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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO ALAN ISAAC MENDES CABALLERO A DESIGUALDADE ENTRE OS SEXOS PELAS PERSPECTIVAS DE PIERRE BOURDIEU E SIMONE DE BEAUVOIR CAMPINAS 2016 ii Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação Rosemary Passos - CRB 8/5751 Informações adicionais, complementares Título em outro idioma: The inequality between sexes by Pierre Bourdieu and Simone de Beauvoir perspectives Palavras-chave em inglês: Bourdieu, Pierre, 1930-2002 Beauvoir, Simone de, 1908-1986 Sociology of education Bodies - Education Simbolic violence Área de concentração: Sociologia da Educação Titulação: Licenciado Banca examinadora: Maurício Érnica Data de entrega do trabalho definitivo: 21-11-2016 Powered by Caballero, Alan Isaac Mendes, 1994- C111d CabA desigualdade entre os sexos pelas perspectivas de Pierre Bourdieu e Simone de Beauvoir / Alan Isaac Mendes Caballero. – Campinas, SP : [s.n.], 2016. Cab Orientador: Antonio Carlos Dias Junior. Cab Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Cab 1. Bourdieu, Pierre, 1930-2002. 2. Beauvoir, Simone de, 1908-1986. 3. Sociologia da educação. 4. Corpo - Educação. 5. Violência Simbólica. I. Dias Junior, Antonio Carlos,1977-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título. iii _____________________________________________ Prof. Dr. Antonio Carlos Dias Junior _____________________________________________ Prof. Dr. Maurício Ernica iv UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÂO ALAN ISAAC MENDES CABALLERO A Desigualdade Entre Os Sexos Pelas Perspectivas De Pierre Bourdieu e Simone De Beauvoir Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, como pré- requisito para a formação em Licenciatura em Pedagogia, sob a orientação de Antonio Carlos Dias Junior. CAMPINAS 2016 v RESUMO Este trabalho concentra-se em refletir sobre a construção dos gêneros masculino e feminino a partir das literaturas O Segundo Sexo (1967;1970 [1949]), de Simone de Beauvoir (190-1986), e A Dominação Masculina (2003a [1998]), de Pierre Bourdieu (1930-2002), buscando nos conceitos dos autores formas de compreender uma educação que divide a humanidade em sexos (homens e mulheres) e atribui uma natureza própria a cada um deles, quando, na verdade, trata-se de uma construção social do papel a ser desempenhado e uma ocultação dessa arbitrariedade. Deste modo, a Mulher passa a viver o mito do Eterno Feminino, a barreira simbólica que a impede transcender de objeto social para um sujeito livre e criador de projetos, enquanto o Homem possui maior liberdade para realizar-se no mundo e deixar suas marcas nele. A literatura selecionada nos leva a concluir que existe um princípio de dominação do masculino sobre o feminino que se realiza através de uma educação baseada na violência simbólica, disciplinadora dos corpos, forçando-os a identificarem-se com o Homem (representação do masculino) ou com a Mulher (representação do feminino). Por meio desta educação para perpetuar a dominação, os homens contam com um maior estoque de capitais simbólicos para desenvolverem seu Eu e transcendê-lo, enquanto as mulheres vivem na imanência como o Outro nessa relação. PALAVRAS CHAVE: SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO; EDUCAÇÃO DOS CORPOS; VIOLÊNCIA SIMBÓLICA, SIMONE DE BEAUVOIR (1908-1986); PIERRE BOURDIEU (1930-2002) vi ABSTRACT This work is focused in reflect about the masculine and feminine gender construction by Simone de Beauvoir's (1908-1968) The Second Sex (1967; 1970 [1949]) and Pierre Bourdieu's (1930-2002) The Male Domination (2003a [1998]), searching in the autors concepts means to comprehend a education that divides humanity in sexes (men and women) and atribute their own nature to each of them, when actually it is a social construction of the role to be played and a ocultation of this arbitrariness. That way, the Woman lives the Eternal Feminine mith, the simbolic barrier what prevents her transcend from social object to a free and projects creator subject, while Man keep greater freedom to realize himself and let his marks in it. The selected literature lead us to conclude that exists a male domination principle on the femine which realize itself by education based on simbolic violence, disciplinarian of bodies, forcing them to identify themselves like Man (masculine representation) or like Woman (feminine representation). By this education to perpetuate the domination, the men have a bigger stock of symbolic capitol to develop their I and transcend it, while the women lives in immanence how the Other in this relation. KEY-WORDS: SOCIOLOGY OF EDUCATION; BODIES EDUCATION; SIMBOLIC VIOLENCE; SIMONE DE BEAUVOIR (1908-1986); PIERRE BOURDIEU (1930- 2002) vii AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente ao meu irmão, Alex, com quem pude discutir alguns problemas fundamentais e explicar coisas que nem eu entendia direito sobre este trabalho; conversas que ajudaram a formular melhor os conceitos que eu li. Como uma relação não é feita exclusivamente de conceitos acadêmicos que beiram da física à educação, aproveito para agradecer o amor e a liberdade. Provavelmente esta é a relação mais próxima que eu encontrei de uma moral existencialista, antes mesmo de sabermos qualquer coisa sobre ela (sorte a nossa!). À minha irmã, Agnes, simplesmente por existir, por me confiar seus segredos e parte de sua educação. Agradeço também a meu pai e a minha mãe pela preocupação de querer saber em que pé que anda o trabalho e a disponibilidade para comprar o material que eu achasse necessário para concluí-lo. Há também todo o carinho investido nesse processo, inclusive aquele que não fica explícito quando nos desentendemos. Ao meu orientador, Antonio, por me confiar certa liberdade nos prazos e nas datas de orientação, provavelmente presumindo que bastava eu anunciar os desastres que iam acontecendo na construção e iriamos resolvendo o que fosse aparecendo, o que foi muito positivo (ainda que o começo de novembro tenha começado com notícias extraordinárias sobre coisas que deixei de fazer); por compreender (ou suportar) os e-mails mais esquisitos que alguém poderia ler; por me incentivar a buscar uma bolsa da FAPESP; por não tornar a violência simbólica tão presente na relação professor-aluno, maior parte das vezes me fazendo esquecer que é uma relação professor-aluno com as conversas que nada têm a ver com a faculdade, com a orientação ou coisas do tipo. viii À toda a República Floresta, a saber: Augusto, Breno, Gabriel (melhor colega de quarto), Jauma, Ricardo, Stallin e Vinicius (ordem alfabética não é ordem de preferência, O.K?), mais os agregados: Gabi e Victor, pelas festas, pelos Mario Karts, pelos Dark Souls, por comprarmos a TV do Jauma, por me ensinarem algumas comidas, pelos bandecos, por fazermos do Ricardo um objeto de estudo através de Análise do Discurso toda vez que ele dá migué, por reclamarmos juntos da cachoeira na sala toda vez que chove, por colocarmos toda a culpa no Breno, por prestar atenção toda vez que o Gabriel fica naturalmente rosa, pelo Stalin que disponibiliza aquela planilha de contas todo santo mês, por doarem uma fatia de queijo quando preciso e por qualquer outra coisa que eu esqueci de colocar. Agradeço também às Capivaras: Caio, Daniel,Gustavo e Mateus. Agradecimentos que vão de sinuca a Super Smash Brawl; de Muse (e quero dizer Hysteria) a Radiohead; de lamentações sobre fins de relacionamentos a euforias de inícios de relacionamentos; pelos fins de semana em Itu; pelos rolês gourmet; por tudo que fizemos e por tudo que fazemos. À Julia, minha querida amiga de faculdade. Essa graduação seria muito mais complicada sem aquele momento de descer na cantina e comer; momentos terapêuticos de botar tudo para fora; ver e discutir de séries a greves; sofrer juntos por motivos que só nós graduandos pedagogia entendemos; pelas caronas muito oportunas. À Walter e Joyce, amigos de longa data, pelas conversas e pelo tempo que passamos juntos. Por fim, à Silvia e ao Fidel, dois quadrúpedes que me alegro por ter por perto, embora o Fidel – cachorro ladrão de salsichas - esteja mais presente nos últimos tempos, isso não diminui meu apreço pela companheira felina. ix “[...] Dizer de uma mulher de poder que ela é “muito feminina” não é mais que um modo particularmente sutil de negar-lhe qualquer direito a este atributo caracteristicamente masculino que é o poder.” – Pierre Bourdieu, A Dominação Masculina. “[...] A alma do homem é Psique, uma mulher.” – Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo. “Como o ser humano une em sua natureza o masculino e o feminino, um homem pode viver o feminino e uma mulher, o masculino.” – Carl Jung, Sobre o Amor. x SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................. 10 1 - SOBRE SIMONE DE BEAUVOIR ................................................................ 15 2 - SOBRE PIERRE BOURDIEU ...................................................................... 29 3 - SER HOMEM, SER MULHER ..................................................................... 44 4 - A VIOLÊNCIA À MULHER ........................................................................... 53 5 - ONDE ESTÁ A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA? .................................................. 61 A. Casamento ............................................................................................ 61 B. Vida sexual ............................................................................................. 