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Caroline Perovano Gisele Schwede Jaqueline Jablonsky Luciana Laube Nasser Haidar Barbosa DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH Maria da Graça Bráz JOINVILLE 2006 1 Caroline Perovano Gisele Schwede Jaqueline Jablonsky Luciana Laube Nasser Haidar Barbosa DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH Maria da Graça Bráz JOINVILLE 2006 Relatório de Estágio Supervisionado em Psicologia Social, apresentado à Faculdade de Psicologia de Joinville, da Associação Catarinense de Ensino, como requisito parcial para a obtenção do grau de Psicólogo. Professor Supervisor: Esp. Julio Schruber Junior 2 Caroline Perovano Gisele Schwede Jaqueline Jablonsky Luciana Laube Nasser Haidar Barbosa DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH Maria da Graça Bráz Aprovado em 7 de dezembro de 2006, pelo Professor Supervisor. ________________________________________________ Profº. Esp. Julio Schruber Junior CRP 12/0969 Relatório de Estágio Supervisionado em Psicologia Social, apresentado à Faculdade de Psicologia de Joinville, da Associação Catarinense de Ensino, como requisito parcial para a obtenção do grau de Psicólogo. Professor Supervisor: Esp. Julio Schruber Junior 3 EPÍGRAFE Nós vos pedimos com insistência: Nunca digam – Isso é natural Diante dos acontecimentos de cada dia, Numa época em que corre o sangue Em que o arbitrário tem força de lei, Em que a humanidade se desumaniza Não digam nunca: Isso é natural A fim de que nada passe por imutável. (Bertold Brecht) 4 TÍTULO: DIREITOS HUMANOS E PSICOLOGIA: Mediando re-significações no CDH Maria da Graça Bráz AUTORES: Caroline Perovano, Gisele Schwede, Jaqueline Jablonsky, Luciana Laube e Nasser Haidar Barbosa PROFESSOR SUPERVISOR: Prof. Esp. Julio Schruber Junior RESUMO Este trabalho apresenta o relato do desenvolvimento da prática profissional no estágio supervisionado em Psicologia Social, realizado no Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz (CDH), na cidade de Joinville/SC, a partir do convênio firmado entre esta organização e a Associação Catarinense de Ensino, através das faculdades de Psicologia e de Direito. Esta parceria gerou três frentes de trabalho conjuntas entre a Psicologia e o Direito, sempre com vistas ao desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar de apoio a causas jurídicas e psicológicas dos clientes do CDH. A frente de trabalho em que atuou este grupo de estagiários e que gerou o presente relatório foi a de orientação e atendimento psicológico aos movimentos sociais e grupos, bem como individuais, que procuram o CDH a fim de esclarecer suas dúvidas, buscando orientação ou mesmo apoio psicológico frente à suas demandas. O papel dos estagiários neste sentido foi o de mediar práticas frente às questões sociais, com vistas à emancipação das pessoas que apresentam demandas de vulnerabilidade, buscando assim novas alternativas para as complexas questões da sociedade contemporânea. Pautado na concepção de homem e de mundo da Psicologia Histórico-cultural, este estágio foi realizado entre os meses de julho e novembro de 2006. 5 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 Tipos de atendimentos realizados pelo PAS-JP................................ 66 Gráfico 2 Tipo de renda das pessoas atendidas............................................... 67 Gráfico 3 Tipo de demanda apresentada.......................................................... 67 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................... 7 1 DIREITOS HUMANOS........................................................................................ 11 1.1 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS......................... 16 1.2 DIREITOS HUMANOS E CONTEMPORANEIDADE................................... 18 1.3 PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS....................................................... 20 2 MEDIAÇÃO......................................................................................................... 24 2.1 PSICOLOGIA JURÍDICA E MEDIAÇÃO...................................................... 24 2.2 PSICANÁLISE E MEDIAÇÃO...................................................................... 27 2.3 PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E MEDIAÇÃO............................... 28 3 O CONTEXTO BRASILEIRO............................................................................. 34 3.1 VIOLÊNCIA.................................................................................................. 37 3.2 UMA GRANDE DEMANDA: O SISTEMA PRISIONAL................................ 41 3.2.1 Prisões................................................................................................43 3.2.2 Santa Catarina no cenário prisional....................................................46 3.3 VULNERABILIDADE E EXCLUSÃO............................................................ 47 4 A TRAJETÓRIA PERCORRIDA.........................................................................53 4.1 CENTRO DE DIREITOS HUMANOS MARIA DA GRAÇA BRÁZ................ 53 4.2 INTERDISCIPLINARIDADE......................................................................... 55 4.3 PSICOLOGIA E DIREITO............................................................................ 57 4.4 PROJETO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA E PSICOLÓGICA (PAS – JP).... 61 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 69 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................... 73 ANEXO.................................................................................................................. 79 7 INTRODUÇÃO Realizar-se uma faculdade de Psicologia em meados da primeira década do século XXI necessariamente implica em ser convidado a se olhar para a realidade mundial e especialmente à brasileira no que tange à contundente vulnerabilidade e exclusão social que assola a sociedade hodierna. Herança de séculos de acúmulo de bens em mãos de poucas pessoas a custo da exploração e espoliação de direitos fundamentais de muitas pessoas, a precária situação contemporânea requer reflexões daqueles que de alguma forma se apropriam da ciência Psicológica, isto é, tanto de pesquisadores e estudantes quanto de professores e demais profissionais que se ocupam dos diversos campos onde há o fazer “psi”. Visto que já ao longo da formação em Psicologia é necessário ao futuro profissional apropriar-se das diferentes formas deste fazer “psi”, o exercício das mais variadas possibilidades de atuação durante este período deve ocupar lugar central da atenção de cada estudante, pois são exercícios profissionais comprometidos com a população que permitem um espaço de reflexão e, concomitantemente, a construção de novas formas de atuação, que consigam responder a novas demandas. Nessa perspectiva, este relatório é resultado do estágio supervisionado em Psicologia Social realizado no Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz, durante o segundo semestre de 2006. Este CDH, conforme discorrido mais adiante, possui uma longa história de compromisso com a população de Joinville e região, em situação de vulnerabilidade social e este estágio que relatamos é resultado da realização de um convênio entre esta instituição e a Associação Catarinense de Ensino, por meio de suas Faculdades de Psicologia e de Direito, firmado na primeira metade do ano. Este acordo resultou na realização do Projeto de Assistência Jurídica e Psicológica (PAS-JP),com vistas ao atendimento interdisciplinar (Psicologia e Direito) à clientela do CDH. Aqui, faz-se necessário indicar a matriz epistemológica que norteou nossa reflexão e prática: o materialismo histórico e dialético. A partir desta perspectiva, entendemos que a subjetividade constitui-se historicamente a partir das relações, 8 isto é, a partir de seu trabalho, o indivíduo, construtor de si mesmo, constrói sua subjetividade no contexto das relações nas quais está inserido. Segundo Figueira, parafraseando Karl Marx, o homem se constitui como tal por meio do trabalho, isto é, faz-se pelo trabalho, a partir de determinadas condições (FIGUEIRA, 1987). É ainda um ser social, já que é do contato com o outro que tira os meios para sua sobrevivência e aprende a ser humano. Assim, há duas características peculiares à humanidade: o trabalho e a interação social (LEONTIEV, 1978). Nesta perspectiva, queremos fazer perguntas à realidade que se coloca em questão e colocamos em pauta o compromisso que assumiremos com a sociedade ao sermos nomeados psicólogos. Tendo em vista que esta foi a primeira experiência realizada entre as instituições citadas, após ter sido realizado o convênio, algumas formas de trabalho foram planejadas, isto é, algumas frentes de trabalho foram definidas, para melhor adequar a concretização da experiência, conforme adiante será colocado. A frente de trabalho norteadora desta equipe foi a de Movimentos Populares e tinha por objetivos atender familiares e egressos do sistema prisional, pessoas em situação de violência e todas aquelas cujos direitos estejam de algum modo sendo violados (enfoque em atendimento de apoio, bem como, orientação e encaminhamento para os serviços públicos existentes, de acordo com a demanda). Além disso, concentrou- se na orientação psicológica para os movimentos sociais e grupos assessorados pelo Centro de Direitos Humanos, especialmente por meio da formação de lideranças comunitárias. O caminho percorrido Para a concretização destas atividades, a equipe trabalhou em esquema de plantão na sede do CDH, às quintas-feiras a tarde, em conjunto com a equipe de estagiários do terceiro ano da faculdade de Direito, atendendo as pessoas que (normalmente) já haviam agendado sua visita à instituição durante a semana prévia. O atendimento acontecia em duplas (um estagiário de cada área), ouvindo a demanda e dando a adequada tratativa ou encaminhamento. Perfez-se assim um total de 73h de atendimentos no CDH, somados à horas de supervisão, na Faculdade de Psicologia. 