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Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 1 Escola de Frankfurt: A primeira teoria a pensar seriamente a comunicação de massas Professor Wilson Roberto Vieira Ferreira Universidade Anhembi Morumbi m 1923 é fundado o Instituto para a Pesquisa Social, o ponto de partida para a escola de Frankfurt, surgida na Alemanha em 1925. Tal escola representada por Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm e Jürgen Habermas, sendo o ultimo, desligado de tal influência e seguindo caminho próprio. 1. Contexto Histórico odemos considerar a Escola de Frankfurt como a primeira teoria a pensar com seriedade sobre impacto e conseqüências da penetração dos meios de comunicação de massas na sociedade. Sua principal ferramenta para entender as interações entre comunicação e sociedade é a chamada Teoria Crítica: pensar criticamente os meios de comunicação a partir de uma análise filosófica e econômica do capitalismo moderno associando à psicanálise profunda da cultura. Ou seja, a Teoria Crítica vai aplicar o legado do marxismo e da psicanálise freudiana nos estudos do que eles vão denominar como Indústria Cultural. À primeira vista, parece estranha uma teoria da comunicação baseada em conceitos filosóficos, econômicos e psicanalíticos. Como perceberemos, a Teoria Crítica é complexa, pois os frankfurtianos vão criar a primeira teoria da comunicação a partir do zero. Como um fenômeno eminentemente novo, a comunicação ainda não dispunha de nenhuma abordagem cientificamente séria. Por isso, vão criar a Teoria Crítica a partir dessas áreas cientificamente consolidadas dentro das Ciências Sociais. Apesar de na época Hollywood já ser considerada uma indústria e o rádio já se se constituir numa mídia bem propagada a partir de grandes redes nos EUA, a comunicação ainda não era um fenômeno social a ser levado a sério. O cinema, por exemplo, ainda era considerado uma arte menor com forte preconceito e restrições pelo fato de seu público ser formado majoritariamente pelas classes sócio-economicamente inferiores. Nos EUA as salas de projeção eram chamadas pejorativamente de “nickelodeons”: um níquel dava direito a assistir sessões com até três filmes. O rádio ainda era puro entretenimento, ainda muito longe da descoberta da sua vocação jornalística e de serviços. Esta aparente ingenuidade é destruída com um episódio que vai marcar a história da comunicação no século XX: a transmissão radiofônica da obra “Guerra dos Mundos”, baseada no livro de ficção E P Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 2 científica de H.G.Wells de 1890. Em 30 de outubro de 1938, a rádio americana CBS, de Nova York, dentro do programa “Mercury Theater” dirigido por Orson Wells, transmite a adaptação radiofônica daquele livro em que é narrada a invasão da Terra pelos marcianos. O diretor e apresentador Orson Wells transforma o livro numa reportagem radiofônica ao vivo, como se um estranho objeto caísse em New Jersey (na verdade uma nave alienígena) e o repórter a CBS, no local, transmitisse a saída dos marcianos do estranho objeto e, em seguida, o desespero e a destruição. A transmissão levou ao pânico milhares de pessoas em toda a costa leste americana. Os efeitos de sonoplastia e a narração surrealista e ambígua foram tão convincentes que milhares de americanos correram desesperados procurando refúgio, muitos chorando e se despedindo de seus amigos. Este episódio comprovou o efeito mobilizador e de persuasão que a comunicação social tinha em mãos. E tal poder ficou mais uma vez comprovado com a mobilização e manipulação política conseguida pelo regime nazista com a propaganda política através do rádio e cinema. Como veremos mais adiante, o impacto da propaganda nazi-fascista foi muito importante dentro do diagnóstico da mídia contemporânea feito pela Teoria Crítica. Como uma escola formada por pensadores de origem intelectual marxista, a ascensão do Partido Nacional Socialista de Hitler ao poder, e ainda por vias democráticas, foi vista com perplexidade e desilusão. Foi como se um sonho tivesse acabado. Isso porque, desde o sucesso da Revolução comunista russa de 1917 (bem como a proclamação da república na Alemanha guilhermina em novembro de 1918 e a insurreição de Bremen de 1923) o ideal de uma Revolução social e política de esquerda na Europa passou a ser não mais uma utopia no horizonte político, mas uma realidade que se aproximava. Parecia que as previsão feita por Karl Marx no século XIX, de que inexoravelmente o capitalismo cavaria sua própria sepultura com a sucessão de crises econômicas provocadas pela própria ganância do capital, estava correta. Após a I Guerra Mundial, a Europa estava imersa no desemprego e na hiperinflação. Para se ter uma idéia, na Alemanha nos anos 20 o dólar chegou a valer 4,5 trilhões de marcos. Para comprar um simples alimento era preciso retirar uma quantidade enorme de dinheiro do banco. E ainda, em 1929, estoura o crash da Bolsa de Nova York que quase levou o capitalismo mundial para o ralo. A busca de lucros crescentes levou a uma espiral especulativa de papéis que nada tinham de valor, pois a economia real estava paralisada suma crise de superprodução sem precedentes. Parecia uma questão de tempo: as massas desesperadas apoiariam inevitavelmente os movimentos revolucionários de esquerda em toda a Europa. Porém, em 1933, a direita, concentrada no Partido Nacional Socialista, deu a vitória a Hitler em eleição direta, o que abriu caminho para a perseguição e destruição das organizações dos trabalhadores e seus partidos representativos. Surpreendentemente para os intelectuais de esquerda, toda a Europa dá uma guinada politicamente às ditaduras: Franco na Espanha, Salazar em Portugal, Mussolini na Itália, etc. Em meio à crise econômica, alemães esperam horas na fila por um prato de comida Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 3 Inexplicavelmente, os trabalhadores desesperados votaram ou apoiaram seus próprios algozes! Como explicar tal catástrofe política? Para os frankfurtianos duas questões novas estavam colocadas com o fim do otimismo político revolucionário: o fator da ideologia como dominação e controle social e o papel novo até então desempenhado pelos meios de comunicação, ou seja, o papel da propaganda política cientificamente organizada como fator decisivo como mobilizador das massas. A Teoria Crítica não concordava com um viés apenas político ou econômico como explicação para a ascensão do Totalitarismo em toda a Europa. Ela propunha uma nova abordagem sobre a natureza da ideologia que era massificada pela propaganda política. Esta nova abordagem podemos considerar de ordem metafísica: “Isso confirma, inclusive, que o domínio totalitário não se impõe à humanidade de fora por obra de uns tantos desesperados nem é uma grande desgraça acidental na auto-estrada do progresso; o que ocorre, outrossim, é que no âmago da nossa cultura amadurecem forças destrutivas”1 Este novo viés de análise vai fazer a escola aproximar-se dos estudos de Freud sobre a Psicanálise da Cultura, principalmente na sua obra “A Civilização e seu Descontentamento”: o nazi-fascismo explorou elementos sado-masoquistas presentes nas massas, elementos muito profundos no psiquismo humano. A história do progresso racional-científico, levado avante pela filosofia do Iluminismo2 no século XVIII e colocada em prática pela mercantilização geral do capitalismo, não só ignorou essas forças destrutivas como as reforçou através da criação de um mecanismo psíquicode indiferença ou, como Adorno definia, a “banalização do mal”. A este processo de reduzir o mundo e o próprio homem a coisa, a filosofia marxista chama de “reificação”: “Quanto a reificação, esta radicaliza, por assim dizer, o fenômeno do caráter fetichista das mercadorias. Na reificação se invertem as relações entre o homem e os produtos de seu trabalho. O universo da reificação impossibilita que o homem, que transforma a natureza e cria produtos, se reconheça em seus objetos, em suas criações. O homem ‘não se contempla a si mesmo no mundo que ele criou’: são as mercadorias que se contemplam a si mesmas num mundo que elas próprias criaram. Movimento segundo o princípio da indiferença: indiferença entre coisas e coisas, coisas e homens. Tudo tem um preço. A própria força de trabalho é vendida no mercado. O mecanismo de conversão do trabalho vivo em trabalho abstrato e quantificado cria um mundo regido pela indiferença, no qual tudo se equivale. Indiferença e totalitarismo são, aqui, sinônimos”3 Este elemento sádico da indiferença estava presente na mobilização do ódio aos estrangeiros pela propaganda nazista, o apoio ao genocídio nos campos de concentração, o estímulo à máquina de guerra, a busca incessante por “bodes expiatórios” para serem sacrificados e humilhados em praça pública. 1 HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W., Temas Básicos de Sociologia, São Paulo, Cultrix, 1978, p. 196. 2 3 MATOS, Olgária C. F., A Escola de Frankfurt – luzes e sombras do Iluminismo, São Paulo, Editora Moderna, 1993 p. 31. Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 4 Para a Escola de Frankfurt isso tudo não é apenas passado, algo que pudesse se resumir a um acidente histórico chamado nazi-fascismo. Esta mesma estratégia estaria presente até hoje na moderna indústria cultural, fazendo parte da sua própria essência. Pegue o exemplo dos “realities shows” que atualmente povoam as telinhas. Pelo ponto de vista frankfurtiano, programas como o Big Brother Brasil, da TV Globo, exploram elementos psíquicos profundos como o sadismo e o voyeurismo, ou seja, o prazer perverso de confortavelmente ver pessoas em situações embaraçosas e difíceis, torcer contra elas. Para a psicanálise, um prazer perverso, de origem sexual reprimida, de ter um poder ilimitado sobre o outro: “ele não sabe que é vigiado por mim, que posso tirá-lo do programa a qualquer momento com um simples telefonema ...” A única diferença em relação ao trágico passado nazista é que hoje tudo é mero entretenimento, sem conotação política imediata. Porém, estas forças destrutivas estariam sendo alimentadas para, a qualquer momento, num contexto político crítico, explodirem de forma assustadora e canalizadas para uma finalidade política. Por outro lado, tais programas ainda conteriam um traço masoquista: até que ponto estes “realities shows” não seriam um estímulo ao prazer de também ser visto, ou seja, a “banalização do mal” de ser constantemente vigiado num mundo cada vez mais dominado por monitoramento eletrônicos que prometem o fim da privacidade? Portanto, para a Escola de Frankfurt as explicações sobre o poder totalitário da propaganda política nazi-fascista não podiam ser reduzidas à mera questão da força persuasiva da comunicação de massa. A força ideológica estava enraizada numa questão mais profunda: o próprio desdobramento da história cultural do ocidente, o desenvolvimento do Iluminismo e a sua realização concreta na lógica do mercado no capitalismo. A essa história corresponde uma outra, subterrânea, que tem a ver com o impacto no psiquismo humano e a gestação de forças destrutivas, ao mesmo tempo reprimidas e, simultaneamente, reforçadas por diversos mecanismos sociais. Um deles, os meios de comunicação de massas. A outra novidade detectada, principalmente por Horkheimer, era a irresistível hegemonia dos meios de comunicação de massas como uma nova agência socializadora. Por agências socializadoras podemos entender como instituições sociais que têm a função de preparar os indivíduos ao convívio social, através das introjeção de valores morais, éticos, ideológicos, políticos e religiosos. São elas que fazem a mediação entre o indivíduo e a sociedade. Até a emergência dos meios de comunicação de massa (na época o rádio e o cinema), as principais agências socializadoras eram Família, Escola e Igreja. Respectivamente, as autoridades decisivas com prestígio para socializar os novos indivíduos eram o Pai, o Professor e o Padre. A grande novidade considerada pela Teoria Crítica é que os meios de comunicação de massa atropelaram estas tradicionais agências socializadoras e passaram a deter a hegemonia ideológica da introjeção de valores nas novas gerações. Isso significa que as outras autoridades passaram a ter o poder simbólico progressivamente esvaziado. Continuam a existir, porém, como uma referência abstrata: Pelo ponto de vista da Escola de Frankfurt “realities Shows” como o Big Brother Brasil exploram elementos psíquicos profundos como o sadismo e o voyeurismo Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 5 “De sua relação com o pai, a criança extrai apenas a idéia abstrata de um poder, mais poderoso que o pai real, o qual já não corresponde à velha imagem; em suma, uma espécie de superpai, tal como foi produzido pelas ideologias totalitárias. Também o pai é substituído por poderes coletivos, como o da classe escolar, o da equipe esportiva, do clube, finalmente do Estado. Os jovens manifestam tendência a se submeterem a qualquer autoridade, não importa o seu conteúdo, contanto que ela ofereça proteção, satisfação narcisista, vantagens materiais e a possibilidade de desafogar em outros o sadismo no qual encontram respaldo e desorientação inconsciente e o desespero (...)”4 Por qual motivo as tradicionais agências socializadoras se esvaziaram simbolicamente, passando a hegemonia da autoridade aos meios de comunicação de massas? Como vimos neste trecho acima, para Adorno e Horkheimer a outra chave de compreensão do fenômeno totalitário estava neste movimento de submissão de todas as instituições sociais aos meios de comunicação de massas. Para nós que já nascemos numa época dominada pela mídia, estes fatos parecem óbvios, mas para os componentes da Escola de Frankfurt, nascidos numa sociedade ainda em moldes tradicionais, tudo era visto com perplexidade e preocupação. Como veremos mais adiante, a Teoria Crítica empreenderá uma verdadeira sociologia da família para entender as conseqüências desta transposição do poder e prestígio às autoridades apresentadas pelos meios de comunicação. Para entender a fundo estas duas novas questões colocadas pelas transformações políticas ocorridas nos anos 20 e 30 na Europa (a questão do totalitarismo ideológico e a emergência dos meios de comunicação como instituições sociais hegemônicas), a Teoria Crítica vais se fundamentar em duas bases intelectuais: a teoria do Fetichismo da Mercadoria de Karl Marx e a Psicanálise da Cultura de Sigmund Freud. 2. Fundamentos da Teoria Crítica: A Teoria do Fetichismo da Mercadoria partir da análise marxista do funcionamento do capital e do mercado, a Teoria Crítica empreende uma análise profunda sobre o capitalismo moderno na fase da sociedade de consumo. Por isso, parte do elemento mais básico do funcionamento do capitalismo: a forma mercadoria, isto é, a instituição da mercadoria como equivalente geral diante da qual todos os produtos humanos têm que se espelhar. Se para nós a mercantilização geral da cultura sob o capitalismo é uma coisa banal, afinal faz parte da vida do dia-a-dia, para os frankfurtianosà época era um fato novo. Música, arte, ou seja, a mercantilização geral dos produtos do espírito humano era um fato novo, pois a forma mercadoria ainda se restringia apenas ao setor econômico. 4 ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M., Lezioni di Sociologia, In: CANEVACCI, Massimo, Dialética da Família, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 222. A Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 6 Na sua obra O Capital Marx percebeu que, apesar de o capitalismo ser uma forma de sociedade atéia e materialista, seus mecanismos mais profundos ainda têm um caráter religioso: o fetichismo. Por fetiche, entende-se um processo de inversão que se opera na consciência dos indivíduos. Nas sociedades arcaicas, o homem esculpia no tronco de árvore um totem e passava a adorá-lo. Nesta inversão, a criação passava a dominar o criador e assumir características humanas. Marx considerava que na sua essência, este mesmo fenômeno se repetia na economia de trocas mercantis do capitalismo. Embora produtos humanos, as mercadorias passam a adquirir vida própria, a ter preços fixados por uma dinâmica alheia a cada indivíduo, por exemplo. Grosso modo, fetichismo da mercadoria seria o fato de que as pessoas sob o capitalismo se conhecem e se relacionam através das mercadorias. Com exceção de nossos parentes, todas as outras pessoas com quem nos relacionamos são parte do processo de circulação das mercadorias. Podemos conhecer o fulano do açougue em frente, mas primeiramente o conhecemos como vendedor da mercadoria carne. Lembramos do cicrano da padaria da esquina antes de tudo como o vendedor de pão. Quanto a nossos amigos, conhecemos muitos deles porque vendiam ou vendem sua força de trabalho na mesma fábrica, banco, escola etc em que vendíamos ou vendemos a nossa força de trabalho. Desse modo, se o açougue fechar ou um colega for demitido, as chances de perdemos contatos com quem tínhamos relações de amizade são grandes. Por outro lado, se as mercadorias são as ligações entre nós, são elas que estabelecem relações entre si. Ela é que tem vida social, não nós. Ou seja, as pessoas se relacionam através das mercadorias e as mercadorias através das pessoas. É esta inversão que Marx chama de fetichismo, pois no fetichismo religioso as coisas ganham movimento próprio e dominam a vida dos seres humanos. O fetichismo da mercadoria se inicia a partir de uma contradição interna dentro da mercadoria entre o valor de uso e o valor de troca. O valor de troca refere-se ao dinheiro a que uma mercadoria pode fazer jus no mercado, ou seja, o seu preço de compra e venda, enquanto o valor de uso refere-se ao benefício do bem para o consumidor, isto é, seu valor prático ou utilitário como mercadoria. Segundo Marx, a grande novidade histórica do capitalismo é a expansão do mercado para todos os setores da sociedade e o domínio do valor de troca sobre o valor de uso, já que o ciclo econômico capitalista, envolvendo produção, o marketing e o consumo de mercadoria, controlará sempre as necessidades das pessoas. A produção de mercadorias tem como objetivos principais a venda e o lucro e não a produção de valores de uso em si. Nos cálculos do produtor, o valor de uso tem somente o papel de satisfazer as expectativas do comprador, coisa que deve ser considerada pelo produtor para a realização da venda. Assim, num único ato de troca, dois interesses opostos se confrontam: da perspectiva do valor de troca seu objetivo se realiza com o ato da venda. Da perspectiva do valor de uso, o mesmo ato é apenas o começo do processo