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PESAVENTO_Sandra_Jatahy_Cronica_fronteiras_da_narrativa_historica (1)

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ISSN 1519-3861
historia
unisinos
i?;
5siê: Teoria e metodologia da História
/FRSIDADE do vale do rio dos SINOS'
IrRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
''mero * VOLUME 8 • JULHO/DEZEMBRO 2004
HISTÓRIA UNISINOS
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leofxildo. RS, Brasil - Tel. (51) 591 1122 (ramal 3103)
Homepage: htrp://www.unisinos.hr E-mail: revistas@helios.unisinüs.br
Editor/Ediíor
Marcos Justo Tramontini
Volume 8 n°10 - jul/dez 2004 - ISSN 1519-3861
Comissão Editorial/Executíve Editorial Committee
Marcos Justo Tramontini
Flávio Madureira Heinz
Heloisa J. Reichel
Conselho Editorial/Editorial Board
Artthur Blásio Rambo
Beatriz Vasconcelos Franzen
Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos
leda Gurtfreind
Paulo Staudt Moreira
Wemer Altmann
Conselho Consukivo/Considtacive Council
Leopoldo Zea (UNAM - México - in memorian)
Adalberto Santana (UNAM - México)
Andréa Reguera (UNCPBA -Tandil, Argentina)
Bartomeu Melià (Academia Paraguaya de Ia Historia - CEPAG)
Hugo Eduardo Biangini (Univ. de Belgrano - Argentina)
Maria Luiza Tucci Carneiro (USP)
Maria Helena Rolim Capelato (USP)
Raul Fomet-Betancourt (Missio-Aachen)
Sônia Mendonça (UFF)
René Ernaini Gertz (PUC-RS, UFRGS)
H673 HISTÓRIA UNISINOS / Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos.— v. 8, n. 10.— São Leoptildo
: Unisinos, 2004-
Semestral
Continuação de: Estudos Leopoldenses (1966-1996), posteriormente
Estudos Leopoldenses (Série História) (1997-1999)
ISSN 1519-3861
1. História - Periódicos I. Programa de Pós-Graduação em História
- Universidade do Vale do Rio dos Sinos
CDU: 93/99
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Revista Indexada
Université de Ia Sorbonne Nouvelle Paris 111
Institut des Hautes Etudes de LAmérique Latine
ABC - Clio Lihrary - Santa Barbara, Califórnia, USA
História UNISINOS substitui, desde 2000, a Revista
Estudos Leopoldenses - Série História, continuando a numeração desta.
Assinatura / Subscription
Unidade Acadêmica de Pesquisa e Pós-Graduação
Editoria de Periódicos Científicos e Acadêmicos
Av. Unisinos, 950 - 93022-000 - São Leopoldo, RS, Brasil
Fone/Fax: 51.5908283 - E-mail: dqestacio@unisinos.br
UNISINOS
Reitor/Presídent: Aloysio Bobnen
Vice-Reitor/Vice-Prcsident: Marcelo Fernandes de Aquino
DIRETORIA DE PÒS-GRADUAÇÂO E PESQUISA/
POSTGRADUATE AND RESEARCH OFFICE
Diretor/Director: lone Maria Ghislene Bentz
História
Revista do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
HISTÓRIA UNISINOS Vol.8 NMO 2004 208 p.
■" /
Sumário
Apresentação
Cláudio Pereira Elmir e Marluza Marques Harres / 7
Dossiê Teoria e Metodologia da História
Narrativa, cor local e ciência. Notas para um debate sobre o
conhecimento histórico no século XDC
Temístocles Cezar / 11
A narrativa e o conhecimento histórico
Cláudio Pereira Elmir / 35
A marca pedagógica da narrativa: um princípio educativo?
(Comentários a Temístocles Cezar e Cláudio Elmir)
Edia Eggert / 53
Crônica: fronteiras da narrativa histórica
Sandra Jatahy Pesavento I 61
Histórias e memórias da cidade nas crônicas de Aquiles Porto
Alegre (1920-1940)
Charles Monteiro / 81
Pequenas notas sobre a escrita do ensaio
Antônio Marcos Vieira Sanseveino / 97
A escrita herege. O fim do texto e do sujeito filosófico
Márcia Tiburi / 107
O ensaio (Comentários a Antônio Sanseverino e Márcia Tiburi)
Eliane Cristina Deckmann Fleck / 123
Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica
Benito Bisso Schmidt / 131
Aproximações entre história de vida e autobiografia: os desafios
da memória
Marluza Marques Harres / 143
O que a Micro^História tem a nos dizer sobre o regional e o
local?
Núncia Santoro de Constantíno / 157
O corpo e a alma do mundo. A micro^história e a construção do
passado
Sandra Jatahy Pesavento / 179
O que a micro-história tem a nos dizer sobre o regional e o local?
(Comentários a Núncia Constantino, Regina Weber e Sandra
Pesavento)
Cláudio Pereira Elmir / 191
Table of Contents
Presentation
Cláudio Pereira Elmir and Marluza Marques Harres / 7
Dossier on Theory and Methodology of History
Narrativo, Local Color and Science. Notes for a Debate on
Historical Knowledge in the 19th Century
Temístocles Cezar /II
Narrativo and Historical Knowledge
Cláudio Pereira Elmir j 35
The Pedagogical Mark of the Narrativo: An Educational
Principie?
(Comments on the Papers by Temístocles Cezar and Cláudio Elmir)
Edla Eggert j 53
Chronicle: At the Border of Historical Narrativo
Sandra Jatahy Pesavento j 61
Stories and Memories of the City in the Chronicles by Aquiles
Porto Alegre (1920'1940)
Charles Monteiro j 81
Brief Notes on the Writing of an Essay
Antônio Marcos Vieira Sanseverino / 97
Heretical Writing. The End of the Text and of the Philosophical
Subject
Márcia Tiburi / 107
The Essay (Comments on the Papers by Antônio Sanseverino and
Márcia Tiburi)
Eliane Cristina Deckmann Fleck / 123
The Writing of Life: Reflections on Biographical Narrativa
Benito Bísso Schmidt / 131
The Reiationship between Life Story and Autobiography: The
Challenges of Memory
Mar/u:^a Marques Harres / 143
What Has Micro-History to TelI us about the Regional and the
Local?
Núncia Santoro de Constantino I 157
The Body and the Soul of the World. Micro-History and the
Construction of the Past
Sandra Jatahy Pesavento I 179
What Has Micro-History to Tell us about the Regional and the
Local? (Comments on the Papers by Núncia Constantino, Regina
Weber and Sandra Pesavento)
Cláudio Pereira Elmir / 191
A escrita da história
É com enorme satisfação que oferecemos à comu
nidade acadêmica da história mais um número da nossa
História UNISINOS. E, pela primeira vez, trazemos um
dossiê dedicado inteiramente à discussão de questões teó-
rico-metodológicas pertinentes ao nosso campo de conhe
cimento. Todos sabemos das dificuldades por que passa
mos quando nos vemos diante da difícil tarefa de enunci
ar os pressupostos conceituais que orientam as nossas pes
quisas. Ao lado disto, são raros os trabalhos de historiado
res - ou de candidatos a historiadores - que se aventu-.
ram, com centralidade, pela complicada seara da discus
são teórica. Esta relativa ausência é menos sentida no de
bate historiográfico, pelo menos aparentemente. Isto por
que há inúmeros trabalhos historiográficos nos quais resta
inexistente a (auto-) reflexão acerca dos princípios
epistemológicos que norteiam sua realização.
Tendo em vista este cenário de dificuldades e de
poucas manifestações de ousadia intelectual, é que reali
zamos no ano de 2003 três importantes atividades acadê
micas promovidas pelo Programa de Pós-Graduação em
História da UNISINOS, parte das quais resultou na pu
blicação deste dossiê. Em maio daquele ano, juntamente
com o Curso de Graduação em História da nossa univer
sidade e com o GT Teoria da História e Historiografia da
ANPUH-RS, realizamos o Seminário A escrita da histó'
ria: modos (I)- O nosso empenho, expresso nos objetivos
do evento, foi plenamente alcançado. Naquela ocasião.
dizíamos: "O Seminário 'A escrita da história: modos (I)'
quer se constituir num espaço de reflexão qualificada so
bre algumas das diferentes formas pelas quais a história
tem se realizado como escritura. Nas últimas décadas, o
debate historiográfico no âmbito teórico tem suscitado
renovadas perspectivas de se entender o labor do histori
ador em suas mais variadas configurações. Nesse sentido,
foram eleitos para reflexão e aprofundamento a narrativa,
a crônica, o ensaio e a biografia. Através destes 'modos de
escritura' revela-se, em alguma medida, o próprio enten
dimento acerca do ofício historiográfico." Tivemos, na
ocasião, a melhor receptividade possível, lotando o Au
ditório Central da universidade com mais de 250 inscri
ções formais, além dos assistentes eventuais.
