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ISSN 1519-3861 historia unisinos i?; 5siê: Teoria e metodologia da História /FRSIDADE do vale do rio dos SINOS' IrRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ''mero * VOLUME 8 • JULHO/DEZEMBRO 2004 HISTÓRIA UNISINOS UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leofxildo. RS, Brasil - Tel. (51) 591 1122 (ramal 3103) Homepage: htrp://www.unisinos.hr E-mail: revistas@helios.unisinüs.br Editor/Ediíor Marcos Justo Tramontini Volume 8 n°10 - jul/dez 2004 - ISSN 1519-3861 Comissão Editorial/Executíve Editorial Committee Marcos Justo Tramontini Flávio Madureira Heinz Heloisa J. Reichel Conselho Editorial/Editorial Board Artthur Blásio Rambo Beatriz Vasconcelos Franzen Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos leda Gurtfreind Paulo Staudt Moreira Wemer Altmann Conselho Consukivo/Considtacive Council Leopoldo Zea (UNAM - México - in memorian) Adalberto Santana (UNAM - México) Andréa Reguera (UNCPBA -Tandil, Argentina) Bartomeu Melià (Academia Paraguaya de Ia Historia - CEPAG) Hugo Eduardo Biangini (Univ. de Belgrano - Argentina) Maria Luiza Tucci Carneiro (USP) Maria Helena Rolim Capelato (USP) Raul Fomet-Betancourt (Missio-Aachen) Sônia Mendonça (UFF) René Ernaini Gertz (PUC-RS, UFRGS) H673 HISTÓRIA UNISINOS / Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos.— v. 8, n. 10.— São Leoptildo : Unisinos, 2004- Semestral Continuação de: Estudos Leopoldenses (1966-1996), posteriormente Estudos Leopoldenses (Série História) (1997-1999) ISSN 1519-3861 1. História - Periódicos I. Programa de Pós-Graduação em História - Universidade do Vale do Rio dos Sinos CDU: 93/99 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Revista Indexada Université de Ia Sorbonne Nouvelle Paris 111 Institut des Hautes Etudes de LAmérique Latine ABC - Clio Lihrary - Santa Barbara, Califórnia, USA História UNISINOS substitui, desde 2000, a Revista Estudos Leopoldenses - Série História, continuando a numeração desta. Assinatura / Subscription Unidade Acadêmica de Pesquisa e Pós-Graduação Editoria de Periódicos Científicos e Acadêmicos Av. Unisinos, 950 - 93022-000 - São Leopoldo, RS, Brasil Fone/Fax: 51.5908283 - E-mail: dqestacio@unisinos.br UNISINOS Reitor/Presídent: Aloysio Bobnen Vice-Reitor/Vice-Prcsident: Marcelo Fernandes de Aquino DIRETORIA DE PÒS-GRADUAÇÂO E PESQUISA/ POSTGRADUATE AND RESEARCH OFFICE Diretor/Director: lone Maria Ghislene Bentz História Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos HISTÓRIA UNISINOS Vol.8 NMO 2004 208 p. ■" / Sumário Apresentação Cláudio Pereira Elmir e Marluza Marques Harres / 7 Dossiê Teoria e Metodologia da História Narrativa, cor local e ciência. Notas para um debate sobre o conhecimento histórico no século XDC Temístocles Cezar / 11 A narrativa e o conhecimento histórico Cláudio Pereira Elmir / 35 A marca pedagógica da narrativa: um princípio educativo? (Comentários a Temístocles Cezar e Cláudio Elmir) Edia Eggert / 53 Crônica: fronteiras da narrativa histórica Sandra Jatahy Pesavento I 61 Histórias e memórias da cidade nas crônicas de Aquiles Porto Alegre (1920-1940) Charles Monteiro / 81 Pequenas notas sobre a escrita do ensaio Antônio Marcos Vieira Sanseveino / 97 A escrita herege. O fim do texto e do sujeito filosófico Márcia Tiburi / 107 O ensaio (Comentários a Antônio Sanseverino e Márcia Tiburi) Eliane Cristina Deckmann Fleck / 123 Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica Benito Bisso Schmidt / 131 Aproximações entre história de vida e autobiografia: os desafios da memória Marluza Marques Harres / 143 O que a Micro^História tem a nos dizer sobre o regional e o local? Núncia Santoro de Constantíno / 157 O corpo e a alma do mundo. A micro^história e a construção do passado Sandra Jatahy Pesavento / 179 O que a micro-história tem a nos dizer sobre o regional e o local? (Comentários a Núncia Constantino, Regina Weber e Sandra Pesavento) Cláudio Pereira Elmir / 191 Table of Contents Presentation Cláudio Pereira Elmir and Marluza Marques Harres / 7 Dossier on Theory and Methodology of History Narrativo, Local Color and Science. Notes for a Debate on Historical Knowledge in the 19th Century Temístocles Cezar /II Narrativo and Historical Knowledge Cláudio Pereira Elmir j 35 The Pedagogical Mark of the Narrativo: An Educational Principie? (Comments on the Papers by Temístocles Cezar and Cláudio Elmir) Edla Eggert j 53 Chronicle: At the Border of Historical Narrativo Sandra Jatahy Pesavento j 61 Stories and Memories of the City in the Chronicles by Aquiles Porto Alegre (1920'1940) Charles Monteiro j 81 Brief Notes on the Writing of an Essay Antônio Marcos Vieira Sanseverino / 97 Heretical Writing. The End of the Text and of the Philosophical Subject Márcia Tiburi / 107 The Essay (Comments on the Papers by Antônio Sanseverino and Márcia Tiburi) Eliane Cristina Deckmann Fleck / 123 The Writing of Life: Reflections on Biographical Narrativa Benito Bísso Schmidt / 131 The Reiationship between Life Story and Autobiography: The Challenges of Memory Mar/u:^a Marques Harres / 143 What Has Micro-History to TelI us about the Regional and the Local? Núncia Santoro de Constantino I 157 The Body and the Soul of the World. Micro-History and the Construction of the Past Sandra Jatahy Pesavento I 179 What Has Micro-History to Tell us about the Regional and the Local? (Comments on the Papers by Núncia Constantino, Regina Weber and Sandra Pesavento) Cláudio Pereira Elmir / 191 A escrita da história É com enorme satisfação que oferecemos à comu nidade acadêmica da história mais um número da nossa História UNISINOS. E, pela primeira vez, trazemos um dossiê dedicado inteiramente à discussão de questões teó- rico-metodológicas pertinentes ao nosso campo de conhe cimento. Todos sabemos das dificuldades por que passa mos quando nos vemos diante da difícil tarefa de enunci ar os pressupostos conceituais que orientam as nossas pes quisas. Ao lado disto, são raros os trabalhos de historiado res - ou de candidatos a historiadores - que se aventu-. ram, com centralidade, pela complicada seara da discus são teórica. Esta relativa ausência é menos sentida no de bate historiográfico, pelo menos aparentemente. Isto por que há inúmeros trabalhos historiográficos nos quais resta inexistente a (auto-) reflexão acerca dos princípios epistemológicos que norteiam sua realização. Tendo em vista este cenário de dificuldades e de poucas manifestações de ousadia intelectual, é que reali zamos no ano de 2003 três importantes atividades acadê micas promovidas pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS, parte das quais resultou na pu blicação deste dossiê. Em maio daquele ano, juntamente com o Curso de Graduação em História da nossa univer sidade e com o GT Teoria da História e Historiografia da ANPUH-RS, realizamos o Seminário A escrita da histó' ria: modos (I)- O nosso empenho, expresso nos objetivos do evento, foi plenamente alcançado. Naquela ocasião. dizíamos: "O Seminário 'A escrita da história: modos (I)' quer se constituir num espaço de reflexão qualificada so bre algumas das diferentes formas pelas quais a história tem se realizado como escritura. Nas últimas décadas, o debate historiográfico no âmbito teórico tem suscitado renovadas perspectivas de se entender o labor do histori ador em suas mais variadas configurações. Nesse sentido, foram eleitos para reflexão e aprofundamento a narrativa, a crônica, o ensaio e a biografia. Através destes 'modos de escritura' revela-se, em alguma medida, o próprio enten dimento acerca do ofício historiográfico." Tivemos, na ocasião, a melhor receptividade possível, lotando o Au ditório Central da universidade com mais de 250 inscri ções formais, além dos assistentes eventuais. Em agosto daquele mesmo ano, juntamente com a Profa. Maria Cristina Bobn Martins, organizamos um ou tro espaço de discussões. No dia 26 de agosto, nos três turnos, promovemoso Fórum Escala e legitimidade no saber histórico: desafios da pesquisa na pós'graduação. Dizíamos na sua apresentação: "O Fórum 'Escala e legiti midade no saber histórico: desafios da pesquisa na pós- graduação' quer se constituir num espaço de reflexão teó- rico-metodológica e de troca de experiências sobre os ru mos da pesquisa docente e discente realizada nos progra mas de pós-graduação em História sediados no Rio Gran de do Sul. Neste sentido, o Fórum está estruturado sob a forma de três mesas-redondas e uma comunicação de pes quisa, nas quais devem ser abordados os seguintes tópi cos: diagnóstico institucional e perspectivas do conheci mento produzido nos quatro programas de pós-graduação em