de fruição ou do consumo do valor de uso no interior da mercadoria. Do ponto de vista do produtor, a realização da venda é o ponto de chegada. Para o comprador, o preço a ser pago é um estorvo, um meio obrigatório para a realização do valor de uso. Neste confronto, o valor de uso sempre terá que ser submetido ao valor de troca, ou seja, resulta numa tendência de que o valor de uso deverá sempre sofrer alterações para se adaptar às necessidades da realização do valor de troca (publicidade, marketing, contenção de despesas, etc). Historicamente, a realização pura e simples do valor de uso (a satisfação plena do comprador) não é o suficiente para a maximização dos lucros. Sempre será necessário incrementar vendas para acelerar os ciclos econômicos. Surge aí toda uma construção da imagem do produto através da Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 7 publicidade onde as mercadorias passarão a adquirir qualidades humanas e os homens se transformam em coisas. Para deixar de ser “coisas” têm que adquirir as mercadorias que passarão suas qualidades humanas ao comprador. Motivada pelo valor de troca as mercadorias passam a adquirir qualidades humanas. É a inversão fetichista. Vejamos o exemplo abaixo: Temos aqui em ação o fetichismo da mercadoria. Um automóvel tem um valor de uso: meio de transporte. Mas para a publicidade ele tem que ser mais do que isso. Para as vendas serem maximizadas, ele deve adquirir qualidades humanas que deveriam surgir de relações humanas reais e não de uma relação mercantil de compra e venda. O automóvel promete uma mudança de estilo de vida. Se você comprá-lo, junto com ele vêm festas, sensualidade, alegria, amigos, etc. Magicamente você irá adquirir qualidades humanas contidas numa mercadoria. No modo de vida consumista temos uma sociedade fetichizada, ou seja, as mercadorias é que começam a dar o porquê das relações humanas. Ocorre uma inversão: os homens se relacionam porque existem mercadorias entre si e não por uma razão criada pelas próprias pessoas. Um apartamento estilo mediterrâneo vale “um modo de viver”; uma calça jeans tem “uma vida jovem e livre”. Para você ser uma pessoa sensual não basta construir uma personalidade numa relação vivida com os outros. Simples ... basta adquirir uma marca “X” de grife. Você não precisa ser sensual, basta comprar e ter a sensualidade. Para a Escola de Frankfurt, umas das chaves de compreensão do poder da comunicação de massas sobre os indivíduos é a solidão que a mídia vai encontrar nos receptores. A sociedade fetichizada é a sociedade da multidão solitária. Quando as mercadorias passam a mediar e a assumir características humanas, a comunicação e a troca entre os indivíduos passam a entrar em crise. É por esta linha de raciocínio que a Teoria Crítica vai explicar o esvaziamento das antigas agências socializadoras (Família, Escola e Igreja). Estas instituições ainda eram dominadas por vínculos face-a-face. Por isso, a mercantilização geral da sociedade promovida pelo capitalismo moderno vai substituir estas instituições por outras mais abstratas. Uma delas são os meios de comunicação de massas. 2.1. A Estética da Mercadoria alamos em “instituições mais abstratas”. O que isso quer dizer? Uma outra característica do fetichismo da mercadoria é que as qualidades humanas que ela incorpora sempre serão abstratas. Em contato com o mundo real, dificilmente elas se realizarão ou, então, a realização somente será parcial. F Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 8 Marx falava que a mercadoria busca “o milagre da transubstanciação”: a transformação do valor de troca em dinheiro. É como se a mercadoria quisesse dar um salto mortal. Mas ela pode quebrar o pescoço. Na forma mercadoria, o valor de uso poderá sofrer transformações de tal natureza no mercado a ponto de a utilidade transformar-se numa aparência, numa miragem, enganando o consumidor. É o aparecimento da estética do valor de uso ou estéticada mercadoria. No capitalismo, os interesses do valor de troca se sobrepõem ao de uso (a aceleração do ciclo econômico produção-venda-compra, por exemplo). Por exemplo: para o conhaque não ficar guardado por muitos anos em tonéis de carvalho (como seria necessário para dar a característica coloração amarela que determina a excelência do sabor) e maximizar as vendas, ele é tinto com açúcar caramelado, mantendo-se assim sua aparência. É nesta necessidade do capital em manter a circulação, produzir mais pelo menor preço e custo que surge uma tecnologia da estética da mercadoria, ou seja, a simulação de que a mercadoria contenha um valor de uso pleno. No exemplo analisado acima fica clara esta estética da mercadoria: transpostas para a realidade as qualidades humanas são muito abstratas para serem realizadas. O carro em si não é garantia de que estilo de vida, sensualidade e festas se realizarão. Pelo contrário: impostos, licenciamentos e multas talvez até inviabilizem essa mudança de vida ... A vida continuará na mesma. É claro que essa frustração no máximo se manifesta no plano do mal-estar, ou seja, restringe-se ao plano do inconsciente. Como consumidor racional (isto é, dentro daquilo que se espera pelo cumprimento do código do consumidor) ficará satisfeito com o produto adquirido. Mas o desejo inconsciente, fator último que motivou a compra, ficará insatisfeito. Como demonstram diversos pesquisadores que seguem esta linha de pesquisa da Teoria Crítica5, o fenômeno da sociedade de consumo baseia-se num jogo onde jamais o desejo (o valor de uso) é satisfeito na plenitude. É uma fantasia que se desintegra para que o ciclo do consumo volte a repetir-se. “A frustração é o motor, a razão de ser do consumismo, pois se houvesse uma satisfação plena do desejo em cada mercadoria oferecida, o consumo nos moldes industriais cessaria”6 Quem já não passou pela seguinte situação: você entra numa loja de roupas de grife num shopping. Experimenta a roupa escolhida no provador. Olha para o espelho. Como ela lhe cai bem! Paga o produto e volta feliz para casa. Ao chegar, experimenta de novo a roupa diante do espelho do quarto. Já não é mais a mesma coisa! Há uma ponta de decepção, mas você deixa pra lá. Com o passar do tempo você vai “encostando” aquela roupa até esquecer dela e substituir por outra favorita, comprada talvez na mesma loja. O que você consumiu não foi a roupa em si (o seu valor de uso) mas a aparência. Uma outra característica da estética da mercadoria é que o consumido nunca são as mercadorias mas a relação. Na verdade, o consumido foi a relação do objeto com o todo dentro da loja: a música ambiente “techno” e vibrante, a iluminação, o ambiente “fashion”. Tirado o objeto desta ambiência ela se esvazia. A estética da mercadoria opera uma abstração ou separação entre o objeto e a sensualidade, entre o objeto real e a sua manifestação. A aparência se autonomiza (fetichiza-se) e passa a ter uma existência real. É aqui que a mercadoria quebra o pescoço no salto mortal. A superfície, a embalagem e a imagem publicitária são mais importantes que o próprio objeto real. 5 Veja Peter HAUG, “A Crítica da Estética da Mercadoria”, In: Ciro Marcondes Filho (org.). A Linguagem da Sedução, São Paulo, Perspectiva, 1988. 6 FERREIRA, Wilson Roberto V. O Caos Semiótico, São Paulo, Editora Terra, 1997, p.11. Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 9 Essa maneira pela qual a sociedade de consumo elabora os objetos opera uma modificação na estrutura de satisfações que a mercadoria pode proporcionar. Diante da promoção publicitária, o consumidor vê refletidos suas necessidades e desejos e que somente são possíveis de serem realizadas no capitalismo ao nível das aparências. Anseios, esperanças, fantasias, são somente possibilidades exploráveis, motivações nas quais os homens podem se prender na compra de novas mercadorias. Para a Teoria Crítica, isso tudo tem um custo psicológico: o empobrecimento psíquico: “A extensão historicamente nova da mistificação e estetização do mundo dos bens de consumo ao serviço da realização do capitalismo consumista tem como conseqüência necessária um ‘deslocamento’ (Freud) das energias libidinosas do mundo de pessoas objetificadas para o mundo dos objetos personificados, de fetiches de consumo. Já que o universo das relações sociais, como simples relação de troca e dinheiro, está cada vez menos sujeito a catéxis, o universo dos objetos personificados, dos bens de consumo, torna-se ele próprio o objeto ‘substituto’ das energias libidinosas. A libido evapora-se, por assim dizer, da epiderme do bem de consumo humano. Os corpos de consumo e suas múltiplas aparências que foram despojadas do humano tornam-se uma multiplicidade de ‘focos de sugestão’ para a libido social”7 Aqui, a teoria Crítica faz uma referência ao conceito freudiano de “catéxis”: a capacidade de investimento psíquico (investimento da energia psíquica da libido em um objeto – relação com o outro – que implique em realidade, possibilidades, duração e estabilidade). O fetichismo da mercadoria no consumo inviabiliza essa catéxis quando a promoção publicitária apenas cria “focos de sugestão”, ou seja, miragens, sugestões, fragmentos, reminiscências. Em síntese, ganchos onde o desejo somente se realiza de forma fragmentada e superficial. O psiquismo regride a “impulsos parciais” que conduz ao imediatismo e a compulsão. Surpreendentemente há algo de religioso nisso tudo: assim como o fanático na sua euforia religiosa adora apenas o fragmento de Cristo (a Cruz, a abstração ou o fetiche de Cristo) não conseguindo apreender o Cristo real, da mesma forma a euforia do consumo se reduz no consumo do fragmento (a aparência publicitária) e não do produto em si. Dessa maneira, a mercadoria não pode satisfazer até o fim o desejo do consumidor, mas, no máximo, captura-lo na fugacidade da aparência atraente. A mercadoria não pode ter valor de uso em excesso, pois, caso contrário, o nível de durabilidade e satisfação com o produto seria alto e durável demais, reduzindo a taxa de consumo ótima para a circulação de bens na economia capitalista. 