9 Procuramos, ao longo da realização deste estágio, “elucidar o relacionamento entre o funcionamento mental humano com contextos culturais, institucionais e históricos” (WERTSCH, 1995, p. 81 apud CHAVES, 2000, p. 159). Logo, com a proposta de atender interdisciplinarmente à demanda do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz, consideramos necessário conhecer mais este contexto: lançamos um olhar para o tema Direitos Humanos, buscando compreender suas origens e seus pressupostos e ainda, buscamos conhecer as principais demandas da instituição: familiares e egressos do Sistema Prisional. Dois temas por si só amplos e peculiares. Além destas, outras questões colocaram-se constantemente, exigindo leituras e reflexões. Queríamos, para além de uma compreensão dos fatos, buscar o entendimento dos compromissos sociais que compõe a geração de saberes que permeiam os acontecimentos. Com este olhar para a contextura, queríamos melhor compreender a demanda. Ao longo do semestre, a equipe de estagiários esteve amplamente assistida pela psicóloga e pela assistente jurídica do CDH e pelo professor supervisor do estágio, pois, conforme já citado, esta foi a primeira experiência conjunta entre as instituições. Logo, demandou de todos os envolvidos uma concomitante construção de novos saberes e de novas formas de intervenção. Desta forma, o presente trabalho está organizado da seguinte maneira: no capítulo inicial, Direitos Humanos, abordamos o nascimento de uma compreensão de Direitos, própria de um determinado período histórico – a modernidade – e suas implicações sociais, mais especificamente, a consolidação de uma concepção de homem com direitos que lhe são inerentes desde o nascimento. No capítulo seguinte, Mediação, discorremos sobre esta importante forma de intervenção, buscando elucidar seus diferentes entendimentos: seu entendimento jurídico; seu entendimento para a Psicanálise e finalmente, aquela concepção que nos norteou: o entendimento da Psicologia Histórico-cultural. Buscamos, portanto, entender um pouco mais os meandros que engendraram a institucionalização da mediação enquanto recurso do sistema jurídico, diferenciando este recurso da mediação que realizamos no CDH, sem deixar, todavia, de indicar suas confluências enquanto meio para alcançar-se um novo modo de configuração da realidade que se coloca, isto é, modo de enfrentamento da realidade e planejamento de projetos de vida. 10 No próximo capítulo, O contexto brasileiro, foi onde nos debruçamos à descrição do cenário maior no qual se produzem as demandas de vulnerabilidade, violência e exclusão, historicamente atendidas pelo CDH. Procurando compreender e elucidar aspectos da história brasileira de concentração de renda excessiva de alguns poucos e extrema pauperização da maioria, lançamos um olhar ao fenômeno social da violência, aspecto a que, de alguma forma, estão submetidas a maioria das pessoas que busca o CDH. Neste capítulo também indicamos o que consideramos ser o adequado papel do psicólogo, profissional também embrenhado nesta tessitura social. No capítulo seguinte, A trajetória percorrida, apresentamos o relato do cenário encontrado: ainda que de forma bastante sucinta, descrevemos a história do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz. Apresentamos ainda os motivos de consideramos importante um trabalho deste âmbito ser realizado de forma interdisciplinar, apresentando aspectos teóricos deste tipo de intervenção. Nesta esteira, logo em seguida fez-se necessário pensar possibilidades de confluência entre Direito e Psicologia. Finalmente, explicamos o projeto PAS, suas peculiaridades e seus resultados. Convém salientar que certamente não esgotamos as possibilidades de análises destas intervenções e, para além disso, talvez o mais importante: antes de encontrarmos respostas às nossas reflexões oriundas desta práxis, supomos que mais questões colocam-se. Por fim, em Considerações Finais, expressamos o que acreditamos ser relevante enquanto percepções resultantes deste estágio: aquilo que nos chamou atenção durante o percurso, considerando nisto o contexto histórico no qual se produziram os aprendizados e as concepções. Finalmente, cabe destacar que se tratou este de um estágio novo na Faculdade de Psicologia e quiçá tal tipo de intervenção tornar-se-á, futuramente, teor para novas investigações, relacionando-se o conteúdo deste relatório com novas vivências e outros contextos. A escolha deste objeto de estudo para a consolidação de um projeto de estágio derivou-se de ocuparmos um lugar apreciado pelos estagiários desta equipe: o lugar de estudantes do curso para uma profissão que deve assumir o compromisso social com a maioria da população. 11 1 DIREITOS HUMANOS Direitos humanos podem ser definidos como: [...] as ressalvas e restrições ao poder político ou as imposições a este, expressas em declarações, dispositivos legais e mecanismos privados e públicos, destinados a fazer respeitar e concretizar as condições de vida que possibilitem a todo ser humano manter e desenvolver suas qualidades peculiares de inteligência, dignidade e consciência e permitir a satisfação de suas necessidades materiais e espirituais (ALMEIDA, 1996, p. 24). São direitos garantidos ao homempor sua condição humana, capazes de assegurar a dignidade de sua condição e que “[...] não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir” (HERKENHOFF, 1994, p. 31). Assim, podem ser ainda definidos como parâmetros, de caráter histórico, capazes de regular a vida entre os indivíduos em uma sociedade, baseados moralmente na justiça, igualdade e democracia, que devem prevalecer em qualquer estado ou nação, independendo do sistema político, social ou econômico adotado por esta (CUNHA, 1998). Pereira et al (2004) ainda afirmam que os direitos humanos são reguladores das relações entre os indivíduos e os estados, postulados pela Organização das Nações Unidas. Os Direitos Humanos passaram por um longo processo de “evolução”. Desde uma fase embrionária, em que eram confundidos com direitos individuais e, muitas vezes, mais fundamentados em interesses econômicos e políticos do que humanitários, até chegarem ao século XX (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006). A proto-história dos direitos humanos começa na Baixa Idade Média, mais exatamente na passagem do século XII ao século XIII. Não se trata, ainda, de uma afirmação de direitos inerentes à própria condição humana, mas sim do início do movimento para instituições de limites ao poder dos governantes, o que representou uma grande novidade histórica. Foi o primeiro passo em direção ao acolhimento generalizado da idéia de que havia direitos comuns a todos os indivíduos, qualquer que fosse o estamento social – clero, nobreza e povo – no qual eles se encontrassem (COMPARATO, 1999, p. 33). 12 O conceito de Direitos Humanos é, pela tradição no ocidente, segundo Leal (1997), tratado principalmente pelo marco do direito constitucional e do direito internacional, cujo objetivo é “[...] construir instrumentos institucionais à defesa dos direitos dos seres humanos contra os abusos de poder cometidos pelos órgãos do Estado” (LEAL, 1997, p. 19), ao mesmo tempo em que visa à promoção de condições dignas da vida humana e de seu desenvolvimento. Isto se explica em razão do período histórico em que se inicia o debate sobre o tema. Os Direitos Humanos [...] não eram conhecidos na Antigüidade, embora a noção de igualdade, pelo menos entre os que eram considerados cidadãos daquilo que se entendia por Estado, tenha florescido no Oriente. Com efeito, a Grécia e a Roma republicana concediam participação política a determinadas classes sociais, o que pode ser considerado o começo da liberdade política (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006). Ainda segundo estes autores (2006), quando do esfacelamento do Império Romano, surge um novo modo de produção, o feudal, que viria a dominar a Europa, e então o processo de formação dos Direitos Humanos sofreria uma involução (exceto na Inglaterra). Porém, mais tarde com a Independência dos Estados Unidos, a Revolução Francesa e os ideais iluministas, o processo de formação dos Direitos Humanos tomaria novo fôlego e sua disseminação pelo mundo já não poderia ser contida. Todavia, muito ainda deveria ser percorrido até que se chegasse ao ponto culminante das Revoluções Modernas. Parece ser consenso entre os historiadores que as origens mais antigas dos direitos fundamentais da pessoa humana se encontram nos primórdios da civilização, abarcando desde as concepções formuladas pelos hebreus, pelos gregos, pelos romanos, e pelo cristianismo, passando pela Idade Média, até os dias de hoje (LEAL, 1997, p.20). Segundo Leal (1997), a postura filosófica dos hebreus (cosmovisão) e sua religião monoteísta irrompem uma profunda alteração nas crenças e convicções do mundo antigo: e, considerando sua situação de povo perseguido e discriminado, tem uma singular importância na delimitação do tema “[...] direitos fundamentais da pessoa humana” (LEAL, 1997, p. 20). A lei mosaica, com os Dez Mandamentos, constitui, a despeito dos aspectos religiosos, um autêntico código