História do Estado; os diferentes níveis de abordagem do conhecimento histórico e a tensão entre o 'episódico' e o 'estrutural' na produção acadêmica advinda dos PPGs e a apropriação historiográfica do 'local' e do 'regional' e sua inserção no debate recente da micro-história." Alguns dos textos desta última mesa compõem também o pre sente dossiê. Um outro texto, de excepcional valor refle xivo, de autoria de Sílvia Petersen, foi publicado em nú- r HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 N° 10 |jUL/DEZ| 2004 | mero recente de nossa revista, cuja atenta leitura reco mendamos.' Na primeira semana de novembro, com a parceria do Prof. Paulo Roberto Staudt Moreira e com o apoio do GT Acervos da ANPUH-RS, promovemos, juntamente com o Curso de História, o Ciclo de Palestras As fontes do inquérito (I), com o intuito de discutir, discrimi- nadamente, o uso que fazemos dos documentos que inte ressam à investigação historiográfica. Dizíamos naquela oportunidade, acerca da importância desta atividade: "[...] o ciclo [...] pretende se constituir num fórum para a apre sentação e discussão de tipos específicos de fontes docu mentais que podem estar no horizonte do pesquisador do campo das Ciências Humanas. Neste sentido, o Ciclo quer realizar um esforço de sistematização das possibilidades teórico-metodológicas de abordar estes documentos, ten do em vista a realização de um diálogo entre as diferentes disciplinas desta área e, mais especificamente, das investi gações que seus pesquisadores têm levado a efeito, nos vários níveis de especialização". Integraram o rol das abor dagens naquela primeira edição a música, os inventários, as fontes seriais e quantitativas, a documentação diplo mática e os documentos privados. Um de seus textos, so bre o uso de fontes quantitativas e seriais, de autoria de Adhemar Lourenço da Silva Júnior, afortunadamente, já foi publicado em nossa revista.^ E no movimento deste intenso debate, de caráter ao mesmo tempo teórico, metodológico e historiográfico, que reunimos aqui alguns textos que poderão servir de estímulo a outras intervenções críticas, com o intuito de qualificar nosso acesso a um conhecimento histórico que ' Ver o texto de Sílvia Regina Ferraz Petersen, 2003, "Escala e legitimidade no saber histórico: desafios da pesquisa na pós-graduação", História UNISINOS, 7(8):171-188. ^ Trata-se do artigo de Adhemar Lourenço da Silva Júnior, 2003, "Números na História: apontamentos sobre o uso de fontes quantitativas e seriais", publica do na História UNISINOS, 7(8): 189-223. HISTÓRIA UNISINOS Vol. 8 N° 10 | JUL/DEZ | 2004~] se quer sempre mais sofisticado, porquanto iluminado pela imprescindível tarefa da auto-reflexão sobre o nosso pró prio ofício. Agradecemos aos Editores da História UNISINOS pela oportunidade de organizar este dossiê. Boa leitura! Cláudio Pereira Elmir Marluza Marques Harres Organizadores 10 HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N» 10 | JUL/DEZ | 2004 I. l Crônica: fronteiras da narrativa histórica Sandra Jatahy Pesavento* Resumo: O texto procura analisar a crônica como um gêne ro literário de fronteira, entre literatura e história, e que se caracteriza por realizar uma leitura sensível do tempo, seja para inventar o passado, explicar o presente ou cons truir o futuro. Palavras-chave: crônica, narrativa histórica, ficção, imaginá rio, sensibilidades. Resumé: Le texte analyse Ia chronique comme un genre littéraire frontalier, entre Ia litteráture et Thistoire, et qui se caracterise comme une lecture sensible du temps, soit pour inventer le passé, expliquer le présent ou construire le futur. Mots-clé: chronique, narrative historique, ficción, imaginaire, sensibilités. Professora do curso de Graduação e do Programa de PóS'Graduação em Histó ria pela UFRGS. Mestre em História da Cultura pela PUCRS e doutora em História Social pela USP. E-mail: sandrajp@terra.com.br HISTÓRIA UNISINOS Vol.í NMO JUL/DEZ p. 61-80 clabrac1980 Realce clabrac1980 Realce clabrac1980 Realce clabrac1980 Realce clabrac1980 Realce 62 Principiemos pelo grande desafio com que se de frontam os investigadores dos domínios de Clio: como se constrói a narrativa histórica? Uma idéia na cabeça, uma pergunta nos lábios, con cebidas à luz daqueles instrumentos para interrogar o mundo a que chamamos conceitos; uma escolha e um re corte da realidade, construído como objeto de pesquisa, onde se divisa uma trama; um olhar sobre o passado, em busca de sinais emitidos por um outro tempo, erigidos como marcas de historicidade e como pistas para o desvendar daquela questão, antes formulada, e com vistas a respon der àquela pergunta feita; a mise en récity esforço retórico e de escrita, de molde a fornecer uma explicação convin cente e plausível, onde se realize a reconfiguração de um tempo, com vistas a dar a ver e ler uma versão, o mais próxima possível, daquilo que teria sido um dia; uma meta e um desejo de veracidade e, como resultado, uma narra tiva verossímil, que explica e revela a solução encontrada para a decifração do enigma proposto. Não seria esta, não tem sido esta, a performance da escrita da História, ao longo do tempo? Partamos do princípio de que esta seja uma receita para o fazer História, ou seja, para a construção de uma narrativa que representa o passado. Mas, deste processo, queremos nos deter em um certo elemento, aquele sem o qual não há trabalho de História possível de ser feito: referimo-nos às tais marcas de historicidade, os tais regis tros que objetivam a existência de algo e que assinalam a passagem do tempo. Nesta medida, poderíamos dizer que, de uma cer ta forma, frente ao desafio de enfrentar a decifração do passado, o historiador o mundo à sua disposição, sob a forma dos mais diversos traços que restaram de um ou tro tempo. O olhar do historiador constrói alguns destes regis tros como fontes, ou seja, como indícios e possibilidades de resgate daquilo que ele busca encontrar no passado. Detenhamo-nos em i^ma marca de historicidade muito 'I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N" 10 |jULyDEz| 2004 | específica, a qual tem sido cada vez mais trabalhada pelos historiadores. Referimo-nos à crônica, este registro privi legiado para o acesso a um tempo passado e que, no caso, tratamos como uma fonte para a História. A realidade, bem o sabemos, é complexa, e as for mas de dizê-la e representá-la também o são. A História, no caso, é mestra em se valer de várias e distintas narrati vas. A História as usa como recursos para criar, ela pró pria, a sua representação sobre o passado, que é o seu campo de ação. No caso em pauta, tratamos a História como o lu gar de onde se formula a questão e se elabora um discur so, o qual se vale da crônica como uma fonte narrativa. Não se trata de estabelecer uma hierarquia entre narrati vas, mas de estabelecer o lugar da fala, ou do estabeleci mento de uma interrogação sobre o mundo. Antes de tudo, cabe esclarecer que trataremos a crônica na sua acepção contemporânea, ou seja, aquela narrativa curta, difundida pelos jornais, frente a um mun do transformado pela modernidade urbana e pelos meios de comunicação de massa, tal como se processou na civi lização ocidental a partir do século XIX. Nesta instância, a crônica é aquele artigo de consumo diário, rápido e pre ciso, que se apresenta como produto a ser consumido por um público leitor de jornal.Em estudo seminal, Antonio Cândido (1992) cha mou a crônica de relato da vida ao rés-do-chão, e, em determinado ensaio, nós a analisamos como uma leitura sensível do tempo (Pesavento, 1997). Tais reflexões so bre a crônica nos remetem, imediatamente, à sua capa cidade de registro do cotidiano e das sensibilidades, o 63 que a tornaria, por assim dizer, uma fonte muito rica e especial para o historiador, sobretudo se este estiver in teressado em acessar as formas pelas quais os homens, em um outro tempo, construíam representações sobre si próprios e o mundo. A análise da crônica poderia se dar a partir da sua inserção como gênero literário de fronteira, entre a Lite- HISTÓRIAUNISINOS Vol.8 NMO JUL/DEZ 2004 ratura e a História, estabelecendo uma reflexão sobre se o autor, ao escrever a crônica, está a fazer uma história de seu tempo. Ou então se poderia ainda discutir se, como Literatura, a crônica se enquadraria como um gênero maior ou menor, diante de outros gêneros consagrados, como o romance ou a poesia. Tais questões, a rigor, já se acham abordadas nos estudos citados, assim como em muitos outros trabalhos críticos. Já adiantamos, contudo, que pretendemos tratá-la como fonte, ou seja, como meio ou instrumento para o historiador atingir o passado, e, sob