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GRADUAÇÃO 2014.2 DIREITO DOS CONTRATOS AUTOR: JOSÉ GUILHERME VASI WERNER Sumário Direito dos Contratos I – ROTEIRO DE AULA ........................................................................................................................................... 4 Aula 1 — Apresentação do curso e do Sistema de Avaliação. O que é o contrato? ............................................ 4 Aula 2 — Contratos. Histórico. Contrato e vontade. Contrato e negócio jurídico. Princípios formadores. ........ 5 Aula 3 — Teoria contratual hodierna. Revisão do papel da vontade. Novos princípios. Liberdade contratual e Função social ..................................................................................................................... 20 Aula 4 — Obrigatoriedade. Relatividade e estipulação a favor de terceiros. .................................................. 37 Aula 5 — Boa-fé ......................................................................................................................................... 38 Aula 6 — Consensualismo e formação do Contrato no Direito Civil e no Direito do Consumidor. Fases da formação do contrato. ........................................................................................... 41 Aula 7 — arras. Contrato com pessoa a declarar. Contrato preliminar. Forma e prova. Interpretação. .......... 42 Aula 8 — Interpretação dos contratos .......................................................................................................... 43 Aula 9 — Classifi cação. Contratos consensuais e reais. Contratos bilaterais e unilaterais ............................... 52 Aula 10 — Contratos onerosos e gratuitos. Contratos comutativos e aleatórios. ............................................. 53 Aula 11 — Contratos solenes e não solenes. Contratos principais e acessórios. Contratos instantâneos e de duração. Contratos por tempo determinado e por tempo indeterminado. Contratos típicos/atípicos ........................................................ 54 Aula 12 — Contratos de adesão e cláusulas contratuais gerais. ..................................................................... 55 Aula 13 — controle. Mecanismos de proteção das partes. Vícios redibitórios. Vícios e defeitos. ...................... 60 Aula 14 — Evicção. Exceção de contrato não cumprido. .............................................................................. 61 Aula 15 — Inviabilidade e extinção dos contratos. Causas anteriores ou concomitantes à formação do contrato. nulidade. anulabilidade. Lesão. Estado de perigo .......................... 62 Aula 16 — Causas supervenientes à formação do contrato. Impossibilidade. Onerosidade excessiva. Revisão dos contratos no código civil e no direito do consumidor ......................................... 63 Aula 17 — Impossibilidade com culpa. Cláusula resolutiva. Resolução legal e resolução negocial. A resolução negocial no direito do consumidor .................................................................... 70 Aula 18 — Vontade. Distrato. Resilição unilateral. Resilição e abuso de direito ............................................ 71 Aula 19 — Contrato de compra e venda ...................................................................................................... 72 Aula 20 — Cláusulas especiais do contrato de compra e venda. Permuta ...................................................... 73 Aula 21 — Contrato de doação ................................................................................................................... 74 Aula 22 — Contrato de depósito.................................................................................................................. 75 Aula 23 — Contrato de mútuo .................................................................................................................... 76 Aula 24 — Contrato de seguro .................................................................................................................... 77 Aula 25 — Contrato de plano de saúde ....................................................................................................... 78 II – RESUMO DOS TEMAS ..................................................................................................................................... 79 Introdução ................................................................................................................................................... 79 O papel da vontade na teoria geral dos contratos .......................................................................................... 81 Princípios da teoria geral dos contratos ......................................................................................................... 85 A função social dos contratos ........................................................................................................................ 91 Pressupostos e requisitos ................................................................................................................................ 93 Formação dos contratos ................................................................................................................................ 97 Forma e prova do contrato ......................................................................................................................... 104 Interpretação dos contratos ......................................................................................................................... 105 Classifi cação dos contratos .......................................................................................................................... 107 Efeitos dos contratos ................................................................................................................................... 118 Estipulação em favor de terceiro ................................................................................................................. 120 Exceção de contrato não cumprido ............................................................................................................. 122 Cláusula resolutiva tácita .......................................................................................................................... 128 Arras ......................................................................................................................................................... 129 Arras penitenciais ...................................................................................................................................... 132 Vícios redibitórios ...................................................................................................................................... 138 Evicção ...................................................................................................................................................... 143 Inviabilidade dos contratos ........................................................................................................................ 145 Doação ...................................................................................................................................................... 164 Empréstimo ............................................................................................................................................... 170 Comodato (comodante e comodatário) ....................................................................................................... 170 Mútuo (mutuante e mutuário)................................................................................................................... 172 Depósito .................................................................................................................................................... 180 Mandato ...................................................................................................................................................195 Fiança ....................................................................................................................................................... 213 Compra e venda ........................................................................................................................................ 221 Venda ad corpus/ad mensuram ................................................................................................................ 231 Venda sob amostras .................................................................................................................................... 231 Pactos adjetos à compra & venda ............................................................................................................... 231 Promessa de compra e venda (compromisso de compra e venda) .................................................................. 237 Troca ......................................................................................................................................................... 246 Locação ..................................................................................................................................................... 246 Locação de coisas ....................................................................................................................................... 247 Locação de imóveis urbanos (lei 8245/91) ................................................................................................. 253 Prestação de serviço .................................................................................................................................... 257 Empreitada (empreiteiro e dono da obra) ................................................................................................... 