês dos fouves e o alemão da Brücke. Para Bergson, a cons-
ciência é, no sentido mais amplo do termo, a vida; não uma imóvel representação do
real, mas uma comunicação ativa e contínua entre objeto e sujeito. Um único elã vital,
intrinsecamente criativo, determina o devir tanto dos fenômenos como do pensamento.
Para Nietzsche, a consciência é decerto a existência, mas esta é entendida como vontade
de existir em luta contra a rigidez dos esquemas lógicos, a inércia do passado que oprime
o presente, a negatividade total da história.
Se não se pode negar que os movimentos dos fouvese da Brückeainda mantêm relação
com as respectivas tradições figurativas nacionais, apresentando-se o primeiro como fenô-
meno tipicamente francês e o outro como fenômeno tipicamente alemão, é de excluir de
ambos uma intencionalidade nacionalista: toma-se consciência dessas diversas tradições
com o desejo determinado de superá-Ias, para dar origem a uma arte historicamente euro-
péia. A corrente dos fouves não teria nascido se na situação francesa, caracterizada pelo inte-
resse cognitivo e pela orientação fundamentalmente clássica do Impressionismo, não tives-
sem se inserido, no final do século, impulsos de origem nórdica e de acentuado caráter ro-
mântico: a ânsia religiosa (mas não católica, e sim protestante) de Van Gogh e o fatalismo,
a idéia da predestinação, a angústia kierkegaardiana de Munch. A corrente da Brücke não te-
ria nascido se a cultura alemã, no decorrer do século XIX, não tivesse elaborado uma teoria
da arte na qual o Impressionismo se enquadrava pelo que realmente era: não um naturalis-
mo banal, mas uma ü'?,orosa pesquisa sobre o valor da expeüência visual como momento
primeiro e essencial da relação entre sujeito e objeto, fundamento fenomênico, não mais
metafísico, da consciência.
A exigência fundamental, tanto do expressionismo dos fouvesquanto do da Brücke, é a
solução dialética e conclusiva da contradição histórica entre clássico e romântico, entendi-
dos como "constantes", respectivamente, de uma cultura latino-rnediterrânica e de uma
cultura germânico-nórdica. Para Matisse, a personalidade de destaque do grupo dos fouves,
a solução é uma classicidade originária e mítica, universal, mas por isso mesmo privada dos
conteúdos históricos do Classicismo. Para os artistas da Brücke, a solução é um romantismo
entendido como condição profunda, existencial do ser humano: a ânsia de possuir a reali-
dade, a angústia, porém, de ser arrastado e possuído pela realidade que se aborda. Cada uma
das correntes tende a abarcar e resolver dentro de si as exigências da outra; superar os con-
teúdos históricos, contudo, não significa colocar-se fora e acima da história, e sim sentir que
uma história moderna não mais pode, não mais deve ser uma história de nações.
Excluída a referência à herança do passado, a não ser para superá-Ia, a razão histórica
comum dos dois movimentos paralelos é o compromisso de enfrentar resolutamente, com
plena consciência, a situação histórica presente. E é exatamente aqui que se abre a dissensão
com uma sociedade que preferia não a conciliação, mas a agudização da divergência entre
cultura latina e cultura germânica, inclusive para justificar por motivos ideais a disputa pe-
la hegemonia econômica e política na Europa, que logo conduziria à guerra.
CAPfTULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO 229
Henri Matisse: Paisagem em Collioure (1906),
estudo preparatório para La joie de vivre;
tela, 0,38 x 0,45 m. Copenhague,
Srarens Museum for Kunst.
o grupo dos fouves não é homogêneo e não tem um programa definido, a não ser o de se
opor ao decorativismo hedonista do Art Nouveau e à inconsistência formal, à evasão espiritua-
lista do Simbolismo. Em torno de HENRlMATISSE(1869-1954) encontram-se A. MARQUET
(1875-1947), K. VANDONGE (1877-1968), R. DUFY (1877-1953), A. DERAIN(1880-
1954), O. FRlESZ(1879-1949), G. BRAQUE(1882-1963), M. VLAMI CK (1876-1958). Não
fazendo parte do grupo, mas apoiando suas pesquisas, está o escultor A. MAILLOL(1861-
1944): entende melhor do que os outros que a pesquisa de cores de Matisse é também uma
pesquisa plástica, sobre as possibilidades construtivas ou portadoras da cor. Embora não te-
messem a impopularidade ou o escândalo, os fouves não dispunham de uma bandeira ideoló-
gica; sua polêmica social estava implícita em suapoética. Talvez seja por isso que dois pintores
de orientação expressionista tenham permanecido fora do grupo: G. ROUAULT(1871-1958),
o qual, partindo do pauperismo evangélico pregado por Léon Bloy e remetendo-se ao extre-
mismo de protesto de Daumier, denuncia o farisaismo e a hipocrisia da sociedade que se dizia
cristã, e o jovem PABLOPlCASSO(1881-1973), cuja reação moral à mistificação social é atesta-
da pelos quadros dos períodos azul e rosa. Ambos preferem, em vez da violência visual dos fou-
ves,o cunho cáustico e mordaz de Toulouse e o cunho agressivo de Daumier: será Picasso, pre-
cisamente, que colocará o movimento dos fouves em crise e abrirá com o Cubismo a fase deci-
didamente revolucionária da arte moderna.
Embora concebessem a arte como impulso vital, os fouves começam pela abordagem
crítica de uma série de problemas especificamente pictóricos. Para além da síntese realizada
por Cézanne, havia uma única possibilidade: solucionar o dualismo entre sensação (a cor) e
construção (a forma plástica, o volume, o espaço), potencializando a construtividade intrín-
seca da cor. O principal objetivo da pesquisa, portanto, era a função plástico-construtiva da
cor, entendida como elemento estrutural da visão. Ao lado da concepção extensiva de Cé-
zanne, havia a concepção restritiva dos neo-impressionistas, que reduziam a visão a uma
ciência, assim deixando uma ampla margem à visão não-ótica (onírica, simbólica etc.); a ela
Kees van Dongen: Retrato de Fernanda
(I 905); tela, 1 x 0,81 rn. Paris, coleção
particular.
Albert Marquer: Nu no ateliê dito
fouve (I 898); tela, 0,73 x 0,50 m.
Bordeaux, Musée des Beaux-Arts.
André Derain: O Estaque, três árvores
(I 906); tela, 1 x 0,81 m. Toronro,
Museu de Arte Moderna.
Henri Matisse: Nu no ateliê(I898);
óleo sobre papelão, 0,65 x 0,50 m.
Tóquio, Bridgesrone Gallery.
CAPÍTULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÁO 231
7,' <Vi
Pablo Picasso: Pobresà beira-mar (1903);
madeira, 1,05 x 0,69 m. Washingwn,
ational Gallery of Art.
232 CAPÍTULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÁO
opunha-se a concepção jánão cognitiva, e sim ética, de Van Gogh. Um elemento comum a
Cézanne, Signac e Van Gogh era a decomposição da aparência natural, ou do "motivo", para
pôr em evidência o processo de agregação, a estrutura da imagem pintada: com efeito, eles
pintam com pinceladas destacadas, nítidas, dispostas com certa ordem ou ritmo, que dão a
idéia da matéria concreta, da cor e construção material da imagem. A pesquisa dos fouves se
dirige justamente à natureza dessa ordem ou ritmo, que para Cézanne correspondia à ordem
intelectual da consciência; para Signac, à lei ótica dos efeitos de luz; para Van Gogh, ao rit-
mo profundo da existência traduzido em gestos.
O que os fouves querem destacar é a estrutura autônoma, auto-suficiente do quadro
como realidade em si: da mesma forma, para André Gide (o equivalente literário de Matis-
se, apesar de incompreendido pelo pintor), a obra literária é um sistema autônomo e fecha-
do, cuja lei estrutural não consiste na verossimilhança dos eventos narrados nem na coerên-
cia psicológica dos personagens. Se, porém, os fouves procuram combinar a decomposição
analítica de Signac com a decomposição rítmica de Van Gogh, é sinal de que pretendem al-
cançar a unidade entre a estrurura do objeto e a estrutura do sujeito, isto é, estabelecer entre
o interior e o exterior aquela continuidade e circularidade de movimento que, no pensa-
mento de Bergson, constituía o "impulso vital" ou a "evolução criadora". O fato de que tal
unidade só pode ser alcançada na arte, na medida em que a arte é justamente a realidade que
se cria a partir do encontro do homem com o mundo, demonstra a absoluta necessidade da
arte em qualquer contexto social, antigo ou moderno, conterrâneo ou exótico. Uma civili-
zação sem arte estaria destituída da consciência da continuidade entre objeto e sujeito, da
unidade fundamental do real.
Georges Braque: O porto de Antuérpia (1906); •
tela, 0,50 x 0,61 ffi. Ottawa, National
Gallery of Canada.
CAPíTLLO C.I:--:C:O·A ARTE COMO EXPRESSÃO 233
Maurice Vlaminck: Interior de cozinha (1904);
rela, 0,56 x 0,45 m. Paris, Musée
National d'Art Moderne.
Raou! Dufy: Bote com bandeiras (c. 1906);
tela, 0,54 x 0,65 m. Lyon, Musée
des Beaux-Arts.
234 CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
Neste ponto surge o 'problema de Gauguin. Morrera poucos anos antes (1903) no Tai-
ti, para onde fora em busca de uma civilização em que a "criação" artística não fosse anacrô-
nica nem incongruente: assim, considerava a civilização histórica incapaz de produzir e fruir
a arte. Era um juízo severo, mas fundado: onde o devir da sociedade consiste no progresso,
não pode existir criação, pois não se cria a não ser a partir do nada, colocando-se na condi-
ção do primitivo. Que a sociedade contemporânea constituía-se numa sociedade do pro-
gresso, era algo evidente. Assim, havia apenas duas possibilidades: seguir o exemplo de Gau-
guin ou impor a criação artística pela força à sociedade do progresso. Colocada diante da
realidade autônoma, absoluta da obra de arte, a sociedade reagiria positiva ou negativamen-
te, mas não poderia deixar de percebê-Ia: percebendo-a, reconheceria que, se nesse âmbito
é possível reencontrar a condição do primitivo e criar, a lei do progresso não é absoluta. Re-
patriar Gauguin, trazê-l o de volta ao mundo do qual se exilara voluntariamente e que o acla-
mará agora como salvador ou profeta - eis aí outro motivo da poética dos fouves.