Em agosto daquele mesmo ano, juntamente com a
Profa. Maria Cristina Bobn Martins, organizamos um ou
tro espaço de discussões. No dia 26 de agosto, nos três
turnos, promovemoso Fórum Escala e legitimidade no
saber histórico: desafios da pesquisa na pós'graduação.
Dizíamos na sua apresentação: "O Fórum 'Escala e legiti
midade no saber histórico: desafios da pesquisa na pós-
graduação' quer se constituir num espaço de reflexão teó-
rico-metodológica e de troca de experiências sobre os ru
mos da pesquisa docente e discente realizada nos progra
mas de pós-graduação em História sediados no Rio Gran
de do Sul. Neste sentido, o Fórum está estruturado sob a
forma de três mesas-redondas e uma comunicação de pes
quisa, nas quais devem ser abordados os seguintes tópi
cos: diagnóstico institucional e perspectivas do conheci
mento produzido nos quatro programas de pós-graduação
em História do Estado; os diferentes níveis de abordagem
do conhecimento histórico e a tensão entre o 'episódico'
e o 'estrutural' na produção acadêmica advinda dos PPGs
e a apropriação historiográfica do 'local' e do 'regional' e
sua inserção no debate recente da micro-história." Alguns
dos textos desta última mesa compõem também o pre
sente dossiê. Um outro texto, de excepcional valor refle
xivo, de autoria de Sílvia Petersen, foi publicado em nú-
r HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 N° 10 |jUL/DEZ| 2004 |
mero recente de nossa revista, cuja atenta leitura reco
mendamos.'
Na primeira semana de novembro, com a parceria
do Prof. Paulo Roberto Staudt Moreira e com o apoio do
GT Acervos da ANPUH-RS, promovemos, juntamente
com o Curso de História, o Ciclo de Palestras As fontes
do inquérito (I), com o intuito de discutir, discrimi-
nadamente, o uso que fazemos dos documentos que inte
ressam à investigação historiográfica. Dizíamos naquela
oportunidade, acerca da importância desta atividade: "[...]
o ciclo [...] pretende se constituir num fórum para a apre
sentação e discussão de tipos específicos de fontes docu
mentais que podem estar no horizonte do pesquisador do
campo das Ciências Humanas. Neste sentido, o Ciclo quer
realizar um esforço de sistematização das possibilidades
teórico-metodológicas de abordar estes documentos, ten
do em vista a realização de um diálogo entre as diferentes
disciplinas desta área e, mais especificamente, das investi
gações que seus pesquisadores têm levado a efeito, nos
vários níveis de especialização". Integraram o rol das abor
dagens naquela primeira edição a música, os inventários,
as fontes seriais e quantitativas, a documentação diplo
mática e os documentos privados. Um de seus textos, so
bre o uso de fontes quantitativas e seriais, de autoria de
Adhemar Lourenço da Silva Júnior, afortunadamente, já
foi publicado em nossa revista.^
E no movimento deste intenso debate, de caráter
ao mesmo tempo teórico, metodológico e historiográfico,
que reunimos aqui alguns textos que poderão servir de
estímulo a outras intervenções críticas, com o intuito de
qualificar nosso acesso a um conhecimento histórico que
' Ver o texto de Sílvia Regina Ferraz Petersen, 2003, "Escala e legitimidade no
saber histórico: desafios da pesquisa na pós-graduação", História UNISINOS,
7(8):171-188.
^ Trata-se do artigo de Adhemar Lourenço da Silva Júnior, 2003, "Números na
História: apontamentos sobre o uso de fontes quantitativas e seriais", publica
do na História UNISINOS, 7(8): 189-223.
HISTÓRIA UNISINOS Vol. 8 N° 10 | JUL/DEZ | 2004~]
se quer sempre mais sofisticado, porquanto iluminado pela
imprescindível tarefa da auto-reflexão sobre o nosso pró
prio ofício. Agradecemos aos Editores da História
UNISINOS pela oportunidade de organizar este dossiê.
Boa leitura!
Cláudio Pereira Elmir
Marluza Marques Harres
Organizadores
10
HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N» 10 | JUL/DEZ | 2004
I. l
Crônica: fronteiras da narrativa
histórica
Sandra Jatahy Pesavento*
Resumo:
O texto procura analisar a crônica como um gêne
ro literário de fronteira, entre literatura e história, e que
se caracteriza por realizar uma leitura sensível do tempo,
seja para inventar o passado, explicar o presente ou cons
truir o futuro.
Palavras-chave: crônica, narrativa histórica, ficção, imaginá
rio, sensibilidades.
Resumé:
Le texte analyse Ia chronique comme un genre
littéraire frontalier, entre Ia litteráture et Thistoire, et qui se
caracterise comme une lecture sensible du temps, soit pour
inventer le passé, expliquer le présent ou construire le futur.
Mots-clé: chronique, narrative historique, ficción, imaginaire,
sensibilités.
Professora do curso de Graduação e do Programa de PóS'Graduação em Histó
ria pela UFRGS. Mestre em História da Cultura pela PUCRS e doutora em
História Social pela USP. E-mail: sandrajp@terra.com.br
HISTÓRIA UNISINOS Vol.í NMO JUL/DEZ p. 61-80
clabrac1980
Realce
clabrac1980
Realce
clabrac1980
Realce
clabrac1980
Realce
clabrac1980
Realce
62
Principiemos pelo grande desafio com que se de
frontam os investigadores dos domínios de Clio: como se
constrói a narrativa histórica?
Uma idéia na cabeça, uma pergunta nos lábios, con
cebidas à luz daqueles instrumentos para interrogar o
mundo a que chamamos conceitos; uma escolha e um re
corte da realidade, construído como objeto de pesquisa,
onde se divisa uma trama; um olhar sobre o passado, em
busca de sinais emitidos por um outro tempo, erigidos como
marcas de historicidade e como pistas para o desvendar
daquela questão, antes formulada, e com vistas a respon
der àquela pergunta feita; a mise en récity esforço retórico e
de escrita, de molde a fornecer uma explicação convin
cente e plausível, onde se realize a reconfiguração de um
tempo, com vistas a dar a ver e ler uma versão, o mais
próxima possível, daquilo que teria sido um dia; uma meta
e um desejo de veracidade e, como resultado, uma narra
tiva verossímil, que explica e revela a solução encontrada
para a decifração do enigma proposto.
Não seria esta, não tem sido esta, a performance da
escrita da História, ao longo do tempo?
Partamos do princípio de que esta seja uma receita
para o fazer História, ou seja, para a construção de uma
narrativa que representa o passado. Mas, deste processo,
queremos nos deter em um certo elemento, aquele sem o
qual não há trabalho de História possível de ser feito:
referimo-nos às tais marcas de historicidade, os tais regis
tros que objetivam a existência de algo e que assinalam a
passagem do tempo.
Nesta medida, poderíamos dizer que, de uma cer
ta forma, frente ao desafio de enfrentar a decifração do
passado, o historiador o mundo à sua disposição, sob a
forma dos mais diversos traços que restaram de um ou
tro tempo.
O olhar do historiador constrói alguns destes regis
tros como fontes, ou seja, como indícios e possibilidades
de resgate daquilo que ele busca encontrar no passado.
Detenhamo-nos em i^ma marca de historicidade muito
'I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N" 10 |jULyDEz| 2004 |
específica, a qual tem sido cada vez mais trabalhada pelos
historiadores. Referimo-nos à crônica, este registro privi
legiado para o acesso a um tempo passado e que, no caso,
tratamos como uma fonte para a História.
A realidade, bem o sabemos, é complexa, e as for
mas de dizê-la e representá-la também o são. A História,
no caso, é mestra em se valer de várias e distintas narrati
vas. A História as usa como recursos para criar, ela pró
pria, a sua representação sobre o passado, que é o seu
campo de ação.
No caso em pauta, tratamos a História como o lu
gar de onde se formula a questão e se elabora um discur
so, o qual se vale da crônica como uma fonte narrativa.
Não se trata de estabelecer uma hierarquia entre narrati
vas, mas de estabelecer o lugar da fala, ou do estabeleci
mento de uma interrogação sobre o mundo.
Antes de tudo, cabe esclarecer que trataremos a
crônica na sua acepção contemporânea, ou seja, aquela
narrativa curta, difundida pelos jornais, frente a um mun
do transformado pela modernidade urbana e pelos meios
de comunicação de massa, tal como se processou na civi
lização ocidental a partir do século XIX. Nesta instância,
a crônica é aquele artigo de consumo diário, rápido e pre
ciso, que se apresenta como produto a ser consumido por
um público leitor de jornal.Em estudo seminal, Antonio Cândido (1992) cha
mou a crônica de relato da vida ao rés-do-chão, e, em
determinado ensaio, nós a analisamos como uma leitura
sensível do tempo (Pesavento, 1997). Tais reflexões so
bre a crônica nos remetem, imediatamente, à sua capa
cidade de registro do cotidiano e das sensibilidades, o 63
que a tornaria, por assim dizer, uma fonte muito rica e
especial para o historiador, sobretudo se este estiver in
teressado em acessar as formas pelas quais os homens,
em um outro tempo, construíam representações sobre si
próprios e o mundo.
