Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 Higino Martins Esteves RELIGIÃO E MITOLOGIA DOS POVOS DE LÍNGUA CÉLTICA Índice Quadro dos deuses masculinos . . . . . . 2 A Deusa Única . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 Quadro da Deusa Única . . . . . . . . . . . . 3 Outros vestígios . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 Definições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 O Escadevas e a Deusa das Sombras . 54 O informe de César . . . . . . . . . . . . . . . 5 BRÍGANTĪ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 Estranhas equações . . . . . . . . . . . . . . . 6 ANŪ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Inovações gregas . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 ÉPONĀ-ÉKWONĀ . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 Legado romano . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 BANDWĀ. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 Panteão indo-europeu . . . . . . . . . . . . . 7 MEDWĀ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 As Ilhas dos Seis Deuses . . . . . . . . . . . 7 ÁGRONĀ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 Quais são essas ilhas? . . . . . . . . . . . . . 9 ARDWIGNĀ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 LUGUS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 ARTIŪ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 As imagens de Lugus . . . . . . . . . . . . . 14 KAWĀ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 Lugus e o culto imperial . . . . . . . . . . .15 MAMMIĀ, MAMMIŪ, AMMĀ AIIĀ . . . 67 Genealogia de Lugus . . . . . . . . . . . . . 16 DAMONĀ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 A morte de Balor . . . . . . . . . . . . . . . . 17 TSĪRONĀ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 NŌDŪS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 ROSMERTĀ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 Quem é *BRIGONOS no hino galego? . 21 MĀTERES, MĀTRES ou MĀTRONĀS . 69 BRÍGONOS-ĒSUS-ÓGMIOS-*MÔLTONOS 23 Deuses difíceis de classificar . . . . . . .70 Quem é Manannán Mac Lir? . . . . . . . 26 MÉDUROS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 Ogrove, a lenda do Meco, o Carneiro O Tricefálico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 e o rito das nove ondas . . . . . . . . . . 27 O da atitude búdica . . . . . . . . . . . . . . .71 Um carneiro mítico . . . . . . . . . . . . . . .27 O dos pássaros . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 Ainda sobre o rito das nove ondas . . . 30 A serpe de cabeça de carneiro . . . . . . 72 Sacerdotisas na foz dos rios . . . . . . . . 30 Genius cucullatus . . . . . . . . . . . . . . . 72 Sacrifícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Animais sagrados . . . . . . . . . . . . . . . . 72 Rígsþula calaico . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 TAUROS TRIGARANOS . . . . . . . . . . . . . 73 O enforcamento . . . . . . . . . . . . . . . . . .31 KERNUNNOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 TEUTATIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Cosmologia, Origens e Escatologia . .76 SMERTRIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Ideia antiga do mundo . . . . . . . . . . . . 76 ALAUNOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 Criação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 TÁRANIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 Origem dos humanos . . . . . . . . . . . . . 78 Imagens de Táranis. . . . . . . . . . . . . . . .42 O fim do mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . 78 Vestígios calaicos . . . . . . . . . . . . . . . . 42 Um deus silencioso . . . . . . . . . . . . . . 79 Os Gémeos no mundo céltico . . . . . . . . 47 DRÚWIDES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81 O caso de Apolo . . . . . . . . . . . . . . . . . .48 Houve sacerdotisas? . . . . . . . . . . . . . 90 Ideias sobre o Além . . . . . . . . . . . . . . 92 2 © Higino Martins Esteves © Academia Galega da Língua Portuguesa RELIGIÃO E MITOLOGIA DOS POVOS DE LÍNGUA CÉLTICA Edição digital 2018 Prólogo Trás Dumézil em mitologia passou o tempo da simples cumulação de notícias que resultava num puzzle fantástico. É sabido que os delírios estragam o fascínio do fundo céltico. A tentar conjurá-lo de vez na memória coletiva dos povos hespéricos, adianto o quadro comparativo dos deuses másculos do grupo linguístico indo-euro- peu. Este quadro ao cabo vem das pesquisas do mestre. Também vem daí a noção de que no passado remoto o grupo concebia uma deusa única com vários epítetos, que dariam na fragmentação politeísta posterior. A luz de Dumézil gera um corolário já implícito em Jung e Lacan: a língua é a psique da sociedade, complexa como a individual, com uma consciência (que pode representar-se no dicionário e na gramática) e também com inconsciente, orgânico e quase inexplorado, mas visível nas estruturas sintáticas profundas de Chomsky, nos junguianos arquétipos do inconsciente coletivo (que é linguístico, não genéti- co) e noutras pegadas. 3 QUADRO COMPARATIVO DOS DEUSES MASCULINOS DOS POVOS DE LÍNGUAS INDO-EUROPEIAS Primeira função: DEUSES SÁBIOS E SOBERANOS (sacerdotes e letrados) Aspecto apolíneo ou mitraico Aspecto dionisíaco ou varuniano véd. MITRÁ germ. *TĪWAZ (Týr, Tiw, Ziu) rom. DĪVS FIDIVS célt. NŌDŪS, NŌDONTOS “pescador, laçador” irl. ant. NUADU, mod. NUADHA gal. LLUDD (< NUDD) calaico KOSSOS “companheiro” Interpretatio romana de Nodus: MART- véd. VÁRUNA germ. *WŌĐINAZ (Óðinn, Woden, Wotan) rom. IVPPITER célt. LUGUS, LUGOUS “lince” irl. ant. LUG, mod. LUGH gal. LLEW Interpretatio romana de Lugus: MERCURIO- véd. ARYAMAN purânico YAMA? nórd. BALĐR rom. IVVENTAS célt. TEUTATIS, TEUTATOIS “nacional, da tribo” irl. ant. DAGDA gaulês SUCELLOS, hisp.-célt. ENDOVELLICOS Interpretatio romana MART- e DĪS PATER véd. DAKŞA (> AGNI, BRHASPATI) (de LÚGOWES) > gr. ῞Ηφαιστος, nórd. HEIMĐALLR > rom. VOLCĀNVS, rom. IĀNVS > célt. GOBANNIŪ célt. ĒSUS “frenético” OGMIOS “o das letras” epít. *BRIGONOS “Alto” *MÓLTONOS “Carneiro” irl. ant. BREGON, mod. BREOGHAN irl. MANNANÁN i. rom. MERCURIO- i. rom. HERCULES véd. BHÁGA nórd. HÖĐR rom. TERMINVS célt. SMERTRIOS “proveedor” irl. DÍAN CECHT? Interpretatio romana: MART- véd. AMŚA (de LÚGOWES) célt. ALAUNOS “butim” epít. *SOMELUDĀNIKOS “hamapolytekhnikós” Interpretatio romana: MERCURIO- Segunda função: DEUSES FORTES (guerreiros) Pré-védicos ÍNDRA e VĀYU véd. ÍNDRA germ. *ÞUNRAZ (ÞÓRR, THOR, DONAR) rom. MART- célt. TÁRANIS, TÁRANOIS “trovão” irl. ant. ASSAL Interpretatio romana: IVPPITER Terceira função: DEUSES RICOS (produtores) véd. NĀSATYĀ, > ÁŚVIN germ. *HAZDINGŌZ, suevo ALKIS, vândalo *RAUZAZ e *RAFTAZ rom. RŌMVLOS (QVIRĪNOS) e RĒMOS grego dório Διόσκουροι (DIOSCŪRĪ) célt. *IEMNE, IEMNOU “os [dous] gêmeos” > irl. ant. EMUIN (MACHA) Interpretationes (MARTES) DIVANNOS e DIVOMOGETIMAROS (dos Ruteni) e assimilações *DĒWOGNOS ak DĒWOMOGETIMĀROS, (MARS) VINTIVS POLLVX e (*APOLŪ) GRANNOS, BORWŪ ou BÉLĒNOS Abreviaturas célt.: céltico ant. gal.: galês gr.: grego irl.: irlandês véd.: védico epít.: epíteto germ.: germânico ant. i. rom.: interpretatio romana rom.: romano primitivo 4 DEUSA ÚNICA TRIVALENTE Para Dumézil os indo-europeus tinham uma deusa única, trivalente ante os deuses masculinos especiais e trifuncionais, como demonstra o matrimónio poliândrico de Draupádi no Mahabharata,que transpõe o mitologema ao plano épico. Os rastos propriamente religiosos da situação primeira são essencialmente indo- iranianos, célticos e romanos. Nos outros ramos, epítetos e especializações locais da deusa já geraram um politeísmo feminino. Eis os rastos seguintes: a) A védica SARASVATĪ, que se identifica com VĀC “a Voz, a Palavra”. b) A avéstica ARĂDVĪ SŪRŪ ANĀHITĀ “Úmida, forte, imaculada” (3a, 2a, 1a). c) A JŪNŌ de Lanúvio, qualificada de SEISPES MĀTER RĒGĪNA (2a, 3a, 1a). Não únicos, são os rastos mais claros fora do campo céltico. A trivalência aqui quiçá seja uma adaptação secundária ao desenvolvimento trifuncional masculino; mais velha seria a unicidade da deusa, com outra partição trial (lua crescente, cheia e decrescente). Nos celtas, o nome mais geral é *BRÍGANTĪ, g. BRÍGANTIĀS “excelsa, alta” (lat. Brigantĭa). É difícil distribuir trifuncionalmente os epítetos tradicionais; é que são aspectos quase inextricáveis. A função guerreira aparece sempre unida ao mundo inferior: ÁGRONĀ “caça divina” é da 2a. AMMĀ AIĀ “mamãe velha” é uma Terra Mater. Calaica e lusitana. *ANŪ, ANONOS é a mãe dos deuses na tradição gaélica. *ARDWIGNĀ “montanhesa” é das Gálias. Talvez da 2a. ARGANTOROTĀ “roda de prata”, quer dizer, a lua, é de tradição britânica. ARTIŪ, ARTIONOS “ursina”. Significa o caos e a função guerreira. Geral. BANDWĀ “a que une” é epíteto calaico e parece da 1a. BELÍSAMĀ “brilhantíssima” é epíteto continental. BODWĀ “gralha” é da 2a. DÁMONĀ “vaca divina” é epíteto protogaélico. Provavelmente da 3a. ÉPONĀ “égua divina” é epíteto antigo relacionado com a soberania (1a). *KAWĀ “gralha” é de tradição hispana (2ª). KOWENTĒNĀ “a da reunião amorosa” aplicava-se a *SKĀTÓDĒWĀ (2ª). MAMMIĀ “mãe nutriz” é pancéltica. MEDWĀ “embriagadora”, de tradição gaélica, relacionado com a soberania. *MORIRĪGANĪ “rainha de fantasmas” é gaélica; da 2a e do Mundo Inferior. *NEMONĪ “fúria bélica”, da 2a. RĪGANTONĀ “rainha divina” é da tradição britânica e coincide com ÉPONĀ. ROSMERTĀ “fornecedora, providente” é das Gálias. Da 3a. *SKĀTÓDĒWĀ “deusa das sombras” é nome calaico, de cariz infernal e guerreiro. 