261 Seguro ....................................................................................................................................................... 269 III – BIBLIOGRAFIA BÁSICA E COMPLEMENTAR ...................................................................................................... 292 DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 4 I – ROTEIRO DE AULA AULA 1 — APRESENTAÇÃO DO CURSO E DO SISTEMA DE AVALIAÇÃO. O QUE É O CONTRATO? OBJETIVO: Apresentar o curso; situar o objeto do curso. Desenvolver, mediante cons- trução dialógica com a participação dos alunos, o objeto do curso. INSTRUÇÕES: Ler ARISTÓTELES (Ética a Nicômaco, Livro V); e PEREIRA (2001). DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 5 AULA 2 — CONTRATOS. HISTÓRICO. CONTRATO E VONTADE. CONTRATO E NEGÓCIO JURÍDICO. PRINCÍPIOS FORMADORES. INSTRUÇÕES: Ler o texto abaixo, extraído de WERNER (2007): “I — A TEORIA DO CONTRATO SEGUNDO A EVOLUÇÃO DO PAPEL DA VONTADE NA SUA FORMAÇÃO A compreensão do estado atual do Direito das Obrigações em espe- cial no que se refere aos contratos, depende, em muito, de uma apre- ciação histórica de sua evolução. Pois ainda que muitas fi guras possuam valor extra-temporal, continuando a ser importantes instrumentos na operação jurídica, o modo como são apreendidas e relacionadas pode variar profundamente, abrindo ou limitando os campos de sua atuação e re-confi gurando o todo conceitual: “si le raisonnement logique abs- trait sur lequel repose cette construction a été en partie conservé, l´esprit du droit des obligations s´est trouvé bouleversé au cours de l´evolution du droit romain, comme au Moyen Âge sous l´infl uence des canonistes, comme enfi n depuis le Code Civil, par le législateur, que poussent les necessités sociales et économiques, et par les tribunaux, attachés à faire pénétrer plus profondement la morale dans cette partie du droit” (MAZEAUD, Henry, MAZEAUD, Léon, MAZEAUD, Jean et CHABAS, François. Leçons de Droit Civil. Paris: Montchrestien, 1998. p.22, §27). A história não pode ser confundida com um aglomerado de fatos ul- trapassados, relegados. A atenção que se lhes dedica pode assegurar me- lhor e mais completa exploração das potencialidades do presente. Ju- dith Martins-Costa sugere tratemos o conceito de história “mais como uma inigualável fonte de compreensão do presente do que um nostálgico olhar sobre um passado congelado nos compêndios e manuais acadêmicos” (Crise e Modifi cação da Idéia de Contrato no Direito Brasileiro, Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 3, p.127-154). Não poderia ser diferente no que se refere ao presente jurídico e, no que se refere ao âmbito deste trabalho, ao estado atual do Direito dos Contratos. DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 6 Caio Mario da Silva Pereira teve em conta essa diversidade de concepções, ao identifi car três etapas bem delineadas na história das obrigações em geral — e, portanto, das obrigações contratuais (uma etapa ancestral, desprovida de qualquer tipo de abstração; a romana; e a moderna), o que “não quer dizer que tenha havido três tipos de obrigação, nem que se tenha conservado uniforme e inalterado em cada um destes três momentos, senão que predominam, em cada um, idéias e infl uências que permitem distinguir o direito obrigacional peculiar a tal ou qual” (Instituições de Direito Civil. 19 ed. v.2. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p.5). Dentre tais etapas, é a de Roma que serve de marco inicial no acom- panhamento da evolução da Teoria Contratual. I. — O TRATAMENTO ROMANO É tarefa bastante árdua buscar identifi car a fi losofi a ou o sistema de pensamento que determinava a visão de mundo romana e que pode, por sua vez, ter contribuído para estabelecer o conceito de obrigação tal qual o elaboraram. Por certo, tendo sofrido a infl uência da civilização grega, Roma esta- va a par das correntes fi losófi cas que ali puderam se desenvolver. Muito se destaca a presença do estoicismo como parâmetro de comportamen- to e relacionamento com a natureza e o outro, para a maior parte da gente comum e mesmo para as elites (muitos fariam referência a Cícero e Marco Aurelio). Mas é incerta a interferência que possa ter estabele- cido além do plano moral-subjetivo das micro-relações particulares, es- pecialmente quando se lembra do papel secundário que representavam as coisas do governo para esse sistema: “o Estado tem, entretanto, uma importância apenas secundária — o que importa realmente é o aperfei- çoamento moral, fruto de uma disciplina infalível e rigorosa, de um forte sentimento do dever para consigo mesmo e seu próximo, e da indiferença para com os assuntos comuns da vida, coisa de importância secundária” (ROSTOVTZEFF, Michael. História de Roma. 5ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983. p. 184-5). Tem-se como certo que os romanos não desconheceram a distinção entre moral e direito, mas as fórmulas clássicas (“jus est ars boni et ae- qui” e “justitia est constans et perpetua voluntas suum cuique tribuere”), que indicaram a defi nição de seu Direito, não dão pista acerca do em- basamento fi losófi co que poderia ter jazido sob as normas da cidade. DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 7 Em verdade, costuma-se destacar o gênio prático dos romanos, o que resta patente em comparação com as comunidades da época, no- tadamente as gregas, mostrando que, nesse ponto, não sofreram sua infl uência. Aquele foi um povo que soube dosar com perícia a força da tradição (“mos maiorum”) e os ditames da política expansionista, tendo, com sucesso, em diversas ocasiões, encontrado a medida de sua conciliação (é signifi cativo, nesse sentido, o uso, por Mario, pela primeira vez, da massa de proletários para as fi leiras do exército, tradicionalmente com- postas por fi lhos da aristocracia: “Mario fu il primo che, nella formazione del suo esercito destinato per l´Africa, derogò dalla condizione che fosse possidenti chi voleva entrare nelle legioni, permettendo di associarvisi come volontario anche il più povero cittadino,purché abile al servizio, la rior- ganizzazione contemporanea dell´esercito sarà forse stata promossa dal suo autore per pure considerazioni militari...” — MOMMSEM, Th eodor. Storia di Roma Antica. v.II. t.1. Firenze: Sansoni, 1991.p. 188). O Direito, ou pelo menos o conjunto de regras observadas na cida- de, era a consolidação de costumes adotados desde os primórdios da ci- vilização latina (tanto que a própria palavra “jus” parece ter advindo da noção de “ordenado”, “sacramentado”), o que não impedia sua revisão de acordo com as exigências das circunstâncias. Mesmo assim, grande parte dos confl itos internos que assolaram a cidade decorreu da luta en- tre os que queriam preservar a “mos maiorum” (geralmente os cidadãos das classes dirigentes, que não queriam ver diminuída sua infl uência) e aqueles que queriam, por razões populistas ou genuinamente altruístas, a revisão do que chamariam de alguns “privilégios”. Independentemente do maior ou menor apego às tradições, o certo é que os romanos tinham um grande orgulho de sua comunidade e um especial senso da relevância do indivíduo para seu sucesso e eleva- ção perante outros povos. A contribuição para o engrandecimento de Roma era o caminho mais certo para a glória e distinção, o que assegu- rava o reconhecimento de gerações e gerações. A “dignitas” (que não pode ser confundida com os termos portugue- ses “dignidade” e “honra”) era, em verdade, o modo como o cidadão se expressava, falava, atuava e tratava os demais e os seus, inclusive clientes e família, assim também como se relacionava no exército e como mos- trava suas aptidões. Era, enfi m, o estatuto moral e social do indivíduo; DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 8 seu conceito em relação à comunidade e o mais importante atributo de uma pessoa. Desse signifi cado se vê a importância dada à vida pública de um homem e, por conseqüência, à publicidade de seus atos. Era essa pu- blicidade que legitimava o ‘status’ do cidadão, do “pater familiae”, do proprietário, do credor. Era deveras considerada a ritualidade desses atos e sua exteriorização. No campo jurídico, essa liturgia é que se co- locava como a matriz da formação dos direitos e a causa de seus efeitos. A solenidade tinha suma importância. Pois, no âmbito das obrigações, esse personalismo e esse ritualismo foram fundamentais para sua confi guração. Afi nal, só eram reconheci- das a partir de uma solenidade e signifi cavam um vínculo interpessoal de subjugação e sujeição, o que valia tanto para as obrigações derivadas de ato ilícito quanto para aquelas que se amparavam em um “negotium contractum”. São precisamente o personalismo e o ritualismo que merecem desta- que na fase romana do direito das obrigações. O primeiro porque determinava a força do vínculo (ob-ligatio) en- tre os envolvidos. Esse vínculo era tão intenso que signifi cava a sujeição total do devedor, mesmo através de seu corpo, com a cassação de sua liberdade e, em casos extremos, de sua integridade corporal e até de sua vida. Mesmo após a Lex Poetelia Papiria (428 a.C.), que limitou a res- ponsabilidade ao patrimônio do devedor, o liame não perdeu a carac- terística personalista, já que ainda permanecia a ligação clientelista (até hoje a doutrina ainda tende a defi nir a relação obrigacional como sendo esse vínculo inter-pessoal, quase psico-físico entre credor e devedor — é curioso notar que grande parte das defi nições, talvez por homenagem à tradição, cuide da obrigação como o “vínculo jurídico....”). O segundo porque colocava em plano secundário a vontade na criação do vínculo (no caso das obrigações decorrentes de contratos tinha-se como corrente a fórmula: “ex pacto