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CAPílULO li A TEORIA DE KURT LEWIN Embora nosso interesse sobre o trabalho de Kurt Lewin esteja centrali zado em suas contribuições relativas à temática da dinâmica de grupo, este capítulo não se limita a tal campo de investigação. Não é possível reduzir Kurt Lewin ao "psicólogo que criou a dinâmica de grupo", visto que talvez a maior parte de sua obra o apresente como PRODUTOR DE TEORIA e de METODOLOGIA, cuja atualidade pode ser percebida num confronto com as demais tendências estruturalistas presentes nas Ciências Contempo râneas. Além disso, a abordagem lewiniana à Psicologia Social requer, para seu esclarecimento, uma referência à postura epistemológica e metodológi ca que a orienta. Neste sentido, o início do capítulo está dedicado às principais considerações epistemológicas de Lewin, visando à constituição da Psicologia como ciência. Em seguida, apresentamos os principais concei tos produzidos sob esta orientação para, finalmente, dedicarmo-nos à teorização e à metodologia relativas ao estudo de grupos. No que se refere à exposição da Epistemologia e da Psicologia lewinianas, a maior parte do que se segue foi tomada do excelente trabalho sobre Kurt Lewin, de autoria do Prof. Luiz Alfredo Garcia Roza - Psicologia Estrutural em Kurt Lewin, Petrópolis, Vozes. As análises críticas, no entanto, são de nossa inteira responsabilidade. A TEORIA DE CAMPO DE KURT LEWIN Em seu artigo "O Conflito entre os Modos de Pensar Aristotélico e Galileano na Psicologia Contemporânea" (1 ), Kurt Lewin aponta, como passo indispensável à superação de uma etapa pré-científica em Psicologia, a substituição de seus conceitos de classe por conceitos de campo. Os pri meiros, inspirados na tradição aristotélica, seriam identificados por seu ca ráter valorativo e dicotômico, pelas classificações abstratas e pela vincula ção da legalidade cientlfica à freqüência. Os últimos, de i11spiração galilea na, teriam como características o fato de serem unificadores, condicionais e genéticos (funcionais), desvinculando a legalidade científica da freqüência e, conseqüentemente, afirmando a validade geral das· leis psicológicas. 24 Embora reconhecendo um movimento de passagem, na Psicologia contem porânea, do modo de pensar aristotélico ao galileano - presente, a seu ver, na Psicanálise, no Behaviorismo, no Gestaltismo e na Reflexologia -, a maior parte da obra de Lewin consiste exatamente num trabalho teórico e metodológico que visa a realizar, concretamente, esta superação. Devemos, portanto, conceber a teoria de campo não como um domínio particular da Psicologia, e sim como um método de analisar relações causais e construir teorias científicas, caracterizado pelos seguintes atributos: a) utilização de um método de construções, e não de classificações; b) interesse pelos aspectos dinâmicos dos acontecimentos; c) perspectiva psicológica e não física; d) análise iniciada pela situação como um todo; e) distinção entre problemas sistemáticos e históricos,· f) representação matemática do campo. Quanto à necessidade de construção teórica, Lewin se opõe resoluta mente a qualquer empirismo de acumulação de dados (empirismo sistemá tico), mas ressalta que a valorização das propriedades conceituais correla cionadas a conceitos matemáticos não deve conduzir à especulação e ao formalismo vazio: as construções devem ser relacionadas aos fatos observá· veis por meio de definições operacionais, permitindo a verificação experi mental das hipóteses (empirismo metodológico). Segundo Lewin, uma situação psicológica poderia ser representada por dois grupos de conceitos que, associados, fornecem a estrutura de sua psicologia: a) conceitos matemáticos; b) conceitos de conteúdo psicológico. Os primeiros só podem ser aplicados em Psicologia caso coordenados a conteúdos psicológicos, que devem, por sua vez, ser definidos por procedi mentos observáveis. Do ponto de vista matemático, é possível dividir os problemas psicoló gicos em dois grupos: a) problemas topológicos, relativos à estrutura e dimensão do campo psicológico; b) problemas vetoriais, relativos às tensões e aos campos induzidos. Os primeiros seriam passíveis de uma descrição fenomenológica, com auxílio de conceitos matemáticos fornecidos pela Topologia. A Topologia pode ser definida como um ramo não-quantitativo da Matemática, que trata das relações espaciais que podem ser estabelecidas em termos de parte e todo. Ou melhor, que investiga as propriedades das figuras geométricas que se mantêm, mesmo quando todas as suas propriedades métricas