Henri Matisse: ia joie de vivre (1906); tela,
1,75 x 2,40 rn. Merion (EUA), The
Barnes Foundation.
Évisível que Ia joie de vivre, de Matisse (1905-6), pretende ser uma imagem mítica do
mundo, como se gostaria que ele fosse: uma idade de ouro em que não há distinção entre os
seres humanos e a natureza, tudo se comunica e se associa, as pessoas se movem livres como
se feitas de ar, a única lei é a harmonia universal, o amor. Num-gesto que pode suscitar ad-
miração, Matisse recupera a grande decoração classicista de Puvis de Chavannes, mas liber-
tando-a dos estorvos do Classicismo histórico ou neo-humanístico, expandindo-a numa
classicidade universal. Decoração? Evidentemente, pois a arte é feita para decorar: não o
templo, o palácio real ou a casa dos senhores, e sim a vida dos homens. Matisse chega a esse
puro lirismo, porém, através da crítica histórica. Retoma o tema clássico e "mediterrânico
d'As grandes banhistas, de Cézanne, e combina-o com o tema do mitologismo primitivo e
oceânico de Gauguin. Elimina da visão cézanniana tudo o que ainda era profundidade es-
pacial, solidez plástica dos corpos; chega a evitar a continuidade da superfície, pois o plano
é agora uma delimitação do espaço. Assim reencontra, para além do próprio Cézanne, a cor
límpida, transparente, brilhante do Impressionismo, mas já não condicionado pela vividez
da sensação visual. Como a imagem não é mais um "reflexo" da coisa, ela possui a mesma
CAPITULO CINCO A ARTE COMO EXPRESSÃO 235
realidade da coisa. No universo das imagens, não cabem as alegorias, as metáforas, os sím-
bolos, pois nada tem um significado definido, nem pode ocorrer uma transposição de sig-
nificados. Tampouco é possível fazer uma distinção entre belo e feio, a qual só pode ser apli-
cada às coisas pelo prazer ou pela dor que provocam no homem, mas não às imagens, que
estão além de qualquer possibilidade de juízo. Como Gide, Matisse saboreia todas les nour-
ritures terrestres; escolher seria renunciar.
Parece difícil conciliar a classicidade, o impressionismo universal de Matisse com a
qualificação de expressionista. Mas a expressão da alegria é tão expressão quanto a expressão
da dor de viver, e pode-se expressar a alegria de viver sem representar a vida. Matisse não traz
ao quadro o equilíbrio, a simetria da natureza. Seu procedimento é inteiramente aditivo: ca-
da cor sustenta, impulsiona, acentua as outras num interminável crescendo. Cada cor, no
contexto, é muito mais do que seria isoladamente, como puro matiz, e o quadro só se com-
pleta quando todasas cores alcançaram o limite do espectro e concordam entre si em seus
valores máximos. São zonas lisas, luminosas, expandidas; a fronteira entre as zonas não é li-
Paul Cézanne: As grandes banhistas (1898-1906);
tela, 2,08 x 2,49 rn. Filadélfia,
Museum of Art.
236 CAPÍTULO CINCO A ARTE COMO EXPRESSÃO
mite, e sim novo arremesso, de forma que todas as cores colorem por si todo o espaço. s0-
mando-se uma às outras; as linhas não são contornos, mas arabescos coloridos que ~
ram a circulação, a irradiação cromática de todo o tecido pictórico. É um discurso sem ve -
bos nem substantivos, apenas adjetivos; todavia, não é retórico, porque os adjetivos não são
elogio às coisas (que não existem), e sim efusão da alma. Se existem músicas sem pala TaS..
por que não haveria de existir uma pintura sem coisas? Mas, nesse caso, evidencia-se que a
classicidade da pintura de Matisse não é senão a superação de um romantismo de fundo. a
inversão polêmica da melancolia romântica. Além de Cézanne, o artista de quem Mati e se
sente idealmente mais próximo não é Ingres, e sim Delacroix; será Picasso, seu grande anta-
gonista, que recolocará abertamente a questão de Ingres. Porém Picasso, como vimos, é um
moralista, não pode evitar o gesto autoritário do juízo; deve distinguir e escolher entre belo
e feio, entre bem e mal.
Foi a irrupção imprevista, subversiva, mas certamente calculada, de Picasso que em
1907, determinou a crise dos fouves. Até aquele momento, ele havia permanecido à mar-
gem da situação: limitara-se a revelar, com o refinamento intelectual de seu desenho, a be-
leza ambígua e de certo modo deslocada, como divindades exiladas e incógnitas, dos seres
que a sociedade exclui de sua ordem constituída (acrobatas, arlequins, vagabundos), por
não entender ou por temer sua nobreza inata. Agora, com Les demoiselles d'Avignon, apre-
senta-se contestando a mais ambiciosa obra de Matisse, Ia joie de vivre, demonstrando que
um quadro, como qualquer acontecimento ou empreendimento humano, pode se alterar
e mudar de significado no próprio ato de-se fazer. Se a pintura é existência, ela está expos-
ta a todos os riscos e eventualidades da existência. Podia parecer um gesto extremista tar-
dio de filiação ao grupo dos fouves: é, porém, o primeiro gesto da revolução que terá seu lí-
der no próprio Picasso, o Cubismo. Diante do fato novo e arrasador, os fouves são obrigado
a fazer escolhas decisivas, e ocorre a diáspora do grupo. Matisse, como comandante honro-
samente derrotado, retira-se da luta: até o final de seus dias, será o grande senhor da pinru-
ra, sempre sensível a tudo o que acontece, mas decidido a não mais se deixar envolver no jo-
go das correntes. Quase propositalmente, ele contrapõe a altíssima e inalterável qualidade
de sua pintura, agora acima das vicissitudes históricas, à agitação frenética, ao transformis-
mo estilístico de Picasso, que quer a todo preço ser protagonista e árbitro da história, sem-
pre pronto a tomar partido, a decidir bruscamente as situações difíceis.
Dufy segue, em tom menor, o exemplo de Matisse; afasta-se, dedica-se ao canto lírico
ostenta seu talento, mais brilhante do que profundo, improvisando variações de grande ele-
gância sobre o tema do arabesco cromático. Maillol, que partira de Renoir e encontrara o
equivalente plástico da cor de Matisse, também se contenta com o equilíbrio alcançado en-
tre a plenitude da forma e a espacialidade solar da "natureza mediterrânica": se inquestiona-
velmente libertou o classicismo da escultura da versão acadêmica restrita, não conseguiu
porém, libertar a escultura do classicismo e convertê-Ia numa arte moderna. Vlaminck e
Friesz, agora que o público e o mercado procuram o "moderno", abandonam a pesquisa en-
gajada em troca de um sucesso fácil. Van Dongen procura, através dos expressionistas ale-
mães de que se aproxima, recuperar a incisividade perdida dos fouves, mas utiliza-a apenas
para temperar com uma ponta de amargura a mundanidade de seus retratos da "bela socie-
dade" parisiense. Quanto a Braque, que entre osfouvesfora o mais fiel a Cézanne, capta ime-
diatamente o sentido da situação: alinha-se sem hesitação ao lado de Picasso, e com ele se
porá à frente do nascente movimento revolucionário, o Cubismo.
CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO 237
Die Brücke é uma formação mais compacta, uma verdadeira comunidade de artis-
tas, com um programa escrito, não muito diverso daquele do Werkbund. Seus principais
expoentes são: E. L. KIRCH ER (1880-1938), E. HECKEL (1883-1970), E. NOLDE
(1867-1956), K. SCHMIDT-RoTTLUFF(1884-1976), O. MÜLLER(1874-1930) e o escul-
tor E. BARLACH(1870-1938).
A situação alemã era confusa: para além do raso naturalismo acadêmico estimulado pe-
lo ambiente conservador da Alemanha guilhermina, pálidos reflexos do Impressionismo
francês se mesclavam às veleidades simbolistas e pré-expressionistas da Secessão de Munique.
Die Brücke propõe a união dos "elementos revolucionários e em efervescência" para consti-
tuir uma frente comum contra o "Impressionismo". Este se refere mais às insignificantes re-
percussões alemãs do que aos impressionistas franceses, fazendo-se uma exceção a Cézanne,
cujo compromisso construtivo e rigor quase filosófico são reconhecidos pela Brücke. Toda-
via, a oposição à visão impressionista é profunda. Ao realismo que capta, contrapõe-se um
realismo que cria a realidade. Para ser criação do real, a arte deve prescindir de tudo o que
preexiste à ação do artista: é preciso recomeçar a partir do nada. A experiência de mundo do
artista não difere, em sua origem, da de qualquer outra pessoa. É este o material sobre o qual
opera o artista: os temas dos expressionisras alemães geralmente estão ligados à crônica da vi-
da cotidiana (a rua, as pessoas nos cafés etc.). Em suas obras, porém, percebe-se uma espécie
de incômodo, de indisfarçada rudeza, como se o artista nunca tivesse desenhado e pintado
antes daquele momento. Por que se recusa roda linguagem constituída, por que a expressão
se dá de modo deliberadamente penoso, excessivo, sem nuances? a origem da linguagem,
não existem palavras que tenham um significado, mas apenas sons que assumem um signifi-
cado. O Expressionismo alemão pretende ser precisamente uma pesquisa sobre a gênese do
ato artístico: no artista que o executa e, por conseguinte, na sociedade a que ele se dirige.
Max Pechsrein: Natureza-morta (19 r3);
tela. Karlsruhe, Sraarliche Kunsthalle.
Karl Schmidt-Ronluff: Mulherfazendo a toalete
(1915); tela. Hamburgo, Kunsrhalle.