A análise da crônica poderia se dar a partir da sua
inserção como gênero literário de fronteira, entre a Lite-
HISTÓRIAUNISINOS Vol.8 NMO JUL/DEZ 2004
ratura e a História, estabelecendo uma reflexão sobre se o
autor, ao escrever a crônica, está a fazer uma história de
seu tempo. Ou então se poderia ainda discutir se, como
Literatura, a crônica se enquadraria como um gênero maior
ou menor, diante de outros gêneros consagrados, como o
romance ou a poesia. Tais questões, a rigor, já se acham
abordadas nos estudos citados, assim como em muitos
outros trabalhos críticos.
Já adiantamos, contudo, que pretendemos tratá-la
como fonte, ou seja, como meio ou instrumento para o
historiador atingir o passado, e, sob esta condição, busca
mos analisar o seu potencial de revelação para o conheci
mento de um outro tempo. A fonte é mediação entre o
que teria sido e a representação que deste ter sido se cons-
tmiu. A fonte, como diz seu nome, é manancial de onde
brotam possibilidades para desvendar uma trama que foi
urdida.
Mas a fonte já é, em si mesma, uma representação
do passado e se coloca como base para a representação
que, por sua vez, o historiador construirá sobre aquele
passado.
Neste sentido, nossa abordagem da crônica se reali
za sob um plano epistemológico — a natureza da sua escri
ta - e sob o seu potencial de uso para o fazer História, que
é o da reconfiguração do tempo.
Ora, entendemos que a primeira consideração a ser
feita é a de que a crônica é uma narrativa de fronteira,
mas fronteira enquanto modalidade ficcional na
reconfiguração de um tempo.
Como premissa desta abordagem, talvez até dispen-
^ sável no debate acadêmico contemporâneo, nos defini
mos pela concepção que admite, para a escrita da Histó
ria, o uso de recursos fictivos, pelo que esta abordagem
não pretende opor, de maneira antitética, uma história-
verdade-ciência a uma crônica-arte-ficção.
Principiemos pelo ato da escrita, que põe em cena
o cronista, aquele que faz do tempo presente, tempo do
vivido, a sua fonte de inspiração. Sob uma ótica realista.
HISTÓRIA UNISINOS ' Vol.8 N» 10 JUL/DEZ 2004
o cronista mostraria, para o historiador, a temporalidade
da escrita com a vida tal como era neste momento, ou,
pelo menos, aquilo que nela chamava a atenção ou preo
cupava os homens da época. Em certa medida, a tradu
ção do presente pela escrita, que pode girar em tomo do
cotidiano ou do fato excepcional e, sobretudo, das sensi
bilidades e sociabilidades de um determinado contexto,
atribui à crônica um certo valor, digamos assim, docu
mental.
Como diria o cronista do jomal porto-alegrense, a
falar sobre um dos mais famosos redutos da sociabilidade
masculina da cidade, o café América, em crônica que nos
permite visualizar espaços e práticas sociais urbanas na
virada do século:
O América, o ponto melhor da Rua dos Andradas e onde se
reúnem advogados, médicos, comerciantes, poetas literatos,
noticiaristas, boêmios inteligentes e extravagantes e do melhor
que possui o nosso meio social, aos domingos é visitado pela
simpática rapaziada caixeiral, sempre correta e unida, que,
elegantemente vestida, provoca olhares etéreos e cristalinos de
criaturas meigas e tentadoras, felizes e sedutoras.^
Por outras, é uma prática do cotidiano dos habitan
tes que é criticada pelo cronista, a fomecer flashes do viver
em cidade da época, marcando o cotidiano da cidade:
Oh! Mas este hábito de parar no meio da calçada e aí fazer ponto
de rendez-vous, é simplesmente intolerável! Nós não quere
mos , é claro, que se ponha em prática o civilizadíssimo "circulez,
messieursl" das metrópoles. Os que andam a negócio, que têm
urgência de chegar a qualquer lugar, não podem estar a toda a
hora a desviar-se dos pequenos grupos e "meetings" pacíficos 65
que obstruem o trânsito.^
Esta espécie de crônica social ligeira, que registra o
O Independente, 06.10.1895.
Kodak, 08.09.1917.
HISTÓRIA UNISINOS Vol.f N« 10 JUL/DEZ 2004
66
cotidiano da cidade insere, no presente, uma tempora-
lidade desejada; o futuro já chegou. Porto Alegre é já uma
metrópole, com gente apressada, com um grande movi
mento nas ruas, onde se registra a presença deste novo
personagem que faz entrada na modernidade urbana: a
multidão. Tal crônica se realiza retratando um sentimen
to, por assim dizer, progressista do viver urbano. A crôni
ca é, no caso, registro sensível de um presente que já se
inscreve no futuro, onde o que conta é a percepção do
tempo que se vive, que, no caso, é um tempo acelerado.
Assim, a crônica, tal como a literatura, a pintura, a
fotografia, é testemunho de si próprio, ou seja, do tempo
presente de sua feitura, que faz perceber e qualificar o real
desta ou daquela forma.
Tal valor referencial não pode, contudo, ser en
tendido como transparência, pois retiraria do ato da
escrita todo o seu potencial criador. Mesmo registran
do o observável no tempo do presente, o que cabe dis
cutir é o caráter alegórico da escrita — este dizer de outra
forma, dizendo além - que faz da crônica uma narrati
va que enuncia outras realidades do presente, sugeridas
pela escrita.
Não podemos esquecer que é próprio da crônica o
registro do banal, daquilo que não chama a atenção e que
passa desapercebido, mas que, pela mise en récit, recebe
um destaque. Nesta medida, o banal ou o corriqueiro tor
na-se traço ou sintoma para que se pense em outra coisa,
para além daquilo que é dito ou sugerido pelo autor.
Tomemos o exemplo de uma crônica cotidiana
de um jornal da década de 1880, em Porto Alegre, O
Século. Se o cronista d'0 Século registra o que chama
de uma degradante cena — a passagem pelas ruas da
cidade de um miserável homem de cor preta, um des
graçado escravo que fugira da casa de seu algoz, amar
rado por cordas e conduzido, à maneira dos animais,
por policiais e capitães de mato até a cadeia civil, onde
seria, naturalmente, surrado por aqueles agentes da lei
-, seu comentário era de que tais cenas eram, em tudo,
r HISTÓRIA UNlSlNOf, ! [ Vol. 8 | N° 10 | )Ul/DEZ | 2004 |
repugnantes, depondo contra a civilização da socieda
de em que tinham lugar.^
Levando em conta a conjuntura do momento, vê-
se que a narrativa deste incidente do cotidiano da cidade
- cotidiano para a desgraça da capital que se queria civi
lizada - assumia os tons críticos e próprios da postura
abolicionista, onde o escravo fugido era chamado de Cristo
preto e os que o acompanhavam de fariseus. O registro do
tempo do presente explicita a crítica do contexto políti
co-social, dando a ver uma postura que aspirava clara
mente a uma modificação da ordem instituída.
Por vezes, o cronista se encarrega de apontar as re
lações a serem feitas entre a situação cotidiana explícita e
a questão implícita. Por outras, o cronista fornece as pis
tas, mas a revelação se dará pela sagacidade do leitor de
recriar a realidade que se entrevê no texto. Há, pois, um
desvelamento de sentidos que se espera obter com a lei
tura, face a esta narrativa que mais sugere do que afirma e
que, no mais das vezes, se reveste da ironia para realizar
sua crítica.
E o caso específico de Germano Hasslocher, reda
tor do jornal A Gazeta da Tarde, que criava verdadeiras
páginas literárias para desnudar as mazelas do seu tempo
presente. Em uma de suas crônicas da coluna Dia a dia,
Hasslocher conta a história de uma entrevista ocorrida,
presumivelmente, entre sua esposa e uma candidata a
empregada doméstica. Finda a entrevista - impagável
pelas exigências de pernóstica crioula -, ele, o dono dacasa, que fumava seu charuto à parte, sem se imiscuir
nas tratativas da mulher com a aspirante a criada, resol
ve chamá-la para uma análise que estava a realizar sobre 67
um problema do cotidiano da cidade: aquele do serviço
doméstico. E, neste sentido, passa a entrevistar a tal cri
oula, que lhe dá contas do comportamento dos patrões
naquele novo mundo sem escravos, mas que se pautava
^ Degradante cena, 17.07.1881.
HISTÓRIA UNISINOS Vol.8 NMO JUL/DEZ 2004
ainda pelas antigas regras e vícios da senzala e também
da sem-vergonhice dos negros, fruto daquele mesmo ter
rível sistema.