esta condição, busca mos analisar o seu potencial de revelação para o conheci mento de um outro tempo. A fonte é mediação entre o que teria sido e a representação que deste ter sido se cons- tmiu. A fonte, como diz seu nome, é manancial de onde brotam possibilidades para desvendar uma trama que foi urdida. Mas a fonte já é, em si mesma, uma representação do passado e se coloca como base para a representação que, por sua vez, o historiador construirá sobre aquele passado. Neste sentido, nossa abordagem da crônica se reali za sob um plano epistemológico — a natureza da sua escri ta - e sob o seu potencial de uso para o fazer História, que é o da reconfiguração do tempo. Ora, entendemos que a primeira consideração a ser feita é a de que a crônica é uma narrativa de fronteira, mas fronteira enquanto modalidade ficcional na reconfiguração de um tempo. Como premissa desta abordagem, talvez até dispen- ^ sável no debate acadêmico contemporâneo, nos defini mos pela concepção que admite, para a escrita da Histó ria, o uso de recursos fictivos, pelo que esta abordagem não pretende opor, de maneira antitética, uma história- verdade-ciência a uma crônica-arte-ficção. Principiemos pelo ato da escrita, que põe em cena o cronista, aquele que faz do tempo presente, tempo do vivido, a sua fonte de inspiração. Sob uma ótica realista. HISTÓRIA UNISINOS ' Vol.8 N» 10 JUL/DEZ 2004 o cronista mostraria, para o historiador, a temporalidade da escrita com a vida tal como era neste momento, ou, pelo menos, aquilo que nela chamava a atenção ou preo cupava os homens da época. Em certa medida, a tradu ção do presente pela escrita, que pode girar em tomo do cotidiano ou do fato excepcional e, sobretudo, das sensi bilidades e sociabilidades de um determinado contexto, atribui à crônica um certo valor, digamos assim, docu mental. Como diria o cronista do jomal porto-alegrense, a falar sobre um dos mais famosos redutos da sociabilidade masculina da cidade, o café América, em crônica que nos permite visualizar espaços e práticas sociais urbanas na virada do século: O América, o ponto melhor da Rua dos Andradas e onde se reúnem advogados, médicos, comerciantes, poetas literatos, noticiaristas, boêmios inteligentes e extravagantes e do melhor que possui o nosso meio social, aos domingos é visitado pela simpática rapaziada caixeiral, sempre correta e unida, que, elegantemente vestida, provoca olhares etéreos e cristalinos de criaturas meigas e tentadoras, felizes e sedutoras.^ Por outras, é uma prática do cotidiano dos habitan tes que é criticada pelo cronista, a fomecer flashes do viver em cidade da época, marcando o cotidiano da cidade: Oh! Mas este hábito de parar no meio da calçada e aí fazer ponto de rendez-vous, é simplesmente intolerável! Nós não quere mos , é claro, que se ponha em prática o civilizadíssimo "circulez, messieursl" das metrópoles. Os que andam a negócio, que têm urgência de chegar a qualquer lugar, não podem estar a toda a hora a desviar-se dos pequenos grupos e "meetings" pacíficos 65 que obstruem o trânsito.^ Esta espécie de crônica social ligeira, que registra o O Independente, 06.10.1895. Kodak, 08.09.1917. HISTÓRIA UNISINOS Vol.f N« 10 JUL/DEZ 2004 66 cotidiano da cidade insere, no presente, uma tempora- lidade desejada; o futuro já chegou. Porto Alegre é já uma metrópole, com gente apressada, com um grande movi mento nas ruas, onde se registra a presença deste novo personagem que faz entrada na modernidade urbana: a multidão. Tal crônica se realiza retratando um sentimen to, por assim dizer, progressista do viver urbano. A crôni ca é, no caso, registro sensível de um presente que já se inscreve no futuro, onde o que conta é a percepção do tempo que se vive, que, no caso, é um tempo acelerado. Assim, a crônica, tal como a literatura, a pintura, a fotografia, é testemunho de si próprio, ou seja, do tempo presente de sua feitura, que faz perceber e qualificar o real desta ou daquela forma. Tal valor referencial não pode, contudo, ser en tendido como transparência, pois retiraria do ato da escrita todo o seu potencial criador. Mesmo registran do o observável no tempo do presente, o que cabe dis cutir é o caráter alegórico da escrita — este dizer de outra forma, dizendo além - que faz da crônica uma narrati va que enuncia outras realidades do presente, sugeridas pela escrita. Não podemos esquecer que é próprio da crônica o registro do banal, daquilo que não chama a atenção e que passa desapercebido, mas que, pela mise en récit, recebe um destaque. Nesta medida, o banal ou o corriqueiro tor na-se traço ou sintoma para que se pense em outra coisa, para além daquilo que é dito ou sugerido pelo autor. Tomemos o exemplo de uma crônica cotidiana de um jornal da década de 1880, em Porto Alegre, O Século. Se o cronista d'0 Século registra o que chama de uma degradante cena — a passagem pelas ruas da cidade de um miserável homem de cor preta, um des graçado escravo que fugira da casa de seu algoz, amar rado por cordas e conduzido, à maneira dos animais, por policiais e capitães de mato até a cadeia civil, onde seria, naturalmente, surrado por aqueles agentes da lei -, seu comentário era de que tais cenas eram, em tudo, r HISTÓRIA UNlSlNOf, ! [ Vol. 8 | N° 10 | )Ul/DEZ | 2004 | repugnantes, depondo contra a civilização da socieda de em que tinham lugar.^ Levando em conta a conjuntura do momento, vê- se que a narrativa deste incidente do cotidiano da cidade - cotidiano para a desgraça da capital que se queria civi lizada - assumia os tons críticos e próprios da postura abolicionista, onde o escravo fugido era chamado de Cristo preto e os que o acompanhavam de fariseus. O registro do tempo do presente explicita a crítica do contexto políti co-social, dando a ver uma postura que aspirava clara mente a uma modificação da ordem instituída. Por vezes, o cronista se encarrega de apontar as re lações a serem feitas entre a situação cotidiana explícita e a questão implícita. Por outras, o cronista fornece as pis tas, mas a revelação se dará pela sagacidade do leitor de recriar a realidade que se entrevê no texto. Há, pois, um desvelamento de sentidos que se espera obter com a lei tura, face a esta narrativa que mais sugere do que afirma e que, no mais das vezes, se reveste da ironia para realizar sua crítica. E o caso específico de Germano Hasslocher, reda tor do jornal A Gazeta da Tarde, que criava verdadeiras páginas literárias para desnudar as mazelas do seu tempo presente. Em uma de suas crônicas da coluna Dia a dia, Hasslocher conta a história de uma entrevista ocorrida, presumivelmente, entre sua esposa e uma candidata a empregada doméstica. Finda a entrevista - impagável pelas exigências de pernóstica crioula -, ele, o dono dacasa, que fumava seu charuto à parte, sem se imiscuir nas tratativas da mulher com a aspirante a criada, resol ve chamá-la para uma análise que estava a realizar sobre 67 um problema do cotidiano da cidade: aquele do serviço doméstico. E, neste sentido, passa a entrevistar a tal cri oula, que lhe dá contas do comportamento dos patrões naquele novo mundo sem escravos, mas que se pautava ^ Degradante cena, 17.07.1881. HISTÓRIA UNISINOS Vol.8 NMO JUL/DEZ 2004 ainda pelas antigas regras e vícios da senzala e também da sem-vergonhice dos negros, fruto daquele mesmo ter rível sistema. Filosoficamente, o cronista acabava por dar razão aos negros, restaurando para o presente um passado ainda recente que comprometia o futuro: . E só então com(neendi a resolução do problema do serviço doméstico. Enquanto os anos não passarem muitos, sob a recor dação do relho do senhor de escravos, negro não pode ser bom criado. E, coisa singular: na confissão tão positiva e terminante daquela crioula, que di^ja que o outro vício da escravidão era a falta de vergonha do negro, eu vi exatamente o contrário do que ela afirmava, uma inconsciente ironia de quem não percebe o sentimento de pundonor brotando silencioso num terreno antes árido, safaro (sic) como era a alma do negro, durante tantos anos explorado pela infâmia humana, dourada com o nome de um direito. Dançai, pulai, diverti-vos bem e dormi a sesta à vontade fazei sofrer esta sociedade, vós que sois um genuíno produto seu! (Hasslocher, 1896). Sob tal aspecto, a crônica, tal como a literatura, partilha desta capacidade ou potencialidade ficcional de expressar o invisível, o implícito, o imperceptível, de re velar o não dito, de descobrir novas verdades da vida, de expor/escondendo o que não encontraria expressão escri ta de outra forma. Sob tal viés, a crônica é escrita de fron teira do próprio presente que se dispõe a narrar, como escrita