238 CAP[TULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
Se no princípio não está o verbo (a representação), e sim a ação, o primeiro problema
é o fazer, a técnica. Para os impressionistas, assim como para os clássicos, a técnica era o meio
com que se representa uma imagem. Mas, se a ação deve ser criativa, nem mesmo a imagem
seja ótica, seja mental, pode preexistir à ação: a imagem não é, ela se faz, e a ação que a faz
comporta um modo de fazer, uma técnica. É um ponto fundamental, que explica a orienta-
ção ideológica, tipicamente populista do movimento. A técnica não é nada de pessoal ou in-
ventado, ela é trabalho. Sendo antes de tudo trabalho, a arte está ligada não à cultura espe-
culativa ou intelectual das classes dirigentes, e sim à cultura prático-operacional das classes
trabalhadoras. Assim, se a arte realiza a aspiração criadora do trabalho humano, com tanto
maior razão ela se distingue do trabalho mecânico, que depende da racionalidade ou da ló-
gica da cultura intelectual; em outros termos, se o trabalho industrial obedece a leis racio-
nais, o trabalho do artista como momento supremo da cultura do povo é necessariamente
não-racional. Nasce, pois, da experiência de uma longa práxis, que acabou por se traduzir
em atitude moral.
Assim se explica a importância predominante atribuída às artes gráficas, especialmen-
te à xilogravura, mesmo em relação à pintura e à escultura: não se compreende a estrutura
da imagem pictórica ou plástica dos expressionistas alemães, a não ser que se procurem suas
raízesnas gravuras em madeira. A técnica da xilogravura é arcaica, artesanal, popular, pro-
fundamente arraigada na tradição ilustrativa alemã. Mais do que uma técnica no sentido
moderno da palavra, é um modo habitual de expressar e comunicar por meio da imagem. E
o importante é justamente esta identidade entre expressão e comunicação: a expressão não
é uma misteriosa mensagem que o artista anuncia profeticamente ao mundo, mas sim co-
municação de um homem a outro. a xilogravura, a imagem é produzida escavando-se uma
matéria sólida, que resiste à ação da mão e do ferro, a seguir espalhando-se tinta nas partes
em relevo, e finalmente prensando a matriz sobre o papel. A imagem conserva os traços des-
sas operações manuais, que implicam atos de violência sobre a matéria, na escassez parcimo-
Ernsr Ludwig Kirchner: Bailarinas (1914);
tela, 0,95 x 0,96 m. Turim, coleção
particular.
Erich Heckel: Passeio no Grunewaldsee(1911);
tela, 0,71 x 0,80 ffi. Essen,
Museum Folkwang.
CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÁO 239
Emil olde: A lenda de santa Maria Egipciaca
(1912), retábulo esquerdo; 0,86 xl m.
Hamburgo, Kunsthalle,
Orro Müller: Casal na praia (1914);
cola em cores, 0,87 x 1,20 m.
Colônia, coleção particular.
Ernst Barlach: O vingador (1914);
bronze, 0,88 x 0,44 m. Ratzeburg,
coleção Nikolaus Barlach.
240 CAP!TULO CINCO A ARTE COMO EXPRESSÃO
niosa do signo, na rigidez e angulosidade das linhas, nas marcas visíveis das fibras da madei-
ra. Não é uma imagem que se liberta da matéria, é uma imagem que se imprime sobre ela
num ato de força. Ela também mantém este caráter na pintura, onde se liga à pasta densa e
recoberta da tinta a óleo ou à mancha alastrante da aquarela, e ainda se mostra na ausência
de matizes e esfumaduras, na violência brutal das cores, e na escultura, onde forma uma uni-
dade com o bloco compacto da madeira talhada com a goiva ou da pedra lascada a martela-
das. A cor na pintura, o bloco (em geral de madeira) na escultura não constituem um meio
ou uma linguagem para manifestar as imagens, mas uma matéria que, sob a rude ação da
técnica, torna-se imagem.
Na medida em que a obra materializa diretamente a imagem, não é necessário que o
pintor escolha as cores segundo um critério de verossimilhança: ele pode realizar suas figu-
ras em vermelho, amarelo ou azul, da mesma maneira que o escultor é livre para executar
suas obras em madeira, pedra ou bronze. É um processo de atribuição de significado através
da cor, análogo àquele pelo qual, na imagerie popular, o diabo é vermelho ou verde, o anjo é
branco ou azul-celeste. O atributo implica um juízo, uma postura moral ou afetiva em rela-
ção ao objeto a que se aplica; como o juízo se apresenta à percepção juntamente com o ob-
jeto, ele se manifesta como deformação ou distorção do objeto. A deformação expressionis-
ta, que em alguns artistas chega a ser agressiva e ofensiva (por exemplo, Nolde), não é defor-
mação ótica: é determinada por fatores subjetivos (a intencionalidade com que se aborda a
realidade presente) e objetivos (a identificação da imagem com uma matéria resistente ou
relutante). Como os fouves, os expressionistas alemães adotam como ponto de referência a
arte dos primitivos. Nos fetiches negros, porém, não vêem os símbolos de mitos remotos, as
criações de uma civilização mais autêntica. Vêem o trabalho humano em seu estado puro ou
de plena criatividade. O escultor tomou um tronco de árvore e, entalhando-o, impôs-lhe
um significado, transformou-o num deus: não, note-se, a imagem de um deus, e sim um
deus em pessoa. Ele não representou o não-visível através do visível, nem revelou o signifi-
cado oculto do tronco: com a força mágica de sua técnica, obrigou a totatidadedo sagrado a
se identificar com um .fragmento da realidade. É um processo paradigmático, mas ambíguo.
Ambígua, aliás, é toda a poética dos expressionistas alemães, e não se pretende fugir à ambi-
güidade, pois a própria condição existencial do homem é considerada ambígua. A deforma-
ção expressionista não é a caricatura da realidade: é a beleza que, passando da dimensão do
ideal para a dimensão do real, inverte seu próprio significado, torna-se fealdade, mas sempre
conservando seu cunho de eleição. Devido a essa beleza quase demoníaca da cor, que fre-
qüenternente vem acompanhada por figuras ostensivamente feias (pelo menos segundo os
cânones correntes), a imagem adquire uma força de peremptoriedade categórica, como se
realmente já não pudesse existir pensamento para além dela.
A poética expressionista, que, no entanto, permanece sempre fundamentalmente idea-
lista, é a primeira poética do feio: ofeio, porém, não é senão o belodecaído e degradado. Con-
serva seu caráter ideal; assim como os anjos rebeldes conservam, mas sob o signo negativo
do demoníaco, seu caráter sobrenatural- a condição humana, para os expressionistas ale-
mães, é precisamente a do anjo decaído. Há, portanto, um duplo movimento: queda e de-
gradação do princípio espiritual ou divino que, fenomenizando-se, une-se ao princípio ma-
terial; ascensão e sublimação do princípio material para unir-se ao espiritual. Esse conflito
ativo determina o dinamismo, a essência dionisíaca, orgiástica e ao mesmo tempo trágica, da
imagem e seu duplo significado de sagrado e demoníaco.
A polêmica social dos expressionistas alemães não se limita à renúncia do artista à sua
condição de intelectual burguês, em favor da condição de trabalhador, de homem do povo.
Egon Schiele: Mulher deitada (1914); lápis
e têmpera. 0,48 x 0.31 m.
Galleria Galatea de Turim.
CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO 241
A burguesia é denunciada como responsável pela inautenticidade da vida social, pelo fracas-
so das iniciativas humanas, por aquilo que, para ietzsche, constituía a total negatividade
da história. Se para existir é preciso querer existir, lutar para existir é sinal de que há no mun-
do forças negativas que se opõem à existência. A existência é autocriaçâo, mas, se o mecanis-
mo do trabalho industrial é anticriativo, por isso mesmo é destrutivo. Destrói a sociedade,
dilacerando-a em classes exploradoras e exploradas; destrói o sentido do trabalho humano,
separando concepção e execução; acabará por destruir, com a guerra, toda a humanidade.
Recomeçar tudo desde o princípio significa refazer ex novo a sociedade. Assim se entende
por que os expressionistas alemães insistem obsessivamente no tema do sexo: é a relação
homem-mulher que funda a sociedade, e é justamente isso que a sociedade deforma e torna
perverso, negativo, alienante. A sociedade industrial se debate sem saída na alternativa en-
tre a vontade de poder e o complexo de frustração: apenas com a condenação total do traba-
lho não-criativo imposto à humanidade é possível brotar uma nova civilização. Somente a
arte, como trabalho criativo, poderá realizar o milagre de reconverter em belo o que a socie-
dade perverteu em feio. Daí o tema ético fundamental da poética expressionista: a arte não
é apenas dissensão da ordem social constituída, mas também vontade e empenho de trans-
formá-Ia. É, portanto, um dever social, uma tarefa a cumprir.
A Áustria pertence à órbita cultural alemã, mas seu tempo histórico tem um ritmo mais
lento; no longo crepúsculo do império habsburguês, a sociedade hierárquica se dissolve sem
que se vislumbre o início de uma nova sociedade. E. SCHIELE(1890-1918) desenvolve em
sentido expressionista, com uma violência tétrica e desesperada, a melancolia de Klimt: é
um mergulho nas profundezas da psique, uma busca da morte na própria raiz do ser da sen-
sualidade; é a primeira vez que a crueza carnal do sexo ingressa na pintura. Não por acaso,
um grande desenhista e ilustrador, A. KUBI (1877-1959), explora o domínio vago e ilimi-
tado do sonho no exato momento em que, na mesma Viena, Sigmund Freud fundamenta-
va sua pesquisa psicanalítica sobre o estudo da atividade onírica.