2.2. Fetichismo da técnica “O segredo real do sucesso (...) é mero reflexo do que é pago no mercado pelo produto. O consumidor está realmente idolatrando o dinheiro que pagou pelo seu ingresso para o concerto de Toscanini”8 7 SCHNEIDER, Michael, Neurose e Classes Sociais, R. de Janeiro, Zahar Editores, 1977, p. 281. 8 ADORNO, T. The Culture Industry, London, Routledge, 1991, p. 34. Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 10 s investimentos na estética da mercadoria, na aparência publicitária do produto, se tornam tão vultosos que uma situação paradoxal começa a surgir: a publicidade do produto acaba se confundindo com o próprio produto. Espera-se uma veneração pelo preço que pagamos pelo ingresso do concerto de Toscanini e não pela apresentação em si. No capitalismo moderno, onde o marketing e o valor agregado aos produtos são mais importantes que o próprio valor de uso da mercadoria, a própria promoção em si passa a ser mais importante. É a publicidade auto- referencial: o consumidor venera muito mais a técnica promocional do que o valor de uso do produto. Pegue o exemplo do filme Titanic, de James Cameron. Primeiro filme a utilizar efeitos digitais, os custos da produção (US$ 200 milhões) foram divulgados estrondosamente pela mídia. Somados aos making-offs onde era meticulosamente explicada a concepção e montagem dos gigantescos cenários (e muitas vezes o making-off é melhor que o própriofilme), a grandiosidade da produção em si já era publicitária. A mídia passou mais tempo falando dos aspectos técnicos do que do valor artístico em si do filme. Orgulhosos, os espectadores foram capazes de suportar mais de três horas de filme só para aferir se o filme justificava tamanho investimento tecnológico e financeiro. É o que Adorno e Horkheimer chamavam de fetichismo da técnica. A tecnologia da promoção da aparência do valor de troca passa mais atraente do que o produto em si. Por outro lado, Adorno considerava a publicidade como o “elixir da vida” da mercadoria já que, graças ao fetichismo geral do consumo, a mercadoria pode correr o risco de ser intragável: “A cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela é tão completamente submetida à lei de troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usa-la. É por isso que ela se funde com a publicidade. (...) A publicidade é seu elixir da vida. Mas como o seu produto reduz incessantemente o prazer que promete como mercadoria a uma simples promessa, ele acaba por coincidir com a publicidade de que precisa, por ser intragável”9 Pelo fato de a mercadoria prometer mais do que pode cumprir, como vimos no tópico anterior, ela se confunde com a própria publicidade. Veja o exemplo famoso das campanhas da Benneton. As fotos polêmicas e chocantes do fotógrafo Oliviero Toscani nada comunicam sobre o produto. O que é Beneton? Nada a dizer, a não ser atrair toda atenção dos espectadores aos escândalos provocados pela própria campanha. É o marketing auto-referencial: nada comunica sobre o valor de uso, ela é a própria mensagem publicitária. 9 ADORNO, T. e HORKHEIMER, M., Dialética do Esclarecimento, R. de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985, p. 151. O O filme Titanic, de James Camaron, e as polêmicas fotos das campanhas da Beneton: exemplos do fetichismo da técnica. Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 11 Conclusão: fetichismo ou o retorno do Mito Descobrimos, portanto, que a essência da publicidade e da propaganda, na fase do capitalismo monopolista, é religiosa. Atribui-se qualidades humanas ou até supra-humanas a objetos e, modernamente, a marcas. Elas têm o poder de conferir aos seus proprietários qualidades investidas pelos próprios homens ou, magicamente, transformar a vida somente pelo fato de possuí-las. Para Marx a essência do pensamento mítico, mágico e religioso está na inversão fetichista: o homem cria objetos, símbolos e imagens que passam a ganhar vida própria ao serem investidos de características humanas ou sobrenaturais. Estes, por sua vez, passam a dominar o próprio homem que deverá, por meio de rituais ou sacrifícios, adorá-los para esconjurar a fúria ou o castigo. Acredita-se que o capitalismo, por meio da racionalidade das práticas mercantis e da acumulação do capital, teria acabado com toda forma de pensamento religioso ou mítico com a sua implacável lógica racional. Para Marx, puro engano. Deus baixa à Terra sob a forma de Capital, Mercado e Moeda. Tais entidades, criadas pelo próprio homem, passam a escravizá-los ao adquirir vida própria: o dinheiro investido magicamente se reproduz com os juros. Fala-se que “dinheiro chama dinheiro”. Ou, então, que o “mercado está nervoso”. Em nome do dinheiro ou do Capital o homem é capaz de cometer as maiores atrocidades (guerras, assassinatos etc.). Tais entidades dominam os homens, obrigando-os a práticas que transcendem o bem e o mal (assim como nos sacrifícios rituais pagãos onde era exigido o sacrifício de seres humanos). Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do Iluminismo, retomam este tese de Marx e verificam em seu diagnóstico da modernidade o retorno do mito e das formas mágicas e religiosas ao lado do avanço técnico e científico da civilização. Encontram uma história secreta entre o avanço do Iluminismo com a Modernidade (o desenvolvimento da racionalidade científica e técnica como promessa de superação da ignorância e da escassez com Racionalismo e o Iluminismo – movimento filosófico dos chamados enciclopedistas franceses no século XVIII) e a explosão da violência e crueldade no nazi-fascismo. Adorno e Horkheimer perceberam em seu diagnóstico que o preço pago pela civilização com o desenvolvimento da racionalidade científica e técnica era o “desencantamento do mundo”, ou seja, o recalque dos impulsos e das paixões humanas. O que Marx percebera na relação entre o homem e o capital (a relação fetichista de dominação) Adorno e Horkheimer perceberam na relação da civilização com a Ciência e a Técnica: o sacrifício dos desejos e demandas humanas em nome do Progresso e da ordem implacável a Razão. Nesta situação ocorre um acerto de contas entre a Natureza e a humanidade: a revolta da natureza dentro do homem com a explosão da violência e da crueldade. Assim como, na atualidade, dentro do ambiente mais tecnologicamente avançando que é a Internet prolifera a irracionalidade, ódio e os impulsos mais regressivos da natureza humana (pedofilia, perversões, vendas ilegais de armas, racismo etc.), da mesma maneira a máquina de propaganda nazi-fascista, utilizando, à época, os recursos tecnológicos mais avançados (mídias de massas como cinema e rádio) empreendeu uma campanha essencialmente baseada em elementos míticos, mágicos e religiosos. A propaganda nazi-fascista passou a investir em roupas, objetos, símbolos poderes sobrenaturais. Tanto é verdade que, até hoje, tais objetos são cultuados por colecionadores e simpatizantes nazis. Da cruz à suástica nazista, a essência fetichista está presente. Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 12 O culto ao super-herói e às celebridades vão marcar a mídia no pós-guerra até os dias atuais. As origens estão no revival mítico e mágico da retórica nazi-fascista. Toda a complexa heráldica nazista (condecorações, símbolos, brasões que identificavam as diversas ordens, grupos etc.) parecia que conferia super-poderes aos seus portadores. É sabido que o alto escalão do Terceiro Reich participava de rituais ocultistas secretos e Hitler estava cercado de astrólogos, videntes e consultores místicos em geral. É incrível que em plena moderna propaganda do século XX assista- se a este revival mítico e mágico. Tal retórica foi tão poderosa que, nos EUA, a Marvel Comics e, no pós-guerra, toda a Indústria Cultural, passam a celebrar o modelo do super-herói com poderes sobrenaturais: Capitão América lutará contra os inimigos nazistas e, depois, toda uma imensa galeria de super-heróis dotados de super-poderes provenientes de objetos e símbolos mágicos povoará a mentalidade americana na Guerra Fria. Da mesma forma, na atualidade a heráldica das marcas atualiza este culto fetichista. Vestir uma T- shirt básica, branca, sem nenhuma identificação de marca, não é a mesma coisa se a mesma T- shirt tiver a logomarca da badalada “Diesel”. É como se o símbolo atribuísse poderes mágicos ao seu portador, tal qual uma varinha de condão: será melhor visto e recebido pelas pessoas, as portas das oportunidades se abrirão, tornar-se-á sensual, cativante etc. Repare, por exemplo, na retórica de anúncios televisivos como os da Polishop. Os produtos anunciados não são mais objetos úteis à bvenda más são promovidos ao nível da magia: eles mudarão a vida do comprador, nada mais será o mesmo após conhecer e adquirir o produto... Também o fetichismo da propaganda nazi-fascista inaugura a época das celebridades. Através da mídia, começa-se a cultuar personalidades famosas não por teres realizado algo importante e tangível, mas pelo simples fato de serem, supostamente, possuidores de um dom mágico:são famosas por terem poderes que a maioria das pessoas não tem, ou seja, são celebridades porque são! Se no passado a personalidade célebre vinha do mundo das realizações concretas (no trabalho, na economia, na medicina, na ciência etc.), ao contrário, a celebridade fetiche vive de um suposto dom especial, místico, atribuído a si mesma. Porém tal dom sobrenatural resume-se à mera estratégia de exposição constante na mídia, criando um efeito recursivo paradoxal: é famosa porque é muito fotografada e é fotografada porque é muito famosa. 