Filosoficamente, o cronista acabava por dar razão
aos negros, restaurando para o presente um passado ainda
recente que comprometia o futuro:
. E só então com(neendi a resolução do problema do serviço
doméstico. Enquanto os anos não passarem muitos, sob a recor
dação do relho do senhor de escravos, negro não pode ser bom
criado. E, coisa singular: na confissão tão positiva e terminante
daquela crioula, que di^ja que o outro vício da escravidão era a
falta de vergonha do negro, eu vi exatamente o contrário do que
ela afirmava, uma inconsciente ironia de quem não percebe o
sentimento de pundonor brotando silencioso num terreno antes
árido, safaro (sic) como era a alma do negro, durante tantos
anos explorado pela infâmia humana, dourada com o nome de
um direito. Dançai, pulai, diverti-vos bem e dormi a sesta à
vontade fazei sofrer esta sociedade, vós que sois um genuíno
produto seu! (Hasslocher, 1896).
Sob tal aspecto, a crônica, tal como a literatura,
partilha desta capacidade ou potencialidade ficcional de
expressar o invisível, o implícito, o imperceptível, de re
velar o não dito, de descobrir novas verdades da vida, de
expor/escondendo o que não encontraria expressão escri
ta de outra forma. Sob tal viés, a crônica é escrita de fron
teira do próprio presente que se dispõe a narrar, como
escrita capaz de transcender a sua temporalidade e de des
locar um sintoma do cotidiano para o plano do universal.
A crônica, enquanto fronteira do tempo presente,
partilha desta capacidade imaginária de reconstrução do
68 mundo, revelando uma outra realidade. A crônica possui
uma capacidade de recriação da realidade por um mundo
paralelo de palavras e imagens, processo este que se esta
belece no âmbito da escrita e se complementa naquele da
leitura.
Este potencial é tão amplo que até a ausência de
registros - a terrível falta de assunto — dá margem a uma
' narrativa sobre o vazio do acontecimento, ou sobre a ba-
HISTpPlAAJNlSlNOS | Vol. 8 | N° 10 | JUL/DEZ [ 2004^
nalidade da vida, ou ainda sobre o próprio ato da escrita,
operando como porta, janela ou soleira para o ingresso
em outras dimensões do mesmo presente.
Veja-se, a propósito, um trecho da crônica de um
certo Chevalier de Ia Lune, a escrever, em 1913, na revis
ta Kodaky e a parodiar conhecida poesia, falando sobre o
tempo que passa e a própria escrita da crônica, mas tam
bém sobre o marasmo da cidade:
Mais uma semana... mais outra... E que elas voam assim
como as pombas do poeta, e não voltam mais. De sorte que o
cronista é como um ponteiro no relógio do tempo. Um ponteiro
- mas rombo e irregular: rombo, porque deforma os fatos ao
crivo de uma impressão, irregular, porque a alma é que faz a
duração do tempo (Lune, 1913).
Sob a alegação de que é segunda-feira e, como tal,
nada acontece, ao que se somam a fadiga deixada pelo
domingo e o dado de que os fatos escasseiam, o cronista
deixa entrever uma cidade com um tempo imóvel, frus-
trando-se o cronista à sua missão de narrar algo sobre a
vida, que é sempre movimento. Terminando por falar do
absolutamente irrelevante para o leitor - a sua dor de
dentes... — ,ele deixa implícita a repetição fastidiosa de
um cotidiano banal!
Uma espécie de escrita do nada, construída no va;
zio da notícia, revela uma mesquinha vida urbana. Nà
mesma linha se inserem os comentários do conhecido cro
nista Paulino Azurenha, quando, irônico, constrói, como
assunto de sua narrativa, a passagem de uma nuvem de
gafanhotos pela cidade:
Quebrando a suave monotonia do delicioso viver dos habitantes
de uma cidade assim, em que habitualmente reina uma placi
dez edênica, é claro não haver, senão lá de espaço a tempo, fatos
de alta monta. De costume, é esta invejável pasmaceira, a que
até a passagem de uma nuvem... de gafanhotos abre ensejo para
o comentário e a distração pública (Azurenha, 1926, p. 127).
Paulino Azurenha, no caso, utiliza em sua narrativa
r HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | NMO |jÜL/DEZ [ 2004 |
69
a metáfora dos gafanhotos que vão e vêm, retornando à
cidade, para discutir o olhar desde fora sobre Porto Ale-
gre e mesmo as possibilidades de reconhecimento ou
estranhamento que estariam presentes na apreciação da
quele que retomasse à cidade após um período de longo
afastamento. A postura de Azurenha, o festejado cronista
Leo Ps^rdo, aparece como sintoma de uma sensibilidade
diante da cidade. Os cronistas, escritores do presente, nos
sugerem um tipo de atitude de expectativa e frustração
diante de um urbano sem emoções, como que paralisado
no tempo. Esta postura é oposta àqueles que viam, na
cidade de então, a realização de um futuro desejado.
Mas as crônicas podem, também, referir-se a um
outro tempo, no passado. São elas as narrativas
memorialísticas, quase sempre baseadas, na maioria dos
casos, na experiência e nas recordações de alguém que
viveu, viu e ouviu um outro tempo. Tais crônicas são es
pecialistas em assinalar a diferença entre o tema/objeto
da recordação tal como era no passado e o tempo da nar
rativa, o presente onde se realiza o ato de rememorar. Não
raro, esta diferença no tempo é qualificada e, muito
freqüentemente, é julgada como uma perda.
Achylles Porto Alegre foi, no caso, um cronista que
deixou inúmeras narrativas deste tipo sobre a capital gaú
cha. Lamentando as transformações da cidade, que a dei
xavam, por vezes, irreconhecível para aqueles que havi
am vivido um outro tempo, o tom nostálgico do cronista
confere ao passado uma valorização positiva, face às per
das trazidas pelo presente:
70 Volvendo, de vez em vez, os olhos da memória para estes tem
pos [...] vemos então que o progresso, no fim de contas, não é
senão uma esponja, apagando páginas e páginas de história,
com a destruição e o desaparecimento de sítios que, fotografan
do aspectos, deveriam conservar-se intactos e inteiros no seu
magnífico brilho tradicional (Camioli (Achylles Porto Ale
gre), 1920).
Acusado de ser um saudosista, que desejava a volta
/ f
I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N° 10 | JUL/DEZ | 2004 |
de um tempo do passado, irrecuperável, o cronista se de
fendia:
Quer queiram, quer não queiram, eu revivo, porque recordar é
viver, trechos e lances de vida já vivida. Recordar é retomar ao
que se foi, é voltar ao passado e ficar nele por instantes, vendo
com os olhos da memória as coisas como eram então, embora Já
não existam ou estejam transformadas [...] E verdade que o
progresso, na sua faina transformadora, muda o aspecto aos
seres e às coisas, mas eu, quando quero, vejo tudo como era ao
tempo em que, moços, com a alma e o coração cheios de poesia,
olhavam a vida através de uma opala risorúia (Porto Alegre,
1923, p. 7-8).
Perdas no desgaste físico das materialidades ou for-
mas do espaço construído que são erigidos em objeto da
rememoração, perda das experiências passadas em face
da irremediabilidade do seu retomo, perdas dos valores e
normas que orientavam as ações e que caíram em desuso,
perda dos atores que encarnaram certas idéias e que fo
ram ultrapassados pelo tempo... Na grande parte das ve
zes, estas perdas assinaladas dão margem a um caráter sau
dosista, que assume a forma de um lamento e mesmo uma
avaliação: o passado era melhor... Neste caso, ver, no pre
sente, o passado se converte em uma atitude de um dese
jo impraticável: a volta do que passou.
Ora, esta diferença assinalada, diferença que intro
duz uma alteridade a ser percebida, dada pela passagem
do tempo físico, instaura um outro tempo, construído peloato de representar o passado no presente.
Nesta medida, a crônica memorialística partilha, com
a História, esta propriedade de reconstrução do passado
pela narrativa, dando a ver uma temporalidade que só 71
pode existir pelo esforço da imaginação. Há uma constru
ção imaginária de uma temporalidade passada, que se
apresenta como verossímil pela autoridade da fala/narra
tiva daquele que rememora e se apresenta como testemu
nha de seu próprio relato. A enunciação - eu vi, foi as
sim, foi então, eu estava lá - atesta a certeza do reencon
tro do passado ou da correspondência da realidade com o
r HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | NMO | JUL/DEZ | 2004 |
discurso, produzindo, senão a veracidade da narrativa, pelo
menos um efeito de verdade.
Como bem afirmou Paul Ricoeur (2000), a Histó
ria não dispõe deste dispositivo de confirmação testemu
nhai da memória consubstanciado na credibilidade da re
cordação e no reconhecimento da lembrança. A História
se resigna a perseguir uma meta de veracidade, a pôr em
ação todo um dispositivo retórico e argumentativo e toda
uríia estratégia metodológica de organização documental
para chegar o mais perto possível deste real do passado,
sem nunca poder alcançá-la in totum.