242 CAPfTULOCl 'CO·AARTECOMOEXPRESSÃO
O. KOKOSCHKA(1886-1980), partindo de Klimt, logo entra em contato com os ex-
pressionistas alemães; sua pesquisa, porém, é crítico-analítica,em profundidade, sem per -
pectivas de um resgate "criativo". Para atingir o nível da "vida", é necessário corroer as cama-
das formadas por tudo o que é habitualmente chamado de "a vida", chegar até onde a exis-
tência individual se dissolve no "todo". Também para Kokoschka o problema da sociedade
nasce com a relação originária entre homem e mulher: mas o amor ~ a morte são cornuni-
cantes, e ainda por tal caminho o indivíduo retorna à indistinção do "todo" (a arte como re-
torno ao ventre do ser é igualmente o tema da poética de Rilke, o grande poeta austríaco). A
cor-signo se rebela contra qualquer ordem; não aceita a perspectiva nem o tom, todavia ce-
de inopinadamente a impulsos de ternura ou cólera, de alegria ou tormento. O impressio-
nismo, para ele, não é a autenticidade da sensação, e sim a autenticidade e liberdade do exis-
tir. Libertário e, no fundo, anárquico, Kokoschka não acredita na atual nem numa futura
ordem social: o mundo é uma multidão de indivíduos, um turbilhão de átomos. Nada se
cria, nada se destrói, nada do que foi pode não ser. A realidade é caótica, mas, precisamente
por não existir uma estrutura que os contenha, os fragmentos de que é composta são mais
vitais. Um quadro é uma miríade de sinais coloridos, que parecem se agitar sobre a tela; ca-
da um é um momento vivido, que não se apresenta, porém, como apagada lembrança, e sim
como sensação interior imediata. Os retratos desse período são extraordinariamente carac-
terizados, as paisagens são "retratos" de locais muito específicos; o pOnto em que a realida-
de precípua daquela pessoa ou daquele local se anima e adquire vida é o mesmo em que ela
se estilhaça e se desagrega no movimento molecular do todo. Assim, a pintura de Kokoschka
se liga, por um lado, à dissolução formal do Rococó austríaco e, por outro, ao Irnpressionis-
mo; com a ressalva de que já não há distinção entre sujeito e objeto, o mundo que se vê é o
mundo em que se está, move-se à nossa volta, movemo-nos nele. Já não existe o problema
da forma ou da imagem: o primeiro problema a ser colocado por Kokoschka é o do signo,
como transcrição imediata de um estado sensorial ou afetivo. Tal anticlassicismo maneiris-
ta constitui também o limite de sua estatura pictórica, que não é a de um EI Greco, e sim a
de um Magnasco.
Lançando uma ponte entre o Expressionismo e o Impressionismo, a pintura de Kokos-
chka teve ampla repercussão na Europa, especialmente após a Primeira Guerra Mundial,
quando ele se dedica a representar com um alegorismo frenético a desintegração do mitolo-
gismo clássico na fúria desvairada do mundo moderno. Prestava-se a ser interpretada como
uma nova e persuasiva proposta européia: historicamente fundada naquele tardio Barroco
que, levando toda linguagem formal constituída ao extremo da dissolução, estabelecera, se
não um início de união, ao menos uma possibilidade de livre circulação entre as culturas fi-
gurativas européias. De fato, foi assim que a interpretou C. SOUTI E (1894-1943), expres-
sionista em Paris e um dos maiores expoentes da heterogênea École que reuniu pintores de
todos os países (muitos deles judeus) naquele que, com todo o direito, era tido como o cen-
tro irradiante de uma cultura figurativa cosmopolita.
Die Brückedissolveu-se em 1913, quando o novo grupo Der blaue Reiter já havia ini-
ciado a pesquisa em sentido não-figurativo. Quase se opondo a essa orientação menos enga-
jada na problemática social, agudizada pela derrota na guerra, forma-se a corrente, ainda ti-
picamente expressionista, da Neue Sachlichkeit ("nova objetividade"), que quer apresentar
uma imagem atrozmente verdadeira da sociedade alemã do pós-guerra, sem os véus ideali-
zantes e mistificadores da "boa" pintura ou literatura. A ela pertencem M. BECKMA.'_·
(1884-1950), O. Drx (1891-1968) e G. GROSZ(1893-1959). Beckmann é um pintor de
formação classicista que aprecia as grandes e retóricas composições alegóricas: um Hodler
CAPfTULOCINCOAARTECOMO EXPRESSÃO ~43
Egon Schiele: AI/to-retrato (1912); lápis,
aquarela e rêmpera sobre papel,
0,50 x 0,31 m. Coleção particular.
Oskar Kokoschka: A esposa do vento (1914);
tela, 1,81 x 2,20 m. Basiléia,
Kunsrmuseurn.
244 CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
Alfred Kubin: O peixe boi; tela. Linz,
Oberõsrerreichisches Landesmuseum.
Chaim Soutine: Retrato de Maria Lani
(1929); rela, 0,71 x 0,58 m. Nova York,
Museum ofModern Arr.
George Grosz: Funcionário do Estado para
as pensões dos mutilados de guerra (1921);
tela, 1,15 x 0,80 m. Berlirn, Staatliche
Museen, N ationalgalerie.
CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRE.5SÃO 245
Otto Dix: Trincheira nos Flandres (1934-6);
técnica mista sobre tela, 2 x 2,50 m. Berlim,
Staarliche Museen, Narionalgalerie.
Max Beckmann: A noite (1918-9);
tela. Düsseldorf Kunstsammlung
ordrhein-Wesctalen.
246 CAPiTULO C10iCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
trinta anos depois, que canta não mais a ascensão, mas a apocalítica queda da humanidade.
Inverte a visão: os deuses decaídos (o tema da Gõtterdammerung áe Nietzsche) tornam-se
monstros, mas sua fealdade conserva a grandeza e o fascínio da beleza perdida. Dix foi para
a pintura o que Remarque, o autor de Nada de novo no front, foi para a literatura: o expo i-
tor lúcido, impiedoso, quase fotográfico das misérias, das infâmias, da macroscópica
estupidez da guerra. O processo de desmistificação da classe dirigente alemã é aprofundado
por um artista explicitamente político, o desenhista e caricaturista George Grosz. De 1916
a 1932, quando a perseguição nazista o obriga a se refugiar nos Estados Unidos, conduziu
uma luta política sem quartel, atacando e denunciando com rude sarcasmo as classes diri-
gentes, militares e capitalistas, responsáveis e exploradoras da guerra e da derrota. Ele não
precisa recorrer à invectiva; a fria análise da situação basta para revelar, sob a máscara da res-
peitabilidade burguesa, a perversão dos instintos, a sombria luxúria de violência e de poder.
Utiliza os mais modernos processos de comunicação visual (inclusive o Cubismo e o Futu-
rismo) para sintetizar na mesma figura os aspectos contraditórios de uma socialidade exte-
rior e uma associalidade de fundo; é o primeiro a desvendar no autoritarismo político, na
avidez pelo poder, na corrida à riqueza os sintomas da neurose, de uma loucura perigosa e
talvez fatal, de um censurável embrutecimento do mundo. Sua obra demandava o desdém
e a fúria contra a burguesia ávida e cruel, posteriormente degenerada no nazismo. Nos Es-
tados Unidos, sem o estímulo da revolta política, seu veio se esgota.
A arquitetura expressionista se desenvolveu no clima agitado do pós-guerra alemão. Era
preciso reconstruir uma sociedade em ruínas: as forças democráticas queriam uma economia
de paz e cooperação internacional; as forças reacionárias queriam uma economia que prepa-
rasse um novo esforço bélico, a revanche. Os arquitetos percebem que representam o espíri-
to "construtivo" da nova Alemanha democrática, tomam consciência da importância de sua
condição de técnicos responsáveis. Agrupam-se, organizam-se, inserem-se no processo revo-
lucionário que vinha se desenvolvendo no país (e que será decapitado pelo nazismo), isto é
seguem o exemplo da "vanguarda" artística russa, que vinculara o processo de renovação da
arte ao processo revolucionário da sociedade. Institui-se um Conselho do Trabalho para a Ar-
te, forma-se o Grupo de Novembro (Novembergruppe), núcleo de pesquisa e experimentação
da construção civil e, ao mesmo tempo, elemento de pressão para conseguir que o Estado
apóie as novas experiências, voltadas para um urbanismo capaz de responder às exigências
de vida e de trabalho do povo, e não subordinado ao lucro dos especuladores, A alma do gru-
po é BR OTAUT(1880-1938); participam do movimento praticamente todos os arquite-
tos "modernos", desde os mais velhos, como Poelzig e Behrens, aos mais jovens, como E.
MENDELSOH (1887-1953) e H. SCHARO (1893-1972). A orientação do Grupo de No-
vembro pode parecer utópica, arbitrária, aberrante - a Alemanha do pós-guerra necessita-va de algo muito diferente das fantasias arquitetõnicas, como as de Finsterlin, de imprová-
veis "cidades alpinas", de imaginários "teatros de massa" onde finalmente se realizaria o so-
nho, mais wagneriano do que expressionista, da "obra de arte total", síntese unânime de to-
das as artes. Na verdade, o Grupo de Novembro teve vida breve: seus homens de ponta, como
Gropius e o próprio Taut, logo se colocam à frente do rigoroso racionalismo arquitetõnico ale-
mão. É importante, porém, que, nos anos imediatamente posteriores à guerra, tenha-se recor-
rido à invenção e à criação como antídoto à depressão geral, tenha-se aberto o campo à expe-
rimentação formal mais audaz, tenha-se procurado utilizar todas as novas sugestões que ha-
viam se manifestado no âmbito do modernismo arquitetõnico, incluído ·Gaudí.
A Torre Einstein (1919-23), de Erich Mendelsohn, é a chave da arquitetura expressio-
nista. O arquiteto determinou a função específica do edifício (observatório astronômico e
Hans Scharoun: Ediflcios da
Siemensstadt (1929) em Berlim.
CAPfTULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO 247
centro de pesquisa científica); a partir da função, modelou o bloco de alvenaria exatamente
como um escultor; a partir do gesto da figura, modela as massas plásticas da estátua. E sem
dúvida há uma evocação à escultura, talvez à síntese plástico-dinâmica de Boccioni. O edi-
fício já não é concebido como uma combinação de planos, e sim como um bloco unitário
plasmado e escavado. "O edifício [...] constituía uma integração entre maquinário e am-
bientes úteis, uma espécie de corpo de alvenaria e cimento." (F.Borsi) Do mesmo modo, em
suas construções urbanas, Mendelsohn realiza soluções formais que não só correspondem à
função, como também expressam-na enquanto movimento vital integrado ao dinamismo da
realidade social. Ele passa da análise dos diversos temas funcionais à determinação de sua
síntese, da função unitária que abrange e resolve as funções particulares em seu dinamismo;
e da síntese funcional passa à definição de uma forma que a transfira para o espaço, que afi-
nal é o espaço da vida social, a cidade. Pode-se talvez censurar em Mendelsohn um tom às
vezes enfático ou exclamativo, um gosto pela "personagem" arquitetônica que, sob certos as-
pectos, aproxima-o de Beckmann; não é justo, porém, censurá-Ia por ter centrado seu inte-
resse na realidade objetual-funcional do edifício individual, negligenciando o problema ur-
banista geral. Na verdade, Mendelsohn tende a transformar o edifício funcional num pro-
tagonistado cenário urbano, assim substituindo a representarividade estática dos "monu-
mentos" pela evidência do dinamismo funcional.