70 C. Lar .......................................................................................................... 77 D. Trabalho ................................................................................................. 81 E. Mercado ................................................................................................. 93 F. Educação ............................................................................................. 101 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 114 REFERÊNCIAS............................................................................................... 123 10 INTRODUÇÃO A educação, pensada em seu sentido tradicional, costuma ser representada pela escola, uma instituição com fins sociais e que atende a um currículo que, por definição, incorpora práticas relativas, nem sempre universais (FORQUIN, 2000). Por este motivo, a sociologia da educação recebe críticas por reduzir-se a uma espécie de sociologia escolar (SPOSITO, 2003). Tanto a sociologia da educação quanto a sua versão minimizada, a sociologia escolar, parecem interessadas nos conhecimentos perpetuados na e pela sociedade, seja pelo uso das instituições, escolares e não-escolares (educação formal), ou dos costumes (educação informal). A cultura aparece recorrentemente como objeto de interesse dos estudos em educação. Mais particularmente, questiona-se sobre qual tipo de cultura circula na sociedade, isto é, como vivem os indivíduos de uma determinada sociedade e quais conhecimentos esses indivíduos aprendem. A cultura traz um sentido inicial sobre a vida e sobre o entorno social a qual diz respeito, e contribui para que haja a devida compreensão entre o indivíduo e o coletivo que a partilham. Por este motivo, torna- se importante questionar o currículo numa perspectiva sociológica que tem a escola como objeto de estudo: quais práticas culturais esse currículo traz? (YOUNG, 2000). A sociologia da educação está, de forma geral, pouco interessada na circulação das ideias nos corpos ao trabalhar intensamente com o currículo, o que pode acarretar um erro escolástico de pensar a educação apenas pela mente, esquecendo-se do corpo (BOURDIEU, 2001). A perspectiva da sociologia da educação da qual parte este trabalho dialoga com a tradição da filosofia 11 existencialista que busca saber como existimos, como temos conhecimento de que existimos e de que forma aprendemos a dar sentido à nossa existência. Esta perspectiva parte de algo que é anterior às escolas, que está no seio de toda cultura e que contribui para resgatar uma sociologia da educação que reflete sobre os processos educacionais e não apenas sobre as escolas - embora estas sejam, atualmente, as grandes instituições reconhecidas como depositárias e acolhedoras da cultura oficial, cujo papel é o de incentivar a convivência e corrigir práticas de exclusão. A sociologia da educação, desta perspectiva, deveria abrigar e problematizar temas essenciais que são experimentados anteriormente à escola, como a desigualdade entre os sexos, tema intimamente ligado à formação de identidade nos sujeitos, que se dá no início da vida e, portanto, nas fases iniciais da educação do ser e do aprender a ser. O aprender a ser, desta perspectiva, resulta num ser capaz de dizer eu sou, que pode trazer a seguinte pergunta filosófica: quem sou eu? A partir desse ponto inicial, o da diferenciação entre o eu e o outro, nos propomos a questionar como os sujeitos podem se ver como homens ou como mulheres (geralmente são levados a enxergarem seu sexo e buscarem o sentido nele, esse eu sou homem/eu sou mulher). A diferença na construção da identidade a partir de como os indivíduos enxergam socialmente seu sexo biológico compromete a formação de planos, desejos, sonhos e disposições para a posteridade. De forma alguma existe uma diferenciação natural entre as identidades de homens e de mulheres para serem respectivamente masculinos e femininas; acontece que o gênero (masculino/feminino) e a construção dos papeis sociais é comumente associada ao sexo biológico, implicando no senso comum de que 12 homens são biologicamente masculinos e as mulheres, femininas. Assim, homens devem representar papeis masculinos e mulheres devem representar papeis femininos, justificando a ideia de um destino biológico nos discursos sobre os sexos (HENRIQUES, 2004). A desigualdade, entretanto, só se afirma na dominação de um sobre o outro, na criação de hierarquias, que é exatamente o ponto de partida deste trabalho: evidenciar como a dominação masculina desempenhada por homens faz da mulher o segundo sexo, sob a justificativa de que estes conhecimentos iniciais que o sujeito possui sobre si mesmo influenciam em sua escolarização e nos espaços que ocupará socialmente, de acordo com a hipótese de Bourdieu (2003a; 2008). Para dar base a essa discussão e problematizar a hipótese apresentada, foram escolhidas as obras A Dominação Masculina (2003a), de Pierre Bourdieu, e os tomos icônicos de O Segundo Sexo (1967; 1970), de Simone de Beauvoir.1 A partir deles, e de uma bibliografia auxiliar, exploraremos criticamente a perspectiva da educação que cumpre socializar os corpos para os universos masculino e feminino. Educação essa que tende a ser carregada para a vida toda, que antes de ser um apanhado de ideias que passa pela racionalização ou pelo aprendizado intencional/escolhido é um aprendizado pelo corpo que se faz sentir napele e que leva os indivíduos a responderem inconscientemente às expectativas do ambiente 1A Dominação Masculina, diferentemente de O Segundo Sexo, conta com anos de elaboração e refinamento da teoria dos campos, do habitus e da incorporação dos diferentes tipos de capitais. Para um aproveitamento satisfatório da leitura de A Dominação Masculina, requer-se um conhecimento prévio da teoria sociológica de Bourdieu. Por este motivo, vale a intenção de buscar os conceitos de Bourdieu em outros livros de sua autoria - A Reprodução (2014); O Poder Simbólico (2003 b); Meditações Pascalianas (2001), entre outros, para aprofundar a discussão que ele traz em A Dominação Masculina. Já O Segundo Sexo é a base da filosofia de Beauvoir, sua tese inicial sobre a dominação masculina, na qual constrói seus conceitos filosóficos. Vale lembrar que, segundo Burawoy (2010), Bourdieu utiliza várias referências do feminismo de segunda geração, que tanto deve à obra O Segundo Sexo, sendo Beauvoir uma leitura implícita não referenciada, como se fosse uma tentativa de silenciá-la, o que poderia, segundo o autor, ser interpretado como um plágio, ainda que com uma teoria própria e com um final diferente para a oposição da divisão sexual. Também vale aqui a nossa intenção, como faz Burawoy, de criar, de fato, um diálogo entre os dois autores. 13 de convivência. Representa agir como esperado ou, ainda, cumprir determinado papel na sociedade; de forma mais sutil, conduz ao hábito, de forma praticamente imperceptível e automática, tão natural que passa a ser considerada traço biológico e psicológico. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu pode ser considerada uma sociologia filosófica, mesmo que nem sempre preocupada com a escola (PETERS, 2016a). Já a filosofia existencialista contida n’ O Segundo Sexo certamente não parte de ou se relaciona com preocupações relacionadas aos processos educacionais, ainda que, inevitavelmente, Simone de Beauvioir tenha tido que abordar situações relacionadas à educação. Segundo Sartre “[...] o que podemos desde já afirmar é que concebemos o existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana” (SARTRE, 1962, p. 2). A educação, nesse âmbito maior considerado, de forma alguma pode ser estudada exclusivamente a partir das escolas, como pretendem algumas sociologias da educação (SPOSITO, 2003), vale dizer, como se a partir do ambiente educacional formal pudéssemos deduzir com segurança as diversas educações dos sujeitos, culminando em determinismos. *** Os dois primeiros capítulos do trabalho dizem respeito a dados biobibliográficos dos dois autores em análise no estudo, que visam a compreensão mais aprofundada das respectivas teorias e conceitos. A biografia, portanto, está intercalada ao desenvolvimento teórico-conceitual do pensamento dos autores. Logo de partida observamos que Bourdieu é um autor importante no campo da educação, embora tenha produção bastante diversificada, ao passo que Beauvoir é 14 reconhecida por inaugurar uma nova perspectiva para o feminismo no século XX, sobretudo a partir da publicação de seu O Segundo Sexo. No terceiro capítulo Ser homem, ser mulher buscamos reconstruir as tendências que Bourdieu e Beauvoir encontram no masculino e no feminino, bem como problematizar, a partir da visão dos autores, de que forma os homens se aproximam mais do gênero masculino e as mulheres do gênero feminino. As pistas para as respostas, como se verá, podem ser obtidas a partir da disseminação do mito do Eterno Feminino, trabalhado pelos autores sob óticas distintas que conduzem a oposições simbólicas dos corpos. Já em A violência à mulher, quarto capítulo do trabalho, buscamos mostrar, de acordo com o entendimento dos autores, o processo de desvalorização social da mulher e as práticas que as levam a se retirarem do espaço público e a se confinarem no espaço privado. Para Beauvoir, busca-se nominar o Eu e o Outro na relação de alteridade existente entre homens e mulheres e se almeja a possibilidade de transcendência de cada um, sendo a imanência um risco na relação de alteridade. Tal processo se dá por meio da violência simbólica, conceito chave do edifício teórico bourdiesiano, “que se exerce com a cumplicidade dos dominados [...] explicável como produto de uma socialização que os habituou a tomar sua condição não como uma arbitrariedade, mas como parte da ‘ordem do mundo’” (PETERS, 2016a, p. 9). No capítulo final Onde está a violência simbólica?, selecionamos situações de educação perpetuadas pelo mito do Eterno Feminino, expostas em A Dominação Masculina e n’O Segundo Sexo . Este capítulo se detém nos exemplos de dominação que Bourdieu e Beauvoir se utilizam para formular suas respectivas teorias da dominação. Abordaremos os espaços de socialização dos corpos e a 15 educação a qual eles estão sujeitados. Consta no capítulo, ainda, uma divisão em subcapítulos, cujos recortes são o casamento, a vida sexual, o lar, o trabalho, o mercado (metáfora para o local público) e um tópico reservado para considerações sobre a educação no seu sentido não-escolar. Como objetivo geral, buscamos discutir neste trabalho a desigualdade entre os sexos sob uma perspectiva da educação, mais precisamente a partir da contribuição da sociologia da educação e da filosofia existencialista, tomando Pierre Bourdieu e Simone de Beauvoir como seus representantes, respectivamente. 