3. Freud e a Psicanálise da Cultura epois de buscarem em Marx elementos para uma crítica à economia e à sociedade de consumo no capitalismo moderno, a Teoria Crítica volta-se a Freud para buscar elementos para uma crítica da cultura. Para a Escola de Frankfurt, pensar a cultura é pensar a cultura que se tornou mercadoria. Quando a cultura passou a ser mais um produto mercantilizado pelo mercado universal, muitos entendiam esse fato como uma resultante do progresso tecnológico e industrial. Afinal é uma opinião ainda corrente que a tendência do progresso é a democratização de acesso aos bens D Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 13 culturais graças à reprodutibilidade técnica: a imprensa, o disco de vinil, a TV e, atualmente, a Internet. Parece ser uma coisa bastante razoável comprar um CD de um show que você não poder ver ao vivo. Mas, a Escola de Frankfurt via com desconfiança esse processo de mercantilização da cultura a partir da reprodutibilidade técnica. Como vimos no tópico anterior, se nas mercadorias em geral o valor de troca domina todos os processos econômicos de troca a ponto de o valor de uso se tornar ao flexível e moldável até o desaparecimento, o que poderá acontecer com as obras culturais do espírito humano? O fato de você preferir ouvir Mozart no disco de vinil ao invés do concerto ao vivo ou, modernamente, preferir assistir o filme em DVD em casa ao invés de assisti-lo no cinema são muito mais do que fato isolados, refletem uma ordem totalitária onde mais uma vez o desejo e o espírito humano são atrelados aos ditames do valor de troca. Na reprodutibilidade técnica alguma coisa irá se perder, assim como se perde a qualidade sonora de execução musical ao vivo comparado com a cópia em vinil. O primeiro passo para a compreensão desse processo é entender qual a necessidade psíquica do ser humano em produzir cultura. Por isso vão buscar em Freud o conceito de sublimação. Para Freud, o processo de sublimação é o ponto de encontro entre o desenvolvimento do indivíduo e a construção da civilização. O processo civilizatório começa a partir do momento em que os instintos são induzidos a buscar outros caminhos para a satisfação, que não a imediata. Para a psicanálise, a energia vital do psiquismo humana é o instinto, de origem animal, a mais básica energia dos seres vivos. Como energia básica (reprodução, fome, sede, medo), ela busca gratificação imediata pois a sobrevivência do indivíduo depende dela. Porém, a busca dessa felicidade instintiva individual entre em choque com a organização social e as necessidades do grupo. É necessário um mecanismo psíquico onde o indivíduo renuncie ou adie a satisfação imediata do seu instinto em troca de uma vida social segura: “Nesse ponto, não podemos deixar de ficar impressionados pela semelhança existente entre os processos civilizatórios e o desenvolvimento libidinal do indivíduo. Outros instintos são induzidos a deslocar as condições de sua satisfação, a conduzi-las para outros caminhos. Na maioria dos casos, esse processo coincide com o da sublimação (dos fins instintivos), com que nos achamos familiarizados; noutros, porém, pode diferenciar-se dele. A sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na vida civilizada. Se nos rendêssemos a uma primeira impressão, diríamos que a sublimação constitui uma vicissitude que foi imposta aos instintos de forma total pela civilização. Seria prudente refletir um pouco mais sobre isso. Em terceiro lugar, finalmente - e isso parece o mais importante de tudo -, é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa 'frustração cultural' domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar. Também ela fará exigências severas à nossa obra científica, e muito teremos a explicar aqui. Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Não se faz isso Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 14 impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.”10 Através de um trabalho repressivo, a civilização redireciona a energia instintiva para um alvo não sexual. O instinto, deixado por si mesmo, busca uma satisfação imediata, aqui e agora. Para que a civilização produza cultura é necessário disciplinar esta energia, redirecionando-a para alvos socialmente valorizados. A gratificação imediata é adiada na busca de uma satisfação posterior, porém, num grau culturalmente elevado. A energia que empurra a pulsão continua a ser sexual, mas o objeto não é mais. É como se o instinto você obrigado, através da civilização, a não mais atingir de forma imediata, em linha reta, o objeto de satisfação, mas agora a fazer um movimento em espiral, adianto para o futuro o momento da gratificação (veja esquema abaixo). Objeto InstintoObjeto Instinto Peguemos um exemplo concreto. Se estivermos numa sala de aula da faculdade numa bela noite quente de verão somos fortemente tentados a cair fora, parar no primeiro bar e abrandar o calor com um bom copo de cerveja. A este impulso a civilização responde que você deve ficar ali pela necessidade do estudo para, no futuro, a gratificação ser alcançada com um bom emprego e uma vida estável. O impulso instintivo inicial tem que ser sublimado para um outro objetivo moralmente superior e socialmente valorizado (emprego, reconhecimento profissional, etc). A religião é um outro exemplo. O instinto da libido é redirecionado para um sentimento “terno”: a fé. Através da penitência, as gratificações imediatas deste mundo são substituídas pela promessa de uma recompensa moralmente mais elevada num outro mundo. Se desejamos um produto visto na vitrine de um shopping, o primeiro impulso é o de pegá-lo sem maiores cerimônias. Mas sabemos que temos que adiar a satisfação desse desejo. Primeiramente temos que trabalhar 30 10 FREUD, Sigmund, Civilization and its Discontents, New York, WW Norton & Company, 1969, p. 44. Satisfação instintiva Sublimação Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 15 dias, ou seja, direcionar esta energia do desejo para uma atividade socialmente valorizada (o emprego) e, no final, com o salário, comprar o produto. Como Freud aponta, o processo de controle dos instintos promovido pela cultura e a civilização produzem uma frustração cotidiana nos relacionamentos humanos que, no fundo, é a origem da hostilidade contra a qual as civilizações têm que lutar. Por isso, para a Teoria Críticao produto cultural do espírito humano teria uma ambigüidade fundamental: de um lado seria o retrato da dor que a civilização impõe ao indivíduo e, do outro, ao criar um produto moral e estético mais elevado formula a promessa de um futuro mais feliz: a harmonia ideal entre indivíduo e civilização. 3.1. Dessublimação e Estandartização or isso, para Adorno, a autêntica obra de arte, como produto exemplar do processo de sublimação, conteria este duplo aspecto: de um lado a dor (a lembrança das vicissitudes da vida neste mundo) e do outro a utopia de um futuro feliz. A arte conteria este elemento crítico de autonomia em relação ao processo de produção material: embora tenha origem na civilização, a arte implica numa crítica ao existente por representar uma utopia de um mundo diferente. Por isso falava que todo arte é um “retrato da barbárie”. Por exemplo, peguemos o caso da música negra: o blues. Suas origens estão na raça negra no período histórico da escravidão, no Sul dos EUA. Como o próprio nome que dizer, o blues é uma modalidade musical melancólica, triste, por ser a memória da escravidão. Os blues men se reúnem quase como se fosse um ritual litúrgico para o passado ser relembrado dentro das dores que a raça negra ainda enfrenta pela condição social de excluídos. Mas, ao mesmo tempo, junto com a dor está alegria de compor e tocar o blues. É uma celebração, como se quisesse simbolizar a utopia de um futuro mais feliz. Sim, ainda há esperança! É como parece simbolizar a alegria do blues man. Na sua essência a arte teria esse aspecto crítico de autonomia ou transcendência. Para Marcuse a arte representaria a “Grande Recusa”, ou seja, com um potencial politicamente crítico ao protestar contra a miséria existente e conter forças de transformação deste mundo: “Como um rito ou não, a arte contém a racionalidade da negação. Em suas condições avançadas, ela é a Grande Recusa – o protesto contra o que é. As maneiras pelas quais o homem e as coisa são levados a se apresentar,cantar, soar e falar são maneiras de