5 RELIGIÃO E MITOLOGIA CÉLTICAS KELTIKĀS DĒWODIAXTĀ ak SKETLAXTĀ DĒWODIĀ Estes estudos têm ímpar valor histórico por serem janelas abertas ao pensamento dos antigos em geral, e do grande grupo humano céltico, fulcral na cultura global dos nossos dias, como se viu desde a difusão dos trabalhos de Dumézil. Como se dizia religião e mitologia em céltico? O gaélico diadacht “religião” é eco da segunda palavra do título céltico, DĒWODIAXTĀ. O inglês divinity – velho sinónimo de theology – robora a antiguidade do conceito e revela-se decalque do céltico, a língua viva no tempo da evangelização britana. Por religião entende-se aqui o sistema de crenças e práticas arredor das forças transcendentes a reger o cosmos (então os deuses), e aqui por mitologia, uma série de histórias divinas, arquétipos tirados dessa cosmovisão, mas sem uma sistemati- zação qualquer. Mito é “ideia ou crença viva”, não “mentira esparsa”. O gaélico scél “história; notícia” procede do céltico *SKETLON, em plural *SKETLĀ. Logo a frase SKETLAXTĀ DĒWODIĀ significa “histórias divinas”. A mitologia moderna compara mitos em vez de nomes. Ora bem, sabemos hoje que os mitos acompanham as famílias linguísticas. Quer dizer, as línguas guardam conteúdos inconscientes e, dentre estes, mitos1. O nosso campo é a língua céltica, dentro do maior das línguas indo-europeias, i.é, das que desde a Anatólia neolítica cobriram o oeste (Europa) e leste (Ásia). No oeste, desde os anos 6000, a partir do norte dos Balcãs chegaram ao Atlântico arredor do ano 4500. Língua céltica e indo-europeu ocidental foram o mesmo, até que pelo 1000 aC. o grupo itálico começa a separar-se no nordeste da Itália. Separação que cresceu ao perder-se no céltico alpino o fonema P arredor dos anos 800-700; carácter que foi estendendo-se até o mar junto da técnica do ferro. Depois se esgalhou o ramo germânico nos anos 500 em terra danesa através da primeira mutação das consoan- tes. Os povos célticos surgem na história, primeiro em autores gregos do séc. VI, depois em latinos de inícios do IV, ao entrarem os gauleses na Gália Cisalpina. As fontes de religião e mitologia, perante as nórdicas, são certamente escassas, e sobretudo lacunares. O grau de fragmentação é tal que parece inútil tentar armar o puzzle com essas peças. Mas há novas vias epistemológicas a surgir. Ali onde nada se esperava pegam a sair estruturas inteligíveis. Duas chaves mágicas vieram a ilu- minar-nos: primeiro o trifuncionalismo de Dumézil, depois o progresso nas pesqui- sas de linguística céltica. O que se sabia por Posidónio, Políbio, Estrabão e mor- mente por César e Lucano, já pega a reconstituir-se num quadro coerente. Assim é 1 Chomsky e Lacan criam a antropologia linguística, com corolários: a) linguagem = pensamento; b) línguas = culturas = nações; c) linguagem (sociedade) = psique (humano) e d) a linguagem consciente e inconsciente. 6 como as velhas epígrafes, a tradição irlandesa, épica e legendária, o Lebor Gabála, as vidas de santos e os Immrama recobram a luz original e ocupam novo lugar num contexto inusitado. Mesmo os Mabinogion galeses e a Historia Regum Brittanniae, já com menos mistério, mas com mais cor. E agora cumpre sublinhar a luz pasmosa que a linguística trouxe ao abrir os segredos da toponímia galega. O informe de Júlio césar Cumpre conceder que Júlio César, o Átila do mundo céltico, é a fonte antiga mais importante. Apesar da longa polémica, a síntese mais plena é a que faz no livro VI da sua Guerra Gálica: 17 “Dos deuses Mercúrio é o que mais veneram. Tem muitíssimas representações. Contam que é o inventor de todas as artes, o guia nos caminhos e percursos e lhe atribuem máximo poder na procura de fortuna e no comércio. Depois vêm Apolo, Marte, Júpiter e Minerva. Deles opinam quase o que as outras nações: que Apolo cura doenças, Minerva inicia em labores e profissões, Júpiter tem o império dos céus e Marte dirige as guerras. A este ao decidirem combater usam consagrar-lhe o butim da guerra: quando triunfam imolam os seres vivos presos e reúnem num único lugar o resto. Em muitas vilas podem ver-se túmulos erigidos com espólios em sítios consagrados; raro é que alguém, esquecido o escrúpulo religioso, ouse ocultar o tomado ou levar o depositado; instituíram o pior suplício com tormento para este feito.” 18 “Todos os gauleses proclamam ser descendentes de Dis Pater, e dizem ser ensinança dos druidas. Por causa disto não medem todos os ciclos de tempo pelo número dos dias, senão das noites; assim é que na celebração dos dias de anos e nos começos dos meses e dos anos o dia segue à noite.”2 Os nomes ocultos na interpretatio romana dos deuses são os que seguem: “Mercúrio” LUGUS “lince” “Apolo” GRANNOS “[moço] barbado”, BORWŪ “das fontes” e BÉLĒNOS “brilhante” “Marte” NŌDŪS, g. NŌDONTOS “pescador” “Júpiter” TÁRANIS “trovão” “Minerva” BRIGANTĪ, g. BRIGANTIĀS “excelsa, alta” 2 17 “Deum maxime Mercurium colunt. Huius sunt plurima simulacra: hunc ómnium inventorem artium ferunt, hunc viarum atque itinerum ducem, hunc ad quaestus pecuniae mercaturasque habere vim maximam arbitran- tur. Post hunc Apollinem et Martem et Iovem et Minervam. De his eandem fere, quam reliquae gentes, habent opinionem: Apollinem morbos depellere, Minervam operum atque artificiorum initia tradere, Iovem imperium caelestium tenere, Martem bella regere. Huic, cum proelio dimicare constituerunt, ea quae bello ceperint ple- rumque devovent: cum superaverunt, animalia capta immolant reliquasque res in unum locum conferunt. Multis in civitatibus harum rerum exstructos tumulos locis consecratis conspicari licet; neque saepe accidit, ut neglecta quispiam religione aut capta apud seoccultare aut posita tollere auderet, gravissimumque ei rei supplicium cum cruciatu constitutum est.” 18 “Galli omnes ab Dite patre prognatos praedicant idque ab drui- dibus proditum dicunt. Ob eam causam spatia omnis temporis non numero dierum sed noctium finiunt; dies natales et mensum et annorum initia sic observant ut noctem dies subsequatur.” 7 E acrescentamos que “Dis Pater” é TEUTATIS, g. TEUTATOIS “nacional, tribal”. Parece complexo, mas promete abrir as portas de um mundo que andava perdido. ESTRANHAS EQUAÇÕES Nada claras são as equações de César, que do sumo deus de celtas e germanos faz um “Mercúrio”; do par apolíneo, um “Marte” e do deus da guerra, um “Júpiter”. O mundo heleno também nota estranhas alterações no quadro indo-europeu comum. INOVAÇÕES GREGAS O legado da Grécia à cultura global foi ensinar a pensar com a cabeça, não com o coração ou qualquer outra víscera. Numa linguagem atual, Grécia criou a ciência moderna, computável, verificável e reproduzivel. Dantes conhecia-se e aprendia- se com sabedoria intuída, vinda do inconsciente. Ao processo grego puseram-se marcos na morte de Sócrates e o culto da Razão no Paris revolucionário. Mas é desenvolvimento mais longo, já refletido no mito da origem de Ateneia (a Razão para os atenienses), que nasceu da cabeça de Zeus. Outra alteração é que Zeus (e o Júpiter helenizado) se tenha apossado do lampo que na mitologia dos indo-europeus pertencia ao deus da guerra (Táranis, *Þunraz, Indra). Causa foi que o deus da guerra, atado à força bruta, na Grécia deu desacre- ditado, e às vezes ferido por Ateneia ou por Heracles, forças mais inteligentes. LEGADO ROMANO A interpretatio *NŌDŪS = “Marte” é outro enigma. O velho Marte latino também era um Táranis ou Indra. Mas o génio romano virou o deus frenético num deus do direito. O direito é o legado de Roma à cultura universal. O público e o privado – estado e código civil – é o jeito civilizado de conviver. Como se deu tal processo? Pela mudança no jeito de fazer a guerra. Em vez de ingerir alucinógenos que pro- duziam frenesi e fiavam a vitória à fúria induzida como os guerreiros anteriores, o romano para vencer foi-se disciplinando. Essa regulação começava no Campo de Marte, onde o povo armado se reunia e votava. Assim foi como o Marte frenético virou vagarosamente para o Marte regulado, ao cabo um deus do direito. Isto seria incrível a não termos a versão germana dos nomes latinos dos dias da semana. A semana bíblica entrou em Roma com o cristianismo, o que permite datar tal passo a partir de fins do séc. II da nossa era. diēs Sōlis diēs Lūnae diēs Martis diēs Mercuriī diēs Jovis diēs Veneris diēs Sāturnī Sōl Lūna Mars Mercurius Juppiter Venus Saturnus *Sunnon *Mānen *Tīwaz *Wōðinaz *Þunraz *Frijaz *Sāternaz Sunday Monday Tuesday Wednesday Thursday Friday Saturday Eram nomes cristãos pela origem bíblica da semana. Apesar dos nomes de deuses pagãos, estes não chocavam porque não aludiam aos deuses, mas aos astros e pla- netas que deles tiraram nomes. Só muito depois se deu a volta de parafuso radical dos nomes portugueses da semana, que procuram varrer mesmo esse rasto. 