de ética e de comportamento social, cujo cumprimento identifica um conteúdo e uma prática voltada aos direitos 13 humanos mais tarde protegidos. A própria Bíblia tem um conteúdo essencialmente humanista, a partir de um marco religioso presente na cultura greco-romana, consolidou-se no cristianismo (LEAL, 1997, p. 20). O autor ainda afirma que “com a dispersão do povo hebreu por todo mundo, a nova concepção de homem e de Deus tem uma divulgação e proliferação significativa” (LEAL, 1997, p. 20). Já o povo grego, enfatiza Leal (1997), especula sobre a vida humana e suas potencialidades, registrando na história uma concepção nova de existência, voltada para o humanismo racional. “Esta racionalidade lhe propicia enfrentar os fatos da vida com discernimento e objetividade, buscando implementar a idéia de liberdade política” (LEAL, 1997, p. 21). A liberdade de que se fala não é sinônimo de autogoverno; antes, é o hábito de viver de acordo com as leis da cidade1, leis estas que louvam a liberdade, colocando-a como condição de cidadania e hombridade (LEAL, 1997, p. 21). No momento em que se registra este paradoxo: filosofia, cultura e política, verifica-se também que a “[...] grande contribuição do povo grego à questão dos direitos humanos se dá no âmbito das idéias: de liberdade política, racionalidade, princípios de moralidade universal e dignidade humana” (LEAL, 1997, p. 22). Entretanto, coube ao direito romano estabelecer uma relação entre os direitos individuais e o Estado. “A Lei das Doze Tábuas, uma criação romana, foi a origem escrita dos ideais de liberdade e de proteção dos direitos dos cidadãos” (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006). Afirmam ainda os autores que [...] o desenvolvimento dos Direitos Humanos na Antigüidade não foi possível, porque a noção de liberdade pessoal, que lhe é inerente, ainda não existia. A escravidão era vista quase como algo natural e mesmo a idéia de democracia que havia na Grécia e na Roma do período republicano estava vinculada à integração do indivíduo ao Estado, que o absorvia completamente. Não se concebia que a liberdade pudesse, em certos casos, ir de encontro à soberania do Estado (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006). Como afirmam os autores (2006) ao citarem Darcy Azambuja, “a fragmentação da autoridade determina o desaparecimento da liberdade, tanto é 1 Deve-se aqui ressaltar que os gregos mantinham uma cultura escravagista e discriminatória no que tange às mulheres e aos estrangeiros (LEAL, 1997). 14 certo que uma é complemento da outra”. Assim, desaparecem, com a queda do vasto Império Romano, os rudimentos de liberdade política ou civil. Com o advento do cristianismo, de maneira mais ou menos intensa, há uma singular alteração de enfoque filosófico e social no que tange aos direitos humanos (LEAL, 1997). Os princípios de igualdade e fraternidade preconizados pela doutrina cristã representam um momento de ruptura com o modelo de sociedade até então existente. Sustentar que inexistem diferenças entre amos e escravos significa alterar as regras do jogo, não só as morais, mas também econômicas (LEAL, 1997, p. 24). A mudança deste quadro, afirma Leal (1997), se dá a partir dos séculos XVIII e XIX, através dos processos de humanização e pelas garantias processuais penais, “[...] influenciada pelos pressupostos do direito natural, este mesmo direito que fora maturado com as influências dos gregos, com o pragmatismo romano e as doutrinas do evangelho cristão” (LEAL, 1997, p. 28). Portanto entende-se que durante a Idade Média, pouco ou quase nada aconteceu de relevante no plano dos Direitos Humanos. Pelo menos até 1215, com a Carta Magna. A idéia de direitos humanos há muito tempo já existia na Europa, porém costuma-se afirmar que foi com o Rei John Landless, da Inglaterra, e sua MagnaCarta (Great Charter, 1215) que surgiu o embrião do que seriam os Direitos Humanos. Não que esse documento tratasse especificamente disso, mas havia menções à liberdade da Igreja em relação ao Estado (embora de maneira nenhuma consagrasse a tolerância religiosa) e à igualdade do cidadão perante a lei. Com efeito, o parágrafo 39 declarava: “Nenhum homem livre poderá ser preso, detido, privado de seus bens, posto fora da lei ou exilado sem julgamento de seus pares ou por disposição da lei”. O Rei John foi pressionado a assinar a Carta Magna, para evitar as constantes violações às leis e aos costumes da Inglaterra. A partir de então, a sucessão hereditária de bens foi permitida a todos os cidadãos livres, assim como ficou proibida a cobrança de taxas excessivamente altas (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006). Até o surgimento da Idade Média e com ela seus teóricos, as noções de direitos e direitos fundamentais estão limitados pelo contexto de seu período, marcado segundo Leal (1997), “[...] pela transição do poder, das mãos centralizadoras do Rei para seu séqüito e para uma nova classe social: a burguesia” (p. 30). Os conceitos de liberdade e de igualdade são forjados nesta realidade, buscando contemplar os interesses políticos e econômicos do período. 15 Em 20 de junho de 1776, “[...] a convenção de Virgínia sanciona o que se pode considerar como a primeira declaração de direitos em sentido moderno” (LEAL, 1997, p. 32), expressando: [...] que todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes, possuindo certos direitos inerentes, dos quais, quando ingressam no estado social, não podem, por nenhum contrato, privar-se ou deles abrir mão, como o gozo da vida e da liberdade, os meios de adquirir e possuir a propriedade, perseguir e obter a felicidade e segurança; afirma a separação dos poderes como premissa fundamental de organização do Estado; a liberdade de imprensa; o direito do acusado de conhecer a causa de sua detenção e ser julgado rapidamente por juízes imparciais; que nenhum homem pode ser privado de sua liberdade, senão segundo a lei do país ou segundo o juízo de seus pares (LEAL, 1997, p. 32-33). Segundo Comparato (1999), esta declaração constitui o registro de nascimento dos Direitos Humanos na história. Este autor também afirma que esta declaração [...] é o reconhecimento solene de que todos os homens são igualmente vocacionados, pela sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si mesmo. A “busca da felicidade”, repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos, duas semanas após, é a razão de ser inerentes á própria condição humana (COMPARATO, 1999, p. 38). A declaração de independência dos Estados Unidos ocorre em 04 de julho de 1776, contendo além dos direitos já mencionados na declaração de Virgínia, outros, como o de insurreição contra governos que abusem de seus poderes (LEAL, 1997). Comparato (1999), afirma que treze anos depois, no ato de abertura da Revolução Francesa, a mesma idéia de liberdade e igualdade dos seres humanos é reafirmada e reforçada: “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” (DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO, 1789, art. 1º apud COMPARATO, 1999, p.38). Faltou apenas o reconhecimento da fraternidade, o que só veio acontecer com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. A Declaração Francesa é abstrata e universalizante, sustentada por um tripé ideológico, segundo Jacques Robert (apud BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006): [...] intelectualismo, pois a afirmação de direitos imprescritíveis do homem e a restauração de um poder legítimo baseado no consentimento popular 16 foram uma operação de ordem puramente intelectual que se desenrolaria no plano unicamente das idéias, é que para os homens de 1789, a Declaração dos direitos era, antes de tudo, um documento filosófico e jurídico que deveria anunciar a chegada de uma sociedade ideal; universalismo, na acepção de que os princípios enunciados no texto da Declaração pretendem um valor geral que ultrapassa os indivíduos do país, para alcançar um valor universal; individualismo, porque só consagra as liberdades dos indivíduos, não menciona a liberdade de associação nem a liberdade de reunião, preocupa-se em defender o indivíduo contra o Estado. É por isso, o documento marcante do Estado Liberal, e que serviu de modelo às declarações constitucionais de direitos do século passado e deste (ROBERT, 1992 apud BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006. Sem grifos no original). A Declaração de 1789 proclamava, através dos seus dezessete artigos, os fundamentos da liberdade, da igualdade, da propriedade, da legalidade e “[...] as garantias individuais liberais que ainda se fazem presentes nas declarações contemporâneas” (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006). A Constituição Francesa de 03/09/1791 foi a primeira a conter uma enumeração dos direitos individuais e suas garantias. Porém, a doutrina política contida nessas declarações achava-se estreitamente ligada ao processo econômico e às suas conseqüências sociais. Trazendo para as Constituições as teses de Adam Smith, o direito público confundia proteção aos interesses sociais com o progresso da coletividade. Interesses decorrentes da organização econômica eram considerados no mesmo plano que atributos inerentes à personalidade. Em conseqüência, os direitos ligados à propriedade privada ocupavam lugar conspícuo entre as liberdades individuais. Não obstante, já estava em curso o processo inexorável de difusão das declarações de direitos pelo continente europeu, através das diversas constituições escritas que começaram a surgir a partir daquele momento, como a Constituição da República Germânica de Weimar (1919-1933) (BRAYNER; LONGO; PEREIRA, 2006). Todavia, o reconhecimento dos Direitos Humanos de caráter econômico e social só se deu, segundo Comparato (1999), através dos movimentos socialistas que se iniciaram na primeira metade do século XIX em que, ao contrário do capitalismo, onde o titular dos direitos era um ser humano abstrato; no socialismo os beneficiários destes direitos passaram a ser os grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização. 