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AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA E LETRAMENTO

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AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ESCRITA
E LETRAMENTO
Profa. M. Sc. Laise Brandão N. Borges
A aquisição de linguagem é uma área de estudos que fascina o homem. Em primeiro lugar esse fascínio está ligado aos processos filogenéticos da linguagem, ou mais especificamente, como apareceu a primeira palavra como atividade humana. Em segundo lugar existe a determinação ontogenética que tem como foco a preocupação de estabelecer como o homem faz uso da linguagem a partir do seu nascimento.
A aquisição de linguagem escrita não foge desses dois focos acima citados. É uma preocupação estabelecer a gênese da escrita na sociedade humana como também é uma necessidade conhecer quais os caminhos que a criança percorre para fazer uso dessa modalidade de linguagem.
Nossa atenção neste trabalho é analisar a aquisição da linguagem escrita pela criança suscitando um espaço de reflexão e ação sobre o que chamamos de problemas da e na escrita que a criança pode apresentar.
Primeiramente partimos de uma base que considera a escrita como parte do processo geral de aquisição de linguagem da criança e como tal ela não se apresenta como um produto escolar, mas como um domínio de uma modalidade de linguagem presente na sociedade. 
Nossa preocupação aqui será entender como a criança se relaciona com essa modalidade de linguagem enfocando no processo de aquisição da linguagem escrita, o letramento, a alfabetização e a escolarização como processos distintos e intercambiantes.
A escrita está presente na cultura e representa um processo simbólico que possui um estado de valor para o sujeito e para a sociedade, originando transformações tanto nos que a utilizam como é modificada pelos seus usuários.
Procuramos neste texto fazer um diálogo com três áreas do saber para realizar uma discussão sobre a aquisição da escrita. Buscamos na lingüística uma concepção de linguagem para sustentação da nossa discussão e também por se tratar de um processo de linguagem e sua problematização. Na psicologia cognitiva, fomos buscar o aporte necessário para compreender o processo de desenvolvimento e aprendizagem realizado pela criança no qual a linguagem escrita está inserida. E na fonoaudiologia, buscamos entender os processos idiossincráticos pelos quais a criança adquire a escrita e quando esses processos são considerados distúrbios.
PONTO DE PARTIDA: CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM
Ao considerarmos a linguagem escrita, como um processo inserido no processo geral de aquisição de linguagem, partimos de uma concepção de linguagem orientada pelo seu uso. Neste caso a linguagem não é vista como algo estático, mas possui um dinamismo próprio sempre em construção. A visão da linguagem como código fica descartada, pois implica numa postura de produto acabado e transparente que o indivíduo se apropria sem reflexão e ação sobre ela.
Concordamos com Buin (2002) que a linguagem se realiza por meio das interações com o Outro como co-partícipe construindo sua linguagem e sendo também construído por ela. No uso da linguagem existe um outro presente, considerando essa presença, no momento da escrita de um texto, como um elemento imaginário. É nesta interação, compartilhada com o outro, presente ou imaginário, que se faz uso da linguagem verbal na modalidade oral ou escrita. Partimos assim de uma concepção dialógica da linguagem. 
Bakhtin (1995) ao tratar da linguagem como um processo dialógico concebe a enunciação como um produto da interação de dois sujeitos que pertencem a um grupo social. O autor determina de modo enfático que o interlocutor não é abstrato, pois não haveria linguagem com esse interlocutor, acrescentando ainda que a palavra ao dirigir-se a um interlocutor é função desse interlocutor apresentando variações pertinentes ao momento da enunciação. Ainda considerando a relação palavra e interlocutor no processo da enunciação o autor afirma:
Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que precede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda a palavra serve de expressão a um em relação ao outro. (Bakhtin, 1995, p.113) 
Ao considerarmos a escrita como uma modalidade de linguagem presente na cultura, e com características dialógicas, mudamos também a proposta de texto escrito como um elemento estático e idealizado no qual são só observados os elementos do sistema lingüístico. O texto escrito passa ser um momento de enunciação, como ocorre nos enunciados orais, só que com características específicas da modalidade da linguagem escrita. 