capaz de transcender a sua temporalidade e de des locar um sintoma do cotidiano para o plano do universal. A crônica, enquanto fronteira do tempo presente, partilha desta capacidade imaginária de reconstrução do 68 mundo, revelando uma outra realidade. A crônica possui uma capacidade de recriação da realidade por um mundo paralelo de palavras e imagens, processo este que se esta belece no âmbito da escrita e se complementa naquele da leitura. Este potencial é tão amplo que até a ausência de registros - a terrível falta de assunto — dá margem a uma ' narrativa sobre o vazio do acontecimento, ou sobre a ba- HISTpPlAAJNlSlNOS | Vol. 8 | N° 10 | JUL/DEZ [ 2004^ nalidade da vida, ou ainda sobre o próprio ato da escrita, operando como porta, janela ou soleira para o ingresso em outras dimensões do mesmo presente. Veja-se, a propósito, um trecho da crônica de um certo Chevalier de Ia Lune, a escrever, em 1913, na revis ta Kodaky e a parodiar conhecida poesia, falando sobre o tempo que passa e a própria escrita da crônica, mas tam bém sobre o marasmo da cidade: Mais uma semana... mais outra... E que elas voam assim como as pombas do poeta, e não voltam mais. De sorte que o cronista é como um ponteiro no relógio do tempo. Um ponteiro - mas rombo e irregular: rombo, porque deforma os fatos ao crivo de uma impressão, irregular, porque a alma é que faz a duração do tempo (Lune, 1913). Sob a alegação de que é segunda-feira e, como tal, nada acontece, ao que se somam a fadiga deixada pelo domingo e o dado de que os fatos escasseiam, o cronista deixa entrever uma cidade com um tempo imóvel, frus- trando-se o cronista à sua missão de narrar algo sobre a vida, que é sempre movimento. Terminando por falar do absolutamente irrelevante para o leitor - a sua dor de dentes... — ,ele deixa implícita a repetição fastidiosa de um cotidiano banal! Uma espécie de escrita do nada, construída no va; zio da notícia, revela uma mesquinha vida urbana. Nà mesma linha se inserem os comentários do conhecido cro nista Paulino Azurenha, quando, irônico, constrói, como assunto de sua narrativa, a passagem de uma nuvem de gafanhotos pela cidade: Quebrando a suave monotonia do delicioso viver dos habitantes de uma cidade assim, em que habitualmente reina uma placi dez edênica, é claro não haver, senão lá de espaço a tempo, fatos de alta monta. De costume, é esta invejável pasmaceira, a que até a passagem de uma nuvem... de gafanhotos abre ensejo para o comentário e a distração pública (Azurenha, 1926, p. 127). Paulino Azurenha, no caso, utiliza em sua narrativa r HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | NMO |jÜL/DEZ [ 2004 | 69 a metáfora dos gafanhotos que vão e vêm, retornando à cidade, para discutir o olhar desde fora sobre Porto Ale- gre e mesmo as possibilidades de reconhecimento ou estranhamento que estariam presentes na apreciação da quele que retomasse à cidade após um período de longo afastamento. A postura de Azurenha, o festejado cronista Leo Ps^rdo, aparece como sintoma de uma sensibilidade diante da cidade. Os cronistas, escritores do presente, nos sugerem um tipo de atitude de expectativa e frustração diante de um urbano sem emoções, como que paralisado no tempo. Esta postura é oposta àqueles que viam, na cidade de então, a realização de um futuro desejado. Mas as crônicas podem, também, referir-se a um outro tempo, no passado. São elas as narrativas memorialísticas, quase sempre baseadas, na maioria dos casos, na experiência e nas recordações de alguém que viveu, viu e ouviu um outro tempo. Tais crônicas são es pecialistas em assinalar a diferença entre o tema/objeto da recordação tal como era no passado e o tempo da nar rativa, o presente onde se realiza o ato de rememorar. Não raro, esta diferença no tempo é qualificada e, muito freqüentemente, é julgada como uma perda. Achylles Porto Alegre foi, no caso, um cronista que deixou inúmeras narrativas deste tipo sobre a capital gaú cha. Lamentando as transformações da cidade, que a dei xavam, por vezes, irreconhecível para aqueles que havi am vivido um outro tempo, o tom nostálgico do cronista confere ao passado uma valorização positiva, face às per das trazidas pelo presente: 70 Volvendo, de vez em vez, os olhos da memória para estes tem pos [...] vemos então que o progresso, no fim de contas, não é senão uma esponja, apagando páginas e páginas de história, com a destruição e o desaparecimento de sítios que, fotografan do aspectos, deveriam conservar-se intactos e inteiros no seu magnífico brilho tradicional (Camioli (Achylles Porto Ale gre), 1920). Acusado de ser um saudosista, que desejava a volta / f I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N° 10 | JUL/DEZ | 2004 | de um tempo do passado, irrecuperável, o cronista se de fendia: Quer queiram, quer não queiram, eu revivo, porque recordar é viver, trechos e lances de vida já vivida. Recordar é retomar ao que se foi, é voltar ao passado e ficar nele por instantes, vendo com os olhos da memória as coisas como eram então, embora Já não existam ou estejam transformadas [...] E verdade que o progresso, na sua faina transformadora, muda o aspecto aos seres e às coisas, mas eu, quando quero, vejo tudo como era ao tempo em que, moços, com a alma e o coração cheios de poesia, olhavam a vida através de uma opala risorúia (Porto Alegre, 1923, p. 7-8). Perdas no desgaste físico das materialidades ou for- mas do espaço construído que são erigidos em objeto da rememoração, perda das experiências passadas em face da irremediabilidade do seu retomo, perdas dos valores e normas que orientavam as ações e que caíram em desuso, perda dos atores que encarnaram certas idéias e que fo ram ultrapassados pelo tempo... Na grande parte das ve zes, estas perdas assinaladas dão margem a um caráter sau dosista, que assume a forma de um lamento e mesmo uma avaliação: o passado era melhor... Neste caso, ver, no pre sente, o passado se converte em uma atitude de um dese jo impraticável: a volta do que passou. Ora, esta diferença assinalada, diferença que intro duz uma alteridade a ser percebida, dada pela passagem do tempo físico, instaura um outro tempo, construído peloato de representar o passado no presente. Nesta medida, a crônica memorialística partilha, com a História, esta propriedade de reconstrução do passado pela narrativa, dando a ver uma temporalidade que só 71 pode existir pelo esforço da imaginação. Há uma constru ção imaginária de uma temporalidade passada, que se apresenta como verossímil pela autoridade da fala/narra tiva daquele que rememora e se apresenta como testemu nha de seu próprio relato. A enunciação - eu vi, foi as sim, foi então, eu estava lá - atesta a certeza do reencon tro do passado ou da correspondência da realidade com o r HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | NMO | JUL/DEZ | 2004 | discurso, produzindo, senão a veracidade da narrativa, pelo menos um efeito de verdade. Como bem afirmou Paul Ricoeur (2000), a Histó ria não dispõe deste dispositivo de confirmação testemu nhai da memória consubstanciado na credibilidade da re cordação e no reconhecimento da lembrança. A História se resigna a perseguir uma meta de veracidade, a pôr em ação todo um dispositivo retórico e argumentativo e toda uríia estratégia metodológica de organização documental para chegar o mais perto possível deste real do passado, sem nunca poder alcançá-la in totum. Mas trazer um outro tempo, nem passado nem pre sente, e sim uma outra temporalidade, é um esforço ficcional dos mais árduos. A começar pelo fato de que aquele que escreve a crônica memorialística enxerga com os olhos do passado, vendo, no hoje, o ontem, na nova materialidade erguida através do tempo, as outras, já destmídas, que ali existiram um dia. Ver o que não mais é possível ver, eis a tarefa narrativa que ultrapassa as fron teiras do próprio tempo do passado, reconstruindo-o pelo imaginário da narrativa. Por outro lado, este retomo ao passado pela memó ria é, também, uma forma metafórica de expressar o mun do, na qual a invenção do passado, além de tentar dizer como teria sido, fala, sobretudo, do presente. Falar do presente construindo o passado é uma maneira alegórica de referir-se ao real de outra forma. Por exemplo, a ameaça da mudança ou a iminência de ser colocada em prática uma nova ordem torna explí cito o temor ou o pressentimento de que algo está preste a desaparecer. A ameaça da perda gera uma busca pelo passado, reforçando raízes, consagrando mitos de origens e produzindo o esforço de lembrar. Estamos, neste ponto, diante do processo da anamnese, deste trabalho voluntá rio de memória, que busca lutar