8 PANTEÃO INDO-EUROPEU MASCULINO Dumézil notou haver uma estrutura de seis deuses védicos da primeira função. Daí poder conjeturá-lo nos outros ramos indo-europeus. Os seis faziam duas trindades, uma apolínea ou mitraica, a outra dionisíaca ou varuniana. Cada uma delas consta de um deus principal e dous acólitos. Estes atam de jeito apolíneo ou dionisíaco a 1ª função com as outras duas. Cada nível tem também os pares complementares Mitrá-Váruna, Aryaman-Bhaga e Daksa-Amśa. A parte apolínea é próxima do humano, facilita alianças e tratados, é bondosa, tranquilizadora, afim à prosperidade pacífica. A dionisíaca gosta do conjunto do universo, possui a magia criadora das formas que ata, é violenta e imprevisível. MITRÁ “contrato” VÁRUNA “laçador” ARYAMAN “o dos aryá” DAKSA “energia criadora” BHAGA “quinhão, lote (bom)” AMŚA “butim, prémio nos jogos” Sem profundar na estrutura védica3, cuido haver uma estrutura céltica similar, que, segundo a teoria das ondas, robora o arcaísmo das extremas. Eis a céltica: NŌDŪS, g. NŌDONTOS “pescador” LUGUS, g. LUGOUS “lince” TEUTATIS, g. TEUTATOIS “nacional” ĒSUS-OGMIOS “frenético”, “das letras” SMERTRIOS “provedor” ALAUNOS “butim” As Ilhas dos (Seis) Deuses No século I, Plínio4 dá uma curiosa notícia que foi mal entendida e que a meu ver robora a estrutura de seis deuses sábios e soberanos. Ele, depois de falar nas ilhas Cassitérides (de situação desconhecida) diz “e regione arrotrebarum promunturi (insulae) deorum VI, quas aliqui fortunatae appellavere”. Breve texto que reúne quanta dificuldade filológica se possa imaginar. Cuidava ele que arrotrebas era o nome lídimo dos que outros chamavam ártabros. Na verdade, confuso estava ele porque ártabro significava “do Norte, setentrional” (ou “os calaicos federados do Norte”), entanto que arrotrebas era o nome de uma tribo do Norte. Cumpre traduzir “saliência dos ártabros”, ângulo noroeste, por outros chamado Nério ou Céltico. E regione é “diante de”, “no ponto atingido por uma reta tirada na terra ou no céu”, cf. Benveniste. Pelo contexto fala-se em ilhas, as dos Deuses. O caso é que, trás deorum, os códices têm o número VI. Que determina? Deorum ou insulae? Atribuí-lo a insulae é o fácil; arquipélagos de seis ilhas nunca faltam. Falar em seis deuses é meter-se em funduras. Mas, apesar do hipérbato, o trecho pede preferir deorum. Na ignorância o que cumpria era pôr interrogações. 3 G. Dumézil, Les dieux des Indo-européens, Presses Universitaires, 1952. Em cast., Seix Barral, 1970. 4 Hist. Natural IV, 119. 9 Quas aliqui fortunatae appellavere “que alguns chamam Afortunadas” é fácil. Homero e Hesíodo falam nas felizes ilhas do ocidente: Fortunatae, Fortunatorum, arva beata, μακάρων νῆσοι, Atlântida, ecos de arquipélagos atlânticos. As velhas tradições dos debruçados no mar são as raízes que gerariam as lendas célticas das Ilhas das Maçãs, Tír na nÓg ou Avallon. A notícia pliniana será a primeira pegada da crença que aparece plena na Irlanda e no ciclo artúrico. Logo a tradução será: “Ante / além do Fim da Terra (= saliência dos “arrotrebas” / ártabros) são as (ilhas) dos 6 deuses? / as 6 (ilhas) dos deuses?” Deixo essas interrogações por escrúpulo, apesar de o 6 seguir deorum. Trás um século, Ptolomeu contesta a Plínio:5: καὶ αἱ τῶν θεῶν νῆσοι δύο τὸν ἀριθμόν δ’ γο” μγ’ γ” (e as ilhas dos deuses duas de número 4º 40’ 43º 30”). E contesta-lhe com ton arithmón. O declínio celta opacara os Seis Deuses. Plínio sabe o que diz, mas Ptolomeu sabe as ilhas serem duas. VI modificava Deorum. Traduzo: “Ante a saliência / ângulo dos ártabros estão as (ilhas) dos Deuses, que alguns chamaram de Afortunadas”. A integração das duas notícias em céltico é: *AK DĒWON ENESIIĀS, DWAI RĪMĀS. Dumézil viu que os deuses védicos da 1ª função eram seis fazendo uma estrutura: Mitrá e Váruna são deuses sábios-soberanos diferentes e complementares de tipos apolíneo e dionisíaco. Junto deles há outros dous pares, também complementares entre si, Aryaman-Daksa e Bhaga-Amśa, acólitos que ministram respetivamente as relações com as funções 2ª e 3ª. Mitrá-Váruna são os sumos sábios soberanos. Aryaman-Daksa, sábios soberanos que cifram o lado “enérgetico” da soberania. Bhaga-Amśa, os soberanos que figuram a distribuição sábia dos bens da 1ª função. Por sua vez, Váruna, Daksa e Amśa fazem uma tríade dionisíaca (ou varuniana) e Mitrá, Aryaman e Bhaga outra tríade, apolínea (ou mitraica). Dumézil viu os seus pares nórdicos e latinos, de pegadas mais ténues ao descer. Týr-Óðinn e Dīus Fidius-Juppiter são como Mitrá-Váruna. A tríade mitraica dos latinos era Dīus Fidius-Juventas-Terminus. A varuniana não é perfeita; apenas há Jānus, similar a Daksa, masfalta o par de Amśa. Dumézil viu os nórdicos Balðr e Höðr ser como Aryaman e Bhaga. Da tríade varuniana, apenas Heimðallr é como Daksa, e ignora-se o par de Amśa. Eram seis los soberanos célticos? Ver-se-á que aí houve um quadro de notável arcaismo. Das epígrafes calaicas aos Lúgoves deduz-se serem uma tríade de tipo dionisiaco-varuniana, estrutura que surge justamente do lado que mais obscuro era. Creio que eram seis no mundo céltico, e mais precisamente no calaico. Há várias explicações do simbolismo do 6. As invocações indo-europeias uniam os deuses maiores de cada função: Týr-Óðinn-Freyr e Juppiter-Mārs-Quīrinos, o que não é o caso. Houve pendor a dobrar assimetricamente a tríade com um com- posto de Mitrá-Váruna e adindo Aryaman da 1ª, Indra da 2ª e os Gémeos (Aśvin 5 Geographia, tábua II, cap. 6, 73 in fine (ed. Carl Müller). 10 ou Nasatya) da 3ª, o que soma seis. A falta de sistema salienta o simboliamo do número. Outros 6 há no livro de Júlio César. Cita os deuses celtas sob seis nomes latinos: Mercúrio, Apolo, Marte, Júpiter, Minerva e Dis Pater; já vimos os nomes celtas LUGUS, BÉLĒNOS-BORWŪ-GRANNOS, NŌDŪS-KOSSOS, TÁRANIS, BRIGANTĪ e TEUTATIS. O seis é tradicional símbolo de ambivalência e equilíbrio. A elaboração teológica e letrada deveu de ter importante papel no fundo dessa tradição indo-europeia, céltica e calaica. Esses Seis Sábios Soberanos da primeira função teriam provavelmente os seguintes nomes célticos: o par de Mitrá, Týr e Dīus Fidius seria NŌDŪS, g. NŌDONTOS (e KOSSOS calaico); o de Váruna, Óðínn e Juppiter seria LUGUS; o de Aryaman, Balðr e Juventas será TEUTATIS; de Daksa, Heimðallr e Jānus é ĒSUS-OGMIOS-MOLTONOS; o par de Bhaga, Höðr, Terminus, é SMERTRIOS (na Galiza o filho cego de Lupa); o de Amśa é ALAUNOS, também talvez chamado *SOMELUDĀNIKOS. Parafraseio Ptolomeu adindo-lhe Plínio: *DWAI ENESIIAI DĒWON SWEXS. “Duas ilhas dos Seis Deuses” Quais são essas ilhas? Schulten cria-as as ilhas dos Bruios, em Fisterra. Cuevilhas, cons entre Fisterra e Ortegal. “Ante o Fim do Mundo” e as tortas coordenadas ptolomaicas varrem tais opiniões. No Atlântico há muitas ilhas misteriosas, mas Ptolomeu quer ser mais preciso que Plínio; dá latitude e longitude. Mas onde diz nada há. O editor Müller tentou situá-las supondo lapso na transmissão. Os códices notam o sítio entre as fozes do Lima e do Minho e aí não há ilhas. Ora, lendo 44º 30' em vez do 43º 30', Müller propôs Sies (Cies) ou Ons e Onza. Ons é nome pré-romano e Sies, latino. Sies é o único arquipélago galego sem nome pré-romano. Interpretemos Ons. Ons vem do ablativo plural lat. *Auniīs, do pré-romano AUNIOS sg., em Plínio. Em 911 é Aones (já há queda do -N-, logo latinização parcial). Mais restaurado é Aonios, da História Compostelana. Códices desta do século XVII trazem Ouns (*Auniīs > *Ounis > *Õues > Õuus [Ouns] > Ons). É quase o gaél. aúne f. “fome, penúria” (*AUNIĀ), deturpação de nóine, náune “id.” (*NAUNIĀ). O galês newyn “id.” foi *NAUNIOS, com pares germânicos, baltos e eslavos. Por que caiu o N-? Vendryes, Stokes e Pokorny viram aí o lat. vulg. *āiūnium “jejum” (> irl. áine), mas é difícil um influxo tão precoce na forma tetrassilábica. À margem das causas, retenha-se que *NAUNIOS “fome, penúria” em irlandês tem forma alterna sem N- do mesmo valor, bem próprio para estéreis ilhas desertas. Se é certo, não são as Ilhas dos Deuses. Plínio cai na paretimologia Siccae por crê-las secas, mas não é o étimo. Sies foi *Sīcās, acusativo do lat. *sīcae 6, de semântica clara. Sīcae é de sīca, a arma dos trácios, punhal curvo que feria de ponta. Palavra popular, foi metáfora das presas 6 *Sīcās > *Sigas > *Sias > Sies. M. Lasso viu o C- do Cies usual ser ultracorreta que quer fugir ao “sesseio”. 11 dos porcos bravos e é a base de sīcārius, sīcīlis e sīcīlicus. Este é “a quarta parte da onça”, dita assim pelo feitio do seu símbolo, um C virado para a esquerda que depois veio ser a vírgula. A curva é o relevante na semântica: as ilhas Sīcae eram “curvas como sīcae”. As cartas “satelitais” não mostram quão curvas as veem os marujos. Plínio não as viu; só ouviu delas. A imaginação traiu-o e viu-as secas e desertas. Sies é latino, Ons, não. Dados aceitáveis, mas ficam questões. No cabo da Barbança estão as ilhinhas de Sagres (Sacrīs), que por latitude e tamanho não podem ser. A pista é uma ilha hoje ausente dos mapas, duas vezes nomeada na H. Compostelana, que depois não volve a sair: Flâmia (Flâmina em códices mais re- latinizados). Nas notas leio um texto de 20 de abril de 9117 a falar na ilha Frâmio, de étimo claro: lat. flāminum, genitivo plural de flāmen, logo “ilha dos flâmines”. Daí Flâmia e Flâmina, relatinados de género mudado. Frâmio, cf. flor, guardou o grupo inicial da pronúncia culta. “Ilhas dos Seis Deuses” não feria a religião latina. Os célticos eram iguais sob nomes diversos. Mas ao se apagar, “Seis” precipitou mudanças. O nome foi substituído por Īnsulae Flāminum, a notar melhor o culto8. Os flâmines das ilhas serão rasto dos doutores indígenas, os drúwides, de cuja ausência tanto se fala. A falta de fontes na Galiza é argumento triste, mas serve a negar a celticidade calaica. Mas sua presença é necessária para a preservação de teologemas dantes só vistos na Índia védica. Os flâmines das Célticas no Império eram os drúwides que colaboravam. Sabe-se que J. César, Augusto e sucessores baniram os colégios druídicos, cientes de neles cifrar-se a identidade céltica, seu único vínculo supratribal. A par precisavam sincretismo para assimilar as vastas populações célticas. Os gutuatri (*GUTUATROI “invocadores”) das epígrafes das Gálias herdam a função do tempo soberano quando eram drúwides, cf. seu nome céltico, mas a par ostentam, quer titulo de flâmines, quer algum nexo com o culto imperial: o gutuatros da epígrafe da catedral de Puy (Haute-Loire) é o pai de um flamen (CIL XIII 1577). O de Mâcon (Saône-et-Loire) é flamen Augusti e também gutuatros Martis (CIL XIII 2585). Ao cabo, o gutuatros do terceiro (CIL XIII II 226) não se sabe se era flamen, mas dedica a epígrafe a Augusto Deo. *Insulae Flaminum era para os nativos pagãos e letrados. No cristianismo perde parte do sentido, mas cabe supor uma ermida a substituir o santuário pagão, se ilha deserta; igreja, se habitada. O golpe final viria da mudança de língua. *Flaminum fez-se Frâmio, que parece masculino singular incompatível com ilhas, plural femi- nino. Frâmio fez-se *Frâmia (relatinizado Flamia ou Flamina), remédio parcial por ser nome de uma ilha, não de grupo, e inútil ante o inequívoco Sīcae plural. Onde Frâmio? Nas Sies, provavelmente na do sul, de S. Martinho, sagrada no nome e na ermida doada ao mosteiro de Oia por Fernando III em 12329. 