1 - SOBRE SIMONE DE BEAUVOIR Simone Lucie-Ernerstine-Marie Bertrand de Beauvoir nasceu dia 9 de janeiro de 1908, em Paris, França. Pertencia a uma família da alta burguesia e teve muitas regalias na sua infância, garantidas pelo sustento do pai. Seu núcleo familiar era constituído pela mãe, Françoise Brasseur – cuja responsabilidade maior diziam respeito os cuidados domésticos, atividade extremamente questionada por Beauvoir; pelo pai, Georges Bertrand de Beauvoir, um advogado; e pela sua irmã mais nova, Hélène de Beauvoir, apelidada de Pouppete2 pela irmã mais velha (FARIA, 2009). Em 1918, Françoise, de tradição católica, envia Simone, com seus 10 anos e Hélène, aos 8 anos, ao Institut Adeline Désir para cursar o Cours Désir, uma escola tradicional que compreendia a educação da mulher como voltada para o casamento e a vida doméstica, preparando as meninas para serem boas esposas e 2 Poup é uma palavra de origem francesa que significa boneca. Uma possível tradução para o apelido Pouppete seria bonequinha. 16 donas de casa. Em outras palavras, tratava-se de uma escola que tornava a menina apta a atender às necessidades da família. Esta educação recebida seria alvo de duras críticas posteriormente por parte de Beauvoir. É no Cours Désir que Simone encontra Elizabeth Mabille, uma importante amizade que levará consigo até um acontecimento trágico. Antes disso, Elizabeth receberia o apelido de Zaza, e elas manteriam doravante uma relação saudável e alegre. Já em sua adolescência, Simone almejava ser escritora, por mais que sua educação tradicional não incentivasse tal ofício. Um contraponto aos ensinamentos católicos da mãe é a influência de Georges, seu pai, o grande incentivador da filha para a literatura e o teatro. Sua vida futura como intelectual e escritora deve-se, em grande medida, à identificação que ela estabelece com o pai, ou, numa livre interpretação nossa sobre a relação edípica em O Segundo Sexo (1967), como a menina que vê o divino no pai e se apropria de tudo o que esse Deus tem a oferecer. Todos os livros agraciam a menina Simone e seu desejo de ser como o pai, aproximando-a do mundo dos homens-deuses. Essa proximidade com os livros faz a jovem manter diários, de onde imaginavaque pudessem originar romances. Georges incentivava a educação erudita de Simone, havendo relatos de que sentia tanto orgulho da filha que, às vezes, ela lhe lembrava um filho homem (FARIA, 2009). Enquanto a relação pai e filha era relativamente prazerosa, Simone tinha sérios atritos com sua mãe, que envolviam o comportamento feminino que Françoise esperava da filha: pensar no futuro da família ou pensar numa futura família. Simone teve muitos amores em sua vida, mas o primeiro foi seu primo Jacques, aos 15 anos. Ele era mais velho que ela, e ambos gostavam de passar o 17 tempo conversando. A família esperava o casamento, mas Simone desistiu quando perdeu o encanto por seu primo (FARIA, 2009). Desde muito cedo a jovem Simone passa a questionar a existência de Deus, mas guarda esse segredo consigo, longe do Institut Adeline Désir, da família e dos amigos, o que faz com que a filosofia existencialista da jovem Beauvoir seja também uma filosofia anticatólica, na qual Deus, materializado no homem, não é nada mais que aquele que subjuga e engana o desejo da mulher de ser livre. Os estoicos foram leituras importantes para Beauvoir incorporar os princípios de dualidade e construir uma filosofia existencialista a partir das ambiguidades ontológicas do ser humano, e diferenciá-las das contradições, normalmente evocadas pelo discurso religioso ortodoxo (TEIXEIRA, 2010). Em 1926, aos 18 anos de idade, entra para a Universidade de Paris, Sorbonne, no curso de Filosofia. Simone Weil, Claude Lévi-Strauss e Maurice Merleau-Ponty passam a ser seus colegas de faculdade, e este último, em especial, será uma importante referência para Beauvoir no que diz respeito à fenomenologia do corpo e às primeiras experiências do ser. Em 1928 Zaza morre, um trauma na história de Beauvoir. Também é um ponto de reviravolta na visão que a autora passa a ter sobre a sociedade. Nesse momento, entende que está dividida entre homens e mulheres e culpa a mãe de Zaza pela educação que deu à filha, pois teria sido a educação tradicional e a visão conservadora da sociedade sobre a mulher a causa da morte da amiga. A partir daí Beauvoir decide não se casar e sai da casa dos pais. Passará a ser uma moça bem comportada,3 ou seja, uma mulher que preza pela sua liberdade, enquanto as moças mal comportadas serão aquelas que escolheram uma vida 3 Parte do título de um romance autobiográfico de Beauvoir, publicado em 1958: Mémories d’une jeune fille rangée (Paris, Gallimard). 18 coquete, de regalias, mordomias, sustentadas por um homem e subjugadas pelo casamento – uma relação de escravidão, na visão dela. Em 1929 conhece a Jean-Paul Sartre, seu futuro companheiro de toda a vida, com quem manteve relação amorosa com liberdade consentida para amarem a quem bem entendessem.4 Ambos estudavam para o exame de agrégation5 e foram aprovados. Sartre em primeiro lugar, Simone, em segundo, como a pessoa mais jovem a prestar o exame e a nona mulher a obter o título, que permitia ensinar Filosofia nas escolas francesas. De 1931 em diante, Simone passa a lecionar filosofia em Marseille, seguido do Liceu de Rouen. Neste mesmo período começa a escrever seus romances, a viver uma vida de cumplicidades com Sartre e a viajar. O ano de1943 marca a publicação de seu romance de estreia, A Convidada (1985 [1943]). Uma característica marcante dos romances da autora, então neófita, é que eles costumavam retratar nos seus personagens as vivências da sua autora. Em A Convidada, por exemplo, os personagens principais são Pierre, Françoise e Xavière, que correspondem, respectivamente, a Sartre, Simone e Olga, aluna de Beauvoir no Liceu de Rouen. Beauvoir trabalhou a questão do conflito presente na relação com o outro. A narradora do livro [A Convidada] tem uma relação de intimidade com os elementos da narrativa que, em grande medida é caracterizada pelo ponto de vista subjetivo da escritora (FARIA, 2009, p. 139). 4 Ainda que o ciúme fosse inevitável e resultasse em ataques histéricos de Beauvoir, o que a desgastava muito. Ver, a esse respeito, Faria (2009). 5 Na França, os cursos de agrégation estão abertos àqueles que já possuem diploma de estudo universitário e buscam formação específica para docência no último ano do ensino secundário ou superior; trata-se de um certame extremamente seletivo. 19 As memórias de Beauvoir guiarão a escrita em todos os seus próximos romances, às vezes como uma forma de atenuar a ansiedade, os ciúmes e as inseguranças, exteriorizando-os (FARIA, 2009). Por este mesmo motivo a literatura de Beauvoir não traz apenas a subjetividade dos acontecimentos, mas os mescla com situações sociais de uma mulher francesa nos meados do século XX. De forma muito impressionante, atinge a um público feminino amplo que compartilha dessas memórias e leem as personagens como se fossem as suas próprias vidas (LOBO, 2001; SANTOS, 2012). Os próximos romances e ensaios de Beauvoir serão Pyrrhus e Cineas (1944), O Sangue dos Outros (1990c [1945]), Bocas Inúteis (1945), Todos os homens são mortais (1995 [1945]) e Por uma moral da ambiguidade (2005 [1947]). Ela funda a revista Les Temps Modernes com Sartre, em 1945, e escreve seu tão aclamado e odiado O Segundo Sexo entre 1946 e 1948, com pesquisas feitas na Bibliothèque Nationale de France.6 Viaja para os Estados Unidos em 1947 para a divulgação do seu novo livro (alguns trechos foram publicados em sua própria revista): O Segundo Sexo, e encontra o escritor estadunidense Nelson Algren, com quem vive um romance à distância e se corresponde por cartas, escritas em inglês, de 1947 até 1964.7 O Segundo Sexo inaugura a segunda geração do feminismo (ou segunda onda), no qual as mulheres que adotam a ética existencialista exposta no livro passam a enxergar e questionar as desigualdades entre os sexos, atuando na tentativa de mudanças nas condições objetivas e subjetivas de existência da mulher (LOBO, 2001). Enquanto na primeira geração do feminismo o direito ao voto e a 6 A primeira edicão da obra é de 1949. 7 Após a morte de Beauvoir, Sylvie Le Bon de Beauvoir (sua filha adotiva) traduz para o francês e publica trezentas e quatro dessas cartas no livro Cartas a Nelson Algren: um amor transatlântico, 1947-1964 (2000 [1997]). 