Bakhtin (1992) considera que o enunciado é formado por um conteúdo temático, um estilo e uma construção composicional que marcam uma esfera específica de comunicação aliada às diversas esferas de atividade humana. Denomina de gêneros de discurso aos tipos relativamente estáveis de enunciados utilizados em cada esfera de utilização da língua.
Ainda considerando a diversidade dos gêneros de discurso o autor considera que a variedade da atividade humana é infinita e os gêneros discursivos tendem a acompanhar essa variedade tornando-se incomensuráveis. Essa variedade dos gêneros de discurso está relacionada com a variedade de objetivos de quem fala ou escreve. Os gêneros de discurso se caracterizam por uma heterogeneidade que vai desde o diálogo cotidiano, passando pelo relato familiar, documentos, modos literários e vários outros.
Segundo o autor, os gêneros de discurso estão divididos em dois tipos: o gênero de discurso primário (simples), normalmente constituídos numa situação de comunicação verbal espontânea e os gêneros de discurso secundários (complexos), que surgem a partir de uma comunicação cultural mais complexa, primordialmente a escrita: o romance, o teatro, o discurso ideológico, o discurso científico. A formação dos gêneros secundários se efetua por meio da utilização e transformação dos gêneros primários. 
Para o autor a língua escrita é marcada tanto pelos gêneros de discurso tanto secundário, como primário, considerando seu desenvolvimento. A modificação da língua escrita, que incorpora elementos da língua popular, atinge todos os gêneros propiciando mudanças do todo verbal criando novos lugares ao ouvinte ou ao seu parceiro provocando deste modo uma reestruturação dos gêneros de discurso. 
É nesta perspectiva da língua como elemento presente na dialogia e como processo de utilização da linguagem que vamos focar a linguagem escrita. A escrita compreendida numa dimensão dinâmica que sofre transformações dos seus usuários e que transforma esse mesmo usuário no momento enunciativo. 
 
Pensamento e linguagem
Vygotsky (1998) ao realizar um estudo do comportamento humano opta por meio de uma psicologia historicamente fundamentada, pois só assim pode realizar um estudo que prevê um processo de mudança, sendo um requisito básico do método dialético no qual apóia seus trabalhos. Ao pesquisar o processo de desenvolvimento de um determinado objeto deve-se conhecer todas as transformações que podem estar presentes neste processo e descobrir sua essência afirmando que “é somente em movimento que um corpo mostra o que é” (Vygostky, 1998, p.86)
O autor considera que qualquer forma elementar de comportamento é marcada por uma reação direta que o organismo apresenta frente a uma situação-problema, o que resultaria na condição tão divulgada pela teoria associacionista tipo estímulo (S)- resposta (R). Só que há uma mudança radical de interpretação desse fenômeno quando surge o signo como elo intermediário entre o estímulo e a resposta. O signo como elo intermediário assume a configuração de um estímulo de segunda ordem que tem uma função especial no interior da operação S e R, criando uma nova relação entre esses dois elementos. Essa relação é marcada pelo engajamento do indivíduo com o signo. O signo age sobre o indivíduo produzindo uma ação reversa, ou seja, o signo não age sobre o ambiente, mas sim sobre o indivíduo.
Para o autor, o signo, possuindo a função específica de ação reversa, determinaà operação psicológica transformações qualitativas novas e superiores, propiciando aos seres humanos controlar o seu comportamento a partir de estímulos extrínsecos. Ao usar os signos o indivíduo apresenta uma estruturação específica de comportamento não de base biológica, e sim estruturada culturalmente criando novas formas de processos psicológicos.
Para o autor, a operação com signos resulta de um processo longo e complexo subordinado às leis básicas da evolução psicológica. A utilização de signos pelas crianças surge de outras operações, que nas suas origens não são operações simbólicas, que passam por transformações qualitativas formando estágios ligados entre si e tem natureza histórica. 
Vygotsky, ao considerar as funções psicológicas superiores como fator de desenvolvimento psicológico, muda o próprio conceito de desenvolvimento, distinguindo no processo geral do desenvolvimento duas linhas qualitativamente diversas de desenvolvimento em relação a sua origem. Numa linha estão os processos elementares do desenvolvimento que são de origem biológica. Na outra linha, as funções psicológicas superiores que são de origem sócio-cultural.