Ainda que não tenha existido uma verdadeira corrente expressionista, a experiência ex-
pressionista realizada por alguns dos maiores arquitetos modernos, nos anos imediatamente
seguintes à guerra na Alemanha, teve notável importância para o desenvolvimento posterior
da arquitetura. Ela deslocou o problema da funcionalidade do plano da pura técnica constru-
tiva e da resposta a exigências práticas para o plano de uma funcionalidade visual ou comu-
nicativa. À concepção da arquitetura que interpreta uma realidade natural ou social dada, ela
contrapôs a concepção da arquitetura que a modifica, isto é, instaura uma nova realidade. Es-
rabeleceu na invenção um valor integrativo do puro projetar sobre dados objetivos. Abriu à ar-
quitetura européia a possibilidade de relações mais profundas com a arquitetura de Wright.
248 CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
Hans Scharoun: Casas populares
(c. 1913) em Berlim.
Bruno Taut: Escadaria interna do
pavilhão em vidro para a exposição do
Werkbund, Colônia.
CAPITULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO 249
Bruno Taur: Pavilhão em vidro para a exposição
do Werkbund, Colônia (1914).
Erich Mendelsohn: Lojas Schocken
(1928) em Chernnitz-Berlim.
250 CAP[TULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
Erich Mendelsohn: Desenho para a Torre
Ei nstei nem Porsdam.
Erich Mendelsohn: Torre Einstein
(1919-23) em Porsdam.
_\ R T E G R Á F I C A
O EXPRESSIONISMO
Orto M üIIer: Três cabeças de moça
(1921); lirografia.
Edvard Munch: Melancolia
(1896); lirografia.
CAPiTULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO 251
Heinrich Campendonck: [maior COIII
dois nus (1918); xilografia.
ErnSI Luduvig Kirchner: Capa de Die Brücke
com retrato de Schmidt-Rottluff
(1909); xilografia.
,~..~~,~
~\'
1 Ir Gatos(l914);Karl Schmidt-Rott li .
v;J~~_"h"
. H k I· Duas mulheres (1 91 O);Erich ec e.
xilografia.
R . Magos (c. 1913);Emil Nolde: Os eis
I;.~~_"h" p~ r~_PO
A.NDRÉ DERAIN
J1ULHER DE COMBINAÇÃO
ERNST LUDWIG KIRCHNER
J1ARCELLA
fu afinidades e as divergências entre o movimento
francês dos fauves e o movimento alemão da Brücke
surgem na comparação entre Mulher de combinação,
de DERAIN,e Marcella, de KIRCHNER.O motivo e o
interesse psicológico pelo motivo são análogos: as
duas figuras sentadas estão inclinadas para a frente;
os corpos mal são mostrados, para dar destaque à ca-
beça em primeiro plano. Também análogo é o modo
de simplificar a imagem: largas zonas de cores lisas
nas figuras e no fundo, com contornos azuis esque-
máticos e pesados, Apesar das visíveis analogias, po-
rém, a estrutura dos dois quadros é muito diferente:
ainda impressionista na pintura de Derain, nitida-
mente expressionista na de Kirchner.
Derain quer carregar a sensação visual com uma
-orte emotividade psicológica: o dado sensorial de-
ve se traduzir em estímulo sensual. Ele recorre à in-
tensa violência de Van Gogh e à penetrante descri-
rividade de Toulouse-Lautrec, mas a estrutura do
quadro continua a se basear no princípio impressio-
nista dos contrastes simultâneos. Há poucas cores
iundamentais, graduadas de modo variado: verde e
azul (cores frias), vermelho (cor quente). fu varia-
,ões tonais são destacadas, culminando no branco da
camisola: o rosa forte da parede devolve o vermelho
amejante dos cabelos; paralelamente, no registro
dos tons frios, o verde-azul do fundo devolve o tur-
quesa das meias. São cores que traduzem não uma
ensação visual, mas uma reação afetiva do artista:
Derain quer demonstrar que o interesse psicológico
amplia os registros cromáticos muito além das possi-
o ilidades visuais. Aquele vermelho-fogo e aquele
quesa são os dois tons-chave da composição das
ores o que é demonstrado pelo fato de insistirem
o eixo médio do quadro, na brusca charneira for-
mada pelos braços e pernas.
Derain utiliza a justaposição de tons quentes e
- ios para impedir que um dos dois registros domi-
CAPfTULOCINCOAARTECOMO EXPRESSÃO 253
ne a composição: exagera a expressão psicológica
chegando à caricatura, mas não pode evitar um
ponderado equilíbrio tonal. Ele precisa sustar a
efusão dos tons, pois a cor também é desenho: é fá-
cil notar que os largos contornos azuis, nos braços
e no peito, têm uma função plástica, modelando
marginalmente os volumes. A contraposição tonal
em que se constrói o quadro culmina na intensa ex-
pressividade do rosto: é todo olhos e boca, mas os
olhos são turquesa como as meias, a boca vermelha
como os cabelos.
As mãos são grandes, e a que se destaca sobre a
sombra azul-celeste da camisa chega a ser exagera-
da. Essa larga mancha rósea era necessária para
equilibrar (cor quente sobre cor fria) o azul-celeste
da camisa; no entanto, Derain a emprega também
para acrescentar uma nota de vulgaridade (ainda
Toulouse) à graça ligeira da figura. Contraste vi-
sual e contraste psicológico: para Derain, o Expres-
sionismo fauveé apenas uma intensificação do Irn-
preSSlOOlsmo.
Sobre um tema muito parecido, Kirchner faz um
quadro amargo, quase desagradável. Mas sua estru-
tura, embora muito menos erudita que a de De-
rain, é nova. Aqui também o quadro é elaborado
sobre poucos tons fundamentais: vermelhos e ama-
relos, verdes e azuis. E aqui também eles culminam
numa nota branca, o laço nos cabelos. Todavia, os
tons, que no quadro de Derain sustentavam-se
mutuamente num luminoso crescendo, aqui pare-
cem se subtrair e se retrair, recusando a luz. O cor-
po, que no quadrode Derain era maliciosamente
dissimulado e sugerido pela nuvem da camisola,
aqui é quase destruído, é apenas algo nu, frágil, do-
lorosamente contraído sob o rosto emagrecido, de-
vorado pela enormidade dos olhos e da boca, pela
massa dos cabelos soltos. Derain utilizava os con-
trastes simultâneos para colocar a figura num esta-
do de equilíbrio, ao passo que Kirchner procura
colocá-la num estado de não-equilíbrio, que cria
no observador uma sensação de mal-estar, quase de
angústia. Os contornos já não intermedeiam a re-
lação entre figura e fundo, mas cortam até o âmago
como tesouradas; os vermelhos e amarelos do fun-
do se põem à frente, quase destroem o róseo das
carnes. A mancha de sombra nos cabelos e em vol-
ta do pescoço é verde-escura, é como que uma zo-
254 CAPÍTULOCh CO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
André Derain: Mulher de combinação (1906);
1 x 0,81 ffi. Copenhague, Starens
Museurn for Kunsr.
CAPíTULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO 255
Ernst Ludwig Kirchner: Marcella (1910);
tela, 0,71 x 0,61 m. Estocolmo,
Narionalmuseum.
256 CAPíTULO CINCO A ARTE COMO EXPRESSÃO
na vazia, um buraco. Ela, assim como os contornos
dos braços, parece escavada à força no plano com-
pacto da cor. É claro que estes signos, o próprio re-
corte da figura, chegaram à pintura a partir da xilo-
gravura: conservam a dureza do sulco escavado pelo
ferro na superfície fibrosa e resistente da madeira. O
próprio achatamento e a esquematização da imagem
parecem trair sua origem de imagem em negativo,
que se torna visível pela estampa, pela prensagem. É
verdade que Kirchner também deve seu modo de
compor a Matisse, com vastas zonas de cores lisas,
mas a insistência sobre as linhas retas e os ângulos, de
preferência às curvas, converte a expansão da ima-
gem cromática matissiana num efeito contrário de
contração. Aliás, Kirchner chegou a Matisse por uma
via que não a do Impressionismo - na origem dessa
melancólica figura de adolescente inquieta, encon-
tra-se Munch, com sua angústia existencial, seu
complexo erótico-trágico de sensualidade e culpa.
A figura de Derain é uma imagem da percepção
projetada sobre uma tela, a seguir comentada com
ênfases ora galantes ora irônicas. A figura de Kirchner
é uma imagem que o pintor exprime ou extrai penosa-
mente de si, um fragmento vivo de sua própria exis-
tência. É, em suma, algo inquietante, quase mons-
truosamente vivo, que o pintor introduz no mundo,
comunica: é exclusivamente essa descarga de tensão
volitiva que caracteriza a estrutura expressionista, em
face da estrutura ainda representativa dos impressio-
nistas, dos fouves e do próprio Cubismo.
EDVARD MUNCH
PUBERDADE
A agressividade da imagem do Expressionismo nzs-
ce antes do realismo simbólico de MUNCHque da ri r-
ma exasperada e dilacerada de Van Gogh, o q e se
percebe pela comparação deste quadro com a ~'~ -
cella, de Kirchner.