1.1 DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS A Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal como é conhecida nos dias de hoje, teve o início de sua promulgação durante a reunião de 16 de fevereiro de 1946 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em que ficou 17 acordado que a Comissão de Direitos Humanos, a ser criada, deveria desenvolver seus trabalhos em três etapas (COMPARATO, 1999). A primeira destas atividades a serem desenvolvidas seria a criação de uma Declaração de Direitos Humanos, conforme o acordo com o disposto no artigo 55 da Carta das Nações Unidas. Logo após dever-se-ia produzir um “[...] documento juridicamente mais vinculante do que uma mera declaração” (COMPARATO, 1999, p. 208), devendo ser este documento um tratado ou convenção internacional. E por fim, segundo Comparato (1999), seria necessário criar uma maneira adequada para assegurar o respeito aos Direitos Humanos e tratar os casos de sua violação. A primeira etapa foi concluída pela Comissão de Direitos Humanos em 18 de junho de 1948, com um projeto de Declaração Universal de Direitos Humanos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro do mesmo ano. A segunda etapa somente se completou em 1996, com a aprovação de dois Pactos, um sobre direitos civis e políticos, e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais (COMPARATO, 1999, p. 208). Coelho (2003) aponta que não há como negar o fato de que a partir das atrocidades cometidas durante o período da Segunda Guerra consagrou-se a idéia de que era necessário [...] que se agisse politicamente para a preservação e respeito a alguns valores essenciais a sobrevivênciada raça humana como tal. Tal guerra gerou insegurança quanto aos rumos da humanidade, impondo o questionamento sobre o que o homem estava a fazer consigo mesmo, sobre para que estavam servindo os Estados (COELHO, 2003, p. 66). A Declaração Universal dos Direitos Humanos surgiu então neste contexto, centrando-se na universalidade e individualidade, a qual passou então a conduzir os “[...] Estados contemporâneos a um papel de garantidor das condições humanas de existência no mundo” (COELHO, 2003, p. 66). Isto pode ser percebido na leitura de seu preâmbulo (anexo), que foi redigida como acima mencionado sob o impacto das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. Inegavelmente, a Declaração Universal de 1948, com seus 30 artigos, representa a culminância de um processo ético que iniciou com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa. Todavia muitas são as críticas feitas aos redatores da Declaração dos Direitos do Homem: “[...] a maioria delas se refere ao 18 fato da inexistência de uma base teórica homogênea ao seu conteúdo” (LEAL, 1997, p. 87). 1.2 DIREITOS HUMANOS E CONTEMPORANEIDADE Segundo Alves (2006), embora freqüentemente violados, são, hoje em dia, amplamente conhecidos os direitos estabelecidos na Declaração: [...] à vida, à liberdade, à segurança pessoal; de não ser torturado nem escravizado; de não ser detido ou exilado arbitrariamente; à igualdade jurídica e à proteção contra a discriminação; a julgamento justo; às liberdades de pensamento, expressão, religião, locomoção e reunião; à participação na política e na vida cultural da comunidade; à educação, ao trabalho e ao repouso; a um nível adequado de vida, e a uma série de outras necessidades naturais, sentidas por todos e intuídas como direitos próprios por qualquer cidadão consciente (ALVES, 2006). Exatamente ao proclamar os Direitos Humanos para todas as pessoas, estabelecendo-os como uma meta a ser atingida por todos os povos e todas as nações, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, afirma Arzabe e Graciano (2006), se manifesta por um lado como uma construção que vem abrir o espaço para o tratamento universalizante das questões relacionadas aos Direitos Humanos e às suas violações, e por outro, abre caminho para uma vasta área de discussão sobre a real possibilidade de execução de seus artigos (COELHO, 2003). Após seus 58 anos de existência, diversas são as promessas não cumpridas, nos mais diversos âmbitos. O clamor pelos Direitos Humanos se faz ainda ouvir em “sociedades que atingiram elevados níveis de desenvolvimento econômico e social” (OLIVEIRA, 2003, p. 07). Em países como o Brasil, Oliveira (2003) afirma que este clamor é ainda mais contundente, pois a violência em diversas maneiras – “[...] fome, insuficiência de serviços públicos de saúde, educação e segurança, entre outras carências”(OLIVEIRA, 2003, p. 07) – demonstra que o homem não foi alçado a elemento central da sociedade ou ao fim a que se objetiva o desenvolvimento econômico. [...] tudo o que se investe no social, no ser humano, parece ser um gasto não rentável, um disparate que se deve evitar e, com este pensamento neoliberal, estão sendo desmontadas e desintegradas políticas, instituições e programas sociais (MÁSPERO, 1994 apud OLIVEIRA, 2003, p. 07). 19 Coimbra (2000) citando Deleuze (1992) afirma que os Direitos Humanos – desde suas gêneses – têm servido para levar aos subalternizados a ilusão de participação [...] de que as elites preocupam-se com o seu bem estar, de que o humanismo dentro do capitalismo é uma realidade e, com isso, confirma-se o artigo primeiro da Declaração de 1948: “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Entretanto, sempre estiveram fora desses direitos à vida e à dignidade os segmentos pauperizados e percebidos como “marginais”: os “deficientes” de todos os tipos, os “desviantes”, os miseráveis, dentre muitos outros. A estes, efetivamente, os direitos humanos sempre foram – e continuam sendo – negados, pois tais parcelas têm sido produzidas para serem vistas como “sub-humanas”, como não pertencentes ao gênero humano. Não há dúvida, portanto, que esses direitos – proclamados pelas diferentes revoluções burguesas, contidos nas mais variadas declarações - têm tido um claro conteúdo de classe. Os excluídos de toda ordem nunca fizeram parte desse grupo privilegiado que teve, por todo o século XIX e XX, seus direitos respeitados e garantidos. Ou seja, foram e continuam sendo defendidos certos tipos de direitos, dentro de certos modelos, que terão que estar e caber dentro de certos territórios bem marcados e delimitados e dentro de certos parâmetros que não poderão ser ultrapassados (DELEUZE, 1992 apud COIMBRA, 2000, p. 141-142). Todavia, existem fatores que devem também nos alertar no sentido positivo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Leal (1997) afirma que os Direitos Humanos hoje apresentam-se [...] como uma questão filosófica e política. Isto quer dizer que as condições de possibilidade destes direitos estão diretamente ligadas à forma com que as sociedades contemporâneas os encaminham, delimitam e protegem, frente às instituições jurídicas e políticas existentes (LEAL, 1997, p. 68). Neste sentido também é necessário pensar os Direitos Humanos resgatando uma discussão sobre os pressupostos basilares, as “[...] formas de governo e as regras que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos” (LEAL, 1997, p. 68). Sendo assim pode-se concluir [...] paradoxalmente, que os direitos humanos são pervertidos no exato momento em que se tornam objeto de tratamento jurídico, pois, concebidos historicamente como um mecanismo de proteção dos cidadãos livres contra o arbítrio dos governantes absolutistas e contra os abusos do Estado, sob a forma de censura e tortura, eles são esvaziados na medida em que é o próprio Estado que os regulamenta. Talvez a regra clássica dos freios e contrapesos de Montesquieu, tomada por uma cidadania emergente, seja uma das formas de se fazer com que as garantias asseguradas a esses direitos sejam eficazes na sua totalidade (LEAL, 1997, p. 154-155). Dessa forma, ainda segundo o autor 20 [...] encontra-se aqui o grande dilema dos direitos humanos em sociedades altamente diferenciadas e com um tecido social desintegrado, como é o caso do Brasil, fazendo com que se questione de que maneira é possível deixar o campo do formalismo político e jurídico, cuja vagueza e ambigüidade desempenham o papel pragmático de viabilizar a comunicação entre indivíduos, grupos e classes antagônicas, e passar para uma ação efetiva, em que as leis sobre tais direitos, ao mesmo tempo em que reconheçam as prerrogativas civis e políticas individuais, também atendam as demandas de massas marginalizadas, aplacando injustiças e oportunidades a construção de um espaço de reforma das estruturas socioeconômicas vigentes (LEAL, 1997, p. 155). Assim, no Brasil, os Centros de Direitos Humanos são instâncias que defendem o cumprimento dos Direitos Humanos. Estes centros se congregam no Movimento Nacional de Direitos Humanos, que é definido em sua página eletrônica como uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, democrático, ecumênico, supra-partidário, presente em todo o país, contando com mais de 400 entidades filiadas. Fundado em 1982, o Movimento Nacional dos Direitos Humanos constitui-se hoje na principal articulação nacional de luta e promoção dos direitos humanos. 