A história do comportamento da criança nasce do entrelaçamento dessas duas linhas. A história do desenvolvimento das funções psicológicas superiores seria impossível sem um estudo de sua pré-história, de suas raízes biológicas, e de seu arranjo orgânico. As raízes do desenvolvimento de duas formas fundamentais, culturais de comportamento, surge durante a infância: o uso de instrumentos e a fala humana. Isso, por si só, coloca a infância no centro da pré-história do desenvolvimento cultural (Vygotsky, 1998, p.61). 
O autor afirma que a criança, ao incorporar a fala e o uso dos signos às suas ações, estas se transformam, organizando-se no decorrer de linhas completamente novas. É por meio da fala que a criança controla o ambiente, antes de controlar seu comportamento. Para o autor, esse fato cria novas relações com o ambiente e surge uma nova organização do próprio comportamento da criança. 
 Segundo Vygotsky, para as crianças fala e ação fazem parte da mesma função psicológica complexa, isto é, as duas convergem para a solução de um problema pela criança. A fala da criança tem a mesma importância da ação para a conquista de um objetivo. Para o autor, a fala da criança terá maior importância quanto mais complexa a ação a ser realizada e mais difícil sua solução. Muitas vezes a fala para a criança pequena apresenta uma importância fundamental, a ponto de ela não chegar a uma solução de um problema se não lhe for permitido o uso da fala.
O autor aborda a questão do desenvolvimento considerando, primeiramente, a relação entre aprendizado e desenvolvimento e, em seguida faz um levantamento das características dessa relação, quando a criança chega à idade escolar. Para o autor, o aprendizado da criança se inicia antes de ela fazer parte do ambiente escolar, isto é, quando a criança começa sua vida escolar, já vivenciou várias situações de aprendizado que se constituem numa história prévia ao aprendizado escolar.
Vygotsky determina dois níveis de desenvolvimento para o estudo das relações entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizado da criança. O primeiro nível, o autor chamou de desenvolvimento real, que determina o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança resultante de alguns ciclos de desenvolvimento que se apresentam completos. O segundo nível é chamado pelo autor de desenvolvimento potencial, que é determinado pela condição de a criança resolver um problema sob a supervisão de um adulto ou outra criança mais capaz. A distância entre o desenvolvimento real e potencial Vygotsky chamou de zona de desenvolvimento proximal, que corresponde às funções que estão amadurecendo na criança, caracterizando o desenvolvimento no aspecto prospectivo, ou seja nas funções que estão em processo embrionário e que surgirão. 
Vygotsky, ao fazer considerações sobre a aquisição de linguagem considerando a relação aprendizado e desenvolvimento, propõe que primeiramente a criança tem na linguagem um meio de comunicação entre ela e as pessoas que pertencem ao seu ambiente. Ao converter-se em fala interior, a linguagem passa a ter função organizadora do pensamento da criança, isto é, surge como uma função mental interna. 
Segundo o autor, ao propor que um fator fundamental do aprendizado é a criação da zona de desenvolvimento proximal, ele está considerando que esse aprendizado incide nos diversos processos de desenvolvimento que surgem nas situações de interação da criança com o outro e que ao serem internalizados pela criança fazem parte de seu desenvolvimento.
Ao tratar da aquisição da linguagem escrita, o autor aponta dois momentos muito distintos: primeiramente, a escrita que a criança apresenta antes de seu ingresso na escola, que desempenha um papel significativo no seu desenvolvimento cultural e, depois, a escrita institucionalizada, que aparece como prática escolar. 
Vygotsky aponta que, diferentemente da aquisição da linguagem falada, que é realizada pela criança de forma natural, a escrita no âmbito escolar se realiza por meio de um treino artificial que marginaliza a aquisição da linguagem escrita como um processo vivo a um segundo plano.
Para o autor, a linguagem escrita não se resume a uma atividade motora, ela é um sistema particular de símbolos e signos que determina transformações muito significativas no desenvolvimento cultural da criança.
Para Vygotsky, a história do desenvolvimento da linguagem escrita mostra um processo de aquisição descontínuo com movimento progressivo e o surgimento de novas formas particulares de escrita alternadas por processos de redução, “desaparecimento e desenvolvimento reverso de velhas formas” (Vygotsky, 1998. p.141).