refutar, interromper e recriar sua existência real. Mas essas formas de negação rendem tributo à sociedade antagônica a que estão ligadas”11 Para a Escola de Frankfurt, o ponto problemático da mercantilização da cultura e da reprodução em massa da arte pela indústria cultural está na perda dessa essência sublimatória: ambigüidade, autonomia, transcendência e recusa. É o momento em que a arte e cultura em geral se tornam pura ideologia ao serem submetidas ao valor de troca. A cultura mercantilizada passa a ser dessublimada ou estandartizada. Voltando ao exemplo citado acima, ao ser mercantilizado o blues perderia a ambigüidade crítica própria da sublimação: o aspecto da memória (a lembrança da dor produzida pelas injustiças desse 11 MARCUSE, Herbert, A Ideologia da Sociedade Industrial, R. de Janeiro, Zahar Editores, 1979, p. 75. P Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 16 mundo) é eliminado, afinal, a mercadoria deve ser limpa, higienizada de qualquer dissonância, “ruído” ou “sujeira” que possam comprometer o consumo feliz. Privada da sua memória ela é reduzida a um standard de alegria ou felicidade estereotipada. A música perde o seu conteúdo crítico e vira performance, virtuosismo ou pura distração ou passatempo. Como standard, a música de massas deve ser rigidamente padronizada para um fácil reconhecimento pelo ouvinte. A psicologia da audição musical de massas baseia-se neste mecanismo de reconhecimento e aceitação, ao qual Adorno considera uma “regressão da audição”: “Toda esfera de divisão comercial barata reflete esse duplo desejo. Ela induz ao relaxamento porque é padronizada e pré-digerida. Sendo padronizada e pré-digerida serve, na psicologia familiar das massas, para poupar-lhe do esforço da participação (...) Por outro lado, os estímulos que providencia permitem uma escapadela da monotonia do trabalho mecanizado”12 Esvaziada da sua essência crítica de oposição ao mundo existente, a arte torna-se dócil. No caso da música, o hit de sucesso torna-se padronizado. Faz parte desse processo de domesticação da arte em geral sob a forma de mercadoria. Ao ser padronizado, o mero reconhecimento da estrutura musical repetitiva leva a uma aceitação (“isso eu reconheço, faz parte de mim!”). Isso no máximo permite uma “escapadela” da rotina maçante do dia-a-dia. Veja, por exemplo, esse depoimento de um dos maiores compositores da música pop, Mike Stock, sobre como é tecnicamente esse processo de padronização da audição: “Se você estiver na escala de dó, comece em fá maior e aí finalize em dó. Depois de tocar o fá, suba o tom para sol, mas continue marcando o baixo em fá. Isso cria tensão – e a música já começa a atrair. Aí você cai para mi menor e depois para lá menor. No final, se for o caso, você vai para dó. Uso muito esses acordes. A chave é como ser criativo dentro dos limites que eles me impõem”13 Como observado pelo jornalista Álvaro Pereira Júnior14 quem toca instrumento sabe que existem cinco milhões de músicas com essa seqüência de acordes. Por ser uma estrutura facilmente reconhecida pela audição, a música passa a ter uma recepção distraída, adaptando-se facilmente à rotina do dia-a-dia. A “Grande Recusa” da arte é absorvida pelo estado de coisas predominante. É o que Marcuse denomina como “dessublimação repressiva”: a energia instintiva por trás dos processos sublimatórios da cultura não consegue mais transcender para estágios moral ou esteticamente superiores. Como numa espécie de curto-circuito, ela retorna ao mundo do qual pretendia transcender transformando os impulsos mais íntimos do cidadão em prazeres que promovem a coesão e o contentamento da ordem política e econômica da sociedade. Mais adiante, quando analisarmos com mais profundidade o conceito de Indústria Cultural, voltaremos a este ponto. 12 ADORNO, T. “Sobre música popular”, In: COHN, Gabriel (org.) Theodor W. Adorno – Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1986, p. 136. 13 “The power of music - On song”, in: NewScientist.com, http://www.newscientist.com/opinion/opinterview.jsp?id=ns24231, 14 PEREIRA JR, Álvaro, “Gênio do pop revela a fórmula do sucesso”, in: Folha Teen, Folha de São Paulo, 02/02/2004, p. 4. Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 17 Conclusão: conseqüências culturais da Dessublimação Vimos que para a psicanálise a cultura é construída a partir do mecanismo psíquico da sublimação. Dessa maneira, a cultura se apóia num paradoxo: de um lado, a ordem social exige o represamento de Eros, o que resulta, consequentemente, na liberação correlativa da pulsão agressiva e auto- destrutiva (pulsão de morte, ou seja, o ódio contra a sociedade causada pela imposição do adiamento da gratificação). Por outro lado, como o segundo momento do mecanismo da sublimação, estas pulsões agressivas e a libido são canalizados para formas indiretas de gratificação: para objetos, idéias ou metas moral ou eticamente reconhecidas como positivas ou elevadas pela sociedade. A arte, a cultura, a ciência etc., são resultantes de um violento processo de repressão psíquica individual mas, ao mesmo tempo, resultam em energias libidinais e agressivas que poderão transformar a sociedade. Na mercantilização geral da cultura através da sociedade de consumo na atual fase avançada do capitalismo, a Escola de Frankfurt percebeu uma nova forma de repressão de Eros, tão paradoxal como as formas indiretas de gratificação da sublimação tradicional: a dessublimação repressiva: “Não se trata mais de legitimara impossibilidade da gratificação, mas de usar a própria gratificação como fórmula legitimadora. Se essa gratificação repressiva assume, do ponto de vista material, a forma de um fluxo crescente de bens e serviços destinados a atender amplamente necessidades reais e fictícias, assume, do ponto de vista pulsional, a forma de uma liberalização dos controles societários. A gratificação assume, desta perspectiva, o aspecto da dessublimação: substituição da satisfação diferida pela satisfação imediata, da satisfação indireta pela satisfação direta. Mas como essa dessublimação visa, não promover uma libertação real, mas aprisionar mais eficazmente os indivíduos nas malhas da ordem existente, é lícito falar-se numa dessublimação repressiva.”15 Se nas formas culturais tradicionais ou arcaicas, o princípio do prazer, violentado pela ordem societária, continuava, apesar disso, estava presente como nostalgia da felicidade ou promessa de uma harmonia futura (como vimos no exemplo musical do blues), na atualidade a aparente gratificação imediata prometida pela sociedade de consumo resulta, a curto prazo, na própria liquidação de Eros pelo princípio de realidade. Se não vejamos: sabemos que a emergência histórica da sociedade de consumo se deve à liberalização do crédito para todas as classes sociais. O “milagre do crédito”, somado a uma extensiva maquinaria de propaganda e publicidade que “educou” as pessoas para os novos tempos, alterou totalmente o paradigma da velha ordem cultural baseada na operosidade e na poupança (ou seja, nas formas clássicas de sublimação). A nova ordem do dia passou a ser: compre já, não deixe para depois; use todo o seu limite de crédito; seja feliz e satisfeito aqui e agora! Slogans como “Ligue Já!”, “Visa: por que a vida é agora”, ou culto à velocidade e às emoções fortes e esportes radicais enaltecem como moralmente bom o imediatismo e as vivências unicamente situadas no tempo presente. Porém, se no campo pulsional há uma evidente liberalização imediata e a negação das formas clássicas de sublimação, no campo material as malhas da repressão se apertam e o preço da dessublimação é cobrado: os juros altos, a fatura do cartão de crédito que chega em casa, as prestações infinitas com valores 15 ROUANET, Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 18 crescentes... Maior será exigência de trabalhar mais, acumular empregos, fazer horas extras, ou seja, negar a própria liberdade de Eros. O resultado da dessublimação repressiva é a liberação da pulsão de morte pela própria sociedade. Se, outrora, ela era canalizada para o futuro por meio de metas, utopias ou projetos socialmente tidos como elevados (por exemplo, operosidade e poupança como valores moralmente positivos que alimentariam metas futuras) agora, sem mais perspectivas futuras, já que o imediatismo e o presente são o horizonte das ações sociais, ela se manifestará, em primeiro lugar, numa espécie de entropia na própria cultura: o surgimento do Niilismo e do Hedonismo. 