1.3 PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS Segundo Coimbra (2000), o que fica evidente em se tratando dos movimentos relacionados aos Direitos Humanos é que as diferentes práticas sociais, em diferentes momentos da história, [...] vão produzindo diferentes ‘rostos’,diferentes ‘fisionomias’; portanto, diferentes objetos, diferentes entendimentos do que são os direitos humanos. Estes, produzidos de diversas formas, não têm uma evolução ou uma origem primeira, mas emergem em certos momentos, de certas maneiras bem peculiares. Devem ser, assim, entendidos não como um objeto natural e a-histórico, mas forjados pelas mais variadas práticas e movimentos sociais (COIMBRA, 2000, p. 142). Dessa forma, deve-se entender o homem como um ser histórico, um ser constituído no seu movimento ao longo do tempo, pelas relações sociais e culturais engendradas pela humanidade (BOCK, 2002). Nesse mesmo sentido, Coimbra (2000) afirma que no lugar de pensar os Direitos Humanos enquanto 21 [...] essência imutável e universal do homem poderíamos, através de outras construções, garantir e afirmá-los enquanto diferentes modos de sensibilidade, diferentes modos de viver, existir, pensar, perceber, sentir; enfim, diferentes modos e jeitos de ser e estar neste mundo (COIMBRA, 2000, p. 142). Entretanto, estas maneiras de ver a vida ainda são em sua grande maioria entendidas como estando fora desses Direitos Humanos, “[...] pois não estão presentes nos modelos condizentes com a essência do que tem sido produzido como humano” (COIMBRA, 2000, p. 142). Então surge a afirmação de que a luta pelos Direitos Humanos é uma espécie de conservadorismo, de inquietação, que percebemos, toma corpo atualmente entre muitos críticos do capitalismo. Reafirmamos que, se não entendemos esses direitos como um objeto natural, obedecendo a determinados modelos que lhes seriam inerentes, podemos produzir outros direitos humanos: não mais imutáveis, universais, absolutos, eternos, contínuos e evolutivos. Teríamos ao contrário, a afirmação de direitos locais, descontínuos, fragmentários, processuais, em constante movimento e devir, provisórios e múltiplos como as forças que se encontram no mundo (COIMBRA, 2000, p. 146). Deve-se, dessa forma, entender que só através da força dos movimentos sociais organizados é que este quadro poderá mudar. “É no nível das práticas cotidianas, micropolíticas, que podem estar as respostas para tais impasses” (COIMBRA, 2000, p. 146). A reinvenção de novas maneiras de ser, de estar, de sentir e de viver neste mundo, isto é, o processo de subjetivação é o que poderá fortalecer e expandir as práticas, e os movimentos que visam o contra-ataque das políticas tradicionais, e dessa forma afirmar os Direitos Humanos como direitos de todos, em especial dos miseráveis de hoje (COIMBRA, 2000, p. 146). Partindo dos pressupostos apontados até aqui, de que forma a Psicologia poderia contribuir no que tange os Direitos Humanos? Para Coimbra (2000) é necessário entendermos a Psicologia, assim como a Política, não em cima desses modelos hegemônicos, [...] mas como produções históricas, como territórios não separados, mas que se complementam e se atravessam constantemente, poderemos encarar nossas práticas não como neutras, mas como implicadas no e com o mundo (COIMBRA, 2000, p. 147). Portanto, esta implicação aponta para o lugar que o profissional ocupa nas relações sociais em geral e não apenas no âmbito da intervenção que está 22 realizando, “[...] os diferentes lugares que ocupa no cotidiano e em outros locais de sua vida profissional; em suma, os lugares que ocupa na História” (COIMBRA, 2000, p. 147). Estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas próprias implicações) é, ao fim de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos, acontecimentos, grupos, idéias, etc, Com (sic) o saber científico anulo o saber das mulheres, das crianças, dos loucos – o saber social, cada vez mais reprimido como culpado e inferior (LOURAU, 1997, apud COIMBRA, 2000, p. 147). Ainda, segundo Lourau (1977) citado por Coimbra (2000), é necessário que se encontrem formas de analisar nossas implicações para que, em quaisquer situações possíveis, possamos nos situar nas relações de classe, nas redes de poder, em vez de nos fixarmos, e permanecermos numa posição chamada de científica, objetiva e neutra. Assim, se entendemos os objetos, saberes e sujeitos como produções históricas, advindos das práticas sociais; se aceitamos que os especialismos técnico-científicos que emergem como a divisão social do trabalho no mundo capitalístico têm como função a produção de verdades e a desqualificação de muitos outros saberes que se encontram neste mundo; se entendemos como importante em nossas práticas cotidianas a análise de nossas implicações, assinalando o que nos atravessa, nos constitui e nos produz, e o que constituímos e produzimos com essas mesmas práticas, negaremos as dicotomias. Articularemos Psicologia, Política e Direitos Humanos e entenderemos uma série de outras questões: que nossas práticas produzem efeitos poderosíssimos no mundo, sendo portanto, políticas. Assumir tais desafios é estabelecer rupturas com o pensamento hegemônico no Ocidente, é romper com as “verdades” que estão no mundo e vê-las como temporárias, mutantes, provisórias (COIMBRA, 2000, p. 147). O II Seminário Nacional de Psicologia e Políticas Públicas, em maio de 2003, na cidade de João Pessoa, tratou do protagonismo da Psicologia enquanto promotora de saúde nas questões sociais que se mostram tão urgentemente necessárias de intervenção. A conferência Protagonismo Social da Psicologia na Defesa dos Direitos Humanos apontou que direitos humanos é uma questão de militância, de política, que o psicólogo deve ser defensor dos direitos humanos como cidadão, engajado na defesa dos direitos da vida, nas suas práticas cotidianas. Destaca-se ainda que o Conselho Federal de Psicologia e os Regionais possuem comitês de Direitos Humanos, que conduzem importantes debates e avanços da Psicologia brasileira nesta área. Há a necessidade de discussão crítica e reflexiva desde a academia e no exercício profissional, pois os psicólogos têm, muitas vezes, 23 a idéia de senso comum de direitos humanos, tornando-os algo a parte da prática profissional. 24 2 MEDIAÇÃO Após a discussão sobre os Direitos Humanos e as implicações da Psicologia no que tange ao respeito às pessoas, partimos para tentar entender um pouco mais as possibilidades que se colocam à nossa ciência de contribuição à superação dos quadros contraditórios acerca dessa questão que mostra-se tão cara aos saberes que produzimos. Para tanto, buscamos discutir um termo conhecido e amplamente difundido na Psicologia: mediação. Primeiramente afirma-se que a profusão deste conceito não pode ser entendida como o estabelecimento de um campo consensual em torno de uma única forma de ver e conceber o homem e o mundo, isto é, o uso da palavra mediação pode estar associado a diversas concepções epistemológicas, até mesmo antagônicas, e, portanto, dependendo do seu emprego, os saberes e fazeres psicológicos variarão. Esta diversidade na utilização do termo, entende-se, é representante da característica própria da Psicologia de ser um campo científico que se embasa em diversas linhas teóricas, que resultam em diferentes metodologias de intervenção sobre a realidade. Sendo assim, de início, deve-se levar em conta que qualquer trabalho proposto em um modelo de mediação deve partir de uma análise pormenorizada das implicações do uso de tal terminologia. Dessa forma, nossa intenção neste capítulo, é fazer uma breve leitura acerca das utilizações da palavra mediação como representante de determinadas formas de intervenção da Psicologia, para, mesmo cientes do perigo de deixarmos de lado aspectos importantes das teorias e dos trabalhos que subjazem essas intervenções, abordarmosa nossa prática de estágio no CDH sob o olhar de uma forma específica de entender a mediação. 2.1 PSICOLOGIA JURÍDICA E MEDIAÇÃO Iniciamos nossas análises abordando o conceito encontrado no dicionário desta palavra, que é: 25 [...] ato ou efeito de mediar [...] intervenção, intercessão, intermédio [...] relação que se estabelece entre duas coisas, ou pessoas, ou conceitos, etc. [...] intervenção com que se busca produzir um acordo [...] processo pacífico de acerto de conflitos internacionais, no qual (ao contrário do que se dá na arbitragem) a solução é sugerida e não imposta às partes interessadas (FERREIRA, 2004, p. 1299). Quanto ao verbo mediar, aponta-se que é o ato de “intervir como árbitro ou mediador (...) ficar no meio de dois pontos; distar” (FERREIRA, 2004, p. 1299). Partindo desse entendimento, buscamos entender as formas como a mediação vem sendo representada nas práticas da Psicologia. Primeiramente, chama a atenção o emprego que se faz desta palavra no dicionário em termos das ciências do Direito. De fato, uma das áreas da Psicologia que se apropria deste conceito é a Psicologia Jurídica (que será aprofundada em outra seção), salientando o papel do psicólogo como uma pessoa apta a mediar conflitos pela natureza de sua formação. França (2004) citando Popolo (1996) afirma que a Psicologia Jurídica é uma área específica de nossa ciência e, portanto, deve produzir e se embasar em conhecimentos de uma perspectiva de homem e mundo específica. Porém, “[...] pode-se valer de todo o conhecimento produzido pela ciência psicológica” (FRANÇA, 2004, p. 74). Esta autora (2004) ainda destaca que Popolo (1996) aponta duas principais características da Psicologia em trabalho junto com o Direito. A primeira [...] segue o modelo de subordinação. Assim, a Psicologia