foram alteradas. Por esta razão, a Topologia costuma ser chamada "Geometria do Espaço de Borracha". Esta descrição - que especifica quais os eventos possíveis num espaço 25 de vida (o espaço de vida é definível como espaço composto pelas regiões· da pessoa e do meio, enquanto determinantes do comportamento) - deve ser seguida da elaboração de constructos de caráter dinâmico, capazes de dar conta de qual o evento que ocorre dentre as diversas possibilidades. Es tas propriedades dinâmicas estariam ligadas às causas do comportamento, não mais designando, portanto, eventos diretamente observáveis. Para expli citar a diferença entre os conceitos geométricos (topológicos) e os dinâmi cos, Lewin costuma referir-se aos primeiros como "constructos de primeira ordem" (descritivos), sobre os quais se fundamentariam os últimos, os "constuctos de segunda ordem" (explicativos). Estes remetem, por sua vez, não à Topologia e sim à Hodologia, o que possibilita definir forças dirigidas. Ao longo dessa exposição resumida sobre os princípios de teorização segundo a teoria de campo, é possível apreciar a ênfase posta por Lewin sobre a necessidade de substituir, em Psicologia, os conceitos de classe (que remetem a essências que determinariam, a priori, a direção e a qualidade dos vetores) por conceitos de campo ou de série (construtivos, relaciona dos a leis). No caso dos conceitos de campo, cada vetor depende da inter-relação de vários fatores, que incluem o objeto - em nosso caso o indivíduo - e seu ambiente. Quanto a este aspecto, é útil recordar a influência exercida sobre Lewin pelos gestaltistas da Escola de Berlim (notadamente Wertheimer e Kohler), com sua insistência em considerar a situação como totalidade, como realidade estruturada, abordagem inspira da não só pela Fenomenologia como também pela ressonância em Psicolo gia da Física dos Campos da segunda metade do século XIX (trabalhos de Faraday e Maxwell). Frise-se, no entanto, que Lewin amplia esta considera ção estrutural de nível ontológico, característica dos gestaltistas (a própria realidade aparecendo como estruturada, gestáltica, onde as partes são defi nidas por reciprocidade) para uma consideração de tipo epistemológico, já que a Topologia e a Hodologia são formalismos que implicam "sistemas de · correlações". Lewin tenta evitar, portanto, o perigo de substituir problemas . dinâmicos por uma descrição fenomenológica pura e simples: a descrição fenomenológica é pré-teorética, estabelecendo apenas condições, ao supe rar preconceitos de origem metafísica, para a verdadeira explicação teórica. Ao definir campo psicológico, Lewin não se limita à noção descritiva de "Gestalt", pois apela para a conceituação de um campo de forças que compreende a totalidade dos fatos coexistentes e mutuamente interdepen dentes. O campo psicológico consiste no espaço de vida considerado dinamicamente. Compreende tanto a pessoa como o meio, sem se esgotar na percepção que o indivíduo tem dele, pois envolve também variáveis não-psicológicas (biológicas, sociais e físicas), que incidem na zona de fronteira. 26 Ao apresentar os principais atributos da teoria de campo, não se pode omitir a importância de que se reveste, para K. Lewin, a distinção entre causalidade histórica e causalidade sistemática, em suas vinculações com o princípio de contemporaneidade do campo. A teoria de campo rejeita não apenas a explicaçãoteleológica, como a explicação pelo passado: os fatos passados, não existindo atualmente, não podem ter influências presentes, a não ser de forma indireta. Isto implica distinguir as noções de "origem" e de "causa". Não há dúvida de que o campo passado é uma das origens do campo presente - o que justifica a validade das pesquisas históricas. No entanto, a causa só pode ser encontrada na dinâmica presente, a qual dá conta da razão pela qual, numa determinada situação, ocorre um evento determinado. O princípio da contemporaneidade - "qualquer mudança no campo psicológico depende somente do campo naquele momento" (2) - não expressa, segundo Lewin, uma posição a-histórica. O principal argu mento neste sentido lança mão da "espessura temporal do campo", pois o "campo num determinado momento" refere-se a um momento real, con creto, com certa duração, e não ao momento abstrato, sem extensão temporal. Inclui também o passado, enquanto percebido pelo indivíduo, assim como o futuro, em suas expectativas, desejos e temores. É numa perspectiva psicológica, e não física, que convém considerar o princípio de contemporaneidade de Lewin. ANALISE CRITICA DA EPISTEMOLOGIA LEWINIANA