Mas trazer um outro tempo, nem passado nem pre
sente, e sim uma outra temporalidade, é um esforço
ficcional dos mais árduos. A começar pelo fato de que
aquele que escreve a crônica memorialística enxerga com
os olhos do passado, vendo, no hoje, o ontem, na nova
materialidade erguida através do tempo, as outras, já
destmídas, que ali existiram um dia. Ver o que não mais é
possível ver, eis a tarefa narrativa que ultrapassa as fron
teiras do próprio tempo do passado, reconstruindo-o pelo
imaginário da narrativa.
Por outro lado, este retomo ao passado pela memó
ria é, também, uma forma metafórica de expressar o mun
do, na qual a invenção do passado, além de tentar dizer
como teria sido, fala, sobretudo, do presente. Falar do
presente construindo o passado é uma maneira alegórica
de referir-se ao real de outra forma.
Por exemplo, a ameaça da mudança ou a iminência
de ser colocada em prática uma nova ordem torna explí
cito o temor ou o pressentimento de que algo está preste
a desaparecer. A ameaça da perda gera uma busca pelo
passado, reforçando raízes, consagrando mitos de origens
e produzindo o esforço de lembrar. Estamos, neste ponto,
diante do processo da anamnese, deste trabalho voluntá
rio de memória, que busca lutar contra o esquecimento.
O receio do futuro faz o presente agarrar-se ao passado,
apagando fronteiras de tempo e inventando uma nova
dimensão.
I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N® 10 | JULTDEZ | 2004 |
í /
É diante da ameaça da perda, da chegada da mu
dança, da subversão de uma ordem ou de um projeto de
instalação de um novo tempo, o do futuro - como no
caso da formação dos estados nacionais -, que se processa
uma volta para o passado, inventando uma História ou
fazendo surgir a crônica memorialística, ambas construídas
como formas narrativas de reconfigurar o que passou.
E, neste ponto, chegamos à fronteira de uma outra
temporalidade, onde mais uma vez a crônica comparece
como lugar de ultrapassagem e criação imaginária. A crô
nica é ainda fronteira no tempo do futuro, modalidade na
qual talvez seja mais perceptível o seu caráter ficcional.
Este tempo não realizado se configura na narrativa
como um tempo de sonho e desejo, fruto da imaginação
de quem, no presente, coloca suas expectativas e espe
culações. A crônica que trabalha com o futuro é tam
bém alegórica enquanto modalidade narrativa, na qual,
inclusive, se estabelece um jogo de cumplicidade com o
leitor. Este é, desde o início, esclarecido de que o cronis
ta sonha ou devaneia, ou mesmo inventa um mundo in
teiramente outro.
O leitor segue esta ficção sobre o futuro, que, em
tudo, contradiz a realidade do presente, narrativa esta
que quase sempre acaba por um acordar do cronista, com
o seu retomo ao cotidiano, contato com a realidade que,
não raro, se faz acompanhar de um sentimento de de
cepção.
A crônica futurista introduz uma narrativa que, de
forma fantasiosa, com a qual o leitor é cúmplice, diz ver
dades sobre o presente, sob a forma de um outro tempo.
O fato de estabelecer a instituição de um mundo de men- 73
tira não invalida a verdade do simbólico que esta narrati
va contém. Situações irrealizáveis ou improváveis podem
ser lidas pelo seu reverso, e a ironia e a blague permitem
acessar sentimentos vividos e profundos.
Mesmo que algo seja irrealizável, isto não implica
que, uma vez, tenha sido concebido como forma de ex
pressar um desiderato. Se assim não fosse, como analisar
HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 | N'10 | ]UL/DEZ | 2004 ]
as utopias, que não se medem pelo seu grau de realização,
mas pelo seu potencial de desejo e expectativa de que,
um dia, foram portadoras?
E, para confirmar a idéia de que a temporalidade
do presente é aquela que preside a composição da narra
tiva, todos os elementos da situação imaginária do futuro
lá estão, retirados da contemporaneidade do cronista.
Poderão, sem dúvida, se apresentar com os sinais troca
dos, em combinações absurdas, ou mesmo com um signi
ficado hipertrofiado em termos de positividade ou
negatividade, mas seu arranjo, aparentemente inverossímil,
porta uma coerência de significado e uma ancoragem bem
concreta nos dados do presente. A crônica futurista, nes
te aspecto, é tão cifrada ou inventiva na sua configuração
quanto os filmes de ficção científica, que dão a ver como
em um tempo dado se pensa o futuro.
Tome-se o caso da série de crônicas intituladas
Cousas Municipais, escritas por Felicíssimo de Azevedo e
publicadas no jornal A Federação, de janeiro a setembro
de 1884. Felicíssimo de Azevedo, este nosso cronista da
capital gaúcha, foi republicano de primeira hora e se apre
sentara diante da Câmara Municipal de Porto Alegre para
prestar seus serviços como fiscal honorário da cidade. Já
aposentado e não precisando de remuneração alguma da
municipalidade, para viver, Felicíssimo de Azevedo se
propunha, voluntariamente, a zelar pela eficácia da admi
nistração e dos serviços urbanos prestados à cidade. Deste
cargo, advertia aos vereadores, ele não poderia ser dis
pensado, pois não fora nomeado, não recebia salário e
desempenhava suas funções como um direito seu, na sua
qualidade de cidadão.
Felicíssimo de Azevedo é talvez o mais acabado
exemplo de vivência e militância cidadã, entendida
como um direito seu e um dever diante da comunidade.
Não só entregava, duas vezes por semana, as suas obser
vações e comentários sobre a cidade aos vereadores, como
dava esta crônica para ser publicada nas páginas d'A Fe
deração, com o que estabelecia uma relação de cumpli-
I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N" 10 | JUIVDEZ | 2004 |
/ '
cidade e expectativa com o seu público leitor, também
de cidadão.
Pois bem, Felicíssimo de Azevedo fixa o presente
do que vê, anota, critica, denuncia e toma público. Sua
crônica oscila entre o registro do banal e corriqueiro do
cotidiano de uma cidade - um buraco em uma rua que
perturba o trânsito e os passantes, uma medida levada a
efeito pela Câmara Municipal naquele momento e que
ele considera errada e prejudicial à comunidade - e o co
mentário de acontecimentos excepcionais para a vida da
cidade, como as preparações para a libertação antecipada
dos escravos que se daria em 7 de setembro de 1884.
Entre tais acontecimentos do tempo presente, o
fiscal honorário introduz um outro tempo: como fiscal-
cidadão, ele propõe e projeta uma outra cidade, ideali
zando medidas, sugerindo o que fazer e — sobretudo -
dando a ver ao leitor, pela sua narrativa, como seria a
cidade do futuro!
Fechai os olhos, cidadãos vereadores e sonhai com o vosso belo
Porto Alegre daqui a 40 anos. O que vedes? Nada? Pois o vosso
fiscal honorário enxerga muita coisa bonita, apesar de tantos
horrores, deixados pela incúria da câmara. Não vedes aquela
Várzea, tão descurada no passado, rodeada de palácios magní
ficos; aqueles soberbos hotéis, aquelas casas de comércio tão
luxuosas,aquela imensa onda de povo a correr apressado e a
desviar-se dos veículos de toda a espécie que cruzam em todas \
os direções? (Azevedo, 1884).
Na mesma linha de antecipação do tempo que há de
vir, mas sob a forma do relato de um sonho, que de ante
mão o leitor sabe que não ocorreu e que se trata de uma
narrativa, alegórica e crítica, sobre a situação da cidade de
Porto Alegre, se tem com Germano Hasslocher, quando
este relata que sonhara ser o intendente da cidade!
Extravagante o sonho que tive esta noite. Ouvi uma gritaria
enorme, atroadora, reclamações entusiásticas, foguetada es
tourando no espaço, músicas vibrando hinos triunfais. Enfiei-
me num par de calças, enrolei-me num capote e cheguei à
I HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 | NMO |jUL/DEZ | 2004 |
janela para ver o que era aquilo. Mal a minha cabeça com os
cabelos emaranhados assomou à janela, redobraram as aclama
ções, a foguetada estrugiu numa tempestade e os metais da
música abriram-se com a força dos hinos. Era comigo aquilo
[...] Vinham trazer-me felicitações por ter sido eu eleito —
intendente municipal."*
Germano Hasslocher se destacava por ser um críti
co feroz e moralista no seu tempo, indo dos hábitos da
população aos procedimentos abusados dos libertos, para
chegar até a certas ineficácias da administração republi
cana, apesar de ser um republicano feroz. A crônica em
questão é uma página de ardilosa ficção para mostrar o
quanto a cidade estava abandonada, mas que se inscreve
no reverso da posição de Felicíssimo de Azevedo: se este
critica o regime monárquico no seu ardoroso proselitismo
da causa republicana. Germano Hasslocher, ele mesmo
republicano ferrenho, lança uma denúncia sobre o que
considera a enorme tarefa a ser feita na remodelação da
cidade pelo novo regime instalado, tal como expõe ao
leitor a necessidade urgente de reformas para instalar a
modernidade urbana.