Por sua vez, a imagem realístico-simbólica - =
Munch nasce em Paris, após 1885, a partir da am
tendência de superar a pura visualidade do Im ...
sionismo. Mas não é o simbolismo de Redon que' -
teressa ao jovem pintor norueguês. Neste quadro. ~
de Gauguin que deriva o ternada menina que tem -
revelação da vida" e, nua no ambiente nu, olha co
perturbada ansiedade para o futuro, para seu destino
de mulher; por outro lado, é de Toulouse que p
vém o desenho penetrante e delgado, que surpree -
de não tanto os movimentos, e sim o frêmito nervo-
so, o estremecimento secreto do corpo. Há apenas o
essencial: a moça, a cama, a sombra da moça na pare-
de. A figura é realista, com mãos e pés grandes e
pouco avermelhados, como freqüentemente oco
com os adolescentes; delicados, como de menina -
o peito e os braços, e plena, já de m~lher, é a curva d
quadris e da bacia. O rosto indeciso e amedronta
indica a perturbação da moça pela transforma. -o
que sente se realizar em seu próprio ser. Realista é
sombra, projetada pela iluminação frontal, ape
levemente deslocada para a esquerda; todavia
sombra agigantada, que nasce do próprio corpo
menina, toma forma e avulta como um fantas
possui um claro sentido simbólico, é a prefiguraçã
da vida futura. A cama também é realista, vê-se
marca, sente-se a tepidez deixada pelo corpo; no en-
tanto, certamente se refere aos que, para Munch -
os dois pólos da existência, o amor e a morte.
A passagem do estágio de menina para o de _
lher, cujo destino obrigatório é amar, procriar e ar-
rer, não é para Munch um acontecimento fisiop .
lógico, mas um problema social: na literatura
dinava, de Ibsen a Strindberg, um dos temas
freqüentes é precisamente a condição social da =_
lher, o profundo vínculo que a liga à natureza e 2-
pécie, mas limita ou impede sua participação na --i-
CAPITULO CINCO A ARTE COMO EXPRESSÃO 257
Edvard Munch: Puberdade (1895); tela,
1,50 x 1,10 m. Oslo Nasjonalgalleriet.
258 CAPiTULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
intelectual e ativa da sociedade moderna. Até aqui, o
quadro de Munch poderia ser a ilustração de um dra-
ma ou de um romance, e, pela sensação de ansiedade
que emana da figura para o espaço vazio, o primeiro
sinal da influência do existencialismo de Kierkegaard
na arte.
O fato realmente importante não é a descrição,
inquestionavelmente aguda, de uma situação psico-
lógica; é a concepção extremamente nova do valor,
da função do símbolo, que é sempre o signo de uma
proibição, de um tabu social, a maneira de significar
algo que não pode ser dito em termos claros. É isto
que diferencia essa irmã européia, ou melhor, nórdi-
ca, das ingênuas primitivas de Gauguin, a qual teme
seu destino, sabe que deve se mover entre censuras e
interdições que reprimiram seus instintos naturais e
limitaram sua existência social. O símbolo não é al-
go além da realidade; é algo de mono que se mescla
à vida. A sociedade, dizia Ibsen, é como um navio com
um cadáver a bordo, e o cadáver é o símbolo-tabu.
Aos vários simbolismos da época, do espirirualis-
mo de Redon ao alegorismo de Bõcklin, Munch res-
ponde que não se escapa da realidade evadindo-se no
símbolo; a realidade é inteiramente simbólica, não
Edvard Munch: Quatro moças na ponte
(1905); tela, 1,26 x 1,26111. Colônia,
Wallraf-Richarrz Museurn.
há nada mais real do que o símbolo. O Amor é o se-
xo, a Morte é o cadáver ou o ataúde; a Sociedade é a
louca, a Palavra é som inarticulado, grito. Na realida-
de, nada possui a estabilidade, a clareza, o significado
certo da forma; tudo possui a precariedade, a instabi-
lidade, a inconsistência do evento. Ou da imagem.
Note-se nesta figura a extraordinária fluidez das li-
nhas, a desenvoltura do signo, a ausência de partidos
contrastantes de sombra e luz, de cores fones - tu-
do, mesmo as menores notas gráficas ou cromáticas,
é uma alusão à continuidade do tempo, ao transcur-
so da vida, à inevitabilidade do destino. Mas, justa-
mente por estar cheia de símbolos inexpressos, a ima-
gem é inquietante, agressiva, perigosa, como a som-
bra gigante e ameaçadora do quadro que, afinal, é
ainda a imagem de uma imagem. A imagem deve não
tanto impressionar o olho, mas penetrar, atingir pro-
fundamente; talvez seja por isso que a concepção rea-
, lista da imagem de Munch teve conseqüências deci-
sivas, ainda mais do que na pintura dos expressionis-
. tas alemães, naquela técnica da imagem que pode ser
considerada a mais moderna e eficaz, o cinematógra-
fo (principalmente o cinema expressionista e a dire-
ção de Dreyer e Bergman).
Edvard Munch: ogrito (c. 1893); madeira,
0,83 x 0,66 m. Oslo, Munch-Museet.
HENRI MATISSE
A DANÇA
Esta grande composição, uma das maiores obras-
primas de nosso século, é a resposta serena, mas deci-
didamente negativa, de MATISSEao Cubismo triun-
fante. A arte (parece ele dizer) ainda pode penetrar as
verdades supremas do ser, as infinitas harmonias do
Universo - é talvez a única atividade humana que
ainda pode fazê-lo, e as perspectivas positivistas prá-
ticas da sociedade contemporânea não podem impe-
di-lo. O quadro tem um significado mítico-cósrnico:
o solo é o horizonte terrestre, a curva do mundo; o
céu tem a profundidade azul-turquesados espaços
interestelares; as figuras dançam como gigantes entre
a terra e o firmamento. Ao Cubismo que analisa ra-
cionalmente o objeto, Matisse contrapõe a intuição
sintética do todo. É este precisamente o quadro da
síntese, da máxima complexidade expressa com a
máxima simplicidade. É a síntese das artes. A músi-
ca e a poesia confluem na pintura, e a pintura é con-
cebida como uma arquitetura de elementos em ten-
são no espaço aberto; é síntese entre a representação
e a decoração, o símbolo e a realidade corpórea, en-
tre o volume, a linha e a cor. Todavia, a síntese ainda
ode ser um cálculo racional; é preciso ir além, iden-
tificá-Ia com uma beleza nunca vista e quase mons-
truosa, sobrenatural, para além dos diferentes natu-
ralismos do belo clássico e do belo romântico. E de-
'e ser um belo que também abarque e resolva em si o
u contrário, o feio, pois um belo que tivesse um
contrário não seria universal: o mesmo módulo de
aeleza deve valer para as figuras, a terra e o céu. Por-
zanto, o belo não pode ser uma forma finita, e sim
contínua e rítmica: as figuras se alongam e se dobram
o ritmo que as transforma, e sua beleza, cósmica e
-o física, não se dissocia da beleza do espaço em que
~ movem. Assim como não pode haver um equilí-
rio estático, não pode haver um ritmo regular e uni-
- nne; o ritmo deve se gerar no quadro (veja-se o pé
- uma das figuras que calca a terra, como se esta fos-
- elástica, e o círculo sempre interrompido e reto-
do dos braços) e ascender progressivamente a um
- Imax de máxima intensidade, levando todos os va-
lores (cores e linhas) a um vértice onde pode ser cap-
CAPÍTULO CINCO A ARTE COMO EXPRESSÁO 259
tado apenas por uma sensibilidade estimulada além
de seus próprios limites. Matisse, agora, opera para
além de todos os registros, de todas as gamas, de to-
das as combinações a que o olhar humano está acos-
tumado pela experiência da natureza: na dimensão
ultra-sensível, mas não transcendente, das ultraco-
res. Tal era sua intenção; prova-o uma carta, em que
afirma ter procurado "para o céu um belo azul, o
mais azul dos azuis (a superfície é pintada até a satu-
ração, vale dizer, até um ponto em que finalmente
emerge o azul, a idéia do azul absoluto), e o mesmo
vale para o verde da terra, para o vermelhão vibrante
dos corpos".
EMIL OLDE
ROSAS VERMELHAS E AMARELAS
OSKAR KOKOSCHKA
CHAMONIX, MONTE BRANCO
Entre os expressioriistas alemães, NOLDE é um
dos mais empenhados: nutre fortes interesses reli-
giosos e morais, e em seus quadros com figuras a de-
formação chega por vezes à violência da diatribe e
do grito. E, no entanto, entre os expressionistas, é o
que mais se aproxima dos impressionistas, pela ne-
cessidade de fixar seus impulsos interiores em ima-
gens imediatamente perceptivas, que não deman-
dem qualquer esforço de interpretação. Este quadro
é quase uma homenagem a Monet. Mas nas obras
pintadas por Monet, nos primeiros anos do século
xx, a sensação visual tende a se idealizar como visão
poética; nos quadros de olde, ela se torna pesada e
exacerbada. Como que por uma fúria reprimida, as
flores se tornam mais vermelhas e mais amarelas, e a
relva mais verde. O empaste da cor é denso, ao mes-
mo tempo sombrio e brilhante, como se cintilasse na
escuridão. Cada timbre é forçado, como se quisesse
prevalecer sobre os outros. As pinceladas seguem o
andamento das pétalas das rosas, das folhas da relva,
como que para reconstruir a partir da sensação visual
não a idéia da coisa, mas a própria coisa. A deforma-
ção de Nolde não é uma representação a que se acres-
centa um juízo ou um comentário, geralmente rude;
Henri Matisse: A dança (I 91O); tela, 2,60 x 3,90 m.
Leningrado, Museu Ermitage.
Henri Marisse: Ícaro (I 944-7); ilustração paraJazz,
papier découpé, técnica afim à colagem,
executada pelo artista nos seus últimos anos.
262 CAPíTULO CINCO· A ARTE COMO EXPRESSÃO
é um processo de reificação e, simultaneamente, de
degradação ou corrupção voluntária da imagem.
KOKOSCHKA,austríaco, formou-se em Viena nos
anos da Secessão; assim como o arquiteto Loos, ele
reage em sentido "europeu" à requintada decadência,
lenta e exaurida, de uma sociedade que, ligada a ins-
tituições políticas antigas em processo de esboroa-
mento, parece decidida a deixar-se morrer com elas.
Liga-se aos pintores alemães da Brücke, mas também
se volta para os impressionistas, ou melhor, o Expres-
sionismo de seus primeiros anos cede gradualmente
a um Impressionismo não mais perceptivo, que po-
deria ser dito interior ou mnemônico.