Embora a "passagem do modo de pensar aristotélico ao galileano" em Psicologia não signifique qualquer redução do psicológico ao físico, pode mos, ainda assim, perceber em Lewin uma atitude reducionista, localizável no plano epistemológico. O paradigma da Física - . formalização abstra ta + definições coordenadoras - é visto como modelo ideal, desconsi derando que a produção de conhecimentos radicalmente novos, o começo de uma ciência em uma região determinada do saber, implica, como no caso da Física, a produção de novos modelos. Neste sentido, apesar de reconhecer a validade do projeto lewiniano de fornecer à Psicologia, através da Teoria de Campo, os fundamentos para que ela fosse capaz de "se pensar'', não podemos deixar de assinalar que estes fundamentos são de inspiração neopositivista e desconhecem a especificidade das diversas práticas científicas. A influência da Fenomenologia não entra em contradi ção com esta postura, pois Lewin "acopla" uma abordagem descritiva, pré-teorética, a um plano teórico, explicativo, satisfazendo simultanea mente as exigências de ambas as fontes de influência. A descrição dos fenômenos não aparece, assim, como obstáculo à teorização, mas como um dos planos para a superação de preconceitos de origem metafísica. Por um lado, "descrever pré-teoreticamente" - encontrando, assim, uma realidade 27 estruturada, um campo onde os elementos só se definem por reciprocida de; por outro, encontrar um formalismo capaz de representar esta descri ção com um mínimo de ambigüidade - papel desempenhado pela Topolo gia. Entretanto, se há· transformações, se há movimento e mudança, é necessário postular "forças", e saímos já do campo do observável. Inter vêm aqui também constructos dinâmicos e o formalismo da Hodologia, que estão fundamentados sobre os constructos descritivos formalizados via Topologia. Esta estrutura hierárquica de patamares cada vez mais afastados do plano do observável, mas cujo significado a ele remete em última instância, faz pensar em certa ambigüidade no que se refere à ênfase lewiniana na necessidade de teorização. Esta última aparece menos como produção conceituai do que como formalismo, expressão numa linguagem: o caráter estrutural não é tanto uma construção, e sim uma reflexão, a nível mais abstrato e matematizado, daquilo que é diretamente dado como organização, como "Gestalt". Esta ambigüidade se vê reforçada pelo apelo aos determinantes dinâmicos: se estes não são observáveis, como fundamen tá-los sobre os constructos de primeira ordem? Ficariam reduzidos, neste caso, a meros rótulos que sintetizariam relações. E um último impasse: nestas determinações, encontramos variáveis não-psicológicas, incidindo na zona de fronteira. A dificuldade de Lewin para produzir epistemologica mente a especificidade de seu objeto fica, aqui, flagrante: se a zona de fronteira faz parte do campo psicológico, não vemos mais a possibilidade de um critério fenomenológico como ponto de partida para defini-lo. Como reconhece o próprio Lewin, este campo não se esgota na percepção que o indivíduo tem dele, pois os fatores que determinam sua dinâmica não são diretamente conhecidos. E isto quer para o inve .. tigado, quer para . o investigador. Neste sentido, acreditamos que a tentativa lewiniana de acoplar Fenomenologia e formalização em linhas neopositivistas esbarra com impasses insuperáveis dentro da perspectiva continu(sta subjacente a . tais formulações. Quanto à questão da causalidade, mais uma vez é digna de considera ção a tentativa feita por Lewin de refletir sobre uma temática muitas vezes abordada sem maior crítica pelos teóricos da Psicologia. A comparação com a Psicanálise é, neste ponto, ilustrativa, mas consiste também numa possível fonte de incompreensões. Se existem razões, como aponta Lewin, para rejeitar uma concepção simplista de causalidade histórica em Freud - erro no qual recaem muitos daqueles que nele identificam um ponto de vista genético ou evolutivo-, não nos parece que a causalidade sistemática e a noção de espessura temporal do campo atinjam o verdadeiro significado de que a causalidade se reveste em Psicanálise. O conceito de posteriorida de (apres-coup) representa uma novidade epistemológica radical neste terreno, que não se confunde quer com a concepção histórica, quer com a concepção sistemática de temporalidade. 