non nascitur jus”), o que acabou por impedir, durante muito tempo, a correção de iniqüidades e distorções entre os efeitos tradicionalmente reconhecidos e aqueles idealizados pelos envolvidos. Com o desenvolvimento e expansão da cidade e das transações co- merciais, sempre avessas aos formalismos, é que surgiram quatro fi guras DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 9 que obrigavam por si sós, independentemente de solenidade: eram a venda, a locação, a sociedade e o mandato. Eram chamadas de pacta. Os demais contratos ainda exigiam as solenidades. Essa foi a primeira brecha que se abriu no formalismo dos contratos e que acabou condenando-o para sempre. Posteriormente, a própria evolução do processo e a admissão de ações atípicas pelos pretores reduziram ainda mais o jugo do formalis- mo. II. — O TRATAMENTO MEDIEVAL Em 410 d.C., Alarico e os visigodos saqueiam a grande cidade e o evento é reconhecido pelos homens da época como o signo do fi m de uma era de segurança e certeza. E de fato mostraram sensibilidade: um acontecimento ocorrido apenas alguns anos depois (a deposição de Rômulo Augústulo por Odoacro — 476) foi fi xado por convenção universal como marco terminal da Idade Antiga. A cidade foi poupada, mas seus alicerces culturais foram arrasados. É signifi cativo, sobre o estado desolador da cultura e do conhecimento após a queda, o lamento de Boécio a seu sogro na introdução da carta em que lhe comentava seu “Tratado Sobre a Trindade”: “bem poderás compreender o que sinto todas as vezes que confi o à pena meus pensamen- tos: seja pela própria difi culdade do tema, seja pela escassez de interlocu- tores: na verdade és o único capaz de entendê-los e o único com quem os discuto (...) pois, excetuando a ti, para onde quer que eu olhe só vejo, por um lado, a pasmaceira ignorante e, por outro, a inveja astuta...” (in Cul- tura e Educação na Idade Média. Org. Luiz Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 82-3). A visão de mundo da antiguidade deu lugar a uma nova concepção (a cristã) que, entretanto, em muito daquela se aproveitou, ali encon- trando importantes fontes ideológicas para sua consolidação. Em ver- dade, os fragmentos que restaram foram recolhidos e alguma coisa foi reconstituída. Mas boa parte das peças não foi encaixada. Essas peças acabaram sendo utilizadas para a construção de um novo edifício teórico a cargo da Igreja, instituição que passou a representar a sobrevivência de Roma e do Império e que permitiu uma certa con- tinuidade: “a Igreja aparecia aos jovens povos como uma poderosa criação DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 10 real, na qual sobreviviam ao mesmo tempo, como realidades presentes em carne e osso, Roma e o império romano...” (WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 2ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. p. 17). Dessa tarefa ela se desincumbiu com inteligência, através de um me- ticuloso trabalho de resgate e conservação das obras do passado, que contou com a notável colaboração de uma intelectualidade anônima na luta contra a ignorância e cupidez. Com sabedoria, a Igreja se valeu do arcabouço teórico da antigui- dade para garantir o sucesso de sua doutrina. Foi assim, por exemplo, com o idealismo de Platão (onde se enxergou a presença de Deus) e o sistema epistemológico de Aristóteles (do qual São Tomás de Aquino, por exemplo, emprestou alguns elementos), ambos ancorados no pres- suposto de uma razão universal. E embora razão e fé fossem até então vistas como antagônicas, a fi losofi a cristã tentou conciliá-las e durante bom tempo achou tê-lo conseguido. A razão foi identifi cada em Deus e a lei dos homens agora buscava conformar-se a Ele. O pensamento cristão acabou, nesse esforço, compatibilizando-se com o estoicismo, muito observado pelos antigos, que através dele viam-se integrantes de uma comunidade universal unida pela razão, cujos preceitos valorizavam a temperança, a inteligência, a fraternida- de, a resignação com as difi culdades da existência e o uso da virtude para enfrentá-las: “a Igreja cristã podia ser interpretada como a verdadeira realização da idéia estóica de umasociedade organizada compreendendo o mundo inteiro. A ética estóica, que ressaltava a moderação, o autocontrole e a fraternidade, era compatível com o cristianismo” (PERRY, Marvin. Ci- vilização Ocidental — Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fon- tes, 1999. p. 134). O Cristianismo integrou essas virtudes, dando-lhes uma justifi cativa espiritual. No mundo jurídico, as normas de direito em muito se confundiram com os preceitos da religião, posto que inevitavelmente se impregna- vam do conteúdo ético-cristão em voga. Muitas eram verdadeiramente oriundas da mesma fonte que aqueles (os Cânones); e estes grande- mente observados, o que lhes conferia um certo cunho cogente (WIE- ACKER. op.cit. p. 17-8). DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 11 No direito houve, pois, enorme infl uência da visão de mundo cristã. A espiritualidade e a ética estabelecidas pela Igreja se infi ltraram em diversos institutos, modifi cando, às vezes substancialmente, a confi gu- ração que lhes fora dada pelos romanos (ver o caso da lesão e usura). A espiritualidade que ditava a apreciação da vida e das relações humanas foi essencial na inauguração de um enfoque que considerava sobrema- neira o posicionamento moral do indivíduo, sua atitude subjetiva. É possível dizer, com relação ao Direito das Obrigações, que essa subjetividade é a principal característica do período, signifi cando um passo a mais na luta contra o formalismo (é interessante traçar um paralelo entre o ataque ao formalismo da lei rabínica por Jesus e a in- vestigação canônica da subjetividade do vínculo — em ambos os casos buscando-se privilegiar o conteúdo por detrás da forma, dando a ela cada vez menos importância). No que se refere ao inadimplemento contratual, passou-se a enten- der que a quebra do acordo, do compromisso fi rmado, era um atentado à verdade, uma fraude, uma mentira; enfi m, um pecado. E dava-se ênfase, então, à palavra dada, ao assentimento, no qual se passava a enxergar uma força vinculante. O cristianismo tinha um forte caráter de personalismo que se refl e- tiu na manutenção da idéia do vínculo obrigacional como ligação entre pessoas, com a particularidade de que essa ligação ganhava um cunho de espiritualidade, passando a ser regida e sancionada, também, em um plano superior. III. — O TRATAMENTO MODERNO — A Teoria Contratual Chamada “Clássica” Em certo momento, como que de repente, todos se davam conta de que o mundo medieval estava saturado. Suas instituições e sua cultura não mais comportavam os anseios irreprimíveis daqueles que, cada vez mais em contato com o conhecimento (oriundo da educação de uma classe média assurgente), comparavam as possibilidades de outras épo- cas com as limitações da sua. E esse conhecimento que foi, talvez, uma das grandes causas des- sa insatisfação, serviu como instrumento da respectiva reação. Barbara Tuchman, ao apontar como principal característica do período medie- val o Cristianismo, identifi ca a conscientização quanto ao papel do in- DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 12 divíduo e das coisas da vida mundana como o ponto de transição entre as Idades Média e Moderna: “its (Cristianismo) insistent principle that the life of the spirit and of the afterworld was superior to the here and now, to material life on earth, is one that the modern world does not share, no matter how devout some present-day Christian may be. Th e rupture of this principle and its replacement by belief in the worth of the individual and of an active life not necessarily focused on God is, in fact, what created the modern world and ended the Middle Ages” (A Distant Mirror. New York, Alfred A. Knopf: 2002. p. XIV). Na falta de um ideário próprio, a cultura e a fi losofi a antigas foram a melhor arma de que os modernos poderiam se utilizar. Ao institu- cionalismo e ao coletivismo, estes opuseram o convencionalismo e o individualismo. A uma visão teológica, contrapuseram uma visão an- tropológica do mundo e da organização social. Enquanto São Tomás de Aquino dizia ser Deus a medida de todas as coisas, resgatavam o lema de Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”. No Direito, deixaram de lado os cânones e foram abeberar-se no jus civile roma- no; e diretamente, sem intermediários: “a desarticulação da “respublica christiana” e o nascimento do espírito laico tenderam a modifi car a sensi- bilidade intelectual. A preocupação jurídico-política instalou-se ao lado da vontade ético-religiosa, que se manifestara com tanta insistência desde os primórdios da era cristã” (GOYARD-FABRE, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurídica, São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 41). E a importância do simples compromisso, do mero consenso como fonte de obrigações intensifi cou-se nessa busca pelo homem e suas po- tencialidades, que foi característica do Renascimento, e, sobretudo, do Humanismo. Este, refl exo intelectual da nova posição assumida pelo homem fren- te ao mundo, desencadeou o desenvolvimento da noção de que nada poderia derivar senão do indivíduo, o que permitiu que sua vontade fosse vista como o motor que movia o orbe. Para tanto, aproveitou-se das veredas abertas desde o século XIII pelos teóricos voluntaristas: “os sinais de uma desestabilização da ordem cosmoteológica, na qual a fi losofi a inseria o direito, fi caram perceptíveis já no fi nal do século XIII na obra de Duns Scot, e depois, um pouco mais tarde, na de Guilherme de Ockam. Com a afi rmação de um voluntarismo absoluto, esses ‘novos fi lósofos’, sem ainda formatar realmente os problemas específi cos do pensamento mo- derno, abalaram a metafísica ontoteológica