Aliás, logo abandona a Áustria, viaja muito e aca-
ba por se estabelecer em Londres; mas sua pintura,
cheia de curiosidade pelos vários aspectos do mundo,
deixa transparecer uma "paixão da vida" que, por sua
vez, oculta a ansiedade, a torturante idéia da morte.
Como em El Greco, que se mantém como seu mode-
lo ideal, o apego sensual às coisas e a aspiração à
transcendência se identificam: a transcendência não
é senão um dissolver-se nas coisas.
Nesta tardia paisagem impressionista, há apenas a
pincelada rápida e esvoaçante que dispersa por todas
as partes pequenas notas de cores puras: carmim, ver-
de-esmeralda, azul-cobalto, amarelo. A primeira coisa
a chamar a atenção é a imensidão da montanha que
domina a aldeia abaixo; Kokoschka, o último dos ro-
mânticos, ainda tem em mente a poética da montanha
do Sturm und Drang. As cordilheiras cobertas de bos-
ques se empinam, erguem-se velozes em direção às
neves resplandecentes; paralelas e repetidas, como
em certos fundos de Ícones bizantinos que ainda
guardam traços em El Greco. A imagem é vasta, mas
frágil, diáfana, dilacerada como um cortinado ao
vento, composta por curtas frases pictóricas extrema-
mente vívidas, porém logo interrompidas, e a seguir
retomadas como numa repercussão de ecos. A luz do
crepúsculo que se aproxima é um turvo fulgor no ho-
rizonte, mas se decanta em fios cintilantes de ouro
nas neves e no céu. Raros rasgos de azul sobre o cas-
tanho dos cumes tingem o ar já escuro do vale. Os
bosques são de um verde sombrio. O vermelho dos
telhados se reencontra solto por toda parte, em pe-
quenos toques avulsos. É como se, com o calar da
noite, a natureza devesse se desintegrar, dissolver-se
num caos pleno de animação: esses fragmentos es-
voaçantes de cor são como que a emanação das coisas
que, antes de se dissolverem, cedem sua luz ao espa-
ço. Brilham no espaço como as primeiras estrel
num céu ainda claro.
Em Nolde, intensificação da sensação visual até a
reconstituição das coisas; em Kokoschka, desintegra-
ção das coisas em infinitos átomos luminosos e colo-
ridos, de extrema mobilidade.
São dois aspectos típicos da crise da representação
ou do objeto em dois artistas que, no entanto, per-
manecem claramente figurativos.
É a prova evidente de que a busca de novas estru-
turas de imagem não é um ato arbitrário, um CT o
subversivo: um quadro como esta paisagem de
koschka, de 1927, comparado às obras conternporà-
neas de Kandinsk:y ou Klee, de Picasso ou Braque,
mostra-se historicamente superado, apesar de s
qualidade ainda elevada, assim como, por volta e
1450, uma pintura de Angelico ou um relevo e
Ghiberti, não obstante sua altíssima qualidade, mo -
trarn-se historicamente superados em comparação
uma pintura de Piero della Francesca ou um relevo
de Donatello.
CAPÍTULO SEIS
A ÉPOCA DO
FUNCIONALISMO
U R B A N I .s M 0, A R QUI T E T U R A,
DESENHO INDUSTRIAL
A Primeira Guerra Mundial determinou, evidentemente, uma diminuição no ritmo
da construção civil, tão florescente na primeira década do século. Na retomada, os constru-
tores se encontraram diante de uma situação social, econômica e tecnológica profundamen-
te modificada. A guerra acelerou por toda parte o desenvolvimento da indústria, tanto em
sentido quantitativo quanto no sentido do progresso tecnológico. Indiretamente, produziu-
se em decorrência um grande crescimento das populações urbanas. A classe operária, cons-
ciente de ter contribuído e sofrido com o esforço bélico mais do que qualquer outra classe,
vem adquirindoum peso político decisivo; ademais, a revolução bolchevique demonstrou
que o proletariado pode conquistar e manter o poder; na arte, com seus movimentos experi-
mentais e de vanguarda, ela pode realizar uma transformação radical não só da estrurura e da
finalidade, como também da figura social do artista. A burguesia profissional, por sua vez,
está se transformando em classe de técnicos dirigentes.
Devido à transformação quantitativa e qualitativa de seus conteúdos e seu dinamismo
funcional, como também ao crescente desenvolvimento da mecanização dos serviços e trans-
portes, a estrutura da cidade já não responde às exigências sociais.
O problema urbanista, que antes da guerra se apresentava como prefiguração quase
utópica de uma situação que ocorreria no futuro, agora se apresenta com extrema gravida-
de e premência. Possui um aspecto funcional: a cidade é um organismo produtivo, um
aparelho que deve desenvolver certa força de trabalho, e, portanto, precisa se libertar de
tudo o que emperra ou retarda seu funcionamento. Possui um aspecto social: a classe ope-
rária é, a partir de agora, o componente mais forte da comunidade urbana, já não poden-
do ser considerada pelo critério de um instrumento manobrável e irresponsável. Possui
um aspecto higiênico, em sentido fisiológico e psicológico: a cidade-fábrica é insalubre de-
vido às emanações que a invadem e à densidade da população; além disso, é um ambiente
opressor, psicologicamente alienante. Possui um aspecto político: para proporcionar à ci-
dade certo coeficiente de agilidade e funcionalidade, isto é, para utilizá-Ia, é necessário ti-
rá-Ia das mãos de quem a explora simplesmente em benefício próprio. Objetivamente, o
que impediu e ainda hoje impede a adequação da estrutura à função urbana, e é a causa
primeira da desordem das cidades, é a especulação imobiliária. Possui, enfim, um aspecto
tecnológico: não só a tecnologia industrial substitui a técnica tradicional ou artesanal das
construções, como também, se o problema da arquitetura é colocado, como o é necessa-
264 CAPITULO SEIS· A tPOCA DO FU 'CIONALISMO
riarnente, em escala urbanista e, portanto, de construção civil em série, tal problema não
pode ter solução fora da tecnologia industrial.
Esse conjunto de fatores modifica radicalmente a figura profissional do arquiteto: antes
de ser um construtor, deve ser um urbanista, projetar o espaço urbano. Imediatamente se de-
termina uma nítida distinção entre os inúmeros oportunistas que se põem a serviço da espe-
culação imobiliária e ajudam a piorar as condições da cidade, e os poucos conscientes de sua
função, sua responsabilidade, sua dignidade de profissionais ou técnicos, que tentam opor
projetos de utilização racional à exploração descontrolada dos terrenos. Já não se trata da ve-
lha distinção entre empíricos e teóricos, entre artistas e engenheiros-e sim de uma distinção
de ordem moral, segundo a qual os arquitetos que se colocam concretamente o problema
funcional da cidade são os únicos a empreender uma livre pesquisa e a alcançar resultados es-
teticamente válidos.
Se os oportunistas a serviço do capital imobiliário visam à exploração do solo urbano se-
gundo os procedimentos operativos tradicionais, opondo-se, portanto, aos novos métodos
de projeto, às novas tecnologias e às novas formas arquitetõnicas (exceto por imitá-Ias banal
e superficialmente, quando entram em moda), essa sua oposição não nasce, como no passa-
do, de um verdadeiro apego às tradições: no século xx, sempre que se ouve falar na necessi-
dade de defender a "tradição clássica" da arquitetura, pode-se ter a certeza matemática de que
se está falando de má-fé, e de que o que se pretende defender é o direito à exploração especu-
lativa indiscriminada, em detrimento do dever de utilizar funcionalmente o solo e o aparato
urbano. O classicismo adotado como arquitetura oficial do fascismo na Itália e do nazismo
na Alemanha não tem o menor fundamento na arquitetura clássica, pressupondo, pelo con-
trário, uma total ignorância desta. A luta pela arquitetura moderna foi, por conseguinte,
uma luta política, mais ou menos inserida no conflito ideológico entre forças progressistas e
reacionárias; prova-o o fato de que, lá onde as forças reacionárias tomaram o poder e sufoca-
ram as forças progressistas (com o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, o predomínio
da burocracia de Estado sobre os movimentos revolucionários na URSS), a arquitetura mo-
derna foi reprimida e perseguida. A arquitetura moderna se desenvolveu, em todo o mundo,
segundo alguns princípios gerais: 1) a prioridade do planejamento urbano sobre o projeto ar-
quitetônico; 2) o máximo de economia na utilização do solo e na construção, a fim de poder
resolver, mesmo que no nível de um "mínimo de existência", o problema da moradia; 3) a ri-
gorosa raciona/idade das formas arquitetõnicas, entendidas como deduções lógicas (efeitos)
a partir de exigências objetivas (causas); 4) o recurso sistemático à tecnologia industrial, à pa-
dronização, à pré-fabricação em série, isto é, a progressiva industrialização da produção de
todo tipo de objetos relativos à vida cotidiana (desenho industrial); 5) a concepção da ar-
quitetura e da produção industrial qualificada como fatores condicionantes do progresso so-
cial e da educação democrática da comunidade.
No âmbito do que podemos chamar de ética fundamental ou deontologia da arquite-
tura moderna, distinguem-se diversas formulações problemáticas e diversas orientações, li-
gadas às diversas situações objetivas, sociais e culturais. Assim, podem-se distinguir: 1) um
racionalismo formal, que possui seu centro na França e tem à frente Le Corbusier; 2) um ra-
cionalismo metodológico-didático, que possui seu centro na Alemanha, na Bauhaus, e tem
à frente W Gropius; 3) um racionalismo ideológico, o do Construtivisrno soviético; 4) um
racionalismo formalista, o do Neoplasticismo holandês; 5) um racionalismo empírico dos
países escandinavos, que tem seu máximo expoente em A. Aalto, 6) um racionalismo orgâ-
nico americano, com a personalidade dominante de F. L. Wright.
CAPITULO SEIS· A ÉPOCA DO FUNCIONALISMO 265
21G
Le Corbusier: Figuração do Modulor.