28 A PSICOLOGIA TOPOLÓGICA E A DINÂMICA DO CAMPO PSICOLÓGICO Como já assinalamos, Lewin lança mão da Topologia para representar os problemas relativos aos eventos possíveis ou não num espaço de vida. Para compreender a maneira como se realiza este objetivo, vale esclarecer esta última noção, que nos parece servir de base à Psicologia lewiniana em sua vertente descritiva. O espaço de vida designa a totalidade dos fatos que determinam o comportamento de um indivíduo num determinado momento. Inclui a pessoa e seu meio, permitindo formular a relação C = f (P, M), isto é: o comportamento (C) é função da pessoa (P) e de seu meio (M). Frise-se que o critério fenomenológico utilizado para estabelecer quais são os fatos determinantes exige a consideração relacional de P e M, ou melhor: pessoa (P), enquanto pólo de um campo que a inclui, assim como a seu meio (M); meio (M), seja físico, social ou conceituai, porém considerado psicologica mente, ou seja, enquanto percebido pela pessoa e tal como é percebido por ela. O meio psicologicamente real é o meio fenomênico, seja ele "real", fictício, irreal ou ideal. O meio consiste naquilo que produz efeitos, num enfoque semelhante à definição de meio comportamental (Koffka) ou de experiência imediata (Kóhler), incluindo apenas aquilo que é intencional mente aprendido pelo sujeito. De que maneira a Topologia pode ser usada para figurar a estrutura do espaço de vida? Na qualidade de Geometria não-métrica, ela representa as relações parte-todo, as conexões e as posições, sem considerar questões de tamanho e direção. Seu conceito fundamental - o de região -:- refere-se a qualquer segmento do espaço, qualquer que seja seu número de dimensões. Outros conceitos básicos - caminho, região conexa, região fechada e aber ta, região de conexão simples e múltipla, in�erseção etc. - lançam mão do conceito de região mediante especificações. Assim, "caminho = região-li nha, ligando dois pontos"; "região fechada= região que inclui seu contor no ou pontos-limite" etc. Vinculando estes conceitos matemáticos, median te definições coordenadoras, a conceitos de conteúdo psicológico, podemos apreciar o sentido da Psicologia Topológica. Com relação ao espaço de vida-, tanto a pessoa (P) como o meio (M) são consideradas regiões psicológicas, isto é, partes do espaço de vida. Ambas podem ser divididas em sub-regiões. Como sub-regiões do meio podemos considerar:um grupo social, uma ocupação, a esfera de influência · da pessoa, a família etc. A pessoa pode ser dividida em duas sub-regiões básicas: a intrapessoal e a perceptomotora. Esta última ocupa uma posição de zona de fronteira entre a região intr:apessoal e o meio. Deste modo, a região intrapessoal só afeta o meio ou é por ele afetada através da região intermediária correspondente à motricidade e ã percepção. 29 1 nicialmente, o espaço de vida foi considerado bidimensional por Lewin. No entanto, este considerou necessário, posteriormente, o acrésci mo de uma terceira dimensão, a fim de abarcar o nível de irrealidade - devaneios, sonhos, fantasias - no qual as barreiras são mais fluidas e a locomoção psicológica se dá com maior facilidade. Partindo do espaço de vida considerado topologicamente, é possível acompanhar Lewin através dos conceitos de locomoção psicológica (mu dança de posição ou estrutura, tornando-se a região em mudança uma parte de outra região), espaço de movimento livre (totalidade das regiões ãs quais a pessoa tem acesso a partir de sua posição atual), fronteiras, zonas de qualidade indeterminada, regiões superpostas, pontos inacessíveis, dife renciação, integração e reestruturação de regiões, topologia da pessoa e do meio etc. Ternos, deste modo, um esboço resumido de sua Psicologia Topológica. No entanto, como afirma Lewin, ela não é suficiente para a constitui ção de uma Psicologia. A representação geral assim fornecida é incapaz de dar conta de problemas dinâmicos, que exigem a inclusão do conceito de "forças psicológicas". As forças consideradas serão de natureza vetorial, pois o comportamento é causado por forças dirigidas, dotadas de certa intensidade. Levando em consideração os constructos dinâmicos, pode-se entender o significado da exigência de considerar o espaço hodológico. Tal espaço é composto de regiões nas quais a direção e a distância são definidas por caminhos passíveis de serem coordenados à locomoção psicológica. Este novo capítulo da Psicologia terá por base o conceito de força psicológica. Sempre que houver um comportamento, este será resul tante de um campo de forças, podendo-se distinguir, por exemplo, forças impulsoras e forças frenadoras - as primeiras provocando a locomoção e as últimas como obstáculos ã mesma (barreiras). Ou mesmo considerar a possibilidade de forças pessoais, induzidas e impessoais, consistindo, respec