já tradicional e engendraram DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 13 tendências inéditas que viriam a encontrar um Buridan ou um Nicolau Oresme” (idem. p.41) Foi o humanismo que acabou resgatando o indivíduo das trevas do corporativismo medieval, que o oprimia, ensejando sua elevação à posição de supremacia no ordenamento das coisas, que ele passou a comandar através de seu querer, de sua vontade. Esta foi erigida em ins- trumento de sua potencialidade, tida como infi nita. Daí sua relevância cada vez maior, que tendia a crescer na mesma medida que o papel do indivíduo. E quando caíram as grades da estratifi cação social com a ruína das instituições medievais e o indivíduo se viu livre de seus grilhões, po- dendo trilhar todo o caminho aberto à sua potencialização, o poder da vontade pôde atingir sua plenitude. A Revolução Francesa, refl exo político do resgate da posição preponderante do indivíduo, ao mesmo tempo que pôs fi m às distinções decorrentes do ‘status’ e às restrições impostas aos homens comuns, garantiu (ao menos em tese) a igualda- de de tratamento, indepedentemente de classe ou condição (‘liberté’ e ‘egalité’). Com isso, a cada um dos indivíduos era garantida a mesma poten- cialidade. Suas vontades eram, nessa concepção, equipolentes. Dessa forma, se todos eram livres e todos eram iguais, somente se admitia que se vinculassem (juridicamente) por obra de sua própria vontade que, por lógico, bastava para justifi car tal vinculação. A — Princípio da Liberdade de Contratar Sob a premissa de que as partes são livres em sua vontade e que são iguais perante a lei, concluiu-se que poderiam regular seus interesses da maneira que melhor lhes conviesse. O Princípio da Liberdade de Contratar refl ete-se na “Liberdade de Contratar propriamente dita”, que foi defi nida como o consenso de vontades na auto-regulação dos interesses privados, como o poder con- ferido abstratamente às partes de produzir os efeitos que quiserem; e na “Liberdade Contratual”: liberdade de estipular o contrato e determinar seu conteúdo. Afi nal, se as partes são livres e iguais, em conjunto podem estipular o que bem desejarem (“com base nesta, afi rmava-se que a conclusãodos DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 14 contratos, de qualquer contrato, devia ser uma operação absolutamente livre para os contraentes interessados: deviam ser estes, na sua soberania individual de juízo e de escolha, a decidir se estipular um certo contrato, a estabelecer se conclui-lo com esta ou aquela contraparte, a determinar com plena autonomia seu conteúdo, inserindo-lhe estas ou aquelas cláusulas, convencionando este ou aquele preço” — ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 32). A liberdade de contratar, como princípio, encontra origem, segundo se conta, no voluntarismo, doutrina fi losófi ca defendida por Boécio e desenvolvida por Duns Scotus e Guilherme de Ockham, segundo a qual a vontade (o querer) era o motor das ações e não a razão ou co- nhecimento. Embora Scotus e Ockham tenham elaborado a doutrina para referir-se às ações e prescrições divinas, acabou sendo aplicada na explicação das ações humanas: “...quando a secularização e o laicismo tirarem a idéia de um querer divino que justifi que a bondade das coisas e sirva de parâmetro para descobrir o bem e o mal, a base da conduta huma- na será apenas o consenso voluntário das pessoas, que decidirão, por meio da lei e do contrato, o que é bom ou ruim, sem precisarem fazer qualquer referência à natureza das coisas. Tendo sido algo querido, ele é bom para as partes e não há critério objetivo, externo à vontade das partes, que possa ser utilizado para contestar o conteúdo do querer. Aí está totalmente dese- nhado o voluntarismo, tão fundamental para explicar a noção clássica do contrato” (MORAES, Renato José. Cláusula Rebus Sic Stantibus. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 6). E é nesse momento que a vontade se vê em condições de assumir o papel de maior relevância dentre as fontes das obrigações. E é precisa- mente então que o consensualismo pôde conquistar de vez o campo da formação dos contratos. B — Princípio do Consensualismo Pelo princípio do consensualismo, os contratos formam-se tão so- mente pela vontade, ou melhor, pelo acordo de vontades, pelo consen- so: “não é preciso haver qualquer início de execução da prestação, forma, sinal, ou causa para que o contrato seja efi caz entre as partes: é sufi ciente o acordo de vontades despido, o chamado nudum pactum” (idem p. 6-7). Uma vez alcançado o consenso, nada mais é exigido para que se admita a vinculação entre as partes e a sanção estatal a eventual inob- DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 15 servância do pactuado. Basta o consenso para obrigar (“Solus consensus obligat”). Com ele se pretendeu dispensar e afastar qualquer traço cerimonia- lista que, como a solenidade, pudesse competir com a vontade, com o querer, como fonte de vinculação. E a maior herança do período foi o parâmetro de conduta social que identifi cava no respeito à vontade do outro o limite ético da atuação do indivíduo. Dessa ética decorreu a obrigatoriedade dos contratos, demonstrada ‘more geometricus’: se as vontades de cada uma das partes têm a mesma intensidade e o contrato é o acordo dessas vontades (‘est duorum vel plurium in idem placitum consensus’), a soma das vontades individuais é maior que a vontade de um só e, por isso, mais poderosa, não podendo apenas por esta ser superada. C — Princípio da Obrigatoriedade Um dos mais infl uentes princípios da teoria contratual, o princípio da obrigatoriedade, ou da força obrigatória dos contratos, enuncia que, tendo as partes livremente aceito o conteúdo do contrato, também li- vre e voluntariamente restringiram sua liberdade, não havendo amparo moral para a desvinculação. Essa construção era, por suas próprias premissas, verdadeiramente ética e por isso permaneceu tão arraigada na idéia dos juristas: “cada um é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fi ca ligado de modo irrevogável à palavra dada: “pacta sunt servanda”. Um princípio que, além da indiscutível substância ética, apresenta também um relevante signifi cado econômico: o respeito rigoroso pelos compromissos assumidos é, de facto, condição para que as trocas e outras operações de circulação da riqueza se desenvolvam de modo correto e efi ciente segundo a lógica que lhes é própria, para que não se frustrem as previsões e os cálculos dos operadores” (ROPPO. op.cit. p. 34). Diante dessa concepção, em que a liberdade e a igualdade eram pressupostas, o contrato, expressão maior da vontade individual, pas- sou a ser visto como o instrumento por excelência da justiça: “Quand quelqu´un décide quelque chose à l´égard d´un autre, dira Kant, il est toujours possible qu´il lui fasse quelque injustice, mais toute injustice est impossible quand il décide pour lui même” (RIPERT, Georges. La Régle Morale dans les Obligations Civiles. Paris: LGJD, 1949. p.38). DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 16 As codifi cações viveram seu apogeu nesse momento: “com efeito, não é realmente possível falar em código, no sentido moderno, enquanto a capa- cidade de direito — patrimonial, familiar, sucessória, negocial — restasse diferenciada em razão de um sistema particularista como o sistema feudal” (MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: RT, 1999. p. 175). Com elas, a lei viria a alcançar prestígio até então inigualado. É a mesma autora que ensina: “a lei funda seu prestígio em dois elementos: na origem que lhe foi traçada pelos teóricos do iluminis- mo — Rousseau, Voltaire e Montesquieu, em particular —-, radicada na ‘volonté génerale’, fundamento e metáfora da soberania popular, e na sua generalidade, vale dizer, na sua aplicabilidade a todos, conseqüência do princípio da igualdade...” (idem. p.185). Se a vontade era vista como a principal fonte de obrigações, a lei que a venerava (produto de um consenso em larga escala) passou a deter papel de preponderância dentre as fontes de direito. As codifi cações, ti- das inicialmente como roteiros de uma sociedade mais justa, inspirada em uma ética natural, acabaram sendo vistas, por conta do otimismo e confi ança gerados pela revolução que representavam, como o produto acabado da razão e da civilização. De instrumento passaram a obra. E obra-prima, cujos autores seriam identifi cados com o individualismo e com o racionalismo: “a teoria jusnaturalista de tradição clássica será subvertida pela compreensão “moderna” do conceito de direito natural que, doravante instalado numa fi losofi a que descobriu o homem como tema, se construirá em torno de tais noções-chave: o humanismo, o individualismo e o racionalismo” (GOYARD-FABRE. op.cit. p. 43). Esse desvirtuamento foi obra da escola da exegese e da sistematização pandectística ao abrir caminho para a invasão positivista na ciência do direito. Esta, encorajada pela euforia cientifi cista da explicação de to- dos os fenômenos pelos preceitos da razão, desprezaria qualquer infl u- ência externa ao Direito, já confundido com a lei, com o ordenamento normativo sistemático. O Positivismo “deduzia as normas jurídicas e sua aplicação exclusivamente a partir do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder a valores ou objetivos extra- -jurídicos... A fundamentação ética desta convicção foi extraída de Savigny e pelos seus contemporâneos da teoria jurídica de Kant, segundo a qual a ordem jurídica não constitui uma ordem ética, mas apenas a possibilita, tendo, portanto, uma existência independente” (WIEACKER. op.cit. p. 492). DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 17 Na introdução a uma das edições brasileiras de “A Luta Pelo Direi- to”, Roberto de Bastos Lellis sintetiza: “o êxito das ciências fi