contra o esquecimento. O receio do futuro faz o presente agarrar-se ao passado, apagando fronteiras de tempo e inventando uma nova dimensão. I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N® 10 | JULTDEZ | 2004 | í / É diante da ameaça da perda, da chegada da mu dança, da subversão de uma ordem ou de um projeto de instalação de um novo tempo, o do futuro - como no caso da formação dos estados nacionais -, que se processa uma volta para o passado, inventando uma História ou fazendo surgir a crônica memorialística, ambas construídas como formas narrativas de reconfigurar o que passou. E, neste ponto, chegamos à fronteira de uma outra temporalidade, onde mais uma vez a crônica comparece como lugar de ultrapassagem e criação imaginária. A crô nica é ainda fronteira no tempo do futuro, modalidade na qual talvez seja mais perceptível o seu caráter ficcional. Este tempo não realizado se configura na narrativa como um tempo de sonho e desejo, fruto da imaginação de quem, no presente, coloca suas expectativas e espe culações. A crônica que trabalha com o futuro é tam bém alegórica enquanto modalidade narrativa, na qual, inclusive, se estabelece um jogo de cumplicidade com o leitor. Este é, desde o início, esclarecido de que o cronis ta sonha ou devaneia, ou mesmo inventa um mundo in teiramente outro. O leitor segue esta ficção sobre o futuro, que, em tudo, contradiz a realidade do presente, narrativa esta que quase sempre acaba por um acordar do cronista, com o seu retomo ao cotidiano, contato com a realidade que, não raro, se faz acompanhar de um sentimento de de cepção. A crônica futurista introduz uma narrativa que, de forma fantasiosa, com a qual o leitor é cúmplice, diz ver dades sobre o presente, sob a forma de um outro tempo. O fato de estabelecer a instituição de um mundo de men- 73 tira não invalida a verdade do simbólico que esta narrati va contém. Situações irrealizáveis ou improváveis podem ser lidas pelo seu reverso, e a ironia e a blague permitem acessar sentimentos vividos e profundos. Mesmo que algo seja irrealizável, isto não implica que, uma vez, tenha sido concebido como forma de ex pressar um desiderato. Se assim não fosse, como analisar HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 | N'10 | ]UL/DEZ | 2004 ] as utopias, que não se medem pelo seu grau de realização, mas pelo seu potencial de desejo e expectativa de que, um dia, foram portadoras? E, para confirmar a idéia de que a temporalidade do presente é aquela que preside a composição da narra tiva, todos os elementos da situação imaginária do futuro lá estão, retirados da contemporaneidade do cronista. Poderão, sem dúvida, se apresentar com os sinais troca dos, em combinações absurdas, ou mesmo com um signi ficado hipertrofiado em termos de positividade ou negatividade, mas seu arranjo, aparentemente inverossímil, porta uma coerência de significado e uma ancoragem bem concreta nos dados do presente. A crônica futurista, nes te aspecto, é tão cifrada ou inventiva na sua configuração quanto os filmes de ficção científica, que dão a ver como em um tempo dado se pensa o futuro. Tome-se o caso da série de crônicas intituladas Cousas Municipais, escritas por Felicíssimo de Azevedo e publicadas no jornal A Federação, de janeiro a setembro de 1884. Felicíssimo de Azevedo, este nosso cronista da capital gaúcha, foi republicano de primeira hora e se apre sentara diante da Câmara Municipal de Porto Alegre para prestar seus serviços como fiscal honorário da cidade. Já aposentado e não precisando de remuneração alguma da municipalidade, para viver, Felicíssimo de Azevedo se propunha, voluntariamente, a zelar pela eficácia da admi nistração e dos serviços urbanos prestados à cidade. Deste cargo, advertia aos vereadores, ele não poderia ser dis pensado, pois não fora nomeado, não recebia salário e desempenhava suas funções como um direito seu, na sua qualidade de cidadão. Felicíssimo de Azevedo é talvez o mais acabado exemplo de vivência e militância cidadã, entendida como um direito seu e um dever diante da comunidade. Não só entregava, duas vezes por semana, as suas obser vações e comentários sobre a cidade aos vereadores, como dava esta crônica para ser publicada nas páginas d'A Fe deração, com o que estabelecia uma relação de cumpli- I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N" 10 | JUIVDEZ | 2004 | / ' cidade e expectativa com o seu público leitor, também de cidadão. Pois bem, Felicíssimo de Azevedo fixa o presente do que vê, anota, critica, denuncia e toma público. Sua crônica oscila entre o registro do banal e corriqueiro do cotidiano de uma cidade - um buraco em uma rua que perturba o trânsito e os passantes, uma medida levada a efeito pela Câmara Municipal naquele momento e que ele considera errada e prejudicial à comunidade - e o co mentário de acontecimentos excepcionais para a vida da cidade, como as preparações para a libertação antecipada dos escravos que se daria em 7 de setembro de 1884. Entre tais acontecimentos do tempo presente, o fiscal honorário introduz um outro tempo: como fiscal- cidadão, ele propõe e projeta uma outra cidade, ideali zando medidas, sugerindo o que fazer e — sobretudo - dando a ver ao leitor, pela sua narrativa, como seria a cidade do futuro! Fechai os olhos, cidadãos vereadores e sonhai com o vosso belo Porto Alegre daqui a 40 anos. O que vedes? Nada? Pois o vosso fiscal honorário enxerga muita coisa bonita, apesar de tantos horrores, deixados pela incúria da câmara. Não vedes aquela Várzea, tão descurada no passado, rodeada de palácios magní ficos; aqueles soberbos hotéis, aquelas casas de comércio tão luxuosas,aquela imensa onda de povo a correr apressado e a desviar-se dos veículos de toda a espécie que cruzam em todas \ os direções? (Azevedo, 1884). Na mesma linha de antecipação do tempo que há de vir, mas sob a forma do relato de um sonho, que de ante mão o leitor sabe que não ocorreu e que se trata de uma narrativa, alegórica e crítica, sobre a situação da cidade de Porto Alegre, se tem com Germano Hasslocher, quando este relata que sonhara ser o intendente da cidade! Extravagante o sonho que tive esta noite. Ouvi uma gritaria enorme, atroadora, reclamações entusiásticas, foguetada es tourando no espaço, músicas vibrando hinos triunfais. Enfiei- me num par de calças, enrolei-me num capote e cheguei à I HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 | NMO |jUL/DEZ | 2004 | janela para ver o que era aquilo. Mal a minha cabeça com os cabelos emaranhados assomou à janela, redobraram as aclama ções, a foguetada estrugiu numa tempestade e os metais da música abriram-se com a força dos hinos. Era comigo aquilo [...] Vinham trazer-me felicitações por ter sido eu eleito — intendente municipal."* Germano Hasslocher se destacava por ser um críti co feroz e moralista no seu tempo, indo dos hábitos da população aos procedimentos abusados dos libertos, para chegar até a certas ineficácias da administração republi cana, apesar de ser um republicano feroz. A crônica em questão é uma página de ardilosa ficção para mostrar o quanto a cidade estava abandonada, mas que se inscreve no reverso da posição de Felicíssimo de Azevedo: se este critica o regime monárquico no seu ardoroso proselitismo da causa republicana. Germano Hasslocher, ele mesmo republicano ferrenho, lança uma denúncia sobre o que considera a enorme tarefa a ser feita na remodelação da cidade pelo novo regime instalado, tal como expõe ao leitor a necessidade urgente de reformas para instalar a modernidade urbana. Neste sentido, ele é também um fiscal das necessi dades cidadãs, mas de dentro do regime. Busca mesmo coagir os novos detentores do poder a agirem, para o que busca, pela crônica-denúncia, relato de um sonho onde se dizem verdades políticas, a cumplicidade do público leitor. Ou, pelo menos, tenta convencê-los do que é pre ciso fazer... Sua conduta é a de apontar o mal — pela reve lação do sonho, no caso — para que uma nova conduta política se instale. Mas tal processo implica uma 76 reconfiguração do que seja a cidadania, tal como anun cia, em seu sonho, o novo suposto e sonhado intendente: Ides ter agora uma tirania municipal. [...] Sim uma tirania, coisa de que necessitais para a vossa felicidade. Eu não cortejo o povo, falo-lhe a dura verdade que há muito ele devera ter ^ Gazeta da Tarde,08.06.1895. I ̂ JII^ÓRIAUNISINOS I Vol.8 [ N° 10 |jUL/DEZ [ 2004 [ ouvido. Sim, meus concidadãos, a cidadania que pretendes tem sido a vossa desgraça. Firmados nela criais porcos nos vossos quintais, construís casas que são o peristilo do cemitério, amontoais o cisco no fundo dos vossos porões, despejais a imun- dicie na sarjeta das ruas, fazeis enfim o que quereis. Tudo isto vai acabar. A soberania passa a residir exclusivamente em mim. Os meus códigos aí estão: tratados de higiene, compêndios de construções, etc., etc., etc. O meu olhar há de penetrar na consciência de vossas habitações para fulminar os pecados que lá encontrar. [...] Ah! Eu sou assim. Povo não tem juízos, não tem critério; povo não foi feito para governar e sim para ser governado e governo é o domínio de uma sò cabeça.