jurídica procura tão-somente atender a demanda jurídica como uma Psicologia aplicada cujo objetivo é contribuir para o melhor exercício do Direito (POPOLO, 1996, p. 15 apud FRANÇA, 2004, p. 77). A segunda característica diz respeito à complementaridade. a Psicologia jurídica como ciência autônoma produz conhecimento que se relaciona com o conhecimento produzido pelo Direito, incorrendo numa interseção. Portanto há um diálogo, uma interação, bem como haverá diálogo com outros saberes como da Sociologia, Criminologia, entre outros (FRANÇA, 2004, p. 77). Dessa forma, a Psicologia Jurídica utiliza-se do conceito já citado de mediação para designar uma forma nova de trabalho da justiça na qual as partes devem assumir a responsabilidade por encontrar a dissolução de seu conflito, tendo 26 como facilitador desse processo o mediador, a quem atribui-se o papel de terceiro imparcial (FRANÇA, 2004). Segundo Sales (2006) em texto publicado no Dicionário de Direitos Humanos (on-line), a mediação representa uma forma consensual de resolução de controvérsias, na qual as partes, por meio de diálogo franco e pacífico, têm a possibilidade, elas próprias, de solucionarem seu conflito, contando com a figura do mediador, terceiro imparcial que facilitará a conversação entre elas (SALES, 2006). Esta autora (2003) ainda aponta que, o mediador não interfere, não impõe e não intercede em favor das partes, mas apenas facilita o processo de mediação, estimulando-as a descobrir a melhor opção para a resolução do conflito e, as encontra-la, encerra a mediação por meio de acordo em que as partes devem sair satisfeitas (SALES, 2003, p. 226). Portanto, temos aqui destacada uma forma de entender a mediação que diz respeito a um novo aparato teórico e técnico de intervenção da Psicologia. Contudo, a história nos revela que as soluções de conflitos entre grupos humanos se efetivaram, de forma constante e variável, através da mediação. Culturas judaicas, cristãs, islâmicas, hinduístas, budistas, confucionistas e indígenas, têm longa e efetiva tradição em seu uso. Trata-se de uma prática antiga, embora seja comum ser representada como um novo paradigma, uma nova metodologia de resolução de conflitos (SCHNITMAN, 1999 apud MENDONÇA, 2005, p. 21). Nesse sentido, não somente porque a Psicologia é considerada uma ciência nova que se entende a mediação como uma nova área de atuação no campo psicológico, mas porque segundo Mendonça (2005), apenas no fim século XX (especialmente os últimos 25 anos) que esta prática obteve reconhecimento institucional como uma abordagem profissional. No Brasil, essa forma de trabalho do sistema jurídico é ainda fonte de estudos por parte do poder legislativo, que observa o projeto de Lei nº. 4.827/98, visando institucionalizar a disciplina de mediação para prevenção e solução de conflitos. O modelo que se apresenta nesse projeto de Lei está embasado naquele adotado especialmente no Canadá e em países da Europa, entretanto, tal metodologia foi adequada para atender a realidade brasileira e em muitos estados a 27 mediação faz parte das possibilidades de solução de conflitos sugeridas à população. Esta abordagem visa especialmente desafogar o sistema judiciário na resolução pacífica de problemas nas áreas do Direito da família, vizinhança, posse, herança, comércio, consumo, ambiente, etc. (SALES, 2003). Assim, destaca-se o papel do psicólogo como mediador. Não há instituição sobre quem pode ou não exercer esse papel, porém algumas especificações devem ser observadas. Primeiramente, já existem cursos de capacitação para esta função, contudo, estes ainda carecem de regulamentação e metodologia obrigatória mínimas. Contudo, entende-se que alguns dos assuntos abordados nesses cursos se referem à conhecimentos já discutidos em uma graduação de Psicologia, tais como regras relacionadas à ética, “[...] técnicas de trabalho em grupo, técnicas de comunicação, técnicas de escuta, relações de poder entre as pessoas” (SALES, 2003, p. 240). Portanto, conforme já apontado, entende-se que pela natureza de sua formação, o psicólogo é um profissional apto à mediar conflitos. 2.2 PSICANÁLISE E MEDIAÇÃO Neste momento faz-se necessário abordar outras formas de se entender o conceito de mediação nas teorias “psi”. Atente-se ao caso da Psicanálise. Nessa abordagem, atribui-se à mediação o adjetivo de transformadora, conforme Carneiro (2006) citando Warat (1998). Desta forma, a mediação transformadora se apresenta [...] como um processo psíquico de reconstrução simbólica do conflito, o conflito é reconstruído simbolicamente pelos envolvidos e é essa reconstrução que possibilita o seu equacionamento e, também, a construção da autonomia daqueles que o reconstroem (CARNEIRO, 2006, p. 1). Assim, em termos gerais de metodologia, a Psicanálise trabalha com a mediação sob uma perspectiva muito próxima àquela adotada pela Psicologia Jurídica em abordagens mais tradicionais, porém, em termos de aparato teórico observa-se um aprofundamento no que concerne ao papel das partes conflituosas. É característica conhecida da Psicanálise privilegiar os discursos dos sujeitos como representação que está para além do manifesto. Nesse sentido, as pessoas em conflito têm abertura para suas falas, tendo como princípio o entendimento de que esses sujeitos são capazes de tomar as decisões. É a partir 28 desse espaço de escuta que as pessoas passam a escutar a si mesmas e aos outros (CARNEIRO, 2006 p. 2). A partir do momento em que o sujeito sente-se competente e chamado a falar e debater, ele fala, mas também escuta, escuta a si mesmo e se reconhece como sujeito de sua história; mas também escuta ao outro, pois esse outro estará falando para ele, para um sujeito, sujeito que antes, sem o reconhecimento do outro, não se sentia sujeito. A fala do outro envolvido na desavença é muito importante para o sujeito, uma vez que significa a fala direcionada a esse sujeito merecedor de fala e de atenção, para esse sujeito competente.Dessa forma, importante também é a escuta dela decorrente, pois o sujeito escuta a alguém que lhe fala, que lhe reconhece enquanto um sujeito dono de sua história (CARNEIRO, 2006, p. 2). Então, o papel que se atribui ao mediador nesse percurso de transformação do conflito pela via do discurso manifesto é o da pessoa que “[...] retira do conflito a pulsão destrutiva” (CARNEIRO, 2006, p. 2). Daí que se atribui, no sentido psicanalítico da mediação, ao mediador a função de facilitador do processo de escuta e re-significação do processo de descobrimento dos desejos dos envolvidos (seus próprios e da outra parte) para além dos aspectos legais a que geralmente são reduzidos os conflitos humanos no âmbito jurídico. Nesse processo, tem condições de construir a sua subjetividade ou a sua singularidade, já que se posiciona de forma original através da articulação com o outro sujeito, com o mediador e com toda a gama de agenciamentos coletivos implicados no conflito (CARNEIRO, 2006, p. 6). Em síntese, entendendo-se a mediação por esse prisma, propiciar-se-á às partes fugir da comum rotulação estéril que é uma das marcas do positivismo aplicado às ciências humanas e sociais. Então, os sujeitos, assim como a prática do Direito, escapam à positivação do fenômeno de interação social. Assim como no setting terapêutico o analista juntamente com o analisando realiza um trabalho de fala e escuta (fazer falar e fazer ouvir), o mediador sob essa perspectiva desencadeia um trabalho de repetição, recordação e elaboração na intenção de re- significação e reconstrução (CARNEIRO, 2006). 2.3 PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E MEDIAÇÃO Uma outra forma de se entender mediação é aquela que encontramos na Psicologia histórico-cultural. Pautando suas premissas nas formulações marxistas e 29 transpondo o método dialético às análises da Psicologia, Vigotski, um dos precursores desta linha teórica, buscando entender a gênese dos processos psicológicos, atribui à mediação lugar central no desenvolvimento humano. Porém, a fim de entender plenamente quais as idéias e conclusões deste autor acerca deste conceito, faz-se necessário investigar um pouco mais seus estudos. Primeiramente, salienta-se que se utilizando de suporte na teoria marxista, a Psicologia Histórico-cultural entende o homem como um ser inerentemente social. Também, seguindo estes pressupostos, entende-se que aquilo que torna o homem um ser humano é o trabalho, a capacidade do homem de modificar a natureza e utilizá-la para seus fins. Este uso que faz da natureza, o homem faz por meio de instrumentos, ou seja, não apenas intervém no que está dado, mas o modifica e com isso que já existe, produz outras coisas e com uso destas, modifica a si mesmo – qualitativamente – dialeticamente. Figueira (1987), discutindo os textos de Marx afirma que o homem se constitui como tal através do trabalho: [...] o homem é produto do seu próprio trabalho. A grande revolução que Marx provocou consistiu em demonstrar que o homem é um ser que se faz - pelo trabalho - um ser humano. Faz-se humano, porém não segundo seus próprios desejos, mas a partir de dadas condições: um ser humano histórico. Tal como se faz - diz Marx - assim o homem é (FIGUEIRA, 1987, p. 03). Esta é a concepção da abordagem dialética que, para Vigotski (1994) relendo Engels: “[...] admitindo a influência da natureza sobre o homem afirma que o homem, por sua vez age sobre a natureza e cria, através das mudanças nela provocadas, novas condições naturais para sua existência” (p. 80). Assim, é com base nessa premissa epistemológica que se afirma o homem como um ser inerentemente social, pois é do contato com o outro que ele tira os meios de sobrevivência e também é a partir desse contato que ele aprende a ser humano. Desta forma, temos duas características singulares à humanidade: o trabalho e a interação social. Trasladando esse entendimento às investigações acerca do desenvolvimento infantil, Vigotski e seus companheiros fizeram diversas pesquisas em laboratórios de Psicologia. Ao confrontar seus resultados com aqueles obtidos por outros psicólogos contemporâneos seus, Vigotski passou a atribuir à fala o papel 30 de instrumento humano – um instrumento de linguagem que é, por sua vez, a principal ferramenta de sociabilidade do homem – aquilo que lhe possibilita a interação social. Segundo Vigotski (1994), na resolução de um problema, a criança que pode se utilizar da fala atem-se não somente ao caminho direto de resolução, mas também à outras coisas que circundam o referido problema e que podem ajudar instrumentalmente. As crianças com a ajuda da fala, criam maiores possibilidades [...]