7 Segundo informação de López Ferreiro, t. II, Ap. XXX, p. 65. 8 O colégio dos flāmines maiores, diālis, martiālis e quirīnālis, era a melhor expressão trifuncional romana. 9 A Compostelana (I, cap. 103) cita as ilhas de sul a norte: Flâmia, Ons, Sálvora, Arousa, Quebra. Flâmia era ao sul das Ons, no lugar das Sies. 12 Conclusões 1) Plínio fala nas Ilhas dos Seis Deuses, leitura perdida e reiluminada. 2) As Ilhas dos Seis Deuses eram duas, segundo Cláudio Ptolomeu. 3) Por situação e número, as Sies seriam as Ilhas dos Seis Deuses. 4) Insulae Deorum VI traduzirá um pré-romano *DWAI ENESIIAI DĒWON SWEXS, depois substituído pelo de Insulae Flaminum. 5) (Insulae) Flaminum fez-se Frâmio, e depois Frâmia. Esta caiu ante o mais po- pular Sias-Sies dos marinheiros. lugus Lugus domina. As trevas que nele caíram vieram da interpretatio romana geral dos deuses bárbaros, que segundo Herodoto: “são sempre os mesmos sob uns nomes diversos”. Os latinos diziam-lhe Mercurius por crê-lo o seu homólogo. O nome Lugus esqueceu-se, salvo nos países que falavam céltico no tempode se cristiani- zar. Onde é que temos relíquias abundantes é na toponímia, resistente às mudanças. Lugudūnum (Lyon) latiniza o célt. LUGÚDŪNON “vila de Lugus”. Além de Lyon (capital da Gália latina), daí vêm nomes de muitas vilas da França: Laon, Loudun, Loudon, Laudun e Lauzun, nos dialetos locais. E Saint Lizier, a silésia Liegnitz e a holandesa Leiden. O galês (Caer)Liwelydd, ingl. (Car)lisle, foi LUGUWALION, do antropónimo Luguwalos “forte em Lugus”. O deus da capital da Gália latina devia ser o sumo no panteão local. A colossal estátua de Mercúrio aí não coexistiria com o nome Lugudunum se não aludisse ao mesmo deus. Os galegos Lubre foram *LUGÚBRIXS “castro de Lugus” 10. Há antropónimos gaélicos que também o incluem. E três epígrafes, de Lugo, uma de Sória e outra da Suíça, todas com o plural LÚGOWES. O número do plural não era dous, pois que o céltico tinha número dual, ainda vivo em gaélico. A cara superior da ara de uma das epígrafes galegas apresenta três fóculos para queimar perfumes. É a trindade dionisíaca de Lugus com Ésus-Ogmios e Alaunos. Robora a primazia do Mercúrio céltico uma epígrafe de Chaves, na Galiza por- tuguesa, que lhe atribui o reinado sobre os imortais: ERMAEI DEVORI (CIL II, 2473), abreviatura do célt. *ERMĀI DĒWORĪGĒ “para Hermes, rei dos deuses”. “Inventor de todas as artes” traduz o epíteto irlandês Samildánach “que a par tem muitas artes; hamapolytekhnikós”, lá *SOM(O)-ELU-DĀNIKOS 11. A chegada de Lugh ao castro dos Túatha Dé Danann (*TEUTĀS DĒWĀS ANONOS “os povos da 10 Uma freguesia no concelho de Bergondo e um lugar na freguesia de Ares, os dous na Corunha. 11 De *SOMO-, Thurneysen, op. cit., § 454. Acerca de *ELU- (< *pelu-, cf. gr. πολύς, gót. filu, scr. purúh), Thur- neysen, op. cit., § 226. De *DĀNU- (< *dōnu-, cf. lat. dōnum, scr. dấnam [de *dōnom] e gr. δώρον, ant. eslavo darŭ [de *dōrom], todos “dom, presente” [no céltico como no românico fez-se sinónimo de “destreza artística ou técnica, arte”]), v. Thurneysen, op. cit., § 51, e Ernout-Meillet, Dict., sub dō. 13 Deusa Anū”, afins aos Ases germânicos e aos Aditya védicos), lê-se na mais velha versão da Cath Maighe Turedh 12, com voz de tradição ininterrupta: O porteiro viu chegar um bando ignoto. Um belo guerreiro de feitio de rei ia a frente da tropa. Pediram anunciar em Temhora terem chegado. “Quem está aqui? diz o porteiro. “Lugh dos combates ferozes, f. de Cían f. de Dían Cecht, e de Ethniu f. de Balor; é o colaço de Talann, filha de Maghmór rei de Espanha, e de Echaid o Tosco f. de Duí”. O porteiro disse a Samhil- dánach: “Que arte praticas? Ninguém entra em Temhora sem ofício” “Prova-me” disse: “sou carpinteiro” O porteiro replicou: “Não és preciso. Temos carpinteiro, Luchta f. de Lúachaid” Ele disse: “Prova-me, porteiro: sou ferreiro” O outro replicou: “Não precisamos. Há ferreiro, Colum Cúailleinech das três novas técnicas” Ele diz: “Prova-me: sou campeão” O porteiro replicou: “Não é necessário. Temos campeão, Ogma f. de Ethliu” De novo: “Prova-me: sou harpista” “Não é preciso. Temos harpista, Abcán f. de Bicelmos, que agasalharam os Homens dos Três Deuses no mundo inferior” Disse “Prova-me: sou guerreiro” O porteiro contestou: “Não preci- samos. Há guerreiro, Bresal Echarlan f. de Echu Báethlán” Então disse: “Prova-me, porteiro: sou poeta e cronista” “Não precisamos. Temos poeta cronista, Én filho de Ethoman” Disse ele: “Prova-me: sou mago” “Não queremos. Há encantadores; são muitos nossos feiticeiros e ho- mens de poder” Disse “Prova-me: sou físico” “Não necessitamos. Eis o médico Dían Cecht” “Prova-me” disse: “sou escanção” “Não és preciso. Há escançães, Delt e Drúcht e Daithe, Taí e Talam e Trog, Glé e Glan e Glése” E ele: “Prova-me: sou bronzista e ourives” “Não necessi- tamos. Temos bronzista e ourives, Credne o Ourives” De novo ele disse: “Pergunta ao rei se tem alguém que domine todas essas artes e se tem não entrarei em Temhora” O porteiro foi e contou-lho ao rei. “Chegou um guerreiro às defesas dito Samhildánach que domina todos os ofícios praticados na tua Casa de jeito que é o homem de todos e cada um dos ofícios” “Fa-lo entrar” disse Nuadhu, “que seu par nunca viera ao castro” O porteiro fe-lo passar, entrou e sentou no assento do sábio, pois o era em todo ofício” Guia nos caminhos e olho para fazer fortuna são rasgos de Hermes e Mercúrio. Nota grave é a de psicopompo, guia das almas na viagem ao Além, misturada no folclore com a 2ª função nas estantiga, companha e noturna cavalgada de Wotan. O germânico *Wōðinaz-Óðinn é também “Mercúrio”, logo seu homólogo nisso e noutras características, que roboram a identificação no panteão indo-europeu: 1) Regem os deuses chefiando pares com *Tīwaz-Týr e *NŌDUS-Nuadhu. A Edda e a epígrafe de Chaves são claras: Regem a guerra de Ases e Vanes e na do Povo da Deusa e os Fomhoire. Nelas inclinam a sorte das armas (a céltica do Campo dos Pilares [ou Chefes] = Cath Maighe Turedh = *KATUS MÁGESOS TÚRODON). 2) A lança é sua arma principal, bem que possam usar outras. 3) São mestres na magia, que usam amiúde, sobretudo na guerra. A poesia, a outra mestria destacada, é a capacidade de ver o oculto, o que está no inconsciente. 4) Lugus fecha um olho ao encantar e Óðinn é mago cego de um olho. Pode cifrar- se o mitologema na fórmula “o olho único que vê o oculto”. 5) São antepassados míticos dos heróis da epopeia e de personagens históricos. 12 Cath Maighe Turedh ocus Genemain Bres Meic Elathan ocus a Ríghe “Batalha do Campo das Colunas e o Nascimento de Bres filho de Elathan e o seu Reino”. Manuscrito do séc. XVI no Museu Britânico. Editado e traduzido por Whitley Stokes em Revue Celtique II. 14 LUGUS quer dizer “lince”. O lince foi sempre admirado pela olhada, que criou o mito de ver o oculto através dos corpos opacos: ter olhos de lince13. Finn (ou Fionn [fiŋ]) é herói epónimo do ciclo gaélico que primeiro conheceu a Europa pré-romântica. Gerard Murphy identifica-o com Lugus. Fionn vem do célt. WINDO- “branco”, que a par quer dizer “formoso” e “santo, sagrado”. O galês Lleu foi Lugus. No Math vab Mathonwy é filho de Gwydyon, outra versão de Lugus. Gwydyon tem a raiz *wāt- de *Wōðinaz, que nota posse dum espírito, poético, profético, mântico, bélico ou erótico, cf. o nexo de Lugus e inconsciente. Robora a identidade de Gwydyon o nome galês da Via Láctea: Caer Gwydyon “o castelo de Gwydyon”, via das almas ao Além14, cf. Mercúrio-Hermes psicopompo. Lleu duplica Gwydyon retendo o nome Lugus, e o original leva um epíteto. Mera questão de nomes, difíceis de distinguir na tradição galesa. Llevelys é Lugus tam- bém no Lludd e Llevelys. Lludd foi *NŌDŪS (aliterado por Llevelys e uma palavra a ver-se), isto é, Nuadhu-Týr-Mitrá, e Llevelys é LUGUS com um acréscimo. Os LÚGOWES são três como três são os fóculos da ara galega. Outra razão se vê no mesmo texto em que Rhŷs se baseou para ver dous precur- sores dos patronos dos sapateiros. O Mabinogi de Math fala em Gwydyon (e Lleu, forma de Lugus). O tio Math, rei do Gales do Norte, não pode viver sem pôr os pés no seio duma donzela, salvo guerra. Gilfaethwy, irmão de Gwydyon, cobiça-a. Gwydyon provoca uma guerra para ajuda-lo afastando o rei, o qual à sua volta o sabe. Castiga-os, mas afinal perdoa e eles oferecem a sua irmã Arianrhod para sus- ter os pés. A vara mágica de Math, na que ela vai para provar a donzelez, tira dela um menino loiro. Furiosa, não quer dar-lhe nome. Gwydyon leva-o para cria-lo. Segue um conto que tenta explicar o nome de Lleu e o nexo dos sapateiros: Na manhã ergueu-se Gwydyon, e com o rapaz foram pela beira-mar até Aber Menei. Onde viu argaço fez um barco por arte mágica; e das algas fez muito cordovão e pôs-lhe cores de jeito que ninguém vira coiro tão bonito como aquele. Logo aprestou uma vela no barco e veio com o rapaz à boca da porta do castelo de Arianrhod. Aí pegaram a fazere coser sapatos. E então viram-nos do castelo. Quando soube que os viram, esvaiu os rostos próprios e neles pôs outros para não os reconhecerem. “Quem são os do barco?” pergunta Arianrhod. “Sapateiros” disse- ram. “Ide ver que coiros têm e que arte fazem” E vieram. Ao vir estavam a corar o cordovão, e faziam-no a ouro. Os mensageiros volveram e contaram-lho. “Que bem! Tomai-me as medi- das do pé e pedi-lhe me cortar sapatos” Ele fe-los não à medida, mas maiores. E levaram-lhos e os sapatos eram grandes demais. “São grandes demais; terá paga, mas que corte outros meno- res do que estes” Ele fez outros bem mais pequenos que o pé dela e enviou-lhos. “Dizei-lhe que nenhum destes sapatos me vai” disse. E disseram-lho a ele. “Á não! não lhe farei mais sapatos enquanto não lhe vir o pé.” Disseram-lho a ela. “Bom, vou lá” Ela veio ao barco. E ele estava a cortar e o moço a coser. “Á senhora! tem bom dia.” “Deus te colme” disse ela. “Pasma não poderes fazer-me sapatos à medida” “Não fui capaz” replicou; “ora serei.” Nisso pousou-se um 13 Cf. irl. lugh, par de gr. λύγξ, anglo-sax. lox, além. luchs, litu. lúšis, de *lug-, altern. de *leuk- “luz; luzir”. 