4. Base a Teoria da Comunicação de Massas: a sociologia da família omo vimos até aqui, uma das chaves de compreensão da comunicação de massa está na generalização da forma mercadoria no entretenimento e a submissão da cultura, arte e do próprio psiquismo ao valor de troca. Mas a Teoria Crítica precisa entender qual o mecanismo social que possibilitou esta submissão total do espírito humano às necessidades mercantis de troca no mundo administrado da economia. A resposta está na crise e posterior desmoronamento simbólico da família tradicional (patriarcal). Em outras palavras, a Escola de Frankfurt descobre uma relação entre a crise da família tradicional e o início da hegemonia dos meios de comunicação de massas sobre os indivíduos. A crise da família patriarcal tem sua origem na crise econômica pós primeira guerra mundial e pós o crash da Bolsa de Nova York em 1929. Essa crise fez mudar o caráter do capitalismo, passando fase concorrencial (onde a pequena burguesia com seus pequenos e médios negócios tirava o sustento da família) para a fase monopolista cuja principal característica é, de um lado, o fim da livre concorrência e o monopólio das grandes corporações e, do outro, o assalariamento geral da pequena burguesia (transformada em “classes médias”). Em primeiro lugar a família patriarcal caracteriza-se pela prole numerosa. Em uma única casa habitavam até três gerações com muitos filhos. O pai, chefe da família, era proprietário de um pequeno ou médio negócio (daí a expressão “pequeno burguês”) do qual a família dependia para o sustento. Desde jovens os filhos já trabalhavam na empresa familiar visando, um dia, herdá-la. Em segundo lugar, esta família caracterizava-se pela autonomia em relação à sociedade. Ela dependia de poucos serviços externos. A maioria dos itens de consumo era produzida dentro da própria família (manteiga, massas, remédios, sabão, etc). Ao mesmo tempo, a vivência doméstica da criança era cada vez mais estendida: alfabetizada dentro de casa só mais tarde iria para a escola. De um ponto de vista psicológico, o adiamento dos primeiros contatos da criança com o mundo externo garantia a ela forjar as próprias instâncias morais antes de enfrentar o frio mundo das relações mercantis. “Tudo era explicado e demonstrado praticamente ao indivíduo no seio da família, de modo mais claro do que em qualquer outra parte (...) Diante do filho o pai tinha tendencialmente sempre razão; nele se concretizava o poder e o sucesso. A única possibilidade deixada ao filho era a de atribuir ao pai, enquanto forte e poderoso, C Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 19 também todas as qualidades que tinham um sinal positivo, transfigurando assim a realidade em ideal. Desse modo, a criança – que forjava a partir da força paterna suas próprias instâncias morais e, portanto, sua própria consciência - , para aprender finalmente a respeitar e amar o que se oferecia ao seu intelecto como efetivamente existente, aprendia também as relações burguesas com a autoridade, e não apenas no referente à esfera parcial da família”16 A autonomia familiar em relação ao racional mundo exterior, garantia ao filho calor e proteção para introjetar a autoridade do pai e formar um ego forte. O pai era uma figura presente, de carne e osso, com o qual a família tinha um seguro modo de vida. Além disso, a propriedade hereditária se constituía num sólido motivo para a obediência dos herdeiros. Esta é a dialética da família patriarcal: de um lado o autoritarismo da ordem paterna, mas, do outro, esta ordem familiar garantia um espaço privilegiado (fora das pressões sociais) para a constituição de um ego forte o suficiente para, mais tarde, poder enfrentar o mundo frio e cruel das relações mercantis. A violenta crise econômica dos anos 20 e 30 tornou esta família algo anacrônica. Os pequenos ou médios negócios naufragaram no mar da hiperinflação, jogando os pais no mundo da proletarização: sem a empresa da família, os pais têm que se tornar assalariados e sair de casa para trabalhar. Com isso, o tamanho da família é reduzido drasticamente, reduzindo-se ao seu núcleo: o pai, a mãe e poucos filhos. Surge a família nuclear. As principais características da família nuclear são a perda da autonomia e o esvaziamento simbólico da figura paterna. Com os pais trabalhando fora e sem tempo para despender na organização familiar, tornam-se dependentes dos serviços externos e descartáveis da seminal sociedade de consumo: cuidados com a beleza, saúde, educação dos filhos, consertos domésticos, etc. Assim como os filhos não têm mais a empresa familiarpara herdar, paralelamente também não têm mais uma sabedoria ou lições de vida para herdar dos pais. Esgotados pelas longas jornadas de trabalho desqualificado e sem mais a segurança e confiança dos tempos autônomos da família patriarcal (agora, eles sempre precisarão de terceiros para resolver qualquer problema interno da família), os pais se convertem numa autoridade progressivamente esvaziada. “A autoridade familiar, já como autoridade do tabu sexual, vê diminuir a sua eficiência, por causa do fato de a família não mais garantir de modo seguro a vida material de seus membros e não mais proteger suficientemente o indivíduo contra o mundo exterior que pressiona de modo cada vez mais inexorável”17 Os pais tornam-se figuras cada vez menos presentes diante dos filhos, tanto no sentido físico como psicológico. A família se atomiza, ou seja, os filhos cada vez mais se vêem solitários em casa. Sem mais a figura forte do pai (o ego ideal) para introjetar a autoridade, fundamental na constituição do ego, os filhos se voltam para os meios de comunicação de massa para a busca de um novo ego ideal. Na época, o rádio e o cinema passam a desempenhar esse papel na primeira geração sem pais. Os novos pop stars e heróis produzidos pela indústria cultural tornam-se os novos egos ideais substitutos. Na Alemanha dos anos 20 e 30, com a ascensão da propaganda 16 ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. “Sociologia da Família”, In: CANEVACCI, M., Op. Cit., pp. 216-217. 17 IDEM, pp. 218-219. Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 20 nazista, o Füher, personificado por Hitler, torna-se talvez o primeiro pop star dos meios de comunicação de massas. Mas para a Teoria Crítica não temos aqui uma mera substituição de egos ideais. Há uma séria perda. A sociedade atual não será capaz de substituir de modo satisfatório a ação econômica e educacional do pai. Enquanto o pai era uma figura concreta e, ao mesmo tempo, um modelo ideal de ego, a mídia somente poderá oferecer modelos abstratos de poder e prestígio. O Füher não é uma figura de carne e osso, não passa de som e imagem na mídia. Esta relação com esses novos egos ideais tem como conseqüência a criação de indivíduos débeis, com o ego fragilizado por um movimento psíquico contraditório: por um lado o Füher é um modelo desejável: forte, poderoso, decidido, assim como todos nós gostaríamos de ser. Por outro lado, no íntimo o indivíduo sabe que jamais poderá ser igual a ele, tornando-se apenas mais um solitário na multidão a adorar o pop star. Seu destino será retornar a mesma vida cinzenta de sempre. Esta identificação com os pop stars que leva o indivíduo à impotência foi muito bem percebida por Adorno através do culto às celebridades: “Só um pode tirar a sorte grande, só um pode tornar-se célebre, e mesmo se todos têm a mesma probabilidade, esta é para cada um tão mínima que é melhor riscá-la de vez e regozijar-se com a felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto jamais é. (...) As reportagens detalhadas sobre as viagens tão brilhantes e tão modestas do feliz ganhador do concurso organizado pela revista – de preferência uma datilógrafa que provavelmente ganhou o concurso graças a suas relações com as sumidades locais – refletem a impotência de todos.”18 4.1. Fascismo e a “Correia de Transmissão” crise da família patriarcal e o surgimento da família nuclear produzem a chamada “multidão solitária”: indivíduos atomizados, isto é, pessoas isoladas e com laços familiares fragilizados, sem a presença do ego ideal paterno que é substituído por um ego ideal abstrato das celebridades. A conseqüência é um ego fraco e impotente. Mas pessoas fracas só podem admirar pessoas fortes representadas pelas celebridades ... e isto não tem mais fim. Este círculo vicioso produziria uma relação psicológica de identificação paradoxal: por um lado, o amor e a admiração pelas celebridades e, ao mesmo tempo, ressentimento e ódio inconscientes porque o indivíduo sabe que jamais será igual ao ídolo. Ele é apenas mais um, perdido numa massa sem rosto, mais um a admirar o ídolo. Esta relação dual amor/ódio pode muito ser bem identificada no caso do assassinato de John Lennon em 1980. Seu fã, Mark Chappman, foi o assassino. Em declarações posteriores dadas à imprensa ele explicou a motivação do crime: “Eu apenas queria encontrar um modo de ser alguém que não sou. De ser amado”19 Como fã, nutria esta relação dual. Como mais um na multidão solitária, ele amava não John Lennon real mas a sua celebridade. Para este “Zé ninguém” a 18 ADORNO, T & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, pp. 136-137. 