 Vygotsky faz uma relação entre o simbolismo presente no gesto, no brinquedo, no desenho com o simbolismo na escrita. Para o autor, o gesto é o signo visual no qual está presente a futura escrita. Existem dois domínios que mostram a ligação dos gestos à origem dos signos escritos. Um desses domínios é o dos rabiscos e desenhos infantis, pois na maioria das vezes que a criança quer desenhar ela usa gestos para mostrar o que pretende fazer. O outro domínio que une os gestos à origem da linguagem escrita são os jogos das crianças. O fato de a criança usar um processo representativo no ato de brincar, no qual objetos distintos podem denotar outro objeto, constitui a função simbólica do brinquedo. O autor considera o brinquedo simbólico das crianças um sistema complexo de fala realizado por meio de gestos que determinam os significados dos objetos usados na brincadeira.
O autor considera que a escrita inicial da criança, denotando diretamente objeto e ações, compreende um simbolismo de primeira ordem. Quando a criança utiliza os sinais escritos como representativos dos símbolos falados das palavras há uma evolução do uso da escrita para um simbolismo de segunda ordem. Para que isso ocorra, a criança precisa descobrir que se pode desenhar, além de objetos, também a fala. Gradualmente, a compreensão da linguagem escrita, como desenho da fala, é reduzida, desaparecendo a fala como elo intermediário, e a linguagem escrita surge como simbolismo direto, passando a ser percebida como uma modalidade de linguagem. A aquisição e o desenvolvimento da linguagem escrita e da capacidade de leitura pela criança possibilitam a ela enormes transformações no seu desenvolvimento cultural.
Letramento e alfabetização
Ao considerar a linguagem escrita como parte do processo de Aquisição de Linguagem, considerando seu advento antes do desenvolvimento da escrita institucionalizada, cabe uma consideração sobre letramento inserido numa visão sócio-histórica.
Buscamos os trabalhos de Kleiman (1999) e Tfouni (2000) que focalizam o letramento numa visão sócio-histórica da aquisição da escrita. 
Tfouni (2000) considera os sistemas de escrita como um produto cultural de uma dada sociedade,enquanto o letramento e a alfabetização se constituem como processos de aquisição do sistema escrito. A alfabetização está vinculada à aquisição da escrita por meio da aprendizagem da leitura e da escrita, realizadas durante o período de escolarização, pertencendo ao plano individual. O letramento procura levantar os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita de um dado grupo social. Para a autora, o letramento tem por objetivo ”investigar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é alfabetizado, e, nesse sentido, desliga-se de verificar o individual e centraliza-se no social” (Tfouni, 2000, p.10). 
A autora considera escrita, letramento e alfabetização processos interligados, mas distintos quanto à abrangência e natureza. Para a autora, o letramento não acompanha o processo de escolarização.
Tfouni concebe a escrita como um produto cultural, tendo no livro o resultado máximo dessa atividade humana. O processo de disseminação da escrita pelas sociedades antigas foi lento e determinado por conjunturas político-econômicas. A escrita não se apresentou apenas com o objetivo de difundir idéias, mas, muitas vezes, funcionou com objetivo contrário, ou seja, ocultar idéias para permitir a perpetuação do poder.
Segundo Tfouni existe uma associação da escrita desde suas origens às situações de poder/dominação e participação/ exclusão que marcam as relações sociais quanto ao seu aspecto ideológico e apontam as determinantes do desenvolvimento sócio-cultural de um povo e de seus hábitos de comunicação.
 
A autora concebe a escrita como uma das principais causas do surgimento das civilizações modernas bem como do seu desenvolvimento tecnológico e psicossocial. Entretanto, não é possível desconsiderar as relações de poder e dominação que estão subjacentes à utilização restrita ou generalizada do código escrito por uma determinada sociedade.
Para a autora, a alfabetização se apresenta na sociedade de duas formas: como um processo de aquisição individual desenvolvendo habilidades para a leitura e escrita, ou como um processo de representação de diversos objetos, de várias naturezas. Para a autora, sendo um processo, a alfabetização apresenta uma idéia de incompletude. A necessidade de controle dos objetivos a ser atingidos faz parte da escolarização e não da alfabetização. Do ponto de vista sócio-interacionista a alfabetização não é um processo que se completa no plano individual, pois as mudanças são constantes na sociedade sendo necessário o acompanhamento dessas mudanças. 