^ O despertar do cronista o leva a sentir um grande alívio, tal a enormidade da tarefa que lhe fora apresen tada, de molde a fazer a capital gaúcha resolver seus problemas... Germano Hasslocher se posiciona como arauto do novo autoritarismo republicano? Parece que, quer pela graça do estilo, quer pelo recurso literário do sonho ou pela maneira alegórica de se referir ao real sob uma outra forma, o cronista prepara o futuro de uma nova administração republicana, demonstrando que o progresso e a modernidade urbana implicavam um autoritarismo ilustrado que reverteria em benefício do povo, fulcro, portanto, de uma nova concepção de cidadania. Há ainda uma outra linha de cruzamento temporal que se apresenta nas crônicas e que, mesmo jogando co^m as dimensões da permanência e da mudança, confirma o seu estatuto de serem narrativas do presente. Tomemos o caso da crônica urbana mobilizada pela idéia da modernidade. A modernidade urbana, enquan to processo que se desencadeia com a renovação capita- 77 lista do mundo e que tem o seu epicentro na cidade, é renovação material e social do mundo, mas é também uma nova expressão imaginária do real. Ela desperta novas sensibilidades e expectativas, sendo uma delas a da idéia da metrópole. Ihid. HISTÓRIA UNISINOS Vol. l N«10 JUL/DEZ 2004 Ora, o que é uma metrópole? Enquanto construção imaginária de sentido, a metrópole é a cidade grande, onde as coisas acontecem, onde se dá a produção do novo, onde a vida se agita e as decisões são tomadas, espécie de espe^ Iho do mundo onde tudo se reflete e concentra. Os soció logos tentam definir e classificar ou mesmo mensurar a metrópole apresentando índices para a sua população, território urbanizado, espaço edificado, prestação de ser viços e rede de comunicações, centro político de decisões e vida cultural, etc. Mas, para as pessoas que vivenciam este processo, quando ele ocorre de forma lenta, mínima, e é, mesmo assim, sentido por aqueles que o vivenciam de forma qua se revolucionária, o que seria a metrópole? As crônicas urbanas são, nesta medida, muito interessantes, porque registram impressões da vida, sensibilidades de uma épo ca que não são mais as nossas. Tomemos o caso de Porto Alegre, mas acompanhe mos as crônicas que relatam as mudanças da cidade ao longo do tempo. A cada sintoma de inovação urbana, a modemidade é invocada e a condição de metrópole é lem brada. Do bonde puxado a burro para o elétrico, da en trada em cena da iluminação noturna à expansão dos ci nemas no centro da cidade, da inauguração do primeiro viaduto à destruição dos becos, a constatação do maravilhamento confirma: a modemidade chegou! Já so mos uma metrópole, enfim! Dos anos setenta do século XIX a fin de siècle, dos anos vinte às cirurgias urbanas das décadas de trinta e quarenta do século XX, para chegar ao advento dos 78 shoppings centers dos anos oitenta, a cidade passou in gressando em modernidades sucessivas, a suspirar conti nuamente: enfim... A constatação pode, no caso, se re velar banal, pois na lógica da modernidade o novo é sempre desbancado pelo mais novo. O que, contudo, cabe registrar é o registro narrativo desta sensibilidade no tempo: a percepção de que o futuro se antecipa e se - instala, ou mesmo atropela o tempo do presente. Há o I l;llSTC^RIAUNISINOS | Vol. 8 | N° 10 [jUL/DEZ| 2004 | aspecto metonímico da supervalorização do elemento in dividualizado e icônico da mudança, fazendo ver, no todo, a parte. Tempos que se superpõem, que despertam novas sensações, que constróem e mesmo deformam o olhar so bre o real são, desta forma, objeto de um registro narrati vo deste cotidiano sensível, experimentado na cidade. A crônica opera, como narrativa do real, revelando as ditas verdades do simbólico, ou seja, a veracidade do sentimento e da experiência que faz com que, em cada época, seja possível ser vivenciada como verdadeira a experiência da modernidade ou da sensação de ser metrópole. Fronteiras do tempo, as crônicas são, para o histori ador, narrativas que se constróem para além do verdadei ro e do falso, servindo para mostrar a capacidade imagi nária de construção social da realidade, para a qual as convenções temporais não têm limites. Se o historiador buscar encontrar nelas a confirma ção do real, dada a observação direta do cronista e a sua tradução em narrativa, com certeza vai encontrar nelas pistas, guardadas as injunções — ficcionais... — do seu tem po e de sua subjetividade ao retratar o mundo. Se buscar na crônica os valores e o clima de uma época, os conceitos produzidospela experiência da reali dade sensível em um momento dado da história, sem dú- vida ele encontrará neste tipo de narrativa todo um ma nancial de emoções, sentimentos, razões que um dia or denaram o mundo. Se for à cata das formas pelas quais os homens fo ram capazes de realizar uma transfiguração fantasmática e onírica da realidade, sem sombra de dúvida a crônica lhe 79 será uma fonte especial. E se, principalmente, este historiador estiver inte ressado em ver como os homens, ao longo da sua história, foram capazes de inventar o passado e imaginar o futuro, sempre para explicar o presente, rompendo as fronteiras do tempo, a crônica será, sobretudo, uma fonte exemplar, quase inesgotável, para o seu trabalho. I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 N° 10 |jUL/DEZ | 2004 80 Referências AZEVEEXD, F. 1884- Cousas municipais. Crônica de 17.01.1884. A Federação, Porto Alegre. AZURENHA, P. de. 1926. Crônica de 11.08.1906. ín: P. de AZURENHA (org.), Semanário de Léo Pardo (crônicas). Porto Alegre, Globo. CÂNDIDO, A. 1992. A vida ao rés-do-chão. In: A. CÂNDIDO et al. (orgs.), A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, Editora da UNICAMP. 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A micro-história e a construção do passado Sandra Jatahy Pesavento"" Resumo: O texto analisa a legitimidade da micro-história enquanto estratégia metodológica de redução da escala de análise para aprofundar o potencial de interpretação das fontes, discutindo os limites da proposta historiográfica. Palavras-chaves: micro-história, escala, historiografia, cotidi ano. Resumé: Le texte porte sur Ia legitimité de Ia microhistoire, qui se propose comme une stratégie méthodologique de réduction d^échelle de V analyse pour mieux interpreter les sources, tout en discutant les limites de cette proposition historiographique. Mots-clé : microhistoire, échelle, historiographie, quotidien. Professora do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Histó ria pela UFRGS. Mestre em História da Cultura pela PUCRS e doutora em História Social pela USP. E-mail: sandrajp@terra.com.br I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N~10 | JUL/OEZ | p. 179-18^ A proposta deste encontro e a pergunta enunciada para esta mesa articulam-se em torno de dois pontos, a serem questionados e discutidos: a de que a micro-história, enquanto método apoiado na redução da escala de análise, me lhor se explicitaria na leitura do regional e lo cal; a de que o aproáindamento da análise implícita naquele método pudesse conferir maior legiti midade ao saber histórico ou representasse um plus em termos de apreensão do real passado pelo historiador. De uma certa forma, eu poderia mesmo entender que ora se faz uma pergunta similar, mas mais elaborada ou atualizada, àquela questão que presidiu certa mesa- redonda organizada nos quadros de um seminário que teve lugar na UFRGS em 1999: Da história total à história em migalhas: o que se ganha, o que se perde. Em texto apresentado durante este evento — Esta história que chamam micro —, publicado em obra coletiva pela Editora da Universidade (Pesavento, 2000), explicitei minha apreciação sobre a micro-história, que poderia ser aqui sinteticamente resumida. A micro-história é antes um método ou estratégia de abordagem do empírico, que implica o uso conjugado de dois procedimentos: redução de escala do recorte rea lizado pelo historiador no tema, transformado em objeto pela pergunta formulada, e ampliação das possibilidades de interpretação, pela intensificação dos cruzamentos pos síveis, intra e extratexto, a serem feitos