20 participação política são os temas principais da agenda, na segunda onda os princípios básicos são o tema do aborto e as condições de trabalho reservadas à mulher. Questiona-se a verdadeira liberdade que a mulher possui na sociedade. O movimento feminista deste novo período levanta a bandeira da liberdade das mulheres numa sociedade criada para e por homens, como denuncia Beauvoir (1967; 1970). O Segundo Sexo recebeu muitas críticas negativas quando foi publicado, e chegou a ser catalogado no Índice dos Livros Proibidos da Igreja Católica. Demorou a ser traduzido, e em alguns casos teve capítulos suprimidos (como o capítulo d’A Lésbica, do segundo volume). O Segundo Sexo sofreu ainda sabotagens no mundo todo, e até hoje é rechaçado tanto por grupos feministas como por aqueles sem vínculo algum com eles (SAFFIOTI, 2000). Beauvoir, em grande parte de seus ensaios, é acusada de não desenvolver uma teoria filosófica própria, ficando à sombra de Sartre. De fato, O Segundo Sexo mantém muitas semelhanças com O Ser e o Nada de Sartre, embora não possa ser reduzido à filosofia sartriana (BAUER, 2001). “A liberdade concebida como Sartre a concebeu era um ato de voluntarismo. Simone não praticou esse erro, ela não cometeu esse erro” (SAFFIOTI, 2000)8. O casal de filósofos possui referências muito aproximadas entre si, como no diálogo de ambos com Hegel, autor muito presente na apropriação que fazem nos conceitos de ser-em-si, ser-para-sie consciência-de- si. Marx também configura influência importante, uma vez que Sartre e Beauvoir estão interessados no ser que existe no mundo e na materialidade. Beauvoir 8 Aqui voluntarismo é compreendido por Haleiath Saffioti (2000) como uma atitude não determinada por nada ou ninguém, em oposição à falta de verdade do pós-modernismo: como não há verdades, nada é determinado e, portanto, a liberdade deve ser voluntária. 21 combina as possibilidades de transformação do sujeito no mundo material a partir da dialética marxista com o surgimento da existência do sujeito na dialética do Senhor e do Escravo, de Hegel, dando os contornos de uma teoria própria sobre o surgimento do Eu a partir do Outro, reconstruindo as imagens do Homem e da Mulher (OLIVA, 2013). Esse encontro de dialéticas inicia os primeiros passos para uma teoria da dominação de uma consciência sobre a outra. O marxismo pode ser visto nos desdobramentos da ação do homem e da mulher no mundo material, ou seja, em como utilizam os instrumentos a seu favor e como se apropriam dos bens materiais e dos meios de produção. Já a dialética hegeliana informa o confronto de consciências: o Eu (Homem) significa o Outro (Mulher) para permanecer sempre Outro, ainda que o Senhor (Homem) só seja Senhor porque seu Escravo (Mulher) é induzido a valorizá-lo como tal. A materialidade na filosofia existencial de Beauvoir se faz importante pois denota que a mulher não é dominada apenas pela consciência, mas também pelo corpo. Seu instrumento mais particular, seu próprio corpo, não lhe pertence e, por este motivo, sua consciência também não: são os homens que detém a posse da mulher, transformada em objeto, pela apropriação que fazem dos meios de produção, o que significa, por consequência, apropriar-se da história e ter o poder de narrá-la, escolhendo quem dela participa ou não. Os homens, na teoria beauvoiriana, são protagonistas da história e as mulheres, o seu segundo plano: configuram a terra por onde os homens andam; é por meio das mulheres que se colocam num nível mais alto. Beauvoir, de toda forma, parece manter maior proximidade com a filosofia de Hegel - inclusive por se apropriar de sua fenomenologia de uma forma muito original 22 (BAUER, 2001), do que com o materialismo histórico-dialético de Marx e Engels, ao qual estabelece críticas epistemológicas, principalmente no que diz respeito ao livro de Engels A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1944). A etnometodologia utilizada pelo autor, segundo Saffioti (2000), seria muito determinista e tentaria criar um destino para a mulher. A psicanálise, desde seu surgimento com Freud, também mereceu críticas por parte de Beauvoir (1967; 1970), uma vez que representa o falo como objeto de desejo e de poder. De forma similar aos argumentos biológicos que buscam justificar naturezas distintas na fisiologia do homem e da mulher para alcançar destinos diferentes, a psicanálise teria sido criada a partir de um princípio falocêntrico9, e por isso, androcêntrico10. O Complexo de Électra11 freudiano é reformulado por Beauvoir, que aponta para as falácias de uma teoria que considera naturais as estratificações para a vida toda, e propõe uma visão social para uma teoria psicológica do desenvolvimento infantil (BEAUVOIR, 1970). A inveja do pênis que acompanha o desenvolvimento da mulher, em Freud (1996) seria para Beauvoir a inveja da participação social do homem, representado simbolicamente pelo pênis, visto que são os órgãos genitais que dividem os sexos entre homens e mulheres - tema mal interpretado pela psicanálise, segundo 9 O falocentrismo pode ser lido como o falo é a medida de todas as coisas, o que significa dizer, na psicanálise freudiana, que todo desejo se expressa na presença ou na falta do pênis, que é o objeto de desejo, e qualquer objeto que lembre o pênis é denominado falo (charuto, bengala, tronco de árvore etc.). Em Freud (2001), a interpretação dos sonhos considera o falo, representação do pênis, como um símbolo central na interpretação do analista para a neurose do paciente; todo material onírico tem uma relação com o pênis, fonte de todo o prazer (e todo prazer é viril). 10 O androcentrismo é a visão de mundo que supervaloriza os princípios masculinos e a sabedoria dos homens. Desta vez, o homem é a medida de todas as coisas, e a mulher, enquanto representação do feminino, é tratada como marginal à órbita masculina. 11 O Complexo de Electra (assim nomeado por Carl Jung) corresponde ao Complexo de Édipo feminino na psicanálise freudiana, e consiste num processo imaginário pelo qual a menina é seduzida pelo pai. A impossibilidade de a menina ver a mãe como objeto de desejo decorre da criança imaginar que a mãe a castrou e, portanto, leva-a a imaginar ter possuído um pênis em algum momento de sua vida. No Complexo de Electra, a justificativa para o pai ser o objeto de desejo reside, portanto, no fato de a menina desejar possuir um pênis. 23 Beauvoir (1970), como um destino psicológico e não uma causa social. Para Freud, o símbolo do pênis seria adorado pela menina porque o pai é uma figura adorada, ele é poderoso: a menina quer possuir um pênis para ser como o pai. Beauvoir subverte o desejo sexual da menina para os planos que faz para si a partir de como percebe as relações familiares dentro de casa. A oposição homem-mulher presente em O Segundo Sexo é ainda uma herança do pensamento dualístico de Descartes (BAUER, 2001). Embora Descartes coloque a mente num plano superior e até divino da existência humana, Beauvoir faz uma inversão privilegiando o corpo nesse sistema de oposições: se o corpo da mulher não existe para ela, não será capaz de pensar sobre si mesma, pois conviverá com a perpétua impressão de não ocupar um espaço no mundo. O pensamento mentalista descartiano deriva da não necessidade do homem pensar o próprio corpo, já que está acostumado com ele a ponto de poder esquecê- lo. Já a mulher é lembrada o tempo todo que possui um corpo, e é levada a questioná-lo e vigiá-lo, até mesmo odiá-lo por não ser como ela gostaria. Deste questionamento inicial, Beauvoir vem a questionar se a mulher, de fato, existe, inaugurando O Segundo Sexo de forma similar ao Discurso do Método, de Descartes. Ao invés de perguntar se o homem existe, Beauvoir pergunta se a mulher existe (BAUER, 2001). O sistema de oposição homem-mulher é extremamente questionado na filosofia de Beauvoir pelas feministas pós-modernas pelo fato de sua teoria supostamente não considerar outras diferenças: todas as singularidades que emergem com as mais variadas identidades de gênero, para além de que qualquer binarismo do pensamento cartesiano-aristotélico, inclui a possibilidade de uma 24 identidade que não é representada nem por homens ou por mulheres – que, em grande medida, consiste nos temas da terceira onda do feminismo (LOBO, 2001). Ainda encontramos feministas, como Saffioti (2000), que leem Simone de Beauvoir como uma intelectual de seu tempo, e não atribuem a ela nenhuma obrigação que não aquelas as quais se propôs; seria obrigação do feminismo posterior a Simone de Beauvoir (no caso, o feminismo pós-moderno que adiciona a categoria de gêneros à sua agenda) complementar o seu trabalho ao invés de escarnecê-lo, condená-lo ou anulá-lo. Beauvoir, em sua leitura de Ser e Tempo (2015), também se apropria do Dasein de Heidegger, do ser que se desvela e do seu vir-a-ser, sempre constante, uma forma que encara a existência a partir de uma perspectiva temporal. No Paraíso, o tempo é eterno, nada muda porque nada passa, nada flui, nada se torna diferente do que é. Se a religião cristã mistifica o tempo como um ser que é, Beauvoir estará mais interessada num ser temporal que está sendo, e maisprecisamente, tornando-se mulher. Beauvoir aproveitará muito de Heidegger nos seus romances, nos quais a mulher se volta para a verdade, apropriando-se da teorização em que o filósofo alemão afirma que a verdade é significada a partir da realidade, e tudo que não pertence a ela seria