19 “El asesino de Lennon quiere ser libre” in: BBC Mundo, http://www.bbc.co.uk/spanish/news/news000926lennon.shtml A Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 21 “celebridade” nada mais significava do que a possibilidade de ser amado e admirado, possibilidade escassa numa sociedade de indivíduos atomizados e com relações sociais frouxas. Adorno aponta para a perigosa tendência social que este tipo de coisa conduz: a “frieza”. Indivíduos mal amados, solitários, numa situação que sabem não poder ser mudada, vão descontar a sua dor no outro: “Aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir.”20 Este é o princípio da gestação de uma configuração totalitária nas relações humanas: o fascismo. Indivíduos frustrados e ressentidos, dentro de uma situação que, sabem, não pode ser mudada e, assim, condenados à resignação, passam a descontar no outro a sua dor. É o início de uma espécie de “correia de transmissão” que impulsiona o autoritarismo e indiferença na sociedade. Podemos descrever essa dinâmica da seguinte forma: o chefe da empresa admira o Füher exposto massivamente pelo rádio e cinema. Frustrado por saber que jamais deixará de ser o que é (mais um admirador de Hitler na multidão solitária) desconta sua dor ao destratar e humilhar seu subordinado na empresa, um assalariado chefe de família. Este, humilhado e frustrado, volta para casa e também desconta na sua esposa com brigas e humilhações. Por sua vez, a esposa se vinga nos filhos com arbitrariedades e surras. Os filhos, sem a presença dos pais e, por isso, expostos a maior parte do dia aos meios de comunicação de massas, vão idolatrar o Füher pop star. E fecha- se o ciclo que se retro-alimenta continuamente. Veja o esquema abaixo: Füher Chefe Pai Mãe Filhos Aqui retornamos ao tema do sado-masoquismo das massas explorado pelos meios de comunicação. A Teoria Crítica faz dessa maneira um diagnóstico sombrio: o nazi-fascismo foi muito mais do que um acidente de percurso na História. Na verdade foi o resultado das profundas transformações que o capitalismo e a sociedade sofreram dentro do século XX, transformações estas que se aglutinaram nos modernos meios de comunicação de massas. Para os frankfurtianos, o 20 ADORNO, T. “Educação após Auschwitz”, in: COHN, Gabriel (org.), Op. Cit., p. 39. Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 22 fenômeno do sucesso da propaganda nazista diz menos sobre o período histórico naquela época e muito mais sobre a própria essência dos meios de comunicação contemporâneos. A exploração do sado-masoquismo, a criação da frustração generalizada nos receptores e fetichização dos desejos é a essênciada indústria cultural em todas as épocas. 5. O conceito de Indústria Cultural ara a Escola de Frankfurt, o conceito de “meio de comunicação de massas” é muito limitado, pois se restringe a uma idéia ainda democrática sobre a mídia: a reprodução em massa conduziria a uma democratização do acesso da cultura para as massas. Já vimos que para a Teoria Crítica isso pode ser até real, mas há uma séria perda porque nesse processo a cultura transforma-se em algo dessublimado e ideológico. Por isso, precisavam de um conceito mais abrangente que incorporasse não somente a mídia no seu sentido tecnológico, mas também a própria estrutura de lazer da sociedade. Indústria Cultural, portanto, deve ser considerado muito mais do que os meios de comunicação, ou seja, ela é a própria organização sistemática, científica e padronizada do tempo livre das pessoas. Cabe aqui discorrer um pouco sobre estas idéias de “tempo livre” e “lazer”, procurando diferenciá- las. O surgimento do tempo livre foi uma conquista dos trabalhadores no capitalismo. Como descreve a História, o início da Revolução Industrial no século XVIII mostrou o capitalismo em toda a sua dureza e crueldade: a inexistência dos direitos trabalhistas ou sindicatos, jornadas diárias de mais de 15 horas de trabalho, trabalho infantil, operários morrendo sobre as próprias máquinas ... O tempo que restava era somente dedicado à renovação precária das forças para voltar ao trabalho no dia seguinte. Inexistia a idéia de tempo livre, ou seja, um tempo fora do julgo disciplinar do capital e do patrão, onde a pessoa poderia dispor livremente da própria vida. Com o avanço do sindicalismo, as revoluções tecnológicas na virada dos séculos XIX para o XX e o crescimento da produtividade na sociedade industrial, a jornada de trabalho é reduzida drasticamente, chegando à chamada “jornada inglesa” (oito horas diárias de trabalho). É o aparecimento do tempo livre para as pessoas. Mas isso trouxe um inesperado problema para a disciplina industrial: chefes e patrões perceberam que os empregados se tornavam cada vez mais arredios, indisciplinados e contestadores. Após o tempo livre, os trabalhadores voltavam renovados: a conquista de um tempo totalmente fora da rotina mecânica da disciplina do trabalho, das ordens do chefe e do relógio-ponto, mostrou que havia um outro mundo, onde a pessoa podia ser autônoma e dispor livremente do próprio tempo. Não era à toa que os empregados voltassem cada vez mais arredios ao mundo do trabalho. O crescimento do tempo livre demonstrava um potencial politicamente subversivo ao sistema. Portanto, era necessário que a disciplina fosse para além do trabalho, deveria também invadir o próprio tempo livre para fazer os indivíduos retornarem mais dóceis às linhas de montagem ao perceberem a inevitabilidade da ditadura do tempo imposto pelo capital. Herbert Marcuse apontava que o mundo do trabalho é dominado pelo chamado “princípio do desempenho” (eficácia, produtividade, performance e competitividade) que se opõe ao princípio do prazer do P Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 23 tempo livre. Governada pelo princípio do desempenho, o capitalismo deve impor tal controle ao tempo livre evitando, assim, que o indivíduo livre no ócio arrase o “ego da realidade”: “A partir do dia de trabalho, a alienação e a arregimentação se alastram para o tempo livre. O controle básico do tempo de ócio é realizado pela própria duração do tempo de trabalho, pela rotina fatigante e mecânica do trabalho alienado, o que requer que o lazer seja um relaxamento passivo e uma recuperação de energias para o trabalho. Só quando se atingiu o mais recente estágio da civilização industrial, quando o crescimento da produtividade ameaça superar os limites fixados pela dominação repressiva, a técnica de manipulação das massas criou então uma indústria de entretenimentos, a qual controle diretamente o tempo de lazer, ou o Estado chamou a si diretamente a execução de tal controle. Não se pode deixar o indivíduo sozinho, entregue a si próprio. Pois se tal acontecesse, com o apoio de uma inteligência livre e consciente das potencialidades de libertação da realidade da repressão, a energia libidinal do indivíduo, gerada pelo id, lançar-se-ia contra as suas cada vez mais extrínsecas limitações e esforçar-se-ia por abranger cada vez mais vasta área de relações existenciais, assim arrasando o ego da realidade e seus desempenhos repressivos”21 Diante desse perigo de no interior do capitalismo surgirem esferas de tempo livre cada vez mais amplas, é inventado o “tempo de lazer” administrado e planejado pela Indústria Cultural. As origens dessa indústria de entretenimento podem estar localizadas na estratégia das fábricas criarem grêmios desportivos, clubes de campo, campeonatos esportivos internos, etc para fazer os operários ocuparem produtivamente este tempo de lazer, isto é, um tempo livre filtrado pela censura de conteúdo imposta pela cúpula empresarial. Mas isto ainda era muito primário. É na sociedade de consumo que esse controle realiza-se de modo mais sutil, na transformação do próprio tempo livre em mercadoria a ser adquirida pelo indivíduo. O tempo livre transformado em “lazer” ou “hobby” pela Indústria Cultural tem um duplo aspecto para ser analisado: a transformação do tempo livre em mercadoria e a submissão do tempo ocioso do lazer ao princípio do desempenho. Peguemos o exemplo da praia. Submetida à liberdade organizada, a praia deixa de ser um lugar de fruição espontânea do tempo para ser submetida ao fetichismo da mercadoria. Como observou Adorno em uma oportunidade22, o bronzeado do corpo de torna um fetiche, um fim em si mesmo. Não basta ir apenas à praia, é necessário adquirir um bronzeado ótimo, uma performance ideal para que o bronzeado seja o testemunho de que suas férias foram excelentes. Se você voltar ao trabalho sem a cor obrigatória pode ficar seguro que algum colega fará uma pergunta mordaz: “Mas o quê você fez nas suas férias?”. Isso sem falar dos controles sociais complementares: indústria de cosméticos, tratamentos estéticos, consultas dermatológicas, etc. O corpo que deveria proporcionar prazer é atrelado a uma disciplina que implica em gastos financeiros e atrelamento do indivíduo ao sistema econômico que gostaria de escapar. 21 MARCUSE, Herbert, Eros e Civilização, R. de Janeiro, Zahar Editores, 1981, p. 60. 22 Veja ADORNO, T. “Tiempo Libre”, in: Consignas, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1973 Escola de Frankfurt Wilson Roberto Vieira Ferreira 2004 Wilson Roberto Vieira Ferreira 24 Indo mais além, enquanto no mundo do trabalho os processos utilizados para mensuração do tempo, divisão e organização geral do trabalho resultam em movimentos monótonos e repetitivos (algo semelhante ao trabalho maquinal feito pelo personagem de Charles Chaplin no filme Tempos Modernos), o lazer, em muitos aspectos repete este mesmo princípio. Academias de musculação onde indivíduos repetem até quase morrer os mesmos movimentos; programas populares de perguntas e respostas concorrendo a prêmios milionários onde nos divertimos vendo pessoas passando situações análogas as que vivemos no nosso dia-a-dia de trabalho: correndo contra o cronômetro para apertar o botão e ganhar a bolada milionária. A Indústria Cultural elimina a distância entre as imagens e a vida cotidiana. Não vemos na TV algo que transcenda (ou sublime) a cinzenta vida cotidiana, mas assistimos a banalização e a confirmação do que sempre foi. Em programas populares como no quadro Topa Tudo por Dinheiro do apresentador Silvio Santos mostram-se transeuntes ocasionais que, diante do repórter do
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