naquele recorte determinado. O aparente paradoxo - redução de escala/maior profundidade de análise - foi considerado por mim um ganho e um avanço. Em primeiro lugar, a positividade pode ser atribuí da pela valorização do empírico, resgatando a importân cia do trabalho de arquivo e, com isso, enfatizando que, sem a presença da marca de historicidade - a fonte, o HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 | N'10 |jUL/DEZ | 2004 [ traço, o registro, o indício objetivo de alguém ou algo que teve lugar no passado —, não há trabalho histórico possível. Afirmei ainda, neste texto, que a escolha do micro implicou o recurso à metonímia como figura metodológica de ação, a permitir que, do fragmento, tanto se permita a multiplicidade de portas de entrada para a pesquisa quan to se amplie o espectro de respostas possíveis para uma questão. Entendi como sendo um ganho e um avanço este aspecto da micro-história de proporcionar uma pluralidade de respostas, uma vez que isto implica maior abertura do horizonte do historiador, justamente nas décadas que mar caram a virada de século e milênio, caracterizadas pela perda das certezas ou verdades únicas e definitivas. A micro-história seria, assim, uma postura atualiza da e condizente com as preocupações de seu tempo, esta era da dúvida e tempo da suspeita, onde tudo parece se co locar sob interrogação e questionamento, onde se amplia o leque dos possíveis e se reduz o horizonte das certezas. Tal postura garante para a micro-história um lugar privi legiado nesta corrente historiográfica contemporânea que se convencionou chamar de História Cultural ou ainda de uma Nova História Cultural. E, sobre os riscos da empreitada de uma micro^ análise, assinalei as possíveis superinterpretações, onde, a partir de um caso analisado, o historiador se permite in terpretações que extrapolariam os limites autorizados pela análise do micro. Ou, em outras palavras, o historiador levaria muito longe as suas associações, encontrando cor respondências e analogias para além dos marcos de seu corpus documental. Nos dois extremos da microanálise, como presença citada em seus pólos positivo e negativo — o incremento do potencial explicativo, via método indiciário, por um lado, e os riscos da superinterpretação, por outro —, en contramos o renomado Cario Ginzburg, figura exponencial desta postura historiográfica (apud Dei Col, 1996). I HISTÓRIA UNISINOS | V0I.& | N° 10 |jUWDEZ | 20(T~| Uma outra questão, freqüente nos estudos da micro- história, seria a confusão possível de ser feita entre o coti diano e o corriqueiro ou banal, ou ainda entre o excepci onai e o normal, ou mesmo entre o que é norma e o que é transgressão. E preciso, sem sombra de dúvida, que o his toriador se coloque com clareza o que busca no estudo da microanálise: divisar o que seria consensual, normal, usu al, prática, costume, hábito do dia-a-dia? Ou mesmo divi sar, pela normalidade do enunciado da lei e da regra, o que seria a contravenção? Ou ainda, ao surpreender a trans gressão, deduzir o que seria a normalidade da vida? Estas são, a rigor, questões que podem se apresentar com fre qüência àquele que reduz a escala para aprofundar a aná lise. Edoardo Grendi (1977, p. 512), por exemplo, intro duz a noção do "excepcional normal", retomada por Cario Ginzburg e Cario Poni (Ginzburg e Poni, 1989), através de dois possíveis significados. O primeiro é o do registro só aparentemente ex cepcional, mas que constitui uma prática vulgar na cotidianidade da vida. Tratar-se-ia, por exemplo, das trans gressões ou delitos, que são muito mais freqüentes do que realmente as exceções no plano do social e que permitem questionar se a margem não diz mais o que o centro... Na segunda acepção, o entendimentoé de que justamente o excepcional, a transgressão, a marginalidade e o desvio podem dar conta da norma, como foi indicado acima. Mas voltemos à questão que ora se formula, desdo brada nos dois pontos acima assinalados. Ora, o regional e o local, antes de tudo, são recor tes simbólicos de sentido que, sem dúvida alguma, obe- 182 decem a dimensões de escala, tal como as categorias do nacional ou do internacional. São, a rigor, construções imaginárias de perten- cimento, representações do real que assinalam identida des partilhadas. Constituem, portanto, elaborações cul turais históricas, que envolvem delimitações de espaço, formas de sociabilidade, perfis de atores e um elenco de sensibilidádes, razões, valores e manifestações do espírito I HISTÓRIA UNISINOS | V..I. B | N° 10 | JUIVnEZ | 2004 | entendidas como pertinentes a um território específico. A região e o local são, assim, recortes de escala no espa ço, portadores de sentido cultural específico. Mas, ao mesmo tempo, são construções de sentido relacionais, que têm razão de ser, em sua singularidade, vis-à-vis uma outra unidade de referência mais ampla, em escala nacional ou internacional. Em outras palavras, as especificidades ou singularidades que compõem um perfil identitário local ou regional têm como referência uma alteridade, composta por outras microunidades de senti do ou por um conjunto simbólico global, sancionado como padrão de coesão social macro. Sob este enfoque, seria a micro-história o método ideal para o estudo e a análise destes recortes, uma vez que as especificidades se explicitariam e ganhariam signi ficado por aquilo que estaria extramicro, ou extra-região e extralocal. E próprio do método da micro-história estabelecer esta grade de múltiplas relações, o que o faz uma espécie de laboratório de experiências. Na medida em que estas re lações pressupõem um in e um out com relação à escala escolhida, a micro-história seria ainda o método que jo garia com as dimensões do geral e do específico, do todo com a parte, do particular com o geral, da regra com a anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do texto com o contexto. Em suma, é pela intensificação destas relações que se potencializa a interpretação, mas tal procedimento re quer um conhecimento do historiador muito mais amplo do que aquele que se pressupõe para uma análise em es cala reduzida. Realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte do real a partir de um método, mas isto é dado também pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste re corte de escala. Ou seja, o procedimento, para render um plus, exi ge também um píns de conhecimento da parte do histori ador, para que este possa enxergar um número maior de HISTÓRIA UNISINOS Voí. 8 "~NMO | JUL/DEZ | 2004 | relações e de interpretações possíveis. Logo, em se tratando de regional e de locai, tem-se o método certo para esta escolha de escala, mas que só funciona em jogo referencial com uma bagagem de co nhecimentos extramicro e com a possibilidade de articu lação, em analogias, contraste e justaposição, com outras escalas e situações. As dissertações e teses da última década, de uma certa forma, corporificam esta tendência, a mostrar que temas micro podem, em si, conter o macro. Não se trata de legitimar velhas histórias locais que se encerravam em si mesmas, em assumida especificidade sem padrão de re ferência comparativa, ou em algo travestido de pretensa modernidade historiográfica. Trata-se, antes de tudo, de entender que a redução de escala é uma opção que passa pela disponibilidade e pelo acesso às fontes, por exemplo, mas, sobretudo, pela pergunta que sobre elas se lança e que pode conter o uni versal. Seria isto, a rigor, que poderia diferenciar uma an tiga história, local, auto-explicativa em sua especificidade, e um estudo de micro-história, onde o método da grelha pressupõe uma rede de relações com um contexto mais amplo, para responder a questões que articulam o parti cular com o global da história. Mas falemos sobre aquele plus aludido, que eventu almente tomaria a pesquisa mais legítima. Esta legitimi dade não pode ser compreendida no contexto da veraci dade, pois hoje os historiadores não se pautam, a rigor, pelo conceito aristotélico de verdade como correspon dência do real com seu discurso. Esta legitimidade, contudo, poderia se afirmar pelo desejo de cientificidade da história, o que seria possibili tado pelos rigores do método da microanálise. Ou, ainda, pela ampliação das respostas possíveis e pela intensa e exaustiva análise do empírico, se possibilitaria chegar o mais perto possível daquilo que teria acontecido um dia, neste país estrangeiro do passado, onde se falava uma língua diferente, como disse um dia L. P. Harthley (apud I ,Hl^ÓRlAUNlSlNOS [ Vol.8 | N° 10 |jUWDEZ | 2004 | Lowenthal, 1998). Chegamos, com isso, ao coração do plus: o corpo e a alma do mundo, sonho