. Uma manifestação dessa maior flexibilidade é que a criança é capaz de ignorar a linha direta entre o agente e o objetivo. Ao invés disso, ela se envolve em vários atos preliminares, usando [...] métodos instrumentais ou mediados (indiretos) (VIGOTSKI, 1994, p. 35). Pautando-se nas observações deste autor, torna-se possível fazer as primeiras correspondências entre aquilo que a Psicologia Histórico-cultural traça como caminho no desenvolvimento psíquico (entendendo que este desenvolvimento é incessante) e as práticas, em termos de mediação, propiciadas por nosso estágio de Psicologia em um Centro de Direitos Humanos. Observa-se que, através da fala, a pessoa pode primeiramente planejar e depois executar uma ação. Este planejamento passa pela avaliação de interlocutores em quem se deposita confiança técnica e profissional. Sendo assim, ao falar, a pessoa coloca-se fora de si e torna-se sujeito e objeto de seu comportamento, porque nesse movimento lhe é possibilitado analisá-lo. Desta forma, quando as pessoas nos procuram no Centro de Direitos Humanos e lhes concedemos espaço de fala, elas passam a agir com menos impulsividade. Segundo Vigotski (1994): a criança que usa a fala divide sua atividade em duas partes consecutivas. Através da fala, ela planeja como solucionar o problema e então executa a atividade visível. A manipulação direta é substituída por um processo psicológico complexo através do qual a motivação interior e as intenções, postergadas no tempo, estimulam o seu próprio desenvolvimento e realização (p. 35). E continua observando que, quando as crianças percebem que não são capazes de resolver um problema por si mesmas “[...] dirigem-se a então a um adulto e, verbalmente descrevem o método que, sozinhas, não foram capazes de colocar em ação” (VIGOTSKI, 1994, p. 37). 31 Então, o que fazemos é proporcionar às pessoas que estão sem norte, como as crianças frente a algum desafio aparentemente insuperável, espaço para a fala que é por si só a primeira forma de mediação. Nesse sentido, a primeira atividade direta de mediação diz respeito à passagem de uma “fala egocêntrica” à fala social, isto é, da busca por resolução de conflitos sem espaço para uma discussão a um movimento que considere alternativas que podem ser descobertas no contato com o outro. Esta fala social, portanto, pressupõe que em um primeiro momento, a linguagem que já se dá de forma mediada, é passiva, porém em seu segundo estágio torna a passividade em atividade de busca pelo outro (VIGOTSKI, 1994). Em síntese, o que se entende na Psicologia Histórico-cultural por linguagem (onde se inclui não somente a fala) é que esta somada a significação dos objetos e artefatos culturais – por meio da mediação cultural, é que compõe a primeira forma de mediação e “a seguir, toda aprendizagem será mediada pela linguagem” (VIGOTSKI, 1994, p. 43) – dialeticamente. Aqui novamente cabe citar a prática de nosso estágio. O sujeito que procura ajuda do CDH o faz primeiramente de forma mediada por si mesmo, sendo que é por meio da linguagem (os significados sociais atribuídos ao trabalho desenvolvido no CDH mais o ato de se comunicar conosco)que busca a resolução para seu problema. Ele já planejou o caminho para o desfecho de sua situação, mesmo que não verbalize. A ação de estabelecer o contato com nosso estágio é expressão de que há um planejamento e que sozinha a pessoa não consegue colocá-lo em prática. Com efeito, a fala torna-se a via de acesso ao entendimento mais amplo das questões que circundam uma situação social, e sendo assim, em conjunto com a ação que visa sanar o conflito (inerente ao sujeito humano a quem se aplica o princípio da dialética) torna-se a forma caracteristicamente humana de comportamento social. É importante destacar que o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem as formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento convergem (VIGOTSKI, 1994, p. 33). Aqui, percebe-se uma ligação entre os conceitos de mediação tratados anteriormente, tanto no campo da Psicologia Jurídica, quanto no campo da Psicanálise, com a forma de entendimento que se tem deste termo na Psicologia 32 Histórico-cultural. Há diferenças que não podem ser ignoradas, porém é possível traçar um paralelo que nos leve ao encontro das práticas desenvolvidas em nosso estágio. Atentando para o fato de que nas duas primeiras seções desse capítulo a mediação é tida como conceito que representa uma determinada técnica ou conjunto de técnicas institucionalizadas que são empregadas na resolução de conflitos sociais, mas quase que exclusivamente no âmbito jurídico. Faz-se necessário recortar aos objetivos de nossa análise, as teorizações que mais se aproximam do entendimento histórico-cultural de mediação, que é aquele que observamos, se aplica às nossas práticas de estágio. Essa aproximação é possível uma vez que este estágio é uma proposta de assistência conjunta de Psicologia e de Direito a pessoas de baixa renda que necessitem de apoio em situação de vulnerabilidade. Tomando como base as palavras de Vigotski (1994) acima discutidas, entende-se que o mediador está para além de uma pessoa que atuará como um terceiro neutro na resolução de um conflito. A neutralidade, caso caiba nesse momento uma crítica, é inclusive, em termos da Psicologia Histórico-cultural, algo inexistente, uma convenção impossível de se alcançar e incompatível com o entendimento de que o homem se constitui histórica e socialmente, pois, a neutralidade ignora a presença da história individual no contexto da atividade social. Assim, o mediador pode ser mais do que uma pessoa, pode ser a fala, os significados, o próprio problema. A mediação não tem fim, somos mediados constantemente pelo contato social; aprendemos constantemente e o simples fato de se colocar disponível à busca do outro torna ao estagiário do CDH um mediador. Então, na tentativa de entender os trabalhos desenvolvidos em nosso estágio e seus objetivos à luz das discussões sobre mediação, afirmamos que buscamos mediar práticas frente às questões sociais que se colocam ao serviço de atendimento psicológico disponibilizado por este projeto de assistência jurídica e psicológica do CDH – a ser discorrido adiante – com vistas à emancipação dos atores sociais que apresentam as demandas de vulnerabilidade social, buscando assim novas alternativas para as complexas questões da sociedade contemporânea, pois, entende-se que essas questões centrais de nossa prática em Psicologia no CDH dizem respeito a toda uma concepção de Psicologia compromissada com a sociedade brasileira. Trata-se de um entendimento da Psicologia como sendo essencialmente social, pois, concordando com Lane (1984): 33 esta afirmação não significa reduzir as áreas específicas da Psicologia à Psicologia Social, mas sim cada uma assumir dentro da sua especificidade a natureza histórico-social do ser humano. Desde o desenvolvimento infantil até as patologias e as técnicas de intervenção, características do psicólogo, devem ser analisadas criticamente à luz desta concepção do ser humano – é a clareza de que não se pode conhecer qualquer comportamento humano isolando-o ou fragmentando-o, como se este existisse em si e por si (1984, p. 19). 