siconaturais a as suas aplicações técnicas convidam os pensadores a abandonar as espe- culações puramente fi losófi cas, sobretudo a metafísica, para ocuparem-se somente com odado positivo” (Rio de Janeiro: Liber Juris, 1987. p.XIV). Nesse abandono, qualquer tentativa de revisão dos princípios que inspiraram a teoria das obrigações e, notadamente, a teoria geral dos contratos, era inteiramente difi cultada. O voluntarismo (e toda a fi lo- sofi a individualista que o justifi cava) restou aprisionado no bojo dos códigos civis, impedindo, ali, o reconhecimento da regra moral. É nesse contexto ideológico (e certamente não histórico) que se in- sere nossa primeira codifi cação civil. Elaborado no seio de uma so- ciedade patriarcal, colonialmente dependente, agrária e oligárquica, o projeto de Clóvis Beviláqua levou dezessete anos tramitando no Con- gresso. O Código Civil entrou em vigor em 1º de janeiro de 1917 mas seu projeto data de 1899. É, também nesse sentido, um representante do passado. Orlando Gomes conta a sua história, tendo em vista a sociedade que lhe serviu de substrato. A economia era comandada pelo interesse lati- fundiário rural, ao qual convinha manter a estrutura que tivera origem no tempo da colônia, amparada na exportação de matérias-primas para o abastecimento da metrópole. Com a desvinculação da organização política portuguesa, a oligarquia rural limitou-se a substituir o desti- natário de sua produção, dirigindo-a diretamente às nações industriais. A República trouxe poucas mudanças a essa confi guração. Consolidou novos pólos geográfi cos de infl uência, mas a orientação básica perma- neceu: “a despeito de sua ilustração, a aristocracia de anel representava e racionalizava os interesses básicos de uma sociedade ainda patriarcal, que não perdera o seu teor privatista, nem se libertara da estreiteza do arca- bouço econômico, apesar de seu sistema de produção ter sido golpeado pro- fundamente em 1888. Natural que o Código refl etisse as aspirações dessa elite e se contivesse, no mesmo passo, no círculo da realidade subjacente que cristalizava costumes, convertendo-os em instituições jurídicas tradicionais. Devido a essa contenção, o Código Civil, sem embargo de ter aproveitado frutos da experiência jurídica de outros povos, não se liberta daquela pre- ocupação com o círculo social da família, que o distingue, incorporando à disciplina das instituições básicas, com a propriedade, a família, a herança e a produção (contrato de trabalho), a fi losofi a e os sentimentos da classe DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 18 senhorial” (Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro in Direito Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p.94). Mesmo concebido em uma época em que, nos países industrializa- dos, já se superava o liberalismo e o individualismo, o nosso código de 1916 desprezou a questão social. Segundo o mestre baiano, o legislador “estava convencido de que as ‘novas formações’ não possuíam substantivi- dade, não se lhes devendo injetar seiva, para que se não procurasse uma intervenção funesta na economia da vida social” (idem p.106). Em outro artigo, ele diz: “entrando em vigor no ano de 1917, o Có- digo Civil é expressão retardada do individualismo jurídico. Na época de sua promulgação, o pensamento jurídico começava a inclinar-se para ou- tros rumos. Algumas codifi cações já haviam abandonado a fi losofi a ultra- -individualista do Código de Napoleão. Perduravam, contudo, quer na doutrina, quer nas legislações, os princípios caldeados na Revolução Fran- cesa. O Código Civil brasileiro permaneceu confi nado, em consequência, à atmosfera da doutrina individualista, embora já amenizada por descargas que a desoprimem do radicalismo primordial” (O Código Civil e sua Re- forma. in Direito Privado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p. 120). E durante bom tempo, aqui ou alhures, os teóricos continuaram a identifi car a justiça no contrato (“qui dit contractuel dit juste”). E isso, mesmo quando as premissas liberais e individualistas já se mostravam frágeis. A relevância da vontade (e, por lógico, do consentimento) que caracterizou a teoria jurídica no período moderno fora construída com base na igualdade que, em verdade, era um alicerce comprometido pela ausência de conteúdo material. A civilização urbano-industrial desvelou as profundas iniqüidades que se escondiam sob a expressão jurídico-conceitual do homem. Para o direito, este era “pessoa”, independentemente de suas particularida- des, de sua condição social ou fi nanceira, de suas idiossincrasias (o que, de todo modo, foi extremamente útil para consolidar o fi m das diferen- ças pré-constituídas). Sendo pessoa, era reduzido ao mesmo estatuto de qualquer outro homem, não importando quão diferente fosse. A exploração do homem pelo homem (“homo omni lupus”), que Hobbes pensou ter acabado com o pacto social, foi a conseqüência histórica dessa redução. A ironia é que fora o próprio pacto social, liberalmente concebido, que lhe deu origem: era a liberdade que escravizava (Jean Lacordaire). DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 19 Ainda assim, muito se persistiu na apreciação do fenômeno obrigacio- nal sob a luz da vontade individual. Não foi à toa que se desenvolveu a teoria da vontade (“Willenstheorie”), que propugnava a interpretação do negócio através de uma quase exclusiva análise da intenção do agente.” SUGESTÕES: Ler MARTINS-COSTA (2000), parte I. DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 20 AULA 3 — TEORIA CONTRATUAL HODIERNA. REVISÃO DO PAPEL DA VONTADE. NOVOS PRINCÍPIOS. LIBERDADE CONTRATUAL E FUNÇÃO SOCIAL INSTRUÇÕES: Ler o texto abaixo, extraído de WERNER (2007): “A CRISE DA TEORIA CLÁSSICA DOS CONTRATOS Mas a reação não tardou. Propagaram-se as doutrinas socialistas e o capitalismo teve de se posicionar, vindo a intervir diretamente nas relações inter-individuais para assegurar um mínimo de igualdade ma- terial. O poder da vontade do indivíduo arrefeceu e os princípios que nele se fundaram (liberdade contratual e obrigatoriedade dos contra- tos) foram mitigados e relativizados. A teoria da vontade foi suplantada pela teoria da declaração (“Erklarungstheorie”) que já buscava na decla- ração de vontade, ou seja, na vontade tal qual recepcionada pelo ‘alter’, a chave para a interpretação do negócio. As teorias da confi ança e da responsabilidade, que procuraram aproximar os efeitos negociais das expectativas hauridas no trato com o outro são deveras representativas da tendência para reagir ao individualismo. Se antes houvera uma certeza primordial (a razão), ora revelavam- -se inúmeras perplexidade: “a partir disso, a fi sionomia do racionalismo jurídico oriundo da fi losofi a das luzes francesas perde nitidez: já não pode ter a forma altiva e pura uma ordem sistemática; curva-se e se fl exibiliza ao sabor de suas múltiplas e incessantes relações com seu contexto social...” (GOYARD-FABRE. op.cit. p. 146). O mundo teve que reconhecer a diversidade. A razão não mais servia para integrar os indivíduos e legitimar suas ações: “toda a experiência humana era realmente estruturada por princípios em grande parte incons- cientes, que não eram absolutos e atemporais. Ao contrário, fundamental- mente variavam em diferentes eras, diferentes culturas, diferentes classes, diferentes línguas, diferentes pessoas e em contextos existenciais diferentes” (TARNAS, Richard. A Epopéia do Pensamento Ocidental. Rio de Janei- ro: Bertrand Brasil, 1999). Nessa frustração, não só o setor negocial foi abalado. Todo o sistema jurídico (de base positivista) foi alvo de crítica e repreensão. Afi nal, limitava-se a estudar o conjunto das normas em vigor, sem se preocupar com os seus fudamentos, facilitando a manutenção da DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 21 ordem estabelecida, desprezando a função transformadora do Direito e desperdiçando a chance de combater as distorções do sistema. Sua validade e sua efi cácia, bem como a legitimação do discursopo- sitivista, foram postas à prova por ocasião da proliferação das normas (fenômeno que mereceu a análise de Natalino Irti em “L´Età della De- codifi cazione”). Cada vez mais detalhadas e direcionadas a certos grupos de interesse, elas se afastaram de sua função de expressão da “volonté gé- nerale” e em conseqüência viram diluída sua potencialidade. Essa proli- feração decorrente da necessidade cada vez maior de atender e proteger setores específi cos da sociedade, é mais um sintoma da diversidade, da falência dos discursos totalizadores e do que muitos denominam de síndrome pós-moderna: “a infl ação legislativa, por sua vez, minou pela base a ideologia da unidade legislativa. Aos códigos civis foram sendo agre- gadas inúmeras ‘leis especiais’, no início ditas ‘leis extravagantes’, porque (vagare) sobrevagavam o sistema refl etido no Código. O sentido da quebra da unidade legislativa está em que não é mais possível acomodar, num mes- mo e harmônico leito, todos os interesses, porque não há apenas um único sujeito social a ser ouvido, não há mais um sujeito comum, como aquele desenhado na esteira da Revolução Francesa pelo princípio da igualdade, abstrata, frente a lei” (MARTINS-COSTA. A Boa-Fé... p. 281). E é exatamente no reconhecimento de desigualdades e diferenças, de características, vantagens e fraquezas identifi cadas com um deter- minado grupamento social ou com um conjunto de pessoas sujeitas a determinadas práticas, que residia a ruptura com o ideário moderno. Com a constatação da falência do sistema burguês-liberal de igual- dade dos indivíduos; diante do reconhecimento da existência, no seio da comunidade jurídica, de “pessoas” em situação de inferioridade ou defi ciência em face de outras, aliado à descoberta ou desenvolvimento de uma função regulatória e provedora