14 Cf. culto de Santiago e de Lugus-Mercúrio: Caminho de Santiago e Caer Gwydyon, Lugus, viageiro e psi- copompo, e Santiago, peregrino em vida e morte; Lugus-Wōðinaz chefe dos deuses e Santiago Mata-mou- ros; amilhadoiros de Santiago e hérmai de Hermes; cavalo alvo de Santiago e Lugus-Finn (“brilhante”). 15 carriço a bordo. O rapaz apontou e deu-lhe entre o tendão da pata e o osso. Ela riu e disse “Abofé, que atinou o formoso de mão hábil.”15 Então Gwydyon disse “Certo! Já tem nome e bem bom que é. Lleu Llaw Gyffes é doravante”. A arte nos argaços esvaiu-se e não continuaram o labor. Por mor disso chamou-se-lhe (a Lleu-Lugus) um dos TRÊS SAPATEIROS DE OURO. Arianrhod jura que Lleu não terá armas se ela não o equipar, o que de novo obriga Gwydyon a aguçar o engenho para salvar a passo. Não sigamos. O conto é uma soma de matérias tradicionais misturadas para justificar um epíteto cujo sentido preciso deu obscuro. O texto em capitais, nu e objetivo, faz saber que os sapateiros de ouro eram três. Isto, os três fóculos da ara galega e o plural das epígrafes, tudo conflui num mesmo sentido. Que oculta tal trindade? Talvez se veja mais claro ao vermos as figuras de ĒSUS-OGMIOS e de ALAUNOS. Mas antes cumpre ver o par apolíneo-mitraico, par do védico Mitrá e do nórdico Týr. Volvamos aos seis deuses sábios da 1ª função. Apolíneos ou mitraicos Dionisíacos ou varunianos NŌDŪS, g. NŌDONTOS “pescador” LUGUS, g. LUGOUS “lince” TEUTATIS, g. TEUTATOIS “nacional” ĒSUS-OGMIOS “frenético”, “das letras” SMERTRIOS “provedor” ALAUNOS “butim” Os três dionisíacos-varunianos são os LÚGOWES das epígrafes calaicas (até agora descobertas quatro), conhecidos antes pelas de Osma, Sória, e Avenches, Suíça. AS IMAGENS DE LUGUS Como o imaginavam? Representavam-no: “Há muitíssimas imagens dele”. Difícil é discerni-las nos rastos arqueológicos. Neles algo haverá e os textos gaélicos têm outras imaginações. Mas luzes laboriosas vão a surgir. As imagens tricipitinas – de três cabeças – serão parte dos plurima simulacra. Três caras que serão as dos três Lúgowes. Quadra aqui o dito aristotélico sobre o número três (ter princípio, meio e fim) e o que se diz das trindades índias. Além das tricipitinas, seriam mais os ξόανα, arcaicas imagens divinas talhadas em troncos de árvore. Na Grécia só foram reconhecidas nas suas reproduções em pedra. O mesmo acontece no único testemunho céltico, o de Euffigneix, descoberto em 1927 no Alto Marne. Roto arriba e abaixo, tentou-se reconstruí-lo. À margem da reconstrução, há suficientes dados para ver aí uma efígie de Lugus. A cabeleira, de guedelhas ou tranças longas trás as orelhas, leva fita: é penteado do séc. II a. C. 15 Lleu Llaw Gyffes em galês é “claro-formoso-mão hábil”. O sentido de Lleu é de ter em conta na etimologia de Lugus e sugere o valor de mero adjetivo ser tradicional, cf. o sentido de Lleu atual. O Lugus Mão Hábil pode ser denominação antiga, com mais sentido do que sai da anedota. Eis o gaél. Lámhfhadha “mão longa”. “Mão longa” é habilidade, falta de escrúpulos, gosto do alheio e ousadia sexual. Sem prejuízo doutras pers- petivas, no campo do mito convém atender à criação popular espontânea. Do epíteto diz-se símbolo solar, fálico, etc. Inegáveis são essas interpretações, mas às vezes esterilizam-se por parciais ou monistas e viram em equação árida ou aberrante. Evita-se com a cautela de manter contacto com a criação popular em estudo e as vivências mais ou menos arcaicas do investigador. 16 Traz torques, um porco-bravo no peito e, mais importante, no costado esquerdo um grande olho aberto. No roto costado direito assoma outro olho sem pupila. O estado atual será fruto da destruíção de um santuário do séc. II. LUGUS E O CULTO IMPERIAL Quatro grandes festas anuais celebravam os célticos. A maior e mais carregada de conteúdo político e nacional tinham-na pelo primeiro dia do mês similar a agosto. Na Kalláikia celebravam-se nas planuras de Lugo, Braga e Astorga. É a única das festas que se esvaiu (quase) de todo, por causa do seu conteúdo político16. Pelo primeiro dia do mês quase-agosto celebravam *LUGUNĀSTADĀ “bodas de Lugus [com a Terra]”, genialmente manipulado de Augusto, que, tomado o poder, se via precisado de sacralizá-lo. Para lográ-lo não podia apelar à memória da monar- quia romana, depreciada no curso da formação do estado e ferrada com o carimbo de usurpação nos últimos reis etruscos. Teólogo sagaz, viu esparso na mor parte do Império o culto de Lugus17, o Deus-Rei. Esse culto tinha, junto do perfil indo- europeu, o significado universal da realeza arcaica, um sacerdócio no que o rei é esposo da Terra e garante da sua fecundidade. Octávio identificou-se a Lugus e de um golpe só talhou a raiz religiosa da soberania céltica atraindo esse culto para si. Daí pôr o seu nome ao mês Sextilis. Não foi pela honra de figurar no calendário, que qualquer outro mês lhe podia brindar. O 1º de Sextilis, antes a LUGUNĀSTADĀ de Lugus, foi doravante dia e mês de Augusto, Agosto. É a tão perseguida raiz do culto imperial. Dá vertigem facto tamanho ter sido esquecido. Augusto vigiou a identificação, raiz do culto. Daí que o Santuário do Souto lucense – *NEMETON que seria Lūcus, onde em agosto as tribos do terço do noroeste calaico tinham assembleia – afinal veio ser Lūcus Augustī. Schulten cria que Augustī vinha de tê-la fundado Augusto. O certo é que o *NEMETON LUGOUS “Santuário de Lugus” passa a Lūcus Augustī através dessa identificação. É daí que a chã dos calaicos do Sul ou brácaros, a [*LANDĀ ou LĀNĀ] BRĀKARĀ, veio a ser a romana Brācara Augusta. E que a [*LANDĀ ou LĀNĀ] ASTURIKĀ fosse depois a Asturica Augusta, antes sítio de reunião dos calaicos do Leste. Planuras? Na Irlanda as festas eram no campo. Agosto, quente mês da colheita, é bom para reunir-se ao ar, sacrificar, julgar, acordar, competir os artesãos, correr cavalos e carros na honra dos heróis, fazer música e cantos, fazer esponsais (nas bodas do deus). Lugo, Astorga e Braga foram acampamentos romanos, não castros celtas; foram postos para vigiar as reuniões que cifravam a identidade nacional e religiosa dos calaicos, e nados da necessidade de um domínio de tipo “britano”, que não obsta a cultura dos vencidos se não interfere com seus interesses políticos. 16 Recicladas foram a Candelária (*AMBÍWOLKĀ “Circumpurificação”, 1º dia do mês quase fevereiro); os Maios (*BELTONIOS “da Morte [do Meio Ano Escuro]”, pelo 1º de maio); e Santos (*SAMONIS “reunião [amorosa]”). 17 Lughnasadh houve até o séc. XVIII, dita Oenach Tailtenn e depois Áenach Tailteann “assembleia de Tailtiu”. De *OINĀKOS TALANTIONOS. *TALANTIŪ, -TIONOS é Irlanda, forma da MãeTerra, filha do “rei de Espanha”. 17 GENEALOGIA DE LUGUS É tradição gaélica que Lugus era filho de Ethniu filha de Balor e de um tal Cían. São nomes que pouco brindam. O materno varia bastante, arredor de um étimo que pode ser *ETENIŪ, ETENIONOS, de vogal átona obscura. Quiçá venha de *et(e)n- “grão, semente”? (Pokorny 343). O nome do pai é abstrato: gaél. cían “longo (no tempo), longínquo (no espaço)”, logo “eterno, duradoiro”, em célt. *KĒNOS, de *keino-. Sem certeza, Vendryes conjetura que poderia vincular-se ao homérico ἐκεῖνος “aquele; o que está lá, longe”, da raiz *kei- “aqui” (Pokorny 609), que soa contraditória, mas que é possível conciliar. Balor é muito incerto18. A versão mais suasória diz que Balor, rei dos Fomoire, figura do caos primordial, soube que um neto o mataria. Encerrou a filha na torre duma ilha (fora do cosmos) para ela não saber que havia homens. Na costa fronteira (o cosmos, Irlanda) havia três irmãos19: um era o ferreiro *GOBANNIŪ, outro o “filho da árvore estival” e o ter-ceiro KĒNOS, dono de uma vaca maravilhosa que Balor cobiçava, e que lhe roubou. Ajudado da druidesa dos Túatha, KĒNOS entrou na torre disfarçado de mulher e seduziu ETENIŪ e nela gerou três filhos. Balor informado, trás o parto envolve os nascidos num lençol e manda ofegá-los no oceano. A voar a lá, solta-se um alfinete e um (Lugus) cai na costa e é acolhido da druidesa, que o leva ao pai. Este pede ao irmão ferreiro que o eduque. *TALANTIŪ20 foi a nutriz, uma Mãe Terra dos homens anteriores à agricultura, agricultura que ela trouxe desflorestando, e que morta foi sepulta como os vegetais, recolhidos na *LUGUNĀSTADĀ e sepultos, isto é, semea-dos no *SAMONIS. É similar a uma Proserpina. *LUGUNĀSTADĀ foi a festa das bo-das de Lugus e comemoração de *TALANTIŪ, muito celebrada em Telltown (gaél. Teiltin) com jogos, carreiras de cavalos – históricas competências na memória de heróis – arredor da colina do suposto enterro. 18 Ainda sem etimología. Contudo, arrisco a hipótese *BALUROS “cheio de membros”. 