Tfouni, ao referir-se à alfabetização como processo de representação, enfoca o aspecto de simbolização que deve ser privilegiado, deixando de considerar a alfabetização apenas como um processo de codificação/decodificação gráfica. Sob o enfoque da representação, a alfabetização passa a não ser mais vista como o ensino de um sistema gráfico que apresenta seu correspondente sonoro. A relação oralidade/escrita não é de dependência da primeira modalidade de linguagem em relação à segunda, mas de influência mútua dessas duas modalidades de linguagem. 
Segundo a autora, a alfabetização não deve ser considerada como um processo linear, nem confundida com a escolarização, mas deve ser compreendida como um processo envolvendo vários níveis de complexidade, contemplando diferentes objetos construídos pela criança. 
 Para a autora, o letramento analisa os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita por uma determinada sociedade. Assim, os estudos sobre letramento não estão vinculados somente aos indivíduos alfabetizados, mas a todos os indivíduos de uma sociedade, alfabetizados ou não. A ausência da escrita e suas conseqüências no plano social fazem parte dos estudos sobre letramento.
Para a autora existem graus de letramento de um grupo social e o termo iletrado não se refere a um letramento de grau zero, pois isso seria inexistente nas sociedades modernas, considerando o ponto de vista sócio-histórico. Segundo Tfouni “... o iletrado não existe, enquanto ausência total, nas sociedades industrializadas modernas” (Tfouni, 2000. p. 24). 
A autora rompe com a perspectiva etnocêntrica, assumida por alguns pesquisadores, sobre aquisição da escrita como necessária para o desenvolvimento do pensamento lógico e compreensão de silogismos. Mesmo o sujeito não alfabetizado apresenta capacidade de descentrar seu raciocínio e solucionar problemas estabelecidos no plano da dialogia.
Assim, para a autora, não é o fato de ser alfabetizado que permite ao sujeito desenvolver seu pensamento lógico, mas como a sociedade letrada confere um espaço a esses indivíduos, alfabetizados ou não. 
Tfouni afirma que nas sociedades industriais modernas conjuntamente com o desenvolvimento científico e tecnológico, conseqüência do letramento, há um desenvolvimento de pequenos grupos sociais independente da alfabetização e da escolarização. Para a autora, esse desenvolvimento traz um lado negativo, que é a alienação dos indivíduos do “seu próprio desejo, de sua individualidade, e, muitas vezes de sua cultura e historicidade” (Tfouni, 2000, p.27). 
Comunidades não - alfabetizadas passam a desconsiderar sua cultura, seu processo de conhecimento como conseqüência do letramento, determinando uma relação de tensão entre poder, dominação, participação e resistência. Esses elementos não devem ser ignorados, quando se trata da escrita nos seus distintos processos: alfabetização e letramento. 
 Tomando o letramento numa perspectiva histórica, a autora procura fazer uma relação letramento/autoria para indicar a dupla articulação entre o oral/escrito podendo haver características orais no discurso escrito e marcas de escrita no discurso oral. 
O conceito de autoria, para Tfouni, está ligado com a noção de sujeito do discurso. O autor estrutura seu discurso oral ou escrito considerando o princípio da contradição necessária e desejável que lhe permite uma auto - reflexibilidade crítica no interior desse discurso. A característica principal do discurso letrado é trabalhar nessa contradição. 
A função autor não é exclusiva de sujeitos alfabetizados, pois é função articulada a um determinado tipo de discurso, o discurso letrado, podendo ser produzido também por quem não domina o código escrito, por ser social e historicamente constituído. A dimensão histórica do letramento só será possível quando o sujeito tiver uma relação no interdiscurso que o leve a organizar o intradiscurso produzindo um texto.
 Kleiman (1999), ao propor um estudo sobre letramento, conceitua-o como a possibilidade de separar os estudos sobre as conseqüências sociais da escrita em relação à alfabetização, que apresenta conotações escolares, salientando habilidades individuais na prática da escrita.