do Estado, justifi cou-se a in- tervenção dos governos na esfera antes destinada à autonomia privada. Tal intervenção, assim justifi cada, visava garantir a proteção daque- les que se encontravam em posição de sabida desvantagem perante ou- tros ou, pelo menos, minimizar a desigualdade verifi cada. E foi o novo papel da lei que a viabilizou. É o que se resume no lema de Lacordaire: “entre o fraco e o forte é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”. De várias formas o Estado se fez intervir: (a) pelo controle da ativi- dade de determinadas empresas economicamente poderosas ou pres- tadoras de serviços ou produtos essenciais, até mesmo obrigando-as a contratar (a vender, não esconder estoques, etc.); (b) pelo nivelamento do poder das partes para sua equalização, restaurando-se a igualdade real (v.g. contratos coletivos de trabalho); e (c) pelo dirigismo contra- tual, que é a interferência do Estado no conteúdo do contrato e no DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 22 seu processo, com a restrição da liberdade das partes ao impor-lhes determinada atuação (trata-se de uma interferência na estipulação do contrato que afasta o poder da vontade em determinada área conside- rada essencial). Tecnicamente, tal intervenção opera através da invasão de normas imperativas ou proibitivas (jus cogens) no campo antes dominado por normas supletivas ou dispositivas (jus dispositivum). O Direito do Trabalho, como um todo, e as leis do inquilinato, são exemplos dessa intervenção. O Código de Defesa do Consumidor, porém, por sua abrangência e pelas premissas que estabelece, é o refl exo por excelência dessa política. Diante da alteração signifi cativa no modo de interação econômi- ca com a substituição da contratação entre burgueses (relativa, via de regra, a bens infungíveis, e eventual) pela contratação de massa (de bens de toda espécie e em caráter quase que ininterrupto, de forma reiterada), o equilíbrio de forças entre as partes foi igualmente altera- do. O nível de complexidade dos produtos e serviços oferecidos não só concentra o conhecimento sobre eles nas mãos do fornecedor (que pode se valer dessa vantagem), mas também faz com que o consumidor passe a ser cada vez mais dependente do fornecedor para consegui-los, já que não teria como obtê-los de outro modo. O fornecedor pode se aproveitar dessa defi ciência e impor ao consumidor condições iníquas na contratação. O Código de Defesa do Consumidor declaradamente reconhece essa vulnerabilidade (artigo 4º, I) e contra ela reage, estabelecendo uma série de regras que têm como principal objetivo o resgate do equilíbrio de forças. E para maior efi cácia, essa reação opera em quatro frentes: (i) na concessão de vantagens ao consumidor, não estendidas ao fornecedor, bem ao estilo das ações afi rmativas (desistência da contratação, facili- tação da defesa em juízo; direito de escolha nos artigos 18 e 20 e no artigo 54, §2º; interpretação mais favorável); (ii) na proteção direta contra o atuar lesivo do fornecedor, proibindo-lhe determinadas con- dutas (proibição de publicidade enganosa, venda casada, envio de pro- duto ou serviço sem solicitação, além da proibição de certas cláusulas); (iii) na garantia da qualidade (segurança e adequação) dos produtos e serviços; e (iv) na imposição da transparência, seja por meio da previsão de deveres de informação, seja através da proteção da confi ança, com a vinculação à publicidade e à informação, a correção da desinformação do consumidor e a garantia das suas expectativas. Esta última frente de reação contra o desequilíbrio originário da relação de consumo é item DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 23 essencial para a compreensão do fenômeno da formação dos contratos de consumo, como se verá adiante. A reação também se dá em fases distintas do fenômeno contratual. Mesmo antes do estabelecimento de qualquer tipo de contato entre fornecedor e consumidor, (a) na fase do “marketing” do produto ou serviço, na veiculação de publicidade (em caráter geral, ou mesmo na oferta individual); na (b) fase de conclusão do contrato, com a vincu- lação às promessas feitas, com a proibição de cláusulas abusivas; na (c) fase de execução do contrato com a proibição de práticas abusivas e ga- rantia do direito de modifi cação e revisão de cláusulas de desequilíbrio; e, por fi m, até (d) na fase pós-contratual, assegurando ao consumidor o direito à plena reparação dos danos eventualmente sofridos. No campo do Direito das Obrigações e, particularmente, no âmbito da Teoria dos Contratos, o reconhecimento da diversidade produziu signifi cativas revisões em conceitos até então indiscutíveis. O papel da vontade como fonte e elemento integrador do conteúdo dos negócios foi o mais atingido. Se não há igualdade de condições na formação de um negócio, perdem toda a sua justifi cativa as idéias de livre vinculação e obrigatoriedade. A noção de boa-fé, cuidadosamente elaborada no curso da história e na prática da jurisprudência alemã, ganhou posição de destaque nesse âmbito e foi instrumentalizada para unifi car o tratamento de todas as relações obrigacionais, não importando a qualidade e particularidade do indivíduo. Foi ela que explicou e integrou as teorias interpretativas do negócio jurídico, resgatou a noção de equilíbrio, de sinalagma ob- jetivo; e formulou a solução para o problema dos contratos em massa (ao menos na ordem jurídica alemã, tendo sido importada por outros ordenamentos, não sem críticas, como as de José de Oliveira Ascensão e Joaquim de Sousa Ribeiro em Portugal). A construção de seu conteúdo ocasionou seu transbordamento do âmbito contido do dispositivo em que se inseria (§242 do Burgerliches Gesetzbuch — “BGB”), transmutando-o, de um mero preceito conti- nente de um conceito-jurídico-indeterminado, em uma norma fl exível, impregnada e impregnável de elementos éticos plenos de preocupação social. A esta norma se chamou, por isso mesmo, de “cláusula geral”, ou “cláusula aberta” que acabou se infi ltrando no seio dasdemais ex- pressões normativas. E a experiência extraída da operatividade da boa-fé através da ela- boração (ainda por concluir) de um conceito de cláusula geral, reper- cutiu no plano mais elevado da metodologia da ciência jurídica, o que ocorreu quando os teóricos se deram conta da potencialidade dessa estrutura normativa na superação do rigor estagnante da leitura positi- DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 24 vista e, por conseguinte, na instrumentalização da reação à proliferação normativa. Talvez esteja aí a chave para a compreensão do papel do novo Códi- go Civil brasileiro e para sua apreensão por nosso ordenamento. Valen- do-se de cláusulas abertas (como já fi zera o CDC), propõe-se a servir de base para o enfrentamento jurídico das mais diversas manifestações da sociedade (é a sua primeira diretriz fundamental a “compreensão do Código Civil como lei básica, mas não global, do Direito Privado” —-Ex- posição de Motivos do Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil). Talvez se tenha atingido a conclusão de que a multi- plicidade de normas enseje uma diluição de seu conteúdo coercitivo e uma crise de valores. Talvez, ainda, se tenha constatado que a sociedade carece de um referencial e que este deve ser fornecido o quanto antes a seus magistrados, dando-lhes as condições para que o observem em suas decisões, em uma melhor e mais livre apreciação dos fenômenos sociais, para “acolher os modelos jurídicos validamente elaborados pela ju- risprudência construtiva de nossos tribunais, mas fi xar normas para supe- rar certas situações confl itivas, que de longa data comprometem a unidade e a coerência de nossa vida jurídica” (Décima Segunda Diretriz da Ex- posição de Motivos), sem que isso derive para um “engessamento” da ordenação jurídica. A idéia por detrás das cláusulas gerais, dentre as quais exerce posição de destaque o dispositivo da boa-fé, está em permitir a abertura do sis- tema para o infl uxo de experiências e de leituras ‘meta-jurídicas’ e, com isso, possibilitar sua vivifi cação e dinamização, enfi m, sua auto-reno- vação. Pretende-se, com elas, evitar a prematura superação do sistema normativo, que causara a frustração do modelo racional-positivista (em que “se supõe que todas as respostas estão já previstas nas premissas dogmá- ticas do sistema, podendo ser alcançadas por meio da atividade mental da subsunção” — MARTINS-COSTA. A Boa-Fé... p. 364), concedendo ao juiz o dever de traduzir e importar para o plano jurídico o sentimento objetivamente encontrado no seio social acerca de um problema com o qual é confrontado. Esse enfoque objetivo faz parte do desafi o e da responsabilidade do magistrado que acompanha essa sua nova função, não podendo recorrer a uma impressão meramente pessoal, subjetiva. É o que parece ter sido levado em consideração pelos elaboradores: “o que se tem em vista é, em suma, uma estrutura normativa concreta, isto é, destituída de qualquer apego a meros valores formais e abstratos. Esse objetivo de concretude impõe deixar margem ao juiz e à doutrina, com fre- qüente apelo a conceitos integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, eqüidade, probidade, fi nalidade social do direito, equivalência de prestações etc., o que talvez não seja do agrado dos partidários de uma con- DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 25 cepção mecânica ou naturalística do Direito, mas este é incompatível com leis rígidas de tipo físico-matemático. A exigência de concreção surge exata- mente da contingência insuperável de permanente adequação dos modelos jurídicos aos fatos sociais ‘in fi eri’” (Exposição de Motivos, item 13, §4º). O Direito das Obrigações (e, particularmente, o Direito dos Con- tratos), como parte desse novo sistema e tendo sido, historicamente, o campo de