Neste sentido, ele é também um fiscal das necessi
dades cidadãs, mas de dentro do regime. Busca mesmo
coagir os novos detentores do poder a agirem, para o que
busca, pela crônica-denúncia, relato de um sonho onde
se dizem verdades políticas, a cumplicidade do público
leitor. Ou, pelo menos, tenta convencê-los do que é pre
ciso fazer... Sua conduta é a de apontar o mal — pela reve
lação do sonho, no caso — para que uma nova conduta
política se instale. Mas tal processo implica uma
76 reconfiguração do que seja a cidadania, tal como anun
cia, em seu sonho, o novo suposto e sonhado intendente:
Ides ter agora uma tirania municipal. [...] Sim uma tirania,
coisa de que necessitais para a vossa felicidade. Eu não cortejo
o povo, falo-lhe a dura verdade que há muito ele devera ter
^ Gazeta da Tarde,08.06.1895.
I ̂ JII^ÓRIAUNISINOS I Vol.8 [ N° 10 |jUL/DEZ [ 2004 [
ouvido. Sim, meus concidadãos, a cidadania que pretendes tem
sido a vossa desgraça. Firmados nela criais porcos nos vossos
quintais, construís casas que são o peristilo do cemitério,
amontoais o cisco no fundo dos vossos porões, despejais a imun-
dicie na sarjeta das ruas, fazeis enfim o que quereis. Tudo isto
vai acabar. A soberania passa a residir exclusivamente em mim.
Os meus códigos aí estão: tratados de higiene, compêndios de
construções, etc., etc., etc. O meu olhar há de penetrar na
consciência de vossas habitações para fulminar os pecados que
lá encontrar. [...] Ah! Eu sou assim. Povo não tem juízos, não
tem critério; povo não foi feito para governar e sim para ser
governado e governo é o domínio de uma sò cabeça.^
O despertar do cronista o leva a sentir um grande
alívio, tal a enormidade da tarefa que lhe fora apresen
tada, de molde a fazer a capital gaúcha resolver seus
problemas... Germano Hasslocher se posiciona como
arauto do novo autoritarismo republicano? Parece que,
quer pela graça do estilo, quer pelo recurso literário do
sonho ou pela maneira alegórica de se referir ao real
sob uma outra forma, o cronista prepara o futuro de
uma nova administração republicana, demonstrando
que o progresso e a modernidade urbana implicavam
um autoritarismo ilustrado que reverteria em benefício
do povo, fulcro, portanto, de uma nova concepção de
cidadania.
Há ainda uma outra linha de cruzamento temporal
que se apresenta nas crônicas e que, mesmo jogando co^m
as dimensões da permanência e da mudança, confirma o
seu estatuto de serem narrativas do presente.
Tomemos o caso da crônica urbana mobilizada pela
idéia da modernidade. A modernidade urbana, enquan
to processo que se desencadeia com a renovação capita- 77
lista do mundo e que tem o seu epicentro na cidade, é
renovação material e social do mundo, mas é também
uma nova expressão imaginária do real. Ela desperta
novas sensibilidades e expectativas, sendo uma delas a
da idéia da metrópole.
Ihid.
HISTÓRIA UNISINOS Vol. l N«10 JUL/DEZ 2004
Ora, o que é uma metrópole? Enquanto construção
imaginária de sentido, a metrópole é a cidade grande, onde
as coisas acontecem, onde se dá a produção do novo, onde
a vida se agita e as decisões são tomadas, espécie de espe^
Iho do mundo onde tudo se reflete e concentra. Os soció
logos tentam definir e classificar ou mesmo mensurar a
metrópole apresentando índices para a sua população,
território urbanizado, espaço edificado, prestação de ser
viços e rede de comunicações, centro político de decisões
e vida cultural, etc.
Mas, para as pessoas que vivenciam este processo,
quando ele ocorre de forma lenta, mínima, e é, mesmo
assim, sentido por aqueles que o vivenciam de forma qua
se revolucionária, o que seria a metrópole? As crônicas
urbanas são, nesta medida, muito interessantes, porque
registram impressões da vida, sensibilidades de uma épo
ca que não são mais as nossas.
Tomemos o caso de Porto Alegre, mas acompanhe
mos as crônicas que relatam as mudanças da cidade ao
longo do tempo. A cada sintoma de inovação urbana, a
modemidade é invocada e a condição de metrópole é lem
brada. Do bonde puxado a burro para o elétrico, da en
trada em cena da iluminação noturna à expansão dos ci
nemas no centro da cidade, da inauguração do primeiro
viaduto à destruição dos becos, a constatação do
maravilhamento confirma: a modemidade chegou! Já so
mos uma metrópole, enfim!
Dos anos setenta do século XIX a fin de siècle, dos
anos vinte às cirurgias urbanas das décadas de trinta e
quarenta do século XX, para chegar ao advento dos
78 shoppings centers dos anos oitenta, a cidade passou in
gressando em modernidades sucessivas, a suspirar conti
nuamente: enfim... A constatação pode, no caso, se re
velar banal, pois na lógica da modernidade o novo é
sempre desbancado pelo mais novo. O que, contudo,
cabe registrar é o registro narrativo desta sensibilidade
no tempo: a percepção de que o futuro se antecipa e se
- instala, ou mesmo atropela o tempo do presente. Há o
I l;llSTC^RIAUNISINOS | Vol. 8 | N° 10 [jUL/DEZ| 2004 |
aspecto metonímico da supervalorização do elemento in
dividualizado e icônico da mudança, fazendo ver, no todo,
a parte.
Tempos que se superpõem, que despertam novas
sensações, que constróem e mesmo deformam o olhar so
bre o real são, desta forma, objeto de um registro narrati
vo deste cotidiano sensível, experimentado na cidade. A
crônica opera, como narrativa do real, revelando as ditas
verdades do simbólico, ou seja, a veracidade do sentimento
e da experiência que faz com que, em cada época, seja
possível ser vivenciada como verdadeira a experiência da
modernidade ou da sensação de ser metrópole.
Fronteiras do tempo, as crônicas são, para o histori
ador, narrativas que se constróem para além do verdadei
ro e do falso, servindo para mostrar a capacidade imagi
nária de construção social da realidade, para a qual as
convenções temporais não têm limites.
Se o historiador buscar encontrar nelas a confirma
ção do real, dada a observação direta do cronista e a sua
tradução em narrativa, com certeza vai encontrar nelas
pistas, guardadas as injunções — ficcionais... — do seu tem
po e de sua subjetividade ao retratar o mundo.
Se buscar na crônica os valores e o clima de uma
época, os conceitos produzidospela experiência da reali
dade sensível em um momento dado da história, sem dú-
vida ele encontrará neste tipo de narrativa todo um ma
nancial de emoções, sentimentos, razões que um dia or
denaram o mundo.
Se for à cata das formas pelas quais os homens fo
ram capazes de realizar uma transfiguração fantasmática e
onírica da realidade, sem sombra de dúvida a crônica lhe 79
será uma fonte especial.
E se, principalmente, este historiador estiver inte
ressado em ver como os homens, ao longo da sua história,
foram capazes de inventar o passado e imaginar o futuro,
sempre para explicar o presente, rompendo as fronteiras
do tempo, a crônica será, sobretudo, uma fonte exemplar,
quase inesgotável, para o seu trabalho.
I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 N° 10 |jUL/DEZ | 2004
80
Referências
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HSS, 4:731-747.
HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 | N« 10 [jUWDEZ | 2004
o corpo e a alma do mundo.
A micro-história e a construção
do passado
Sandra Jatahy Pesavento""
Resumo:
O texto analisa a legitimidade da micro-história
enquanto estratégia metodológica de redução da escala
de análise para aprofundar o potencial de interpretação
das fontes, discutindo os limites da proposta historiográfica.
Palavras-chaves: micro-história, escala, historiografia, cotidi
ano.
Resumé:
Le texte porte sur Ia legitimité de Ia microhistoire,
qui se propose comme une stratégie méthodologique de
réduction d^échelle de V analyse pour mieux interpreter
les sources, tout en discutant les limites de cette
proposition historiographique.
Mots-clé : microhistoire, échelle, historiographie, quotidien.
Professora do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Histó
ria pela UFRGS. Mestre em História da Cultura pela PUCRS e doutora em
História Social pela USP. E-mail: sandrajp@terra.com.br
I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | N~10 | JUL/OEZ | p. 179-18^
A proposta deste encontro e a pergunta enunciada
para esta mesa articulam-se em torno de dois pontos, a
serem questionados e discutidos:
a de que a micro-história, enquanto método
apoiado na redução da escala de análise, me
lhor se explicitaria na leitura do regional e lo
cal;
a de que o aproáindamento da análise implícita
naquele método pudesse conferir maior legiti
midade ao saber histórico ou representasse um
plus em termos de apreensão do real passado pelo
historiador.
De uma certa forma, eu poderia mesmo entender
que ora se faz uma pergunta similar, mas mais elaborada
ou atualizada, àquela questão que presidiu certa mesa-
redonda organizada nos quadros de um seminário que teve
lugar na UFRGS em 1999: Da história total à história em
migalhas: o que se ganha, o que se perde.