de todo historiador, mesmo saben do que, desta temporalidade escoada, ele só possa cons truir versões que ofereçam verossimilhança com o real passado. Com o corpo e a alma do murulo queremos tanto di zer as coisas, os gestos, as práticas e as gentes de cada dia que um dia existiram, na sua cotidianidade ou na sua excepcionalidade, e que constituem o corpo deste passa do, quanto nos referimos às sensibilidades, às motivações, às razões, as certezas, às emoções e aos sentimentos que correspondem à alma do mundo de um momento históri co dado. Falamos, pois, de coisas mensuráveis e quantifi- cáveis, por um lado, e de coisas aparentemente invisíveis ou de difícil percepção, por outro. Seria, no caso, a micro- história um método legítimo para a apreensão destas duas dimensões da vida, que aqui chamamos, em liberdade poética, do corpo e da alma do mundo? Arriscamos dizer que sim. Há, sem dúvida, um lado mensurável da vida, das coisas visíveis do acontecer de cada dia, onde se torna possível resgatar a dinâmica do social, o movimento das pessoas no espaço, as interações e os conflitos, o, trabalho e a guerra, o lazer e o consumo, a pobreza e a acumula ção, as migrações e o povoamento, redes sociais e interações de toda espécie, ações políticas, obras do Esta do, iniciativas privadas. Em escala reduzida, todo este mundo do cotidia no, de que é feita a vida, se revela na sua normalidade, 185 em série e freqüência. Não só aquilo que marcaria a cotidianidade, pois a micro-história exporia também o grande acontecimento, os feitos excepcionais, que em relação com o cotidiano se revelariam inusitados, im previstos. De certa forma, poderíamos dizer que a postura da micro-história é aquela que melhor se adaptaria a uma I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 j N° 10 |jUL/DEZ| 2004 | 186 espécie de reinvenção do cotidiano, tal como a proposta por Michel de Certeau (1990). Mesmo relativizando a obtenção da verdade, Certeau entendeu ser possível res ponder a este "desejo de verdade" que move o historia dor, através da busca de uma descrição verossímil. Para tanto, Michel de Certeau se empenhou em re cuperar os traços da vida pelo resgate exaustivo dos fatos acontecidos, tornando inteligível uma temporalidade do passado. Sobretudo, interessavam-lhe as práticas cultu rais, construídas no dia-a-dia, portadoras de discursos e imagens de sentido. Da mesma forma, é ainda a micro-história aquela que melhor se presta à descrição densa prevista por Clifford Geertz (1989) e tomada de empréstimo pelos historiadores que principiavam a ver como práticas sociais se traduziam em bens culturais, tal como Edward P. Thompson (1995). A vida dos homens, enfim, revelada, dissecada, ex posta em carne e osso nas suas minúcias, onde cada fato poderia ser objeto de múltiplos cruzamentos e correspon dências, buscando atingir as pegadas ou traços da passa gem do homem na história. Talvez, mesmo, a micro-história pudesse, em certa medida, registrar aquilo que ítalo Calvino (1990) postu lava como propostas para o próximo milênio — que, para nós, já começou... a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade. A micro-história possibilitaria,com a sua grade de malha fina, fornecer ao historiador imagens visuais níti das, incisivas, memoráveis, precisas, fruto de um vascu lhar incessante do passado, daria uma tradução quase vi sual das coisas e gentes acontecidas em um outro tempo. Esta estratégia implicaria ver o mundo como um sistema de relações, como um universo de múltiplas reações a se rem descobertas. Mas isto ainda seria pouco. Sabemos que dar a ver e dar a ler um passado é sempre uma versão aproximati- va, que pressupõe vôos da imaginação. Esta é a grande questão de ítalo Calvino, a linha mestra a unir todas as propostas para este milênio que ele não veria. HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | NMO |jULA^EZ| 2m | As sensibilidades são a chave desta porta mágica de entrada que permite ver como os homens realizavam a construção social da realidade por um mundo paralelo de sinais. As sensibilidades corresponderiam a este núcleo primário de percepção e tradução da experiência huma na no mundo. O conhecimento sensível opera como uma forma de apreensão do mundo que brota não do racional ou das elucubrações mentais mais elaboradas, mas dos sentidos, que vem do íntimo de cada indivíduo. As sensibilidades compete essa espécie de assalto ao mundo cognitivo construído pelos conceitos, pois li dam com as sensações, com o emocional, com a subjeti vidade. Elas comparecem no cerne do processo de repre sentação da realidade e correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto precioso a capturar no passado, à própria vida. Trata-se daquilo que Cario Ginzburg (1997) definiu como a enargheia, a impressão da capaci dade humana de representar e exprimir o mundo, a ener gia vital que se abriga em um momento histórico dado e que se traduz na capacidade de representar o mundo. Resgatar as sensibilidades implica encontrar a tra dução externa, enquanto marca de historicidade, de uma impressão interna. Mas esta é tarefa das mais finas, delica das, profundas, pois a realidade não se apresenta de forma literal ou transparente. ' O mundo é simbólico, a realidade é cifrada, discur sos e imagens são portadores de sentidos e de elementos sutis, por vezes quase imperceptíveis, multifacetados. E preciso, pois, ir ao encontro deste mistério do mundo, optando sempre pelo olhar oblíquo, indireto, para ver além, mudando o ponto da observação. 187 Quando Calvino fala da qualidade da leveza como proposta de decifração, diz que "é preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle" (Calvino, 1990, p. 19). 0 corpo do mundo não tem vida sem a alma, e é no encalço desta sintonia fina que a micro-história poderá revelar o seu pias. Atingir as sensibilidades dos homens do 1 HISTÓRIA UNISINOS I Vol.8 | N° 10 |jUL/DEz[ 2004 | 188 passado, revelar como eles representavam a si próprios e ao mundo, eis a tarefa ou desafio a ser realizado pelo mé todo da microanálise. A micro-história, com sua análise exaustiva ou des crição densa - para tomarmos de empréstimo um termo caro à antropologia cultural -, fornece imagens que aspi ram à, precisão ou, pelo menos, aproximação com o pas sado. Mas é preciso que elas sejam dotadas de sentido, que os personagens, ações e discursos sejam impregnados de razões e sentimentos, que expliquem por que e como se movia a existência dos homens. Falamos do imaginário, sim, daquilo que Jean Starobinski definiu como a comunicação com a alma do mundo, com a sensibilidade tradutora da vida em repre sentações. Seria, pois, exatamente isso a meta de cada historiador que investiga no campo da História Cultural: captar este reduto sensível de investimento na percep ção, reconhecimento e qualificação do mundo! Como diz ítalo Calvino (1990, p. 90), "estamos sempre no encalço de uma coisa oculta ou, pelo menos, potencial ou hipotética, de que seguimos os traços que afloram na superfície do solo". Há traços visíveis, explícitos, mesmo quantificáveis, mas há outros que não se dão a revelar senão pelo esforço do imaginar e que dão conta do universo mental dos ho mens de um outro tempo, imperceptíveis à vista, quase invisíveis ou subterrâneos, renitentes a serem mensurados. E nesta busca de sentidos, de lógicas ou da descoberta das irracionalidades da vida que a micro-história pode se re velar eficaz: revelar as coisas não ditas, mas intuídas, pre encher lacunas e ausências, divisar indícios e traços onde um olhar desavisado nada identificaria. Em suma, a micro-história poderia, ou mesmo ou saria, ser capaz de produzir, ao mesmo tempo, estas duas formas de conhecimento da realidade de que fala Roland Barthes (1980): uma que produz um saber sobre as coisas que podem ser medidas e mesmo comprovadas, e que pertence ao rjeii^o do corpo do mundo, da observação di- I HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 | N° 10 |jUL/DEz[ 2004 | reta do real; outra que constrói um saber sensível, através de indícios, de sensibilidades, emoções e valores, por ve zes imperceptíveis, que têm na imaginação o seu potenci al criador e que fazem parte daquilo que pode ser definido como a alma do mundo. Mas esta história, assim concebida, seria ainda cha mada de micro, mesmo contendo o corpo e a alma do mun do? Só se nos ativermos à sua estratégia de redução de escala, porque neste micro estaria contida a vida dos ho mens, em um momento dado de sua história. Referências BARTHES, R. 1980. La chambre claire : note surlaphotographie. Paris, Gallimard, 192 p. 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