19 Os irmãos parecem vir da especulação teológica dos antigos letrados. Ver-se-á que o ferreiro *GOBANNIŪ, como o Daksa védico, é a energia; o filho da Árvore estival será o cosmos, que na árvore cósmica tinha represen- tação; e este *KĒNOS extenso no tempo e no espaço seria o deus silencioso a ver-se no final deste ensaio, quer dizer, *WITÓS, par do escandinavo Víẟarr e do índio Visnu,que não morrem com os outros deuses no final. 20 Filha de Mag Mór (*MAGOS MĀRON “campo grande”) “rei de Espanha” (de velhos antepassados), mulher do último Alto Rei da Irlanda da raça dos Fir Bolg. 18 A MORTE DE BALOR na segunda Batalha do Campo dos Pilares A luta vai começar e Nōdūs pede excluir Lugus dela por preservá-lo. Intoxicam-no numa festa. Dormido, acorda pelo ruído do combate. Racha laços e lança-se à bata- lha. Os Fomoire, apavorados da sua ira, detêm a luta, que não se reinicia até Lugus ser claramente chefe do exército dos deuses. Então os Fomoire lançam à batalha Balor21, um dos três reis dos Fomoire22, o mais temível pelo poder do seu olho único. “Lugus e Balor Olho Pungente toparam-se no combate. Balor tinha um olho ma- ligno quase nunca aberto, salvo no campo de batalha. Quatro homens lhe erguiam a pálpebra com um gancho brunido. Se um exército mirava tal olho, não podia re- sistir a uns poucos guerreiros, mesmo que fosse formada por milhares de homens. Nele havia peçonha: um dia que os druidas do pai andavam a ferver encantamen- tos, veio e pela janela olhou o fumo da coção e o veneno entrou-lhe no olho. Então encontrou Lugus e este disse: ‘Ó deuses, quem são os homens que...?’ ‘Ergue-me a pálpebra, rapaz’, diz Balor, ‘para ver o charlatão que me fala.’ Ergueram a pálpebra de Balor e aí Lugus lançou uma pedra de fonda de jeito tal que o olho lhe passou a cabeça e foi o seu próprio exército o que olhou, e caiu na tropa dos Fomoire, e três vezes nove homens morreram ao lado de Balor.”23 Outra versão (texto do séc. XVII) acrescenta detalhes próprios do conto popular que viram o Balor num ogro. Mas nela será antigo o pormenor da colaboração de Gobanniū: “O ferreiro dos deuses oferece a Lugus fazer-lhe uma bala de fonda que o faria vencer...” “E ao abrir-se o olho de Balor, Gobanniū lança a bala de fonda, que Lugus reenvia direta para a cabeça do gigante, revirando a olhada do monstro contra os próprios homens.” O olho em si não é mortal, só paralisa, apenas Lugus pode mirá-lo. Ao vermos as batalhas divinas, tentaremos discernir os vestígios antigos dos folclóricos. Agora vejamos NŌDŪS, NŌDONTOS – par de Mitrá e *Tīwaz –, que com Lugus faz o par apolíneo-dionisíaco: o “manco” e o “cego de um olho”. Umas eivas que vêm reforçar paradoxalmente os poderes restantes. 21 Ainda sem etimología. Contudo, arrisco a hipótese *BALUROS “cheio de membros”. 22 Lit. “submarinos”, tradução capciosa pelo palimpsesto de vários sentidos históricos. Na origem seria “os ao norte do mar”. Primeiro valor seria “do lado externo do mundo; gigantes do caos”, depois os normandos. 23 Cath Maige Turedh ┐Genemain Bres meic Elathain ┐a Righe “A Batalha do Campo dos Pilares e o Nasci- mento de Bres filho de Elathan e o seu Reino”. Manuscrito do séc. XVI no Museu Britânico. Editado por W. Stokes em Revue Celtique XII. 19 NŌDŪS, g. NŌDONTOS A memória sobreviveu na tradição neocéltica e também na literatura medieval e no folclore. É “Marte” nas epígrafes da época galo-latina, com os seguintes epítetos, que transcrevo com ortografia céltica regularizada. ALBIÓRĪXS “rei do mundo”, quer dizer, “rei deste cosmos”, cf. Mitrá. OLLOUDIOS “magnífico” (OLLO- “grande” e -ODIO- desinência adjetiva). RĪGÍSAMOS “o que é mais rei, “regíssimo” ou “o mais regular”. JOWANTÚKAROS “amigo da mocidade”. SMERTRIOS “fornecedor, providente; que reparte”. KATÚRĪXS “rei do combate”, cf. César “Martem bella regere”. MOGELIOS “grande?” SEGOMŪ, SEGOMONOS “que dá a vitória”. KÁMALOS “esforçado, que se afadiga”. Compartilha com “Mercurius” KALAJŪNIOS “da mocidade da Terra” e WELLAUNOS “grande butim” (WER “super”, LAUNOS “butim”). Na tradição neocéltica há o gaélico Nuadu Argetlám e o britónico Lludd (< Nudd) Llawereint, que permitem reconstruir o céltico *NŌDŪS ARGANTÓLĀMĀ ou *NŌDŪS LĀMĀRGANTIOS “Nódus Mão de Prata” A arqueologia escavou o santuário do Deus Nodons com templo, moradas e termas em Lydney, Gloucestershire, na foz do Severn. Saíram muitas moedas romanas do séc. IV. Do deus há uma estatuinha brônzea em carro de quatro cavalos, de maça na destra. As termas falam num deus sanativo. Num monumento mata um grande salmão, quer dizer que é pescador. Num friso peixes e monstros marinos rodeiam tritões. Também há muitos cães de pedra e de bronze, o que sugere o cariz sanati- vo de todo o lugar. Para a análise cumpre repetir que NŌDŪS deu o gaélico Nuadu e o britónico Nudd > Lludd. Contam que na primeira batalha divina certo Sreng mac Sengaïnn (*STRENGOS MAKKWOS SWENGONĪ “Cordel filho do Estreitinho) lhe cerceou a mão direita”. *Tīwaz também perde a mão numa cena diversa, na boca do lobo Fenrir no final do tempo. A diferença é secundária; no plano religioso o certo é que NŌDŪS é manco. No mito céltico a eiva fá-lo inepto para reinar pelo qual foi substituído por Bress, deus da 3ª função que mesquinha o que pela sua natureza deveria brindar. Depois a evemerização fez história de mitos que antes fariam parte do tempo eterno. O médico divino Dian Cecht (*DĒNOS KEXTOS “rápido poder”) fez-lhe uma mão de prata em “três vezes nove dias”, e o ourives Crédne (*KWRĪIETONIOS “bronzista”) 20 ligou os tendões para que pudesse movê-la. Dumézil cuidava que na origem não a perdera em guerra, mas por causa de prestar um falso juramento para salvar o seu povo, como o romano Mucius Scaevola, que perde uma mão ao pronunciar similar falso juramento.Além de diferenças, os três representam o carácter legal da autori- dade e o paradoxo de o mundo não poder sobreviver sem certo grau de injustiça, aqui monstruosa: quem deve ser justo vê-se obrigado a perjurar para frear o poder maligno. Não se tire daí conclusões anacronicas; apenas fala nas perplexidades anti- gas. A tradição bíblica aí mudou o pensamento, sem apagar a pegada funda desses mitos, que nos agitam em perpétua hesitação. NŌDŪS ecoa nas letras e folclore neocéltico. Há rastos no Perceval ou Conto do Gral de Chrétien de Troyes. Vendryes viu-o no Rei Pescador. Também o notonier (nauta), o homem da eschace d’arjant (sanco de prata) e o Roi Méhaigné (ferido). Aqui a ferida é na perna ou coxa, o que evoca o nome do picto ARGENTOKOXOS “perna ou coxa de prata”24, em Dião Cássio. Parece uma metáfora dos genitais, cf. a ideia da monarquia sagrada como união com a Mãe Terra. Mas a antiga mão de prata não é alteração por pudicícia, é cônscia metáfora velha, validada pelo papel da mão no ritual do juramento. Logo o folclore recua ao valor psicanalítico, livre relativamente da tradição trás a quebra da conquista. A prótese de prata vindicará a condição real pretérita, destituída, não atual. O Rei Pescador é a principal sequela de NŌDŪS. Chrétien de Troyes informa: 1) foi ferido numa batalha (será inovação neocéltica?), 2) nos genitais (inovação popular certa, à margem da tradição), 3) por isso não se vale (perde o poder real, guardando a honra do que foi), 4) é rico (nota a afinidade do lado apolíneo com a 3ª função), 5) o seu castelo está noutra dimensão (é um deus no quadro do romance), 6) pesca como único prazer (pela eiva fica reduzido à mais passiva das artes), 7) e outros são os que caçam por ele (tem acólitos, apolíneos, não inválidos), 8) para sandar precisa da curiosidade do herói, 9) e procura provocá-la. Estes dous pontos são talvez genial inovação de Chrétien. Que é sandar? Recobrar a virilidade é ter poder e soberania, a 1ª função de Dumézil, sabedoria-soberania, saber guiar. O pescador é sábio, mas já não soberano. Perceval, às avessas, é forte e moço, mas necessita saber para poder guiar. E para saber tem de procurar saber, ter curiosidade. Chrétien virou a lenda para integrá-la na sabedoria cristã, que já não pertence à mitologia céltica, senão à sua evolução na alma europeia. A lança e o gral que deviam provocar a curiosidade eram pagãos, mas mudaram na lança de Longinos e na copa eucarística. A curiosidade é evangélica. A tradição britónica e a dos lavradores do continente às vezes corrigem detalhes, mas a maior ajuda vem de compará-las com a dos vizinhos germânicos. 24 Tirado o peso latino na transcrição do nome, temos *ARGANTÓKOXSOS, com X fricativo velar surdo. 