mentira. Beauvoir, em A Mulher Desiludida [2010 (1967)] narra como uma esposa percebe, aos poucos, que o marido a está traindo, recorrendo, portanto, ao problema da verdade levantado por Heidegger, para o qual nem toda realidade é verdade (LEAL, 2013). Isto nos aproxima de um tema recorrente em O Segundo Sexo: a realidade que vive a mulher e as mentiras que lhe são contadas pelos homens para que seja sempre obediente, doméstica e dócil. A dominação masculina, com efeito, seria um 25 amontoado de mentiras sobre o sexo da mulher e suas possibilidades de ação no mundo. São mentiras que limitam a sua liberdade, e que por serem tão próximas da realidade (praticamente incrustradas nela), mantém a aparência de verdade. Nesse sentido, Beauvoir postulava que ela mesma não se considerava filósofa, visto que não poderia sê-lo num campo predominantemente masculino, local ao qual as mulheres dificilmente tinham acesso. Eleanore Holveck interpreta a recusa de Beauvoir em se considerar como filósofa justamente porque, até aquele momento, “a filosofia que ela estudava e ensinava gastou muito tempo com nada” (SANTOS, 2012, p. 925). E, como se não fosse suficiente. Ursula Tidd entende que, até meados dos anos 1990, a reação à obra de Beauvoir era um tanto ambivalente. E isso porque a recepção de suas obras foi relacionada à natureza de sua “colaboração filosófica” com o pensamento de Sartre, assim como ao papel da mulher na filosofia e na história intelectual e, sobretudo, ao “status de Le deuxième sexe”. [...] Por esses e outros motivos, Beauvoir preferia a alcunha de escritora, trabalho libertador da mulher, principalmente quando se trabalha o estilo da autobiografia, que dá sentido à história vivida e permite a reflexão sobre si mesma. Simone de Beauvoir, de forma admirável, nos mostra os diferentes aspectos do ser humano em sua dimensão intersubjetiva, assim como as dificuldades de se pensarem a integralidade do sujeito histórico e as incongruências da memória diante da fragilidade do vivido. Filósofa da diferença, escritora atenta ao horror da filosofia à dimensão do outro, é, pois, nos gestos de Memória que ela faz representar o fio condutor entre o vivido e o narrado, sem ânsia por enclausurar seu pensamento em uma completude sistêmica e existencial. Em tais gestos, o íntimo do ser no mundo e no tempo realça a aventura humana como o mais ousado diálogo dos tempos do filosofar, o diálogo da consciência histórica consigo mesma e com o tempo de seu existir (SANTOS, 2012, pp. 925 e 935, grifos no original). 26 Os estudos literários, como os de Leal (2013), Santos (2012) e Viana (2009), veem de forma muito positiva os escritos de Beauvoir, sem desconsiderar toda a bagagem filosófica que eles trazem. Segundo Buroway (2010), ainda que os autores campo da filosofia e da sociologia sejam, via de regra, exigentes com o pensamento da autora, grande parte das vezes a crítica mais severa reside na comparação de sua obra com a de Sartre. Porém, as críticas não desmotivaram Beauvoir a continuar produzindo seus escritos. Em 1954, escreve Os Mandarins e ganha o prêmio Goncourt, premiação no campo da literatura mais cobiçado pelos escritores na França. Não apenas com O Segundo Sexo, mas agora com Os Mandarins (2006 [1954]), Beauvoir consegue um destaque invejável. Não serão, contudo, seus livros a faceta mais comentada e polemizada de sua vida, mas a sua vida íntima/sexual. Mais precisamente, viver uma relação em liberdade, como ela qualificava, com Sartre em meio às ortodoxias monogâmicas de seu tempo - essas que enxergam o profano nas ações que não respeitam o pudor e a moral. Não seria presunção dizer que a objetificação da mulher na época de Beauvoir parte dessa moral do pudor.12 Beauvoir e Sartre assinariam, em 1977, uma petição conjunta – também apoiada por diversos outros intelectuais da época de diversas posições políticas, como Louis Althusser, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Michel Foucault, entre outros - enviada ao parlamento francês na qual pediam uma reforma do sistema penal. A petição questionava, particularmente, a Lei do Consentimento, que 12 Uma moral que se opõe à sua filosofia existencialista, que preza pela liberdade consentida de escolha nas relações e é completamente contrária à ideia de libertinagem que a moral de sua época imagina ser aquela que Beauvoir propunha, o que prova a dificuldade da ética existencialista para ampliar seus domínios. 27 estipulava o seguinte: somente a partir dos 15 anos o sexo consentido não seria tratado como pedofilia.13 Pediam também a liberação de Bernard Dejager, Jean-Claude Gallien e Jean Burkcardt, presos por terem mantido relações sexuais com menores de 15 anos. A Lei francesa se contradiz se ela reconhece a capacidade de discernimento para treze e quatorze anos, de modo que eles possam estar aptos a tentar algo e serem condenados por isso, mas nega a eles a mesma capacidade com respeito a sua vida emocional e sexual.14 Beauvoir, de fato, envolveu-se afetivamente com algumas de suas alunas ao longo de sua vida (algumas delas bem mais jovens), chegando a criar triângulos amorosos com Sartre.15 No caso da petição, para Beauvoir se tratava de uma lei rigorosa que punia injustamente qualquer suspeita de pedofilia, e também feria algo essencial, a liberdade de escolha, posto que juristas decidiam o que um adolescente é capaz de desejar. É nesse clima, o de falar sobre o desejo do outro, que os textos de Beauvoir tentam revalorizar o que é dito sobre o desejo da mulher, a única realmente capaz de enunciar o próprio desejo. Por ser uma filósofa da diferença, Beauvoir vê toda realização do desejo como único, pois nenhum desejo é irredutível a outro; existir significa ter uma história, e conseguir replicar o desejo é poder replicar uma história que já existe ou existiu.16 Mesmo nessa irredutibilidade do desejo pautado na existência, Beauvoir consegue ser uma escritora que fala sobre os seus conflitos existenciais como se fossem conflitos comuns a toda uma geração de mulheres. 13 Marco bastante contraditório, sobretudo tendo em vista que o governo francês já distribuía pílulas anticoncepcionais para meninas de 13 anos. 14 Le Monde, 26 de janeiro 1977, tradução nossa. 15 Embora todas tivessem idade para consentir. 16 Cabe lembrar que Sartre sempre incentivou Beauvoir a escrever sobre si mesma (FARIA, 2009). 28 Quando Beauvoir passa a publicar suas memórias, fica claro essa característica de falar sobre si, ao mesmo tempo em que fala sobre e para um coletivo de mulheres. Com Memórias de uma moça bem-comportada (1989 [1958]), A Força da idade (1984 [1960]), A Força das Coisas (1993 [1963]) e Balanço Final (1990b [1972)], seus momentos mais particulares deixam de ser situações exclusivas. Muitas mulheres que viveram no tempo de Beauvoir viviam experiências parecidas com aquelas vivenciadas por suas personagens, o que gerou tamanha identificação. É, contudo, com Balanço Final (1990b), sua última obra de memórias, que Beauvoir adere às pautas do movimento feminista, criando em 1974 a Ligue du Droit du Femme (Liga do Direito das Mulheres). A Cerimônia de Adeus (1990a [1981), representa o seu último livro publicado em vida, “obra que é diferente das demais porque está centrada totalmente nos últimos e difíceis momentos da vida de Sartre; e uma espécie de diário-de-bordo deste período (agosto-setembro de 1974)” (FARIA, 2009, p.37).17 Em 14 de Abril de 1986, aos 78 anos, Simonede Beauvoir morre vítima de pneumonia e é sepultada no mesmo túmulo de Sartre, no Cemitério de Montparnasse, em Paris, deixando um enorme legado sobre a crítica da opressão da mulher e sobre as novas formas das mulheres repensarem suas vidas como um coletivo (OLIVA, 2013). Grande parte do debate de gênero que surge com o pós-modernismo tem suas raízes fincadas n’O Segundo Sexo e em seus conceitos (LOBO, 2001), o que corrobora o impacto das categorias sociais na formação da identidade dos sujeitos, mais precisamente, na educação identitária dos indivíduos que não escapam das 17 É também a única obra de Beauvoir que Sartre não chegou a ler, visto que morre em 1980, um ano antes da publicação. 29 influências sociais e seguem rituais padronizados - como é o caso do Eterno Feminino, conceito ao qual Beauvoir despendeu boa parte de suas forças intelectuais na tentativa de expor as suas influências negativas nas relações humanas. 2- SOBRE PIERRE BOURDIEU Pierre Félix Bourdieu, o segundo grande nome deste trabalho, nasceu em Béarn, região dos Pirineus no sudoeste da França, povoado campesino, no dia 01 de Agosto de 1930. Ingressa em 1951 na Faculdade de Letras da École Normale Supérieure, em Paris, e gradua-se em Filosofia em 1954.18 Presta serviço militar na Argélia, onde inicia seus estudos sobre a sociedade Cabila. Durante este período, começa a perceber a insuficiência da filosofia para tratar de assuntos práticos, como a revolução nos campos que ele acompanhava. Neste mesmo período lê e abarca o estruturalismo de Lévi-Strauss, embora viesse a criticá-lo mais adiante para apreendê-lo de forma particular em sua teoria sociológica, em conjunto com o estruturalismo linguístico de Saussure.19 Seus estudos sobre a Argélia consolidam-se essencialmente nas seguintes obras: A Sociologia da Argélia (2006 [1958]), Esboço de uma teoria da prática (2002 [1972])20 e Os argelinos (1962), além de outros trabalhos menos conhecidos, como Os desenraízados (1964) e Trabalho, trabalhadores da Argélia (1963). Nesses 18 Por motivos de um habitus servil, segundo Bourdieu em seu Esboço de autoanálise (2005b), o campo acadêmico francês não o fazia se sentir à vontade; ao contrário, sentia-se nele constrangido devido à sua infância e início de juventude terem ocorrido no campo, local de oposição à cidade e à academia. Ao interiorizar tal disposição, sente-se inferior nos corredores da universidade, que exalavam erudição (BURAWOY, 2010). 