Em texto apresentado durante este evento — Esta
história que chamam micro —, publicado em obra coletiva
pela Editora da Universidade (Pesavento, 2000), explicitei
minha apreciação sobre a micro-história, que poderia ser
aqui sinteticamente resumida.
A micro-história é antes um método ou estratégia
de abordagem do empírico, que implica o uso conjugado
de dois procedimentos: redução de escala do recorte rea
lizado pelo historiador no tema, transformado em objeto
pela pergunta formulada, e ampliação das possibilidades
de interpretação, pela intensificação dos cruzamentos pos
síveis, intra e extratexto, a serem feitos naquele recorte
determinado.
O aparente paradoxo - redução de escala/maior
profundidade de análise - foi considerado por mim um
ganho e um avanço.
Em primeiro lugar, a positividade pode ser atribuí
da pela valorização do empírico, resgatando a importân
cia do trabalho de arquivo e, com isso, enfatizando que,
sem a presença da marca de historicidade - a fonte, o
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traço, o registro, o indício objetivo de alguém ou algo
que teve lugar no passado —, não há trabalho histórico
possível.
Afirmei ainda, neste texto, que a escolha do micro
implicou o recurso à metonímia como figura metodológica
de ação, a permitir que, do fragmento, tanto se permita a
multiplicidade de portas de entrada para a pesquisa quan
to se amplie o espectro de respostas possíveis para uma
questão.
Entendi como sendo um ganho e um avanço este
aspecto da micro-história de proporcionar uma pluralidade
de respostas, uma vez que isto implica maior abertura do
horizonte do historiador, justamente nas décadas que mar
caram a virada de século e milênio, caracterizadas pela
perda das certezas ou verdades únicas e definitivas.
A micro-história seria, assim, uma postura atualiza
da e condizente com as preocupações de seu tempo, esta
era da dúvida e tempo da suspeita, onde tudo parece se co
locar sob interrogação e questionamento, onde se amplia
o leque dos possíveis e se reduz o horizonte das certezas.
Tal postura garante para a micro-história um lugar privi
legiado nesta corrente historiográfica contemporânea que
se convencionou chamar de História Cultural ou ainda
de uma Nova História Cultural.
E, sobre os riscos da empreitada de uma micro^
análise, assinalei as possíveis superinterpretações, onde, a
partir de um caso analisado, o historiador se permite in
terpretações que extrapolariam os limites autorizados pela
análise do micro. Ou, em outras palavras, o historiador
levaria muito longe as suas associações, encontrando cor
respondências e analogias para além dos marcos de seu
corpus documental.
Nos dois extremos da microanálise, como presença
citada em seus pólos positivo e negativo — o incremento
do potencial explicativo, via método indiciário, por um
lado, e os riscos da superinterpretação, por outro —, en
contramos o renomado Cario Ginzburg, figura exponencial
desta postura historiográfica (apud Dei Col, 1996).
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Uma outra questão, freqüente nos estudos da micro-
história, seria a confusão possível de ser feita entre o coti
diano e o corriqueiro ou banal, ou ainda entre o excepci
onai e o normal, ou mesmo entre o que é norma e o que é
transgressão. E preciso, sem sombra de dúvida, que o his
toriador se coloque com clareza o que busca no estudo da
microanálise: divisar o que seria consensual, normal, usu
al, prática, costume, hábito do dia-a-dia? Ou mesmo divi
sar, pela normalidade do enunciado da lei e da regra, o
que seria a contravenção? Ou ainda, ao surpreender a trans
gressão, deduzir o que seria a normalidade da vida? Estas
são, a rigor, questões que podem se apresentar com fre
qüência àquele que reduz a escala para aprofundar a aná
lise. Edoardo Grendi (1977, p. 512), por exemplo, intro
duz a noção do "excepcional normal", retomada por Cario
Ginzburg e Cario Poni (Ginzburg e Poni, 1989), através
de dois possíveis significados.
O primeiro é o do registro só aparentemente ex
cepcional, mas que constitui uma prática vulgar na
cotidianidade da vida. Tratar-se-ia, por exemplo, das trans
gressões ou delitos, que são muito mais freqüentes do que
realmente as exceções no plano do social e que permitem
questionar se a margem não diz mais o que o centro... Na
segunda acepção, o entendimentoé de que justamente o
excepcional, a transgressão, a marginalidade e o desvio
podem dar conta da norma, como foi indicado acima.
Mas voltemos à questão que ora se formula, desdo
brada nos dois pontos acima assinalados.
Ora, o regional e o local, antes de tudo, são recor
tes simbólicos de sentido que, sem dúvida alguma, obe-
182 decem a dimensões de escala, tal como as categorias do
nacional ou do internacional.
São, a rigor, construções imaginárias de perten-
cimento, representações do real que assinalam identida
des partilhadas. Constituem, portanto, elaborações cul
turais históricas, que envolvem delimitações de espaço,
formas de sociabilidade, perfis de atores e um elenco de
sensibilidádes, razões, valores e manifestações do espírito
I HISTÓRIA UNISINOS | V..I. B | N° 10 | JUIVnEZ | 2004 |
entendidas como pertinentes a um território específico.
A região e o local são, assim, recortes de escala no espa
ço, portadores de sentido cultural específico.
Mas, ao mesmo tempo, são construções de sentido
relacionais, que têm razão de ser, em sua singularidade,
vis-à-vis uma outra unidade de referência mais ampla, em
escala nacional ou internacional. Em outras palavras, as
especificidades ou singularidades que compõem um perfil
identitário local ou regional têm como referência uma
alteridade, composta por outras microunidades de senti
do ou por um conjunto simbólico global, sancionado como
padrão de coesão social macro.
Sob este enfoque, seria a micro-história o método
ideal para o estudo e a análise destes recortes, uma vez
que as especificidades se explicitariam e ganhariam signi
ficado por aquilo que estaria extramicro, ou extra-região
e extralocal.
E próprio do método da micro-história estabelecer
esta grade de múltiplas relações, o que o faz uma espécie
de laboratório de experiências. Na medida em que estas re
lações pressupõem um in e um out com relação à escala
escolhida, a micro-história seria ainda o método que jo
garia com as dimensões do geral e do específico, do todo
com a parte, do particular com o geral, da regra com a
anomalia, do consensual com a diferença ou ainda do texto
com o contexto.
Em suma, é pela intensificação destas relações que
se potencializa a interpretação, mas tal procedimento re
quer um conhecimento do historiador muito mais amplo
do que aquele que se pressupõe para uma análise em es
cala reduzida.
Realizar microanálise é dizer mais sobre um recorte
do real a partir de um método, mas isto é dado também
pela bagagem de conhecimento prévio e à parte deste re
corte de escala.
Ou seja, o procedimento, para render um plus, exi
ge também um píns de conhecimento da parte do histori
ador, para que este possa enxergar um número maior de
HISTÓRIA UNISINOS Voí. 8 "~NMO | JUL/DEZ | 2004 |
relações e de interpretações possíveis.
Logo, em se tratando de regional e de locai, tem-se
o método certo para esta escolha de escala, mas que só
funciona em jogo referencial com uma bagagem de co
nhecimentos extramicro e com a possibilidade de articu
lação, em analogias, contraste e justaposição, com outras
escalas e situações.
As dissertações e teses da última década, de uma
certa forma, corporificam esta tendência, a mostrar que
temas micro podem, em si, conter o macro. Não se trata
de legitimar velhas histórias locais que se encerravam em
si mesmas, em assumida especificidade sem padrão de re
ferência comparativa, ou em algo travestido de pretensa
modernidade historiográfica.
Trata-se, antes de tudo, de entender que a redução
de escala é uma opção que passa pela disponibilidade e
pelo acesso às fontes, por exemplo, mas, sobretudo, pela
pergunta que sobre elas se lança e que pode conter o uni
versal. Seria isto, a rigor, que poderia diferenciar uma an
tiga história, local, auto-explicativa em sua especificidade,
e um estudo de micro-história, onde o método da grelha
pressupõe uma rede de relações com um contexto mais
amplo, para responder a questões que articulam o parti
cular com o global da história.
Mas falemos sobre aquele plus aludido, que eventu
almente tomaria a pesquisa mais legítima. Esta legitimi
dade não pode ser compreendida no contexto da veraci
dade, pois hoje os historiadores não se pautam, a rigor,
pelo conceito aristotélico de verdade como correspon
dência do real com seu discurso.
Esta legitimidade, contudo, poderia se afirmar pelo
desejo de cientificidade da história, o que seria possibili
tado pelos rigores do método da microanálise. Ou, ainda,
pela ampliação das respostas possíveis e pela intensa e
exaustiva análise do empírico, se possibilitaria chegar o
mais perto possível daquilo que teria acontecido um dia,
neste país estrangeiro do passado, onde se falava uma língua
diferente, como disse um dia L. P. Harthley (apud
I ,Hl^ÓRlAUNlSlNOS [ Vol.8 | N° 10 |jUWDEZ | 2004 |
Lowenthal, 1998).