21 Nuadu fora rei dos Povos da Deusa Anu por sete anos antes de virem à Irlanda. Os Fir Bolg, donos da ilha, negam-se a ceder metade dela e acordam combater na primeira Batalha do Campo dos Pilares. Nuadu, em luta com Sreng, perde a mão direita. O Dagda protege Nuadu, e cinquenta homens dele tiram Nuadu do campo. Mas o Povo da Deusa vence e logo Sreng de novo repta Nuadu a combate singular. Este aceita a condição de aquele lutar com um braço atado. Sreng nega-se; mas a batalha já a tinha perdida. Os deuses oferecem um quarto da ilha aos Fir Bolg, em vez da metade, e Sreng aceita e escolhe Connacht. Esta batalha é “criacional”, na medida em que podiam conceber algo atemporal. Os Fir Bolg (Homens do Saco) lá foram os gigantes do caos. A evemerização fez deles os antecessores humanos mais arcaicos do que os deuses humanizados. No imaginário irlandês Connacht é o fundo cultural mais arcaico. Perdida a mão, Nuadu não pode reinar e substitui-o Bress (*BRASSOS “grande”), famoso pela beleza e o engenho; é metade do Povo e meio forasteiro. Mas impõe tributos excessivos e o seu reinado é opressivo e mesquinho. No entanto, a mão faltante de Nuadu é substituída por uma de prata articulada (e depois por uma de carne). Trás sete anos Bress é deposto. Reentronizado, Nuadu governa mais vinte anos. Bress tenta recobrar o poder com a ajuda dos Fomoire, e trava-se a segunda Batalha do Campo dos Pilares. Então o forte Lugus chega à corte de Nuadu, que compreende que o talentoso moço pode guiar melhor o Povo e cede-lhe o trono. Na batalha Balor decapita o Nuadu. Lugus vinga-o matando Balor e leva o Povo à vitória. Bress pede graça. A que preço? Fará as vacas sempre dar leite. Não chega. Cada ano haverá boa ceifa. De novo recusam. Lugus exige que ensine os habitan- tes a bem lavrar, semear e ceifar. Ele responde que tais labores serão proveitosos se feitos em dia martes. A segunda batalha decidia a questão social e dantes acabava em pacto e armis- tício. Bress tem notas da 3ª função e faria parte desta, mas depois foi desfigurado na progressiva intensificação da guerra, e ao cabo veio parecer derrota. O proces- so nota o progressivo deterioro social na cultura de La Tène. A figura de Balor é talvez enxerto do conto popular ou de outros mitos. Nódus-Nuadu, como deus, lá não morria; era uma inovadora figura de rei reformado com poderes residuais, só jurídicos, sem poder político. As obrigas impostas a Bress são resíduos do antigo armistício. A precisão final do dia martes é do tempo cristão, que trouxe os dias da semana. As duas batalhas são antigas e míticas. Vejamos os vestígios calaicos. As interpretationes romanae, vagas para nós, lá tinham precisa congruência e darão pistas. Dous dados são úteis: 1) Estrabão diz que os montanheses “[aos deuses] sagram as mãos direitas que cortam aos prisioneiros”25. À luz do visto vê-se qual era o deus a que sacrificavam as direitas, em ato de jurídica e pia congruência que a par neutralizava inimigos. 25 Geographica, livro III, cap. 3, secção 6: τῶν δ᾽ἁλόντων τὰς χεῖρας ἀποκόπτοντες τὰς δεξιὰς ἀνατιθέασιν. 22 2) Nódus era Marte para os latinos. que na Galécia leva amiúde epíteto Cossus, dela praticamente exclusivo26. As inscrições de Cossus são todas das Galizas, da autónoma, da portuguesa e da província de Leão. A comparação das formas epi- gráficas do nome leva para esse Cossus, que é o calaico KOSSOS “o Companheiro [de Lugus]”, explicável pelo ie. *ko(m)-stho-s) “o que está junto, companheiro”. É uma roboração do par apolíneo-dionisíaco que com Lugus fazia. KOSSOS é o nome de Nódus mais frequente na Kaláikia antiga, o que robora as interpretações dos qualificativos que o acompanham. Eis alguns: *KOSSŪI NĒTOLETIŪI (COSSUE NEDOLEDIO) “ao Companheiro Grande Guerreiro”, de *NĒTS, NĒTOS “campeão” (gaél. nia, niad), e um derivado de *plet- “amplo”, cf. o gaulês LẸTANO- ou LITANO-. *KOSSŪI KALAIŪNIŪI (COSO CALAEUNIO) “ao Companheiro da mocidade da Ter- ra”, de KALĀ “abrigo, seio” e uma forma vinda da raiz *jeu- “jovem”. *KOSSŪI OINAIKŪI (COSO OENAECO) “ao Companheiro da assembleia” tem para- lelo no latino-germânico Mars Thingsus “Marte da Assembleia”27, Marte do Þing ou assembleia, do germânico *þinga-, comum a todos os ramos da família. E esse OINAIKOS é o par calaico do gaulês e protogoidélico *ÓINĀKOS “assembleia tri- bal, reunião”, de OINOS, OINĀ, OINON “um, uma”. O cariz jurídico dessas reuniões quadra com o que sabemos de Mitrá e *Tīwaz, e com a fortuna de *þinga- no alþing, o parlamento islandês, e do ingl. thing, que antes de ser “cousa” foi “assembleia deliberativa ou judicial”, o que acorda com o étimo de cousa, que é causa, com o harmónico jurìdico que ainda guarda. Roboram-no ainda os nomes germânicos da terça-feira, em inglês e ant. nórdico Tuesday e Týsdagr, quer dizer, “dia de *Tīwaz”, mas que nos ramos baixo e alto alemão vêm de *Þingazdagaz “dia da assembleia”. Eis o neerlandês Dinsdag e, de leve alterado, o alemão Dienstag. E já está bem deste senhor. QUEM É *BRIGONOS (BREOGHAN) NO HINO GALEGO? Pascoal Veiga pôs música às quatro primas estrofes do poema de Eduardo PondalOs Pinos. É preciso distinguir o hino do poema. Aquele tira deste uma parte, à que põe música e dessarte o hino ganha a função litúrgica das canções nacionais. Do poeta é o poema; os hinos, das sociedades que os adotam. Isso mporta pelas varia- ções que pomos nos versos do hino na companhia de muitos reintegracionistas. Que dizem rumorosos Que dizem altas copas “Do teu verdor cingido não dês a esquecimento na costa verdecente de escuro arume harpado e de benignos astros, da injúria o rude encono, ao raio transparente co seu bem compassado, confim dos verdes castros esperta do teu sono, do plácido luar? monótono fungar? e valoroso clã, ó lar do Brigonão!” 26 Não deve confundir-se com o cognome Cossus de um ramo patrício da gens Cornélia. 27 Inscrição num altar do séc. III achado no forte romano de Vercovicium, no Valo de Hadriano, Housesteads, Northumberland. Supõe-se ter sido erigido por soldados frisões aí destacados. 23 Não é preciso demorar-se nas primeiras estrofes. Cingido, valoroso, clã por chão (clã é o original) não querem justificação. Na quarta estrofe, esquecimento, rude, mesmo encono (cast. por “inquina” mantido em destaque tipográfico por causa da rima com sono) não são problema. O que quer solução é fogar, decalque do cast. hogar (ou do fr. foyer) por lar. Como parte de um vocativo é facílimo antepor um ó interjetivo ao lídimo lar, recriando assim a cor sonora. Simples e fácil de digerir. Mas, e Brigonão? O poema fala num Breogan. Tal avoengo galego vem da tradição irlandesa. No Livro das Conquistas da Irlanda (ant. Lebor Gábala Érenn, ora Leabhar Gábhala Éireann) é o antepassado mítico dos irlandeses atuais, que teria enxergado a verde Erim no alto duma torre na costa norte de Espanha (eco certo da Torre de Hércules da Corunha) numa clara noite de inverno. Para lá iriam depois os seus filhos. Os galeguistas da Cova Céltica esforçavam-se por recobrar a tradição céltica perdida com a língua, mas careciam de notícias que viriam depois. As versões francesas do Lebor que liam baseavam-se nas irlandesas médias. Ali viam o atual Breoghan, genitivo Breoghain, que soa [břógan]. Os códices antigos têm Bregon, g. Bregoin [brégon, brégoň], do céltico *BRIGONOS, BRIGONĪ, de brig- “alto” e sufixo de divindade -ono- (ÉPONĀ, MÁPONOS, MÁTRONĀ, DĒWONĀ e *TIGÉRNONOS, etc.). O avô é logo algo como “Divino Excelso” Difícil saber que deus oculta o epíteto. A torre brigantina clama ser de Hércules e Luciano de Samosate diz Hércules ser interpretatio romana do céltico ÓGMIOS, figura estranha, velho calvo e grisalho, armado de maça e inventor dos caracteres ogâmicos (letras e signos mágicos), mestre da eloquência, homem forte e o Logos, todo a par. Do par gaélico Ogma conta-se ser o progenitor das três classes sociais. Alhures cuido ter provado (na análise do rito das nove ondas na praia da Lançada) que era o deus Carneiro ou Bervez venerado na costa ocidental da Galiza, par do nórdico Heimðallr, o latino Janus e o védico Daksa. Todos do deus indo-europeu dos inícios e fins, segundo Dumézil, com cultos justo nesta costa do fim e início do antigo mundo. Há um óbice para chegar a tal resultado, por ter o panteão indo-europeu e celta dous deuses envolvidos como Pai dos Homens: os que na Índia védica chamavam Aryaman e Daksa. Aquele era o celta Teutatis, ministro da nacionalidade e rei do Mundo Inferior, onde presidia os “Pais”. Cri BRÍGONOS ter sido Teutatis, mas ora cuido que BRÍGONOS, Bregon-Breoghan, era o conhecido pelos nomes de ÓGMIOS “das letras”, ĒSUS “frenético” e *MÔLTONOS “carneiro”, e o latino Hércules. Na equação entra indiretamente o Hércules fenício, Melkarte. Lembre-se os púnicos ter precedido os romanos na interpretação dos deuses aborígines. O Lebor, escrito por frades cristãos, não faz de Bregon um deus, é um humano. Ora, Breogan é-nos familiar, mas tem uma fraqueza indissimulável. Já disse que em irlandês soa [břógan]; o [breogã] que se ouve nunca soou, é mera má leitura da difícil grafia irlandesa. Basear aí o justo orgulho pátrio fá-lo alvo fácil dos que não 24 amam a identidade galega. É-lhes facílimo alcunhar Breogan de “uma parvoice de românticos desinformados”. Breogan é uma palavra de origem erudita – isso não é dirimente –, mas arrasta erros decimonónicos. Aceitar a tradição brindada é bom, mas tem de adequar-se ao saber atual. *BRÍGONOS é céltico antigo, não arrasta a evolução não vivida e é de fonologia fácil. Para substituir Breogan é mister ter seu nome certo, que seja trissílabo, oxí- tono e que rime com clã. *BRÍGONOS é proparoxítono e não rima; logo não serve. Os românticos criam Bregon ser avoengo humano dos celtas da Irlanda. Sabe-se já não ser histórico, mas ser mitológico. *BRÍGONOS lá fora tido por avô divino dos homens e isso está bem, pois os coirmãos irlandeses que ficaram célticos referiam a tradição à Galiza. O elo existe. ÓGMIOS *BRÍGONOS é pancéltico e simboliza as origens. Mas dizer BRÍGONOS ao avô humano dos calaicos não é exato. É epíteto de deus, o legítimo é Brigonão “filho de Brígonos”. Os pré-romanos criam desce- rem dele e pode ser dito cabalmente com maiúscula de protótipo. É um trissílabo oxítono a rimar com clã. Ó lar do Brigonão quer dizer “ó pátria do calaico”. Se se crer ousado, acordarei. Ousado e coerente. A ponte rota da tradição pode reconstru- ir-se com esforço. Com esforço atinado, que de pouco serviria sonhar se erramos. Sonhar e construir com tino, sem medo do que digam os que não amam. Fazê-lo erguerá resistências. Contra isso paga a pena recordar que Pondal bebia numa tradição viva da que ele mesmo não tinha consciência clara, mas que opera soberana. Eis o oráculo dos pinheiros – árvores altas e vigias – a repetir o conjuro em prol da Terra. Árvores animadas, mesmo guerreiras, são constantes nos povos de origem céltica. Lá se falava no combate das árvores. Já folclóricos, inerciais, veem-se rastos em McBeth, n’O Senhor dos Anéis, mesmo em Rosalia. *BRÍGONOS é ĒSUS, ÓGMIOS e *MÓLTONOS É o caso mais complexo pela abundância dos epítetos e pelo cruzamento com as interpretationes romanae, que falam em Mercurius e Hercules (este Ogmios). E também o Volcanus céltico. Na equação vão os védicos Dakşa, Agni e Bṛhaspati. Ógmios é mais frequente. Adjetiva *OGMOS “carácter, letra”; daí gaél. ogham, logo ÓGMIOS é “das letras ou caracteres”. Ógmios é o gaél. Ogma 28, que Nennius chama de “inventor das letras” 29. Na Irlanda diziam-lhe gríananach “sunny; cara de sol” (*GRĒNĀNIKOS), pai de MacCuill, MacGréine e MacCecht (“filho da avelã, filho do sol e filho do arado”), protótipos das classes sociais. A tradição fá-lo filho de Elada “ciência poética”; filho é “descendente” e o todo, uma metáfora. 