34 3 O CONTEXTO BRASILEIRO Propormo-nos a mediar práticas frente às questões sociais que se colocam ao serviço de atendimento psicológico disponibilizado pelo Projeto de Assistência Jurídica e Psicológica (PAS-JP), do Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Bráz, em Joinville (CDH), com vistas à emancipação dos atores sociais que apresentam as demandas de vulnerabilidade social, buscando assim novas alternativas para as complexas questões da sociedade contemporânea, implica em algumas reflexões acerca do contexto que o demanda: a realidade brasileira. Ainda que se reconheça os perigos de uma condensação demasiada de todos os aspectos desta realidade, especialmente quando propomo-nos a um resgate histórico, pois elementos importantes poderão ser deixados à margem, faz- se, à guisa de contextualização, uma síntese muito breve da história deste país, que permita uma visão panorâmica do processo, reconhecendo-se que isto não irá esgotar o assunto. No entanto, mesmo localizando essas limitações, a opção em realizar tal contextualização advém da procura de tentar compreender um pouco quais são os fatores que pesaram na construção de certos cenários contemporâneos encontrados em nossa prática de estágio no PAS-JP: a violência, a vulnerabilidade e a exclusão social. Sabemos que os vários determinantes históricos destas questões não ocorrem isoladamente de um determinado tempo ou contexto social. Segundo Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o Brasil ocupa o 69º lugar no ranking mundial (numa lista de 177 países e territórios) no quesito Índice de Desenvolvimento Humano. Este índice é, conforme a análise deste relatório, a síntese de quatro indicadores, que são: Produto Interno Bruto (PIB) per capita, expectativa de vida, taxa de alfabetização de pessoas com 15 anos ou mais de idade e taxa de matrícula bruta nos três níveis de ensino (PNUD, 2006). A título de ilustração, cita-se o modo de realização deste cálculo: em educação, faz-se a relação entre a população em idade escolar e o número de pessoas matriculadas no ensino fundamental, médio e superior. No caso da renda, o índice é avaliado a partir do Produto Interno Bruto per capita, ajustado pela paridade 35 do poder de compra (dólar PPC, taxa que elimina as diferenças de custo de vida entre os países). Finalmente, para verificar a longevidade, o PNUD utiliza a esperança de vida ao nascer (PNUD, 2006). Todavia, há que se ressaltar que o país, segundo este mesmo relatório, é campeão em má distribuição de renda: concentração de grandes fortunas com poucas pessoas e uma quantidade muito grande de pessoas vivendo em situação de pobreza, denotando “[...] as profundas situações de desigualdade que caracterizam os actuais padrões de globalização e apanhando os agregados familiares vulneráveis em ciclos de pobreza” (PNUD, 2006). Tomando o cuidado de não simplificar exageradamente, pode-se dizer que este índice é resultado, em parte, da longa história brasileira de exploração e concentração de renda, desde os tempos de Brasil-colônia. Enquanto ex-colônia portuguesa, quando o país conquistou sua independência (1822), suas bases socioeconômicas e políticas estavam calcadas nas grandes propriedades rurais de monocultura e exportadoras de produtos primários. Calcava-se ainda na utilização da força de trabalho escrava e na rígida organização social que mantinham separados brancos proprietários de terras, escravos, homens livres sem terras e indígenas (ADORNO, 1988,p. 28 apud ADORNO, 2002, p. 84). A organização política, por sua vez, consistia-se de um regime oligárquico, com pouca organização político-partidária e incipiente mobilização de grupos subalternos (DONNELL, 1988 apud ADORNO, 2002, p. 85). Após cerca de seis décadas de duração da estrutura acima descrita (até 1889), que consolidou elites políticas regionais, o cenário brasileiro gradativamente passou a apresentar mudanças: o eixo econômico, antes localizado na região Nordeste do país, a partir da produção e exportação de açúcar, paulatinamente transferiu-se para a região Sudeste, devido a grande produção de café que lá passou-se a desenvolver, utilizando-se mão-de-obra imigrante da Europa, para este fim contratada (regime de colonato) e finalmente, em 1889, deu-se a Proclamação da República (MARTINS, 1971 apud ADORNO, 2002, p. 85). A partir de então, a sociedade brasileira paulatinamente abandonou seu perfil agrário-exportador e passou a ingressar na era industrial, com maior dependência econômica em relação ao mercado externo e comércio internacionalizado. A partir daí, o que se observa é o contínuo caminhar da organização social em direção ao abandono das relações hierárquicas estamentais 36 pela organização da vida social em classes (constituição do proletariado urbano). Este período passou a observar um aprofundamento nas situações de desigualdades regionais e a concentração de riquezas nas mãos dos cafeicultores, grandes proprietários rurais e a classe que se formava: os empresários industriais. Começa a surgir revoltas no campo e greves nas cidades (ADORNO, 2002). Em meados do século XX, grandes complexos industriais começaram a desenvolver-se na região Sudeste, estimulados pela substituição das exportações, pela política de subsídios estatais, regulação das atividades econômicas e o grande protecionismo da indústria nacional. Tal fato incentivou veementemente a consolidação do capitalismo no país, o grande crescimento econômico de então (década de 1970), a modernização da infra-estrutura tecnológica e da infra-estrutura urbana (SANTOS, 1993 apud ADORNO, 2002). Todavia, já em 1980, uma substancial crise socioeconômica se colocou, com elevadíssimas taxas de inflação e baixo crescimento. Os governos perceberam que a política de substituição das exportações não mais cabia, buscando saída na abertura econômica, iniciando um grande programa de privatizações, integrando a economia do país ao mercado globalizado (ADORNO, 2002). O autor (2002) continua, neste resgate histórico, nos ensinando as conseqüências funestas do tipo de desenvolvimento acontecido no país. As tendências que apresenta incluem: o crescimento da delinqüência urbana; a emergência da criminalidade organizada (especialmente voltada ao tráfico internacional de drogas); violações graves aos direitos humanos; e finalmente, a explosão de conflitos nas relações intersubjetivas. Todas estas conseqüências estão permeadas pela violência, tema cuja discussão vem aumentando consideravelmente, especialmente nas últimas três décadas. Os primeiros debates voltavam-se especialmente para a violência institucional (na forma do arbítrio do Estado), pois desde o início da República, há exemplos de trabalhadores das cidades, pauperizados, sendo vistos como pertencentes às classes perigosas e consequentemente, passíveis de detenções ilegais, submetimento à tortura e maus tratos em delegacias. Há que se pontuar que, quando lançou-se, finalmente, os primeiros olhares preocupados para este tipo de contenção da criminalidade, havia uma crença de que a criminalidade tinha raízes estruturais, isto é, atribuía-se a delinqüência ao capitalismo, às estruturas de exploração e dominação e à exclusão, estabelecendo-se portanto, uma “associação mecânica, por assim dizer, entre 37 pobreza e violência” (ADORNO, 2002). Imediatamente, as elites conservadoras contestaram este argumento, explicando que a violência estava ligada à falência das políticas retributivas (isto é, na repressão dos crimes e na aplicação rigorosa da lei), ao invés de estar ligada à falência das políticas distributivas. Este embate de posicionamentos proporcionou, na seqüência, novos olhares para a questão, favorecendo a percepção de que a associação mecânica acima citada (violência e pobreza) trazia mais problemas do que soluções, visto que, ainda que a maioria dos delinqüentes fosse originária das classes trabalhadoras empobrecidas, a maioria destes não direcionava-se para a criminalidade. Logo, concluiu-se que o foco no problema não estava na pobreza, mas na criminalização das pessoas pobres (ADORNO, 2002). Patto (1999) complementa: As diferenças de qualidade de vida entre as classes sempre foram justificadas através de explicações geradas pelos que, em cada ordem social, são considerados competentes para elaborar uma interpretação legítima do mundo e a interpretação tida como verdadeira é a que dissimula e oculta, com maior sutileza, que as divisões sociais são divisões de classes, o que equivale a afirmar sua condição ideológica, aqui entendida como “um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta)... cuja função é dar aos membros de uma sociedade divida em classes uma explicação racional para as diferenças sócias, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes” (Chauí, 1981ª, p. 113-114) (PATTO, 1999, p. 75) Salientando-se que o princípio básico que norteia o Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Braz, contexto da realização deste estágio, é a luta pela vida, contra todas as formas de violência, faz-se necessário aqui lançarmos um olhar mais apurado a esta questão: a violência, conforme o subtítulo que segue. 3.1 VIOLÊNCIA Para abordarmos a questão da violência, apresenta-se aqui alguns conceitos postulados pela socióloga alemã Hannah Arendt, que tratou sobre o assunto em seu livro Sobre a Violência (1994). Nesta obra, Arendt diferencia poder de violência, elucidando cinco conceitos, deixando claro, deste modo, o que é o poder e o que não pode ser poder. São elas: poder, vigor, força, violência e autoridade. A autora faz esta distinção entre os cinco conceitos já que, em seu entendimento, distinguir 38 apenas poder de violência, seria insuficiente, já que não abarcaria outras dimensões da realidade, também importantes (PERISSINOTTO, 2004). Segundo a autora, poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo se conserva unido (ARENDT, 1994, p. 36). Já o vigor, para esta autora (1994), é entendido como uma entidade individual, sendo inerente a um objeto ou alguma pessoa, pertencendo ao seu caráter. Pode se provar a si mesmo na relação com as outras pessoas ou objetos, entretanto, sendo diverso destas. Em relação à força, a autora (1994) entende que está ligado ao termo ‘violência’, mas mais utilizado na fala cotidiana. Contudo, ela compreende que este termo “[...] deveria ser reservado, na linguagem terminológica, às ‘forças da natureza’ ou ‘à força das circunstâncias’ isto é, deveria indicar a energia liberada por movimentos físicos ou sociais” (ARENDT, 1994, p. 37). Quanto à autoridade, Arendt (1994) postula que é colocada em pessoas e “sua insígnia é o reconhecimento inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 1994, p. 37). Finalmente, o último conceito e sobre o qual mais nos debruçaremos neste estudo, a violência, é entendido por Arendt (1994) como tendo um caráter instrumental, [...] próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejados e usados
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