I. LE CORBUSIER(1887-1965), tal como Picasso, do qual pode considerar-se o equiva-
lente na arquitetura, foi não só um grande artista, mas também um magnífico agitador cul-
tural, uma inesgotável fonte de idéias, um farol. Teórico, polemista combativo e brilhante,
propagandista incansável, com sua obra de arquiteto e de escritor (que ocupa um lugar de
destaque na literatura artística contemporânea), ele transformou o problema do urbanismo
e da arquitetura num dos grandes problemas da cultura do século xx. Para alguns, sua obra
arquitetõnica parecia destituída de uma coerência intrínseca e unívoca: qual a relação que
pode existir entre aVilla Savoye e a capela de Ronchamp? Há uma relação, ainda que Le Cor-
busier, como Picasso, tenha várias vezes mudado de estilo. A coerência reside em sua condu-
ta, e ela é, antes de mais nada, política, no sentido mais elevado do termo: uma grande polí-
tica, generosa e esclarecida, do urbanismo e da arquitetura.
\) 'mnõamento êlo racionaiisrno êleLe ~omusler e cartesiano, e-tepropnc °Qeoara; seu
desenvolvimento é iluminista, de tipo rousseauniano. O horizonte é o mundo, mas o centro
da cultura mundial, para Le Corbusier, continua a ser a França. Considera a sociedade fun-
damentalmente sadia, e sua ligação com a natureza originária e ineliminável; o urbanista-ar-
quiteto tem o dever de fornecer à sociedade uma condição natural e ao mesmo tempo racio-
nal de existência, mas sem deter o desenvolvimento tecnológico, pois o destino natural da
sociedade é o progresso. Portanto, nenhuma hostilidade de princípio em relação à indústria:
bastará pedir aos industriais (que naturalmente fingirão não ouvir) para fabricarem menos
canhões e mais habitações.
A forma artística é o resultado lógico do "problema bem formulado": os navios a vapor,
os aviões, cuja forma corresponde exatamente à função,são belos como o Partenon. Eviden-
temente, o problema bem formulado é o que traz todos os dados em ordem, e cuja solução
não deixa incógnitas nem resíduos. Reduzindo os dados a um denominador comum, restam
apenas dois: de um lado, a natureza; de outro, a história ou a civilização. Eis a equação que é
necessário resolver, convertendo em simetria o que parece ser uma contradição. Como no
266 CAPÍTULO SEIS· A ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
Le Corbusier: Estudo para o plano urbanista
de São Paulo (Brasil) (1929).
Le Corbusier: Estudo para o plano
urbanista de Montevidéu (1929).
domínio da razão pura não subsistem contradições, não pode haver oposição entre o objeto-
edifício e o objeto-natureza, entre coisa e espaço. São entidades semelhantes, redutíveis uma
à outra com simples relações de proporções. Le Corbusier encontrará a fórmula, pitagórica:
o homem como medida de todas as coisas, a medida humana, o Modulor. O edifício não atra-
palhará a natureza aberta colocando-se como um bloco hermético; a natureza não se deterá
à soleira, entrará na casa. O espaço é contínuo, a forma deve se inserir, como espaço da civi-
lização, no espaço da natureza. Quando jovem, Le Corbusier foi pintor (com seu verdadeiro
nome, Jeanneret, lançou com Ozenfam o manifesto pós-cubista do Purismoi: sua concepção
de espaço contínuo, inseparável das coisas que circunda, atravessa e penetra, sendo também
por elas penetrado, de fato deriva do Cubismo. Não é abstração nem formalismo: a constru-
ção ideal do espaço torna-se a construção material do edifício. A casa como volume erigido
sobre pilares (pilotis), de maneira que se possa circular por baixo dela, sem que o movimento
da cidade seja interrompido pelos blocos maciços das construções nem canalizado para os
cunículos sufocantes das ruas; a cidade que entra nas vias internas dos edifícios com seu re-
duzido tráfego de lojas e serviços para a vida cotidiana; os apartamentos não estratificados, e
sim encaixados uns nos outros em múltiplos níveis; os jardins nas sacadas, a natureza que en-
tra na construção: eis outras idéias que passaram de Le Corbusier para a construção civil cor-
rente, mas que tinham sido deduzidas pelo arquiteto a partir da concepção cubista do espa-
ço contínuo, plástico, praticável, de diversas direções e dimensões. Le Corbusier desdobra es-
se espaço em todas as escalas de grandeza.
Na escala urbanista: são os projetos urbanistas que elabora ou apenas esboça para várias
cidades da Europa (Genebra, Antuérpia, Barcelona, Marselha, Paris), da África (Argel), da
América do Sul (Buenos Aires, Rio de Janeiro, Bogotá), da Índia (Chandigarh, a única intei-
ramente realizada); ou as enormes "unidades habitacionais" de Marselha e Nantes, verdadei-
ras cidades-casas, nas quais se combinam a exigência de intimidade individual e a de "viver
junto" com a comunidade.
Na escala da construção civil: são os edifícios públicos ou destinados à assistência social,
as escolas, os museus, os prédios de apartamentos, as casas. Na escala de objeto: como a ca-
pela de Ronchamp, que é um perfeito objeto plástico, uma escultura ao ar livre, ou como os
móveis de metal projetados para a indústria.
Le Corbusier é um clássico, como Picasso: tudo se resolve na clareza da forma, e esta re-
solve tudo, pois a forma correta é, ao mesmo tempo, a forma da realidade e da consciência,
Le Corbusier: Esquema construtivo do
Maison Dom-Ino (1914)
CAPITULO SEIS· A ÉPOCA DO FU 'CIONALISMO 267
Le Corbusier: Unité d'Habitation (1946)
em Marselha.
Le Corbusier: Vista do
Plan Voisin, detalhe (1925).
268 CAPITULO SEIS, A ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
~
~ ,-~~,.," .. ~ -".'-
. --, .-- .-. '!~., . - '.
Le Corbusier: Projeto de uma cidade contemporânea de
três milhões de habitantes (J 922)
-=--.:..,.:
Le Corbusier: Projeto do pavilhão suíço na
Cité Universitaire de Paris (I930).
da natureza e da história. Contudo, sua grande figura humana tem um limite: o de ter pre-
tendido ser um benfeitor da humanidade, tê-Ia sido (mais otimista, sob esse aspecto, do que
Picasso, que se fez defensor, paladino em armas, da humanidade em perigo). Sentiu-se inves-
tido de uma missão histórica, dedicou-se a ela com um empenho lúcido e corajoso que seria
mesquinho não admirar; mas afinal, apesar de seu enorme e desprendido interesse pela vida
social, sempre se sentiu acima dela, um salvador. Para cada problema, tinha a solução corre-
ta já pronta, e sempre era a mais simples, porque o complicado não é o raciocínio, e sim o pre-
conceito. Todavia, no entreguerras e com a evidente tendência do capitalismo mundial em
se transformar de sistema econômico em sistema de poder, a humanidade não precisava de
um são Jorge que lutasse com o dragão, mas de alguém que a ajudasse a tomar consciência de
seus dilaceramentos, de seus males internos, e a encontrar em si mesma a força e a vontade
de resolvê-Ias. Não precisava, em suma, que lhe dissessem "não se mexa, eu cuido disso", e
sim "vamos, cuide de suas coisas".
CAPITULO SEIS· A tPOCA DO FUNCIONALISMO 269
lI. No final da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha derrotada encontra-se numa
condição política, social e econômica trágica. Está dilacerada por conflitos de classe: de
um lado, os militares e os grandes capitalistas que quiseram a guerra, antevirarn grandes
lucros com ela, e agora atribuem a culpa pelo fracasso ao derrotisrno da classe operária, in-
vocando o rearmamento e um Estado forte que desencadeie uma nova guerra, de revan-
che; de outro lado, o povo, que arcou com todo o peso da guerra e agora é o único a sofrer
as conseqüências da derrota. Os intelectuais reivindicam e realizam uma rigorosa autocrí-
tica da sociedade e também da cultura alemã: exaltara-se excessivamente o mito da nação,
do Estado ético, da missão de domínio e guia atribuída pelo destino à raça germânica e a
seus nibelúngicos paladinos. Agora é necessário opor a este irracionalismo político, que le-
va à exasperação das contradições sociais e à violência, um racionalismo crítico, que diale-
tize todos os contrastes e resolva-os pelo fio da lógica e não pelo da espada. Prova de que o
funcionalismo arquitetõnico alemão se insere nessa situação histórica é o fato de ter nasci-
do a partir do Expressionismo do Grupo de Novembro (1918), no qual se refletiam simul-
taneamente a consciência da catástrofe e a ânsia, não por uma vingança brutal, e sim por
um renascimento ideal. O próprio W GROPIUS(1883-1969), que logo a seguir tomará a
frente do racionalismo alemão, participou da crise do utopismo expressionista; o que pa-
rece ser um frio rigor de seu programa é, na verdade, uma lúcida defesa da consciência a
partir da desordem e do desespero da catástrofe histórica.
Como Le Corbusier, Gropius deve ser visto em seu duplo aspecto de artista e animador
cultural. Mas Le Corbusier é um vulcão de idéias, ao passo que Gropius é o firme defensor
de uma idéia, de um programa, de um método. Le Corbusier dita leis, lança declarações, dis-
cute, argumenta, persuade; Gropius funda (1919) e dirige uma escola exemplar, a primeira
escola "democrática". Le Corbusier leva a cabo uma política inteiramente sua, a política da
razão que leva naturalmente a sociedade a construir, e não a destruir; Gropius analisa a si-
tuação e faz sua escolha, coordena seu programa de ação com o programa de uma corrente
política claramente determinada, a social-democracia. Como arquiteto, Le Corbusier riva-
liza com os grandes pintores de sua época, pois o ideal clássico da forma é universal; ora se
aproxima de Braque, ora de Gris, ora de Picasso; Gropius não crê na universalidade da arte,
mas convoca em torno de si, na Bauhaus de Weimar, os artistas mais avançados (Kandinsky,
Klee, Albers, Moholy-Nagy, Feininger, Itten), obtém a colaboração deles, convence-os de
que o lugar do artista é a escola, sua tarefa social o ensino. Entende-se a razão disso: a finali-
dade imediata é a de recompor entre a arte e a indústria produtiva o vínculo que unia a arte
ao artesanato; a arte, portanto, constitui um dos dois dados do problema, e não é absoluta-

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