28 O fruto regular seria *Óme. Ogma explica-se através da memória dos gaélicos como voz semierudita. 29 Historia Brittonum: “Ogma frater regis qui litteras scottorum invenit” (O., irmão do rei que inventou as letras dos irlandeses”. 25 Das Gálias são as tabellae defixionis “tabelas de esconjuro” com gravuras para fazer danos (de Áustria, Suíça e Alemanha). Atribuíam a Ógmios, na sua condição de sábio e mago, o poder para “atar” e “fazer sofrer”. Mas é Luciano de Samosate, o “Voltaire” do século II, quem mais informa. Na Provença viu um mural onde Ógmios parecia um Hércules velho, ruço, semicalvo, armado de maça, arco e algibeira e com pele de leão. Da língua saíam cadeias de ouro e âmbar, nos cabos das quais levava cabeças sorridentes, presas das orelhas. Não é necessária muita imaginação para ver aí a imagem da eloquência, do chefe bélico a arrastar os que com ele lutarão. Luciano perguntou quem era e um velho explicou que era o Logos (a Palavra), e que eles não davam esse nome a Hermes como os gregos, mas a Hércules, o mais forte dos deuses. Às armas que levava o Ógmios de Luciano (maça, arco e setas) a Irlanda acrescenta a espada, o que acor-da com o seu homólogo nórdico Heimðallr “Carneiro”, do qual “a espada era a sua cabeça, e a sua cabeça, sua espada”. Ēsus lê-se na Pharsalia de Lucano30, na trindade Teutatis, Esus e Taranis. Vê- se num baixo-relevo do altar achado sob o coro de Nôtre Dame de Paris, dedicado pelos nautae parisiaci 31 no tempo de Tibério (14 a 37 dC.). Em Tréveros há um relevo que o mostra machadando uma árvore com o touro dos três grous na copa, que depois veremos. Também uma estátua de Lezoux, na Arvérnia, traz a epígrafe Apronios ieuru sosi Esu, que traduzo: ([Eu] Apronios consagro isto a Esus). O nome abunda na antroponímia: Esugenos, Esunertos, Esumagios. A raiz será *eis- “mover rápida ou violentamente; paixão” (Pokorny 299). Dela vêm lat. īra (< *eisā), gr.῾ιερός (< *iserós), οῑστρος “estro; tavão” (< *oistros). Logo Esus é um “frenético; apaixonado, possuído de uma força apaixonada”. Nessas imagens fere árvores ou diretamente desmata, ação ora pouco ecológica, mas que lá fazia parte da sua condição de deus dos inícios e aqui dos inícios agrí- colas, então ainda em processo. O Tarvos Trigaranos numa delas é Teutatis, com- plementar deus apolíneo desse nível, do que adiantarei algo. Porque deve explicar-se a trindade integrada por Teutátis, Ésus e Táranis. Dela deduz-se que Lucano é testemunha rigoroso. Como proponho no quadro inicial dos deuses, Teutátis e Ésus são os deuses sábios e soberanos a secundar o par superior Nódus-Lúgus, com os seus respetivos caracteres apolíneo-mitraicos e dionisíaco- varunianos. No seu nível são os elos da 1ª função, à que pertencem, com a 2ª, a da força, cada um ao seu modo. Teutátis como energia que mantém a nação unida, Ésus como a mesma força geradora, energia iniciadora de tudo o que existe. E além disso, elos da 1ª com a 2ª função. Táranis é o próprio deus da segunda função, de modo tal que essa trindade vem a ser a bélica por excelência, apresentada por Lucano para relatar justamente as lutas de César e Pompeio. 30 Fonte fulcral em religião céltica, complementa-se nas Commenta Bernensia, glosas marginais posteriores. 31 Agora no Museu de Cluny. 26 Os Commenta Bernensia, notas marginais à Pharsália, acham-se num códice da vila de Berna do séc. X. Vêm de ao menos duas fontes de datas diversas. É difícil distinguir o certo do opacado pelo tempo nas interpretationes. Eis as de Ésus: a) “A Ésus Marte assim aplacam: um homem é colgado numa árvore até que pelo sangue vertido os membros se separam” 32. A meu ver o sacrifício, a cruentação, é certo; a interpretatio não, porque a boa equação é com Mercúrio. Enforcar era um sacrifício dionisíaco, cf. o de Óðinn e o do homem de Tollund. b) “Confiam em Ésus Mercúrio, se é que alguém é adorado pelos mercadores” 33. É certa a interpretatio, e talvez também a notícia dos devotos, bem que seja rasgo comum com o Mercúrio latino. Ésus e Ógmios são um mesmo, deus soberano, dionisíaco, iniciador e acólito de Lugus. O Ogma gaélico é irmão do rei, eloquente, inventor e Logos. Ésus recebe os enforcados, é “enérgico” e desflorestador. Se Ógmios equivale a Heimðallr-Rígr, que é Carneiro, logo Ógmios também o era. Não é preciso lembrar que Aries é o primeiro signo zodiacal e que o ariete é uma máquina para abrir. O qual o identifica ao Janus latino. O porto dos marujos de Vigo é o Porto do Bervez e quando havia muralha aí estava a Porta do Bervez. Bervez vem do lat. vervex “carneiro”. Os berberichos (vulgar *berbicculos) eram teofanias do deus do início do mundo antigo na costa ocidental, cujo nome céltico foi MÔLTONOS “Carneiro [divino]”, sem asterisco por surgir latinizado na forma Moltinus na inscrição 2585 do CIL. Do célt. MỌLTOS “Carneiro” é o gaél. molt, e de *MỌLTŪ, MỌLTONOS “id.” o fr. mouton e o cat. moltó. De BRÍGONOS já se tratou. Mas não vimos *GOBANNIŪ “Ferreiro”, o Hefesto ou Vulcanus céltico, equivalência clara. Mas não é tão claro se *GOBANNIŪ é epíteto ou se já no início tinha independência no culto. Equivalerá ao védico Ágni. Têm a característica de serem deuses do fogo físico e do anímico que é a embriaguez. O fogo é (sobretudo era) a única energia visível, e energia anímica eram as drogas que os micólogos agora chamam enteogénicas e dantes os gregos de ambrosia e os índios de soma. Hoje se sabe ter sido a amanita muscaria, lá “comida dos deuses”. Hefestos era quem a brindava e o mesmo se diz de Ágni. Da antiguidade só sabemos por Floro que os celtas, ao invadir o Norte da Itália, sagraram as armas a “Volcano”, trivialidade no deus que as forja. Mais preciso é o tardio texto gaélico a falar no fledh Ghoibhnenn “festim de Goibniu” (*WLEDĀ GOBANNIONOS “festim do divino Ferreiro”). O relato, evemerizado, conta como, trás a rota dos Tuatha Dé Anann pelos milésios (a cristianização), aqueles têm de abrigar-se nos sidhe (túmulos), i.é, no Mundo Inferior. Em Brug na Bóinne (New Grange) Mannanán mac Lir (que não figura nos relatos antigos; epíteto do que se falará depois) repartiu moradas aos velhos deuses e deu-lhes a névoa do sábio, o 32 “Hesus Mars sic placatur: homo in arbore suspenditur usque donec per cruorem membra digesserit.” 33 “Hesum Mercurium credunt, si quidem mercatoribus colitur.” O H transcreve o ataque vocálico suave. 27 festim de Goibniu e os porcos de Mannanán. A névoa invisibilizava-os, os porcos eram comidos e a seguir se regeneravam e o Festim liberava-os da velhice e morte, o que identifica GOBANNIŪ com Hefesto e Agni34. O deus ferreiro encarregava-se de preparar a bebida que os fazia imortais. Antes que do fogo era deus da energia (é Ésus-Ógmios), sobretudo a interna ou psíquica, e o fogo interior da embriaguez, do “alimento dos deuses”. QUEM É MANANNÁN MAC LIR? As epígrafes celto-latinas a Volcano estão em beiras fluviais e rotas a unir portos: “Ao deus Volcano pela saúde dos vizinhos do porto e marinheiros do Loire”35, “a Volcano e às Ventas (“Amáveis”)”36. O deus do fogo adorado pelos marinheiros? É oportuno falar no gaélico Mannanán mac Lir e no britónico Manawyddan, que eram só epítetos do deus dos inícios já visto, crescidos no folclore trás a cristiani- zação. Lá foi *MONAPIANOS MAKKWOS LERĪ “[deus] menápio (da ilha de Man) filho do mar (marinho)”. Não é outro que Ésus-Ógmios-Môltonos, este sobretudo, senhor dos confins marinhos. No folclore do tempo cristão fez-se Senhor do Além, Ilhas dos Viventes, ou das Maçãs, etc., substituindo o par apolíneo, que no tempo pagano era o que presidia os Pais no Mundo Inferior. Para Plínio, a ilha de Man é Monapia, logo dos menapii da Gália bélgica, dos baixos Mosa e Reno. A evolução dos nomes tem dificuldades, por semieruditos. O vínculo é certo. Mac Lir “filho do mar” é meramente “marinho”37. Textos tardios descrevem-no mercador entre Irlanda, a ilha de Man e Escócia, e douto em meteorologia. Para o Sanas Cormaic teria sido o melhor marinheiro do Ocidente. Olhando o céu sabia o tempo que faria e quando mudaria; daí tê-lo feito deus. É mera evemerização, bem natural no tempo do desenvolvimento do epíteto. As Dindsenchas (“topografias”) chamam-no drúi (druida, doutor), cerd (artesão) e cendaige (comerciante). O Manawyddan galês é excelente sapateiro. Notável é a sua beleza poética. O seu veloz cavalo chamava-se “Enbarr da crina flutuante”. As ondas coroadas de espuma são “os cavalos de MacLir”, o que é afim e diverso do antigo; lá as espumas eram carneiros em vez de cavalos. É rei de Tír Tairngire “Terra da Promessa”, Tír na nÓg “Terra dos Moços”, Tír na mbéo “Terra dos Viventes” ou o britónico Avallon “Ilha das Maçãs” 38. Situar o Além no oeste era uma alternativa nos tempos pagãos, mas é quase exclusiva no folclórico posterior. Na antiguidade quatro rumos alternavam-se como destino do que se foi: a) na teologia druídica era o *ANDUBNON “Outro Mundo”, literalmente 34 “Porcos” é uma velha e universal metáfora dos cogumelos
Compartilhar