maior aplicação do voluntarismo e do individualismo, será, por certo, palco de intensos entrechoques, de embates ferozes entre a força infl uente da tradição e a “evidência do fato social”. É possível que o conservadorismo simplista tente se impor com am- paro na preservação formal da maior parte dos dispositivos da parte geral das obrigações, cumprindo então a todos os operadores a tarefa de afastá-lo, dando curso normal aos anseios do legislador, tão claramente manifestos na Exposição de Motivos do novo Código. Afi nal, se de fato há a manutenção da literalidade dos dispositivos do Código Beviláqua em grande parte dos artigos contidos no Livro das Obrigações, estes ganharam potencialidade antes não concebível, o que, sem dúvida, transmuta-os em sua própria essência. Pois essa transformação normativa acaba por conciliar o novo Di- reito das Obrigações com o esforço de aperfeiçoamento do processo contratual levado a cabo pelo legislador do CDC, um esforço que se refere não só aos meios de conduzir esse processo, mas, sobretudo, aos seus fi ns, que nunca poderão se confundir com aqueles visados por uma só das partes. II — A NOVA PRINCIPIOLOGIA Os antecedentes acima descritos impõem à teoria contratual uma profunda revisão. Para tanto, cumpre investigar quais de seus funda- mentos podem ser mantidos e quais devem ser afastados, por com- prometidos; quais de seus princípios permanecem e quais devem ser esquecidos; e, ainda, como esses princípios devem ser articulados entre si, ou seja, como serão inter-relacionados e conciliados (e aqui se faz alusão à distinção entre normas e princípios, segundo Ronald Dworkin (Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978), as normas seguem o comando “all or nothing”: diante de uma contra- dição, uma deve cair; por sua vez, os princípios, mesmo diante de uma contradição, não perdem validade, podem ser afastados em determina- da situação concreta mas não perdem validade). Se a premissa da igualdade deve ser afastada, como se viu, com ela a da autonomia absoluta da vontade — que só era justifi cada pela auto- -limitação das vontades equipolentes (se uma vontade sobressai e se DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 26 1 Neste trabalho, entende-se inadequa- da a classifcação das exigências gráfi cas como exigências de forma. São, em ver- dade, exigências de solenidade, como se verá no Capítulo III, item II.A.2. impõe à outra pela força, não há mais possibilidade de limitação priva- da) — e a da liberdade contratual absoluta. Ao falar sobre o desenvolvimento da teoria de Ludwig Raiser sobre a justifi cativa da liberdade contratual, Joaquim de Sousa Ribeiro pos- tula que esta somente poderia ser vista e entendida com um sentido teleológico: “é pela sua natureza de elemento constitutivo de uma ordem jurídico-social idealizada que a liberdade contratual se deixa fundamentar (...) Cunhada, de antemão, pelos traços delimitativos que resultam de sua integração na ordem jurídico-econômica global e pelas funções específi cas que, enquanto princípio regulador, aí desempenha, a liberdade contratual, enquanto faculdade, não pode ser reivindicada como algo de absoluto ou formal, desprendido de qualquer injunção fi nalizadora” (O Problema do Contrato — As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual. Coimbra: Almedina, 1999. p. 502). Assim, se a liberdade contratual é exercida contrariamente a essa função, há abuso de uma posição subjetiva, que, então, passa a ser ob- jeto de controle. O princípio da obrigatoriedade dos contratos, que encontrava su- porte na ética de compromisso assumido por iniciativa e vontade pró- prias no exercício da liberdade individual, perdeu, conseqüentemente, esse ponto de apoio, passando-se a admitir que pudesse ser colocado de lado quando aquela condição essencial não era verifi cada. O princípio do consensualismo é tido por um dos mais atingidos. As exigências gráfi cas que envolvem a elaboração das cláusulas do con- trato, destinadas a garantir umamelhor apreensão do programa contra- tual, vêm sendo identifi cadas com um renascimento do formalismo: “le formalisme connâit une renaissance évidente comme mode de protection. Si le consensualisme reste de règle, le législateur subordonne de plus en plus souvent la conclusion du contrat au respect de certes exigences formelles” (FONTAINE, Marcel. La Protection de la Partie Faible dans les Rapports Contractuels (Rapport de Synthèse) in La Protection de la Partie Faible dans les Rapports Contractuels. Paris: LGDJ, 1996. p. 615-53). De todo modo, se as exigências gráfi cas1 acabam reduzindo a área de concessão do monopólio da vontade na criação de obrigações, não chegam a afetar a função histórica do princípio, ligada ao reconhe- cimento do todo da relação contratual entre os celebrantes, já que a inobservância das regras de solenidade vicia apenas as cláusulas que não se conformaram. Deve ser lembrado, ainda, que, dentre nós, tais exigências ainda se restringem aos contratos de consumo, não havendo, nesse ponto, uma regulação genérica, no âmbito civil, para as “ccg” ou contratos de adesão. DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 27 2 Não obstante o idealismo ínsito à noção contratualista de “volonté géne- rale”, a representação de uma vontade coletiva não deixa de refl etir parte de sua função. É possível dizer que o princípio do consensualismo permanece, mas o “solus consensus obligat” deve receber uma leitura diferente, tendo em conta que, se, em regra, ainda basta o consenso para obrigar, este deve se formar sob a cada vez mais limitada esfera de atuação da vontade individual. Porém, a maior ameaça ao prestígio e à relevância desse princípio talvez resida no âmbito da formação dos contratos de consumo. É que, ali, como se verá, o consenso é, em certos casos, verdadeiramente des- tituído de sua função criadora de vínculos. Se a ameaça representada pelo formalismo fere seu monopólio mas não o alija do processo de formação dos contratos, dividindo com ele essa função, na formação dos contratos de consumo ele deixa de ser um etapa do processo que, em determinadas situações, pode ser concluído sem a sua participação. Vê-se que, seja ela qual for, a nova teoria contratual terá sido cons- truída como uma reação ao individualismo e ao reconhecimento abso- luto da autonomia da vontade individual. Em verdade, está vinculada, no campo fenomenológico, à redução da esfera de liberdade dos indi- víduos com a correspondente intensifi cação do papel da lei e do Estado (que, através do juiz, pode ali intervir). Se é possível dizer que a lei é expressão de uma, por assim dizer, “vontade coletiva”2, essa nova teoria importa em uma re-alocação de forças entre esta e a vontade individual. Essa ampliação do campo de atuação daquela “vontade coletiva”, com a conseqüente redução do campo da vontade individual (antes restrito, praticamente, à esfera dos deveres militares e tributários), é uma tendência que tem se verifi cado de modo geral nessa nova fase da teoria contratual, pois, segundo Ricardo Luis Lorenzetti, “trata-se de evitar que a autonomia privada imponha suas valorações particulares à sociedade; impedir-lhe que invada territórios socialmente sensíveis (...) de evitar a imposição a um grupo, de valores individuais que lhe são alheios” (Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: RT, 1998. p.540). Nessa direção posiciona-se o recém reconhecido princípio da função social dos contratos. I. — A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS Enzo Roppo já dizia que os contratos não podem ser enxergados ex- clusivamente sob a ótica jurídica. Como todos os conceitos de Direito, “refl ectem sempre uma realidade exterior a si próprios, uma realidade de in- teresses, de relações, de situações económico-sociais, relativamente aos quais cumprem, de diversas maneiras, uma função instrumental” (op.cit. p.7). DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 28 No contexto, o autor pretendia demonstrar a importância da expres- são econômica do contrato na sua interpretação e no seu tratamento jurídico, lembrando que ele sempre cumpre uma função dessa ordem. Mas essa função não é a única, até porque, como os demais ‘fi os’ de expressão da vida humana (religiosa, política, cultural,jurídica etc.) toma parte na conformação da própria ‘trama’ social. A circulação de riquezas que o contrato, de certa forma, sempre proporciona, através da transferência de bens e tecnologia que enseja, é prova signifi cativa dessa participação. Portanto, todo contrato tem já a sua infl uência no âmbito social. Pois a partir do momento em que essa infl uência passou a ser objeto de atenção por parte dos juristas, surgiu a noção de “função social dos contratos”, da mesma forma que antes fora reconhecida a função social da empresa e da propriedade (no caso dos contratos, essa preocupação com o interesse social em um campo antes dominado exclusivamente pelo jogo das vontades individuais, é mais um refl exo do reexame das fundações de sua teoria geral). Segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, “o princípio da função social deter- mina que os interesses das partes do contrato sejam exercidos em conformi- dade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem” (Princípios Sociais dos Contratos no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Có- digo Civil. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo. v.11. n.42. p. 187-95). Mas essa consideração a um “ideal” coletivo não é, contudo, própria da função social. É comum a todas as vertentes de incidência da ordem pública, dentre as quais se poderia incluir a boa-fé objetiva. E é esse vetor comum que acaba levando a interseções conceituais que confundem seus campos de atuação e prejudicam sua efi cácia. Des- de já devem ser evitadas em honra à precisão terminológica. Importa, pois, distinguir essas noções. No que respeita aos contratos, a ciência já é capaz de identifi car duas vertentes de aplicação da idéia de ordem pública: o princípio da boa-fé e a função social. Ambos formam campos especializados de incidência daquele item fundante da ordem jurídica, ainda que cada um opere em uma determinada esfera e com metas particulares. A boa-fé, de seu lado, se presta à garantia de que uma conduta so- cialmente aceita e prescrita como modelo de interação individual seja observada por cada uma das partes no contrato que as entrelaça. O controle que eventualmente permite é referente a um interesse imediatamente individual (que abomina uma conduta em desconside- ração à “etiqueta” das relações) mesmo que, mediatamente, venha aten- der à ordem pública que, dentro de suas prescrições, inclui a ‘eticidade’ DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 29 (reporta-se, aqui, à linguagem divulgada pela Exposição de Motivos do Novo Código Civil). Já a função social não se identifi ca diretamente com um interes- se individual, remetendo à proteção de um interesse difuso ameaçado pelo exercício da liberdade de contratar (o que não impede que, even- tualmente, sirva para garantir indiretamente um interesse individual compatível com o coletivo). A função social diz respeito ao campo da ‘socialidade’, que, juntamente com a ‘eticidade’, caracteriza o estatuto de uma sociedade que “tenta ultrapassar o individualismo” (MARTINS- -COSTA. O Novo Código Civil Brasileiro: Em Busca da “’Ética da Si- tuação’”, in Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. p.131). Portanto, não se afi gura adequada a conceituação da função social que, confundindo-a com a boa-fé, pretenda vê-la como instrumento de defesa do indivíduo no inter-relacionamento privado, especialmente no que se refere a um equilíbrio de prestações, como vem sendo defen- dido por alguns autores. Menos adequada ainda é a identifi cação da função social com a pró- pria ordem pública, a que a escassa precisão na delimitação do tema e a ampliação desmedidadaquele conceito podem conduzir. De fato, de nada valem as conceituações que apresentam a função social como o instrumento de garantia de um interesse social nos contratos, sem que se lhe indique um uso específi co, pois essa garantia é tarefa do próprio ordenamento jurídico, através da idéia de proteção da ordem pública que, por sua conotação abrangente, justifi ca, em última análise, todo o controle incidente sobre o exercício da liberdade individual em suas variadas manifestações, desde o âmbito civil, passando pelo âmbito ad- ministrativo, até o âmbito penal. A ordem pública pode ser vista como um instrumento de auto- -referência ou “autopoiesis” do sistema, na medida em que controla as manifestações — não só as leis — contrárias à sua própria justifi cação, à sua “ordem de valores”, como diz RIBEIRO: “entre esses limites (à atuação dos agentes), e ao lado do que resultam da projeção, no campo do direito, de regras basilares da moral social (...) contam-se os que perma- necem originariamente do próprio ordenamento jurídico. E não só os que pontualmente explicita, através de regras cogentes, mas também os que são dedutíveis da totalidade de sentido dos princípios fundamentais em que assenta o conjunto da ordem jurídica ou alguns dos institutos que a com- põem” (op.cit. p.526). Seria a ordem pública, nesse entender, o que justifi caria a concessão de vantagens a uma parte reconhecidamente debilitada (como ocorre no âmbito das relações de consumo), a restrição a determinadas práti- DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 30 cas e o controle das cláusulas contratuais gerais, tudo para assegurar o equilíbrio na contratação que é base de sustentação do sistema. Pois sem as devidas especifi cações, a função social se torna difusa, mera aplicação da idéia de ordem pública no direito contratual, pouco ganhando em termos de precisão conceitual. Em verdade, é justamente a maior precisão conceitual que deve caracterizar a função social em relação à ordem pública, pois, como também se deu com a boa-fé, foi obtida exatamente no esforço de de- marcação de sua incidência. A idealização do modelo de conduta (no caso da boa-fé) e a desco- berta de um emprego do contrato para além do exercício da liberdade dos indivíduos nele envolvidos (no caso da função social), são como “mapeamentos” de uma pequena “área” do “território” muito pouco desbravado da ordem pública, que certamente contribuem para que sua abrangência e conteúdo sejam — ao menos em parte — defi nidos. A efetiva aplicação desses instrumentos na regulação de confl itos reais representa, então, a realização da própria idéia de ordem pública; a concretização de uma abstração. Todas essas idéias (‘ordem pública’, ‘função social’ e ‘boa-fé’) são aparentadas, mas não podem ter seus conceitos superpostos. Por tudo, mesmo que se admita que o desenvolvimento científi co pode ser sempre colhido em meio à riqueza da diversidade de opini- ões e teses, já é hora de seguir o alerta de Humberto Th eodoro Junior e afastar a abrangência operacional da função social, colocando-a em limites que se possam conhecer — e, conseqüentemente, reivindicar — para a melhor e mais efi caz aplicação do Direito: “em face dessa es- trutura de codifi cação inovada, a conceituação de função social do contrato não deve ser tão genérica que abranja tanto o comportamento interno dos contratantes entre si, como o comportamento externo deles, perante o meio social em que o negócio projeta seus efeitos” (Os Contratos e sua Função Social. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.36) Porém, ao contrário do que parece defender esse autor, o balizamen- to da função social não passa pela sua interferência na relatividade. A — A Função Social, a Relatividade e a Liberdade Contratual Preocupado em afastar um entrelaçamento conceitual entre a boa- -fé e a função social e deixar de lado todas as tentativas de enxergar na função social uma ferramenta de controle do âmbito interno do con- trato (tarefa cuja relevância já foi destacada), THEODORO Jr. parece perder-se na conceituação da fi gura. Acaba apresentando uma visão dirigida exclusivamente para o âmbito dos efeitos do contrato perante DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 31 terceiros: “o que surgiu desses estudos de interferência do contrato no meio social foi a sistematização dos denominados ‘efeitos externos das obrigações’. A correspondência imediata se faz sentir na fl exibilização que se teve de admitir para o clássico princípio da relatividade dos efeitos do contrato” (op.cit. p.39). Decerto que a infl uência da função social na revisão do princípio da relatividade não pode ser desconsiderada. Para além dos interesses individuais das partes, impõe a considera- ção de interesses outros, difusos, concernentes ao conjunto dos mem- bros da comunidade em que o negócio se insere e para a qual ganha relevância, levando ao reconhecimento de deveres em face de tal grupo. Pois quando o Direito admite que a esses deveres podem correspon- der prerrogativas e pretensões dirigidas às partes, passa a reconhecer no- vos efeitos ao contrato que não se restringem à relação básica, fi cando aberto o caminho para a revisão do princípio da relatividade. Nesse sentido, a conclusão da Jornada de Direito Civil, grupo de Estudos formado para debater o Novo Código Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no perí- odo de 11 a 13 de setembro de 2002 (Enunciado n. 21: “a função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do con- trato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito”). Todavia, a revisão dimensional da relatividade é apenas uma das conseqüências da funcionalização social do contrato. Não é a única e nem serve para delimitar seu conceito ou alcance. As análises que se concentram demasiadamente nessa resultante (vide, p.ex., THEODORO Jr., op. cit.; e a riquíssima obra de Teresa Negreiros: Teoria do Contrato — Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Re- novar, 2002), pecam por deixar em segundo plano a mais importante conexão da fi gura: a liberdade contratual. Em verdade, é nela que a função social encontra seu principal cam- po de incidência, o alvo primordial de seu emprego, onde originalmen- te teve reconhecida a sua operação. Não que deva ser reduzida a mera exceção casuística ao princípio da liberdade de contratar, como bem lembra Claudio Petrini Belmonte: “a liberdade contratual não pode ser concebida inicialmente com algo de absoluto, para só depois a confrontarmos com seus limites, com ingerências compressoras do ordenamento” (Principais Refl exos da Sociedade de Massas no Contexto Contratual Contemporâneo. Revista de Direito do Consu- midor. São Paulo. v.11. n.43. p. 133-57). É preciso que se lhe apreenda em conexão com seu devido campo de atuação, conforme o seu desenvolvimento histórico: “assim como DIREITO DOS CONTRATOS FGV DIREITO RIO 32 ocorre com a função social da propriedade, a atribuição de uma função social ao contrato insere-se no movimento de funcionalização dos direitos subjetivos: atualmente admite-se que os poderes do titular de um direito subjetivo estão condicionados pela respectiva função (...) portanto, o direito subjetivo de contratar e a forma de seu exercício também são afetados pela funcionalização, que indica a atribuição de um poder tendo em vista certa fi nalidade...” (MARTINS-COSTA. O Novo Código Civil... p.158). Ao falar sobre o princípio da liberdade de contratar, embora sem mencionar diretamente a função social, Enzo Roppo proporciona um vislumbre desse conteúdo histórico, como contraponto à liberdade de contratar: “os limites a uma tal liberdade eram concebidos como exclusi- vamente negativos, como puras e simples
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