Para a autora os estudos sobre letramento foram se ampliando e procurando pesquisar os uso da escrita, seus efeitos em grupos minoritários e sociedades não-industrializadas que ao entrar em contato com a escrita a concebiam como uma tecnologia dos grupos que mantinham o poder. 
Segundo a autora, o fenômeno do letramento ultrapassa o mundo da escrita da maneira como ela é concebida socialmente. A escrita institucionalizada presente na escola é apenas um tipo de letramento, que, para a autora, é um “processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual... ”(Kleiman, 1999, p.20). A autora considera a família, a igreja, a rua, o lugar de trabalho, agências de letramento com características diferentes da escola.
Kleiman refere-se a dois modelos de letramento: o autônomo e o ideológico. As práticas de uso da escrita na escola podem ser concebidas como modelo autônomo de letramento, desde que a escrita seja considerada um produto completo em si mesmo, ou seja, não teria vínculos com o contexto de seu processo de produção para ser interpretada.
Assim, a escrita representaria uma ordem diferente de comunicação, distinta da oral, pois a interpretação desta última estaria ligada à função interpessoal da linguagem, às identidadese relações que interlocutores constroem, e reconstroem, durante a interação (Kleiman, 1999, p.22).
Segundo a autora, o modelo autônomo apresenta outras características, como: faz uma correlação entre aquisição da escrita e desenvolvimento cognitivo; concebe dicotomicamente a oralidade e a escrita e confere poderes e qualidades à escrita e conseqüentemente aos povos que a apresentam. 
Kleiman critica a correlação entre desenvolvimento cognitivo e aquisição da escrita como elementos conseqüentes, pois o desenvolvimento cognitivo está ligado à escolarização, que não deve ser confundida com letramento. 
Para a autora, o modelo ideológico de letramento destaca que as práticas de letramento, além de terem um aspecto cultural, são determinadas pela estrutura de poder social e entende que as práticas de letramento mudam conforme o contexto. 
Segundo a autora, a escola geralmente apresenta o modelo autônomo de letramento, considerando a escrita como um processo neutro, que deve levar o aluno a desenvolver a capacidade de escrever e interpretar textos determinados como se fossem protótipos de textos escritos.
Para Kleiman, essa concepção de letramento, que vê a escrita como objeto, considera que o ensino tem como objetivo desenvolver um processo que levaria à produção de um objeto pré-definido e diferenciado formalmente do texto oral. 
Como esse objeto tem características lexicais e sintáticas que o diferenciam da oralidade, o ensino teria que estar baseado num conhecimento contrastivo das duas modalidades. Esse objeto revelaria também marcas estruturais de um planejamento prévio que resultasse num texto ordenado, seqüenciado, amarrado num tecido que constitui alguma forma estrutural reconhecível, do gênero narrativo, expositivo, argumentativo (Kleiman, 1999, p.46).
Para a autora são poucos os alunos que apresentam domínio e conhecimento no uso desse objeto, a escrita, conforme o que foi descrito. A autora aponta para a contradição na concepção de ensino da escrita como o desenvolvimento de habilidades que possibilitam a produção de texto abstrato, com modelos que consideram a aquisição da escrita uma prática discursiva. 
Kleiman, citando o letramento e alfabetização de adultos, mostra como o contexto de interação da sala de aula focaliza “a potencialidade de transformação da concepção de letramento dominante nesses contextos” (Kleiman, 1999, p.48). 
Concluindo, essas posições teóricas sobre a linguagem escrita são pautadas pela discursividade, pela dialogia e, portanto, têm como premissa um sujeito em relação com a linguagem, compreendida como forma de ação. A escrita é considerada como um processo de aquisição de linguagem e não produto de aprendizagem de um sistema pronto e fechado. Assim, a escrita transcende o código e passa a ser analisada por meio de seu caráter dialógico/discursivo. 
Referências Bibliográficas
BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. pp. 279 – 322.
BUIN, E. Aquisição da escrita: coerência e coesão. São Paulo: Contexto, 2002.
KLEIMAN, A. B. Introdução: o que é Letramento? Modelos de letramentos e as práticas de alfabetização na escola. In: KLEIMAN, A. B. (org.) Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1987. 
___________, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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