19 Contudo, não poderia abrir mão da filosofia por completo, visto que ela lhe serviria de contrapeso ao estruturalismo e como um dos extremos de sua própria sociologia (PETERS, 2016a). 20 Que se transformaria no Senso Prático (2009 [1980]). 30 primeiros textos, Bourdieu se ocupa de um trabalho etnometodológico acerca do movimento de libertação nacional da Argélia, que começa justamente em 1954. Neste mesmo ano presta o exame de agrégation, juntamente com Jacques Derrida e Emmanuel Leroy-Ladurie. Neste período, leciona na Universidade de Argel e mantém-se ligado aos estilos de vida do povo argelino (BURAWOY, 2010). É esse envolvimento político nas lutas anticoloniais que desperta seus interesses na sociologia e o leva a criticar ferrenhamente o existencialismo de Jean-Paul Sartre, que segundo ele havia se tornado imaginação sem razão (PETERS, 2016a). Em 1960, Bourdieu deixa a Argélia ao descobrir que seu nome constava na lista de uma facção de extrema direita, o que indicava uma ameaça à sua vida caso continuasse por ali (PETERS, 2016c). Retorna à França para ser professor na Faculdade de Letras de Lille (1961-1964), onde leciona disciplinas sobre Marx, Weber e Durkheim, além de antropologia britânica e sociologia norte-americana. Também se torna diretor do Centre de Sociologie de l’Education et de la Culture, em Paris (CATANI, 2004). Neste período, começa uma parceria produtiva com Jean- Claude Passeron, ambos alunos de Raymond Aron. Bourdieu permaneceu ligado à família até o fim de sua vida. Seu pai, Albert Bourdieu, foi um funcionário dos correios, enquanto a mãe, Noémie Bourdieu, realizava o trabalho doméstico. Retornava à Béarn sempre que podia, onde realizava estudos de campo com os moradores do povoado, com a diferença de que as pessoas não lhe falavam como se ele fosse um pesquisador, mas como Pierre, o morador daquele povoado, o que diminuía a distância entre pesquisador e objeto. Para Bourdieu, isso o aproximava do cotidiano dos moradores, e permitia estudar a vida diária de seu povo tal como ela era, já que era visto como um estranho para os moradores daquelas terras (BURAWOY, 2010). 31 Depois da Faculdade de Lille, leciona no École des Hautes Études en Sciences Sociales (Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais), em 1964. No mesmo ano. É indicado por Raymond Aron para sucedê-lo na direção do Centro Europeu de Sociologia. Torna-se diretor da coleção Le sens commun para a editora parisiense Minuit. Por mais de duas décadas, Bourdieu dirigiu essa coleção na qual publicou obras clássicas [...], bem como traduziu e divulgou, na França, grandes autores contemporâneos (entre eles: Goffman, Bernstein, Labov, Goody, Hoggart) (NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2014, p. 106). Alguns anos depois, Bourdieu viria a ser rotulado de reprodutivista no campo científico pela publicação de Os Herdeiros (2014 [1964]) e A Reprodução (2008 [1970]), ambos em coautoria com Jean-Claude Passeron. Bourdieu, no trabalho de campo, utiliza-se largamente de seus conhecimentos em estatística para refletir sobre o fracasso escolar e para formular a teoria do capital cultural, que liga as condições iniciais de existência do aluno (a família) às suas conquistas escolares. Com isto Bourdieu questiona, baseado em dados, a suposição de que há ambientes escolares neutros e evidencia que a escola se utiliza de uma cultura legitimada para transmitir conhecimentos a alunos com bagagens culturais diversificadas. Assim, o sucesso ou o fracasso na rede de ensino formal estaria ligado à cultura que as famílias legam para os filhos, e somente aqueles alunos que possuem tal capital cultural herdado, requerido pela escola, avançariam no sistema escolar e ingressariam nas universidades de grande prestígio. De forma geral, Bourdieu (e Passeron) apresentam dados que evidenciam que a aprendizagem dos temas escolares tidos como legítimos dependeria essencialmente de uma aprendizagem prévia desses mesmos temas no seio familiar. https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89cole_des_hautes_%C3%A9tudes_en_sciences_sociales https://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89cole_des_hautes_%C3%A9tudes_en_sciences_sociales 32 A grande novidade em A Reprodução consiste na utilização do conceito de violência simbólica – representações naturalizadas das ideias e concepções dominantes inculcadas nos dominados. Bourdieu também lança mão do conceito de habitus (trabalhada anteriormente em Os Herdeiros, junto com o de capital cultural), ligado à continuidade do aluno no sistema escolar e como ele se posiciona no campo social a partir de sua educação. O sociólogo compreende que o desinteresse do aluno pela escola, ao ponto de abandoná-la, deriva da premissa de que sua família possui determinada escolaridade que funciona como expectativa para que se mantenha (ou supere) a posição social dos pais, o que acentua a pressão social que cria sobre si mesmo. Quando o aluno se projeta no futuro, pensa nas possibilidades de carreiras e nas suas competências; ao fazer tal projeção, ele remonta à sua trajetória social e vê aonde é capaz de chegar e quais são os estratos sociais que imagina como possíveis de serem alcançados, bem como as barreiras que se apresentam, muitas vezes, como intransponíveis (MICELI, 2003; ORTIZ, 1983). Como bem mostra a epígrafe de A Reprodução,em uma tradução livre, de um ovo de pelicano nasce um pelicano idêntico ao primeiro, e o ovo desse novo pelicano resultará em um pelicano igualmente idêntico. A reprodução pode durar muito tempo, e acaba quando se faz uma omelete com o ovo (DESNOS apud BOURDIEU & PASSERON, 2008). Para Bourdieu, é esta identidade de classe ou de grupo criando competições internas no campo pela aquisição de capitais simbólicos restritos num espaço social determinado que move as lutas entre classes ou grupos, justificando as desigualdades no tecido social (AZEVEDO, 2003). Cada campo encerra a sua própria realidade social, assim como os jogadores nele contidos. As lutas nos campos resumem-se em impor determinada visão para 33 conservá-los ou transformá-los (AZEVEDO, 2003). A ideia da sociedade como um campo de combate é explorada por Bourdieu no livro A Distinção (2013 [1979]), publicada pela Editora Minuit quatro anos após conseguir criar o seu periódico, Actes de La Recherche en Sciences Sociales (Ações da Pesquisa em Ciências Sociais), dirigida por ele durante toda a vida (NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2014). A teoria sociológica de Bourdieu lhe permitiu ir dos clássicos temas sobre a revolução de classes para a construção do senso estético nas artes e na literatura,21 para a apropriação sociolinguística,22 para os conflitos entre acadêmicos no ambiente universitário,23 para as regras sociais do campo científico,24 para as diferenciações sociais que podem existir entre sexos, entre raças ou entre nações,25 para a competição nos esportes26 e para sociologia das obras de arte,27 entre outros temas. Além de identificar os mais variados campos (literário, político, econômico, escolar, científico, jornalístico, jurídico, religioso etc.), Bourdieu, em sua produção, os relaciona, tornando evidente a autonomia relativa que esses espaços possuem para estruturar as suas próprias regras: possuem consistência interna enquanto sofrem influência e influenciam os demais campos. Bourdieu, em suas obras, apresenta, por exemplo, o campo político em conjunção com o campo científico ou o campo escolar, isto é, os campos não estão isolados entre si e contam com alto grau de complexidade e distensão, que são critérios para que ocorra a dissimulação das regras no campo. 21 Ver As Regras da Arte: gênese e estrutura do campo literário (2005a [1992]). 22 Ver A Economia das Trocas Linguísticas: o que dizer quer falar (1998 [1982]. 23 Ver Homo Academicus (1984 [2013]). 24 Ver Os Usos Sociais da Ciência: por uma sociologia clínica do campo científico (2004b [1997]). 25 Ver O Poder Simbólico (2003b). 26 Ver Questões de Sociologia (1983 [1980]) 27 Ver O Amor pela Arte: museus de arte na Europa e seu público (2007[1966]) 34 O campo, entretanto, só funciona em conjunto com a illusio, princípio disciplinar que leva o agente a desconhecer o seu funcionamento, e que torna invisível os fundamentos (leis) do jogo social. Desta forma, as atividades simbólicas do agente no campo são reproduzidas de forma eficaz, como se o que é feito no campo estivesse seguindo o curso natural das coisas, já que sempre foi assim. A illusio, em outras palavras, tem por função fazer o indivíduo ignorar a história do campo e de suas próprias ações, distanciando-o de sua suposta origem, que, caso acontecesse, evidenciaria a arbitrariedade dos fundamentos que abalam a convicção que normalmente temos em determinada instituição, arbitrário natural ou lei fundamental. Quando se percebe a illusio, “a lei é a lei, e nada mais” (PASCAL apud BOURDIEU, 2001, p.117). Esse reconhecimento no desconhecimento, que Bourdieu tanto reafirma em suas obras, é o princípio de toda teoria do conhecimento sociológico: trata-se da violência simbólica. Deve-se entendê-la como um axioma que faz da sociologia a disciplina encarregada de buscar compreender e desmistificar as forças que dissimulam as imposições de significação, tornando a visão de um grupo ou classe dominante como se fosse a uma visão aceitável, ou a única possível. Em A Reprodução, Bourdieu e Passeron definem violência simbólica como “[...] todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações” (BOURDIEU & PASSERON, 2008, p. 25). Com efeito, toda violência simbólica se reproduz num sistema de naturalização dos códigos socialmente exigidos pelo campo. Essa linguagem do campo (forma de viver e perceber) acontece mediante graus de aprendizagem, que determinam grupos capazes de inculcar um habitus no sujeito. 