Chegamos, com isso, ao coração do plus: o corpo e a
alma do mundo, sonho de todo historiador, mesmo saben
do que, desta temporalidade escoada, ele só possa cons
truir versões que ofereçam verossimilhança com o real
passado.
Com o corpo e a alma do murulo queremos tanto di
zer as coisas, os gestos, as práticas e as gentes de cada dia
que um dia existiram, na sua cotidianidade ou na sua
excepcionalidade, e que constituem o corpo deste passa
do, quanto nos referimos às sensibilidades, às motivações,
às razões, as certezas, às emoções e aos sentimentos que
correspondem à alma do mundo de um momento históri
co dado.
Falamos, pois, de coisas mensuráveis e quantifi-
cáveis, por um lado, e de coisas aparentemente invisíveis
ou de difícil percepção, por outro. Seria, no caso, a micro-
história um método legítimo para a apreensão destas duas
dimensões da vida, que aqui chamamos, em liberdade
poética, do corpo e da alma do mundo?
Arriscamos dizer que sim.
Há, sem dúvida, um lado mensurável da vida, das
coisas visíveis do acontecer de cada dia, onde se torna
possível resgatar a dinâmica do social, o movimento das
pessoas no espaço, as interações e os conflitos, o, trabalho
e a guerra, o lazer e o consumo, a pobreza e a acumula
ção, as migrações e o povoamento, redes sociais e
interações de toda espécie, ações políticas, obras do Esta
do, iniciativas privadas.
Em escala reduzida, todo este mundo do cotidia
no, de que é feita a vida, se revela na sua normalidade, 185
em série e freqüência. Não só aquilo que marcaria a
cotidianidade, pois a micro-história exporia também o
grande acontecimento, os feitos excepcionais, que em
relação com o cotidiano se revelariam inusitados, im
previstos.
De certa forma, poderíamos dizer que a postura da
micro-história é aquela que melhor se adaptaria a uma
I HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 j N° 10 |jUL/DEZ| 2004 |
186
espécie de reinvenção do cotidiano, tal como a proposta
por Michel de Certeau (1990). Mesmo relativizando a
obtenção da verdade, Certeau entendeu ser possível res
ponder a este "desejo de verdade" que move o historia
dor, através da busca de uma descrição verossímil.
Para tanto, Michel de Certeau se empenhou em re
cuperar os traços da vida pelo resgate exaustivo dos fatos
acontecidos, tornando inteligível uma temporalidade do
passado. Sobretudo, interessavam-lhe as práticas cultu
rais, construídas no dia-a-dia, portadoras de discursos e
imagens de sentido.
Da mesma forma, é ainda a micro-história aquela que
melhor se presta à descrição densa prevista por Clifford Geertz
(1989) e tomada de empréstimo pelos historiadores que
principiavam a ver como práticas sociais se traduziam em
bens culturais, tal como Edward P. Thompson (1995).
A vida dos homens, enfim, revelada, dissecada, ex
posta em carne e osso nas suas minúcias, onde cada fato
poderia ser objeto de múltiplos cruzamentos e correspon
dências, buscando atingir as pegadas ou traços da passa
gem do homem na história.
Talvez, mesmo, a micro-história pudesse, em certa
medida, registrar aquilo que ítalo Calvino (1990) postu
lava como propostas para o próximo milênio — que, para
nós, já começou... a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade.
A micro-história possibilitaria,com a sua grade de
malha fina, fornecer ao historiador imagens visuais níti
das, incisivas, memoráveis, precisas, fruto de um vascu
lhar incessante do passado, daria uma tradução quase vi
sual das coisas e gentes acontecidas em um outro tempo.
Esta estratégia implicaria ver o mundo como um sistema
de relações, como um universo de múltiplas reações a se
rem descobertas.
Mas isto ainda seria pouco. Sabemos que dar a ver
e dar a ler um passado é sempre uma versão aproximati-
va, que pressupõe vôos da imaginação. Esta é a grande
questão de ítalo Calvino, a linha mestra a unir todas as
propostas para este milênio que ele não veria.
HISTÓRIA UNISINOS | Vol. 8 | NMO |jULA^EZ| 2m |
As sensibilidades são a chave desta porta mágica de
entrada que permite ver como os homens realizavam a
construção social da realidade por um mundo paralelo de
sinais. As sensibilidades corresponderiam a este núcleo
primário de percepção e tradução da experiência huma
na no mundo. O conhecimento sensível opera como uma
forma de apreensão do mundo que brota não do racional
ou das elucubrações mentais mais elaboradas, mas dos
sentidos, que vem do íntimo de cada indivíduo.
As sensibilidades compete essa espécie de assalto
ao mundo cognitivo construído pelos conceitos, pois li
dam com as sensações, com o emocional, com a subjeti
vidade. Elas comparecem no cerne do processo de repre
sentação da realidade e correspondem, para o historiador
da cultura, àquele objeto precioso a capturar no passado,
à própria vida. Trata-se daquilo que Cario Ginzburg
(1997) definiu como a enargheia, a impressão da capaci
dade humana de representar e exprimir o mundo, a ener
gia vital que se abriga em um momento histórico dado e
que se traduz na capacidade de representar o mundo.
Resgatar as sensibilidades implica encontrar a tra
dução externa, enquanto marca de historicidade, de uma
impressão interna. Mas esta é tarefa das mais finas, delica
das, profundas, pois a realidade não se apresenta de forma
literal ou transparente. '
O mundo é simbólico, a realidade é cifrada, discur
sos e imagens são portadores de sentidos e de elementos
sutis, por vezes quase imperceptíveis, multifacetados.
E preciso, pois, ir ao encontro deste mistério do
mundo, optando sempre pelo olhar oblíquo, indireto, para
ver além, mudando o ponto da observação. 187
Quando Calvino fala da qualidade da leveza como
proposta de decifração, diz que "é preciso considerar o
mundo sob uma outra ótica, outra lógica, outros meios de
conhecimento e controle" (Calvino, 1990, p. 19).
0 corpo do mundo não tem vida sem a alma, e é no
encalço desta sintonia fina que a micro-história poderá
revelar o seu pias. Atingir as sensibilidades dos homens do
1 HISTÓRIA UNISINOS I Vol.8 | N° 10 |jUL/DEz[ 2004 |
188
passado, revelar como eles representavam a si próprios e
ao mundo, eis a tarefa ou desafio a ser realizado pelo mé
todo da microanálise.
A micro-história, com sua análise exaustiva ou des
crição densa - para tomarmos de empréstimo um termo
caro à antropologia cultural -, fornece imagens que aspi
ram à, precisão ou, pelo menos, aproximação com o pas
sado. Mas é preciso que elas sejam dotadas de sentido,
que os personagens, ações e discursos sejam impregnados
de razões e sentimentos, que expliquem por que e como
se movia a existência dos homens.
Falamos do imaginário, sim, daquilo que Jean
Starobinski definiu como a comunicação com a alma do
mundo, com a sensibilidade tradutora da vida em repre
sentações. Seria, pois, exatamente isso a meta de cada
historiador que investiga no campo da História Cultural:
captar este reduto sensível de investimento na percep
ção, reconhecimento e qualificação do mundo!
Como diz ítalo Calvino (1990, p. 90), "estamos
sempre no encalço de uma coisa oculta ou, pelo menos,
potencial ou hipotética, de que seguimos os traços que
afloram na superfície do solo".
Há traços visíveis, explícitos, mesmo quantificáveis,
mas há outros que não se dão a revelar senão pelo esforço
do imaginar e que dão conta do universo mental dos ho
mens de um outro tempo, imperceptíveis à vista, quase
invisíveis ou subterrâneos, renitentes a serem mensurados.
E nesta busca de sentidos, de lógicas ou da descoberta das
irracionalidades da vida que a micro-história pode se re
velar eficaz: revelar as coisas não ditas, mas intuídas, pre
encher lacunas e ausências, divisar indícios e traços onde
um olhar desavisado nada identificaria.
Em suma, a micro-história poderia, ou mesmo ou
saria, ser capaz de produzir, ao mesmo tempo, estas duas
formas de conhecimento da realidade de que fala Roland
Barthes (1980): uma que produz um saber sobre as coisas
que podem ser medidas e mesmo comprovadas, e que
pertence ao rjeii^o do corpo do mundo, da observação di-
I HISTÓRIA UNISINOS | Vol.8 | N° 10 |jUL/DEz[ 2004 |
reta do real; outra que constrói um saber sensível, através
de indícios, de sensibilidades, emoções e valores, por ve
zes imperceptíveis, que têm na imaginação o seu potenci
al criador e que fazem parte daquilo que pode ser definido
como a alma do mundo.
Mas esta história, assim concebida, seria ainda cha
mada de micro, mesmo contendo o corpo e a alma do mun
do? Só se nos ativermos à sua estratégia de redução de
escala, porque neste micro estaria contida a vida dos ho
mens, em um momento dado de sua história.
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ISSN 1519-3861
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