35 Um dos espaços educativos mais importantes, para Bourdieu, é a família, responsável pela educação primária e principal fonte do capital simbólico da criança, responsável pelo seu sentido e formas de existir no mundo. O sentido que um indivíduo cria sobre a própria vida estaria, desta forma, indissociado da escolaridade dos pais, das músicas que ela ouve em casa, dos bens materiais que possui a casa, dos locais (e a frequência) aos quais os pais levam os filhos (cinemas, museus, óperas, bibliotecas, eventos culturais etc.), bem como da renda econômica dos pais, da posição social e influência que possuem no campo (podendo ser constatada pela profissão, pelos amigos, círculos sociais, contatos em geral etc.), além de outros pontos capazes de trazer significação ao universo individual da criança. Esta educação primária sensibiliza o sujeito a interiorizar estruturas parecidas com seu mundo familiar, fazendo com que não o dissocie de seu universo particular, o que permite que toda educação secundária tenha maior eficácia quanto mais próximo for o capital a ser adquirido do habitus constituído. Mesmo que haja uma distancia significativa entre o objeto do campo e o habitus interiorizado, este último conta com uma capacidade de reinvenção que garante a sobrevivência do agente no campo, sendo ajustável e reestruturável. Isto significa dizer que a educação primária não implica na única educação possível para um sujeito, mas é aquela que possibilita uma via de comunicação. Caso o campo exija um habitus diferente daquele interiorizado pelo indivíduo, seu portador será capaz de torná-lo compatível, adequando o seu princípio de realidade à outra visão que corresponda ao ponto vista que aquele campo busca incutir, o que facilita a comunicação entre o campo e o agente, doravante inserido em um novo espaço de disputas (CATANI, 2004). 36 A aprendizagem exige uma ação pedagógica, que pode variar dependendo das significações a serem conferidas à criança pelos pais ou professores (BOURDIEU & PASSERON, 2008): “Toda AP [ação pedagógica] é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural” (BOURDIEU & PASSERON, 2008, p. 26). Todo ensino, assim, está baseado numa relação de forças e de sentidos entre grupos e classes por estabelecer a comunicação pedagógica por meio do duplo arbitrário pedagógico. Segundo Bourdieu, com efeito, toda ação pedagógica exige uma autoridade pedagógica capaz de exercer o arbitrário cultural pela violência simbólica, ao passo que os agentes desconhecem objetivamente as verdades inteiras que autonomizam esta instância de inculcação de arbitrários.28 Tal autoridade passa a ser o poder de violência simbólica que se manifesta sob a forma de um direito de imposição legítima que reforça o poder arbitrário, que a estabelece e que ela dissimula. Assim, reconhecer a legitimidade de uma instância pedagógica (na família, na escola, bem como em outras instituições e espaços educativos) é dizer que os indivíduos não apreenderam o fundamento das relações de forças nas quais estão objetivamente colocados. A função da autoridade pedagógica passa, então, a ressaltara relação de forças estabelecida de maneira tal que sua eficácia pedagógica esteja na base dessas relações. Convenientemente, prossegue Bourdieu, o trabalho pedagógico tem por função perpetuar o habitus inculcado pela ação pedagógica, e o faz a partir de um sistema de ensino, instituição com a função de reprodução cultural que leva à reprodução social. O sistema de ensino só é capaz de funcionar quando possui suficiente legitimidade para inculcar um corpo de verdades e valores a serem 28 Na qual repousa a ideia do foi sempre assim, ou, em termos bourdiesianos, amnésia de gênese (BOURDIEU, 2001). 37 reproduzidos, que passam por relações de força e pela ideia do reconhecimento no desconhecimento.29 É por este viés que uma pedagogia se torna uma prática escolar; que um arbitrário se torna natural; que um fragmento da realidade social de um grupo ou classe converte-se no ponto de vista digno e provavelmente o único com validade a ser ensinado – e que será o fragmento que se ocupará de traduzir a cultura legítima de uma sociedade inteira, a cultura dominante. A partir deste ponto, a ação pedagógica, a autoridade pedagógica e o trabalho pedagógico passam a ser reconhecidos como ação escolar, autoridade escolar e trabalho escolar (BOURDIEU, 2008). Quanto mais a pedagogia no meio familiar privilegie o currículo escolar, mais apta a criança estará a ter seus esforços reconhecidos pela instituição de ensino, uma vez que a escola é uma extensão do lar e das experiências que os pais puderam proporcionar à criança. Para Bourdieu, será a razão histórica que denunciará a amnesia de gênese e trará à tona os arbitrários enquanto arbitrários, o que os fará serem percebidos enquanto fundamentos que partem da imposição de um grupo ou classe pela força que ele mede com outros fundamentos que também pretendem ser universais. Sua tarefa será a de. [...] compreender e explicar sua própria gênese e [...] os processos de gênese (ou de autonomização) de onde precedem, bem como a gênese das disposições que foram sendo inventadas à medida que os campos iam se constituindo, e que aos poucos vão se inscrevendo nos corpos ao longo do processo de aprendizagem (BOURDIEU, 2001, p. 129). 29 Méconnaissance é o termo original que Bourdieu utiliza para se referir a este tipo de dissimulação (PETERS, 2016a). 38 As ciências históricas buscam desmistificar os absolutos que percorrem o pensamento de forma inconsciente e indesejada. Para Bourdieu (2001), é importante mostrar como todo ponto de vista coletivo parte de um ponto de vista individual. A ciência é mais um campo em que os agentes competem entre si pela legitimação de uma teoria científica reconhecida universalmente. A investigação sobre a natureza passaria a ser, na visão bourdiesiana, a investigação de um grupo de cientistas sobre a natureza, que busca transformar seus conhecimentos em verdades trans- históricas. Destarte, o campo científico em sua dimensão genérica contradiz a visão hagiográfica que celebra a ciência como uma exceção às leis comuns de uma teoria geral dos campos ou da economia das práticas. A competição científica pressupõe e produz uma forma específica de interesse, que só parece desinteressada se comparada aos interesses ordinários, sobretudo em torno do poder e do dinheiro, orientando-se para a conquista do monopólio da autoridade científica, na qual competência técnica e poder simbólico se confundem inextrincavelmente (BOURDIEU, 2001, p.134). Por esta perspectiva, há a denúncia de que a ciência que não é neutra e ignora os produtores de conhecimentos, isto é, o ponto de vista do cientista que pensa seu objeto. Bourdieu proporá que se veja o pesquisador como sujeito, “esse objeto para quem existem objetos”30 (BOURDIEU, 2001, p.156). Se todo pesquisador (e aqui convém especificar os cientistas sociais) possui uma história (sua trajetória social) e uma posição social, é exigido dele que possua um determinado habitus para coordenar as suas vontades individuais e as determinações estruturais do campo. 30 Que é também uma crítica da razão escolástica, que desconsidera o pensamento do sujeito que pensa alguma coisa sobre o mundo. Cf. Meditações Pascalianas (2001). 39 Bourdieu nos convida a uma desconstrução da imparcialidade trans-histórica pela historicização do objeto, que virá a ser considerado parcial, culminando na desnaturalização de princípios naturais que passam a ser vistos como princípios arbitrários. Com isto, Bourdieu nos leva a pensar que nenhum conhecimento é transcendente, mas histórico e produzido a partir de determinadas experiências. O objetivo de qualquer campo é o de tornar experiências e sentidos particulares em temas universais (PETERS. 2016b). Os sujeitos não escapam da história, logo seus pensamentos só podem ser pensados por que uma sucessão de eventos permitiu que fossem pensados dessa maneira, numa síntese entre subjetividade e objetividade. Ao passo que o indivíduo é formado social e historicamente, ele adquire instrumentos reflexivos para pensar sobre si mesmo, mesmo que nisto esteja implícito a illusio de todo campo. Todo movimento de resistência a uma instituição passa pela reflexão sobre perceber que ela está agindo a partir do pensamento. O campo dispõe de mecanismos que impedem que o sujeito reflita sobre a sua constituição, levando-o a nunca conhecer plenamente as regras, os limites, a parcialidade, os arbitrários, as especificidades e todo tipo de componente nele implícitos. Desta forma, o deslocamento do sujeito no campo acontece mediante a conhecimentos inconscientes que provém da “incorporação das estruturas sociais sob a forma de disposições” e “de chances objetivas sob a forma de esperanças e antecipações”, que permite adquirir “um conhecimento e um domínio práticos do espaço englobante” (BOURDIEU, 2001, p.159). Em seus contornos gerais, o pensamento relacional de Bourdieu, influenciado por Ganton Bachelard, baseia-se em: a) romper com o senso comum; b) construir o objeto a partir de uma causalidade não percebida, mas que é real e invisível; e c) 40 constatar ou verificar empiricamente as hipóteses construídas (PETERS, 2016a; PETERS, 2016c). Partindo de uma ordem social, que o senso comum compreende como mecânica, Bourdieu identificou as práticas históricas selecionadas pelos agentes que persistem como estruturas exteriores à história, dando corpo à sua teoria do poder simbólico (PETERS, 2016b). De acordo com Freitas (2012), Bourdieu observa ainda as formas dominantes de comunicar a cultura, que estabelece estruturas de relações simbólicas influenciadas por estruturas econômicas. Prevalece a lógica da distinção nas relações de diferenciação no campo: ações e procedimentos funcionam como expressão da posição social pelos símbolos, que “representam os valores que manifestam a posição daquele indivíduo dentro de uma estrutura social” (FREITAS, 2012, p. 3). Bourdieu lança mão de sua teoria praxiológica (teoria da ação) como ferramenta teórico-metodológica que articula as perspectivas subjetivistas objetivistas como produtos dialéticos da prática social (PETERS, 2016b). É esta releitura teórico-metodológica do mundo societário que o permitirá ir além das dicotomias que disputam um posicionamento privilegiado no campo. O sociólogo francês busca encontrar o ponto médio entre a objetividade e a subjetividade, responsável por gerar o habitus que transformará as convicções pessoais e a afirmação da existência dos sujeitos numa busca por distinção através de um sistema de oposições que garante a todos os participantes do campo que recolham os bens simbólicos desigualmente distribuídos. Estes elementos teóricos, brevemente apontados, conformam um contorno inicialpara compreendermos alguns dos aspectos do pensamento de Pierre Bourdieu que, no auge de sua produção acadêmica, concorre, em 1981, à Cadeira 41 de Sociologia do Collège de France. Eleito, profere, no ano seguinte, a aula inaugural Lições da Aula (1988 [1982]), cujo tema diz respeito a uma aula sobre a aula, momento em que expõe sua sociologia da sociologia reflexiva, vale dizer, a sociologia que tem a própria sociologia como objeto de estudos. Em 1993, organiza um livro sobre a exclusão social e os impactos da modernização: A Miséria do Mundo (2007 [1993]). Neste momento, inicia-se uma fase mais engajada de produção, voltada à uma tentativa de desapego da academia. Esta fase da vida de Bourdieu é dedicada ao combate à globalização e ao avanço do neoliberalismo, e conta com a publicação de Contrafogos (1998) e Contrafogos 2 (2001). Bourdieu passa também a conceder diversas entrevistas e se dedica a escrever sobre temas atuais, como a obra Sobre a Televisão (1997 [1996]). Já sua obra Meditações Pascalianas (2001 [1997]) pode ser considerada, segundo Peters (2016c), como o testamento intelectual do autor, momento em que Bourdieu revisa toda a sua teoria e a apresenta de forma bem refinada. A Dominação Masculina, publicado na França em 1998, é um livro pertencente à esta última fase da produção do autor, e trata de temas atuais e de relevância política. Para a confecção do livro, que se mostraria relevante não apenas para as mulheres, mas também para o público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais, Transexuias e Transgêneros) interessados na categoria gênero,31 Bourdieu recebe cartas e sugestões. Em 23 de Janeiro de 2002, vítima de um câncer, Bourdieu morre, em Paris, e é sepultado no cemitério de Père Lachaise. Em termos da sua influência, Bourdieu pode ser considerado como um dos sociólogos mais importantes do século XX, sobretudo por sua teoria dos campos (CATANI, 2002). A recepção inicial do autor no Brasil foi objeto de severas críticas, 31 Bourdieu expõe brevemente essa repercussão num trecho de A Dominação Masculina intitulado Algumas considerações sobre o movimento gay e lésbico, ao final do livro. 42 mas isso se deve, ao que tudo indica, a uma má interpretação do seu conceito de habitus e a um alinhamento forçoso que faziam dele em relação a Louis Althusser nos anos 70, momento em que Marx ainda configurava leitura em voga (ORTIZ, 2003). Geralmente, o habitus era visto como uma categoria meramente reprodutiva das estruturas sociais no interior do sujeito, criando disposições plenamente adequadas aos objetivos sociais dos dominantes. Burawoy (2010) observa que as teses de Bourdieu sobre os movimentos populares ou minorias eram consideradas como incapazes de realização a partir da teoria clássica da luta de classes. Os desencontros do sociólogo com outros autores, nesse âmbito, se devem a essa postura de Bourdieu que nega abordagens que tratam da revolução do proletariado como algo dado ou inevitável - como Gramsci, Fanon ou mesmo Beauvoir,32 em especial a dificuldade que estas perspectivas têm em romper com o habitus (BURAWOY, 2010). Por mais que a sociologia de Bourdieu seja vista como pessimista, ela oferece uma perspectiva sobre as construções sociais, geralmente dicotômicas (como ele desenvolve em A Dominação Masculina), e por mais que faltem propostas de solução para os diversos conflitos, Bourdieu assegura material para pensar a harmonização entre o habitus, o campo e as estruturas incorporadas (MIGUEL, 2015). De todo modo, vale ressaltar que, quando Bourdieu aborda a aprendizagem e a educação, ele está falando a respeito de uma aprendizagem pelo corpo e pelos sentidos, vale dizer, sobre uma educação que cria sentidos de se estar no mundo e que nem sempre é intencional, o que mostra que não temos controle sobre o que apreendemos: nosso corpo se adapta ao mundo em que vivemos, e somos levados 32 Ainda que Beauvoir seja uma situação especial, visto mal ter sido citada por Bourdieu (BURAWOY, 2010). 43 a ter gostos parecidos com as pessoas que convivem conosco. Sobretudo, aprendemos a apreciar a realidade que nos rodeia e evitamos situações concretas que ameaçam os estilos de vida do mundo que aprendemos a apreciar. Também é importante ressaltar que a reflexão sobre as práticas e os sentidos configura tema extremamente importante na teoria de Bourdieu, pois seria ela a responsável por modificar o habitus, mesmo que seja doloroso recusar, modificar ou repensar um estilo de vida e suas práticas. É pela reflexão, ademais, que revisaríamos nossa própria racionalidade, possibilitando, assim, condições de conhecer o desconhecido, de tornar visível o invisível, de desnaturalizar o natural e de desmistificar o mágico. Diferentemente de quaisquer outras teorias mentalistas, Bourdieu não está apenas interessado na subjetividade que muitas vezes é trazida pela tomada de consciência da ideologia dominante, como se resgatasse o raciocínio cartesiano; o sociólogo também se atenta para mundo objetivo no qual circulam os capitais e se realizam os rituais sociais de incorporação. Em síntese, o pensamento bourdiesiano nos convida a refletir sobre o mundo interno e a pôr em evidência os conflitos e contradições que existem entre as expectativas do sujeito e o mundo externo no qual ele é capaz de realizá-las (e se é capaz de realizá-las) (BRONZATTO et al., 2013). É a este tipo de reflexão subjetivo- objetiva, o pensamento praxiológico, que devemos recorrer para que o pensamento de Bourdieu não se torne um habitus inflexível, mas antes momentos possíveis de ressignificações, de recriação e de um fazer-se de novo do sujeito que, percebendo- se objeto se vê capaz de se localizar no campo e enxergar tanto as suas disposições como as origens de seus mais variados tipos de capital (principalmente o simbólico). 44 3 - SER HOMEM, SER MULHER Tanto em A Dominação Masculina (2003a) quanto nos dois volumes de O Segundo Sexo (1967;1970), os autores escrevem a respeito de desigualdades entre os sexos (que atualmente pode ser considerada uma discussão sobre gêneros) e subscrevem-nas num campo puramente masculino em que o feminino não possui qualquer independência, não cria regras próprias, é inferior e possui a excelência de servir. Por sua vez, o masculino vem a ser dominante, independente das circunstâncias. É legislador, honrado e capacitado a atuar na esfera pública. É nesta circunscrição polarizada entre o que é masculino e o que é feminino que, segundo Beauvoir e Bourdieu, podemos entender a definição social de homem ou mulher, ou mais precisamente, o que é ser homem e o que é ser mulher. O ser homem e o ser mulher não são representações que partem de raízes diferentes, senão de uma mesma raiz: o masculino. O homem tem como referência o masculino e a mulher o feminino, sendo que o universo feminino está contido no universo masculino e foi criado por ele, havendo uma autonomia relativa para que tanto o masculino quanto o feminino deem origem a significações próprias que devem respeitar as regras do campo social. Os autores franceses concordam que os homens entre os homens são produtores de ideais e saberes sobre os sexos, logo o masculino se ocupa de criar as próprias regras e outras que tangem o mundo feminino. Beauvoir (1970) mostra, recorrendo aos estudos históricos de Engels sobre a origem da família, que os homens, ao passarem da Idade da Pedra para a Idade do Bronze, encontraram, por meio de novos instrumentos fabricados a partir do derretimento do metal (a que se deve a descoberta do fogo), a habilidade de não servir à natureza, sendo capazes 45 de transformarem o mundo ao invés de estarem destinados a agir conforme ele se apresenta. Com a descoberta do cobre, do estanho,
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