tivamente, em necessidades pessoais, desejos de outrem e forças correspon dentes ao contexto social. A direção e a intensidade de tais forças - propriedades que permitem que sejam matematicamente representadas por vetores - dependem da valência das regiões do campo psicológico. Esta valência será positiva ou negativa, conforme exerça atração ou repulsão sobre o indivíduo. Além da valência, deve-se considerar a distância entre a pessoa e a valência para estimar a intensidade da força. A consideração das propriedades de direção e intensidade está na base da teorização lewiniana sobre o conflito psicológico (oposição de forças de igual intensidade), seja ele de aproximação-aproximação (duas valências positivas), aproximação afastamento (uma valência positiva e uma negativa) e afastamento-afasta- mento (duas valências negativas). Com apoio na Psicologia Topológica e na Psicologia Vetorial podemos, 30 finalmente, definir campo psicológico. Consiste ele no espaço de vida considerado dinamicamente, isto é, como campo de forças, compreenden do a totalidade dos fatos coexistentes e mutuamente interdependentes. O campo psicológico compreende: a) o espaço de vida: todas as variáveis psicológicas, com duas regiões distintas - pessoa e meio; b) a zona de fronteira: zona de incidência das variáveis não-psicológicas (biológicas, sociais, físicas). Esta noção de campo permite explicar o comportamento mediante a idéia de um "sistema de tensão". Lewin supõe um estado de equilíbrio entre a pessoa e o meio que, quando rompido, faz surgir uma locomoção no sentido de restabelecê-lo. Deve-se ressaltar que o equilíbrio não implica em ausência de tensão, e sim num nível ótimo da mesma que, quando alterado (para mais ou para menos), faz surgir a tentativa de restabelecimento. CONSIDERAÇÕES CRITICAS Nossas considerações se dividem em dois grupos. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que este resumo s1mplificado das principais idéias da Psicologia lewiniana não faz justiça à complexidade conceituai de suas exposições originais. Dispersas por um imenso número de artigos e sistema tizadas apenas em dois livros - Principies of Topological Psychology para os problemas topológicos e The conceptual Representation and the Mensu rement of Psychological Forces para os vetoriais -, representam um desafio e um esforço considerável de penetração em ramos raramente familiares para o psicólogo: as novas Geometrias não-métricas, a Física dos campos, as diversas concepções físicas do equilíbrio etc. Nossas primeiras considerações versam sobre tal complexidade e suas conseqüências sobre a instrumentação concreta da teorização lewiniana. Apesar de sua intensa divulgação e da referência quase invariável ao nome de Lewin entre os que trabalham com técnicas grupais, é possível observar, paralelamente, a supersimplificaçâ'o de que se revestem. Supersimplificação da qual, de resto, também não nos eximimos totalmente. Em termos de nossa experi ência universitária no Brasil, pode-se perceber um distanciamento do alunado destes meandros teóricos, supostamente complexos demais por sua formalização e matematizaçâ'o. Os estudantes parecem guardar por Lewin apenas o respeito (citações, referências) e algumas idéias que primam pela falta de aprofundamento (fala-se em "campo", em "aqui e agora", em "tensão", em "coesão"). No plano profissional, a situação não é muito diferente. Os "práticos" da dinâmica de grupo são lewinianos "de verniz", mas raramente lewinianos por aprofundamento conceituai. Raramente leram Lewin, ou o leram pouco, e quase nunca chegaram a seu livro sobre Psicologia Vetorial - complexo, altamente formalizado, exigin do profundos conhecimentos de F ísi�a e Matemática. Estes conhecimentos, 31 presentes em Lewin - com formação em Física -, quase nunca são disponíveis para um profissional de Psicologia, ao menos em nosso méio. O segundo grupo de considerações versa sobre alguns tópicos da teorização lewiniana que consideramos problemáticos. Destacamos, para comentário, as noções de espaço de vida e de ecologia psicológica (variáveis não-psicológicas que incidem na zona de fronteira). Quanto à primeira, vale fazer as seguintes observações. A noção de espaço de vida, definida por critérios fenomenológicos ("totalidade dos fatos que determinam o comportamento do indivíduo num determinado momento"), levanta uma série de dificu Idades teóricas. Assim, vejamos: a) real = o que produz efeitos; b) no entanto, os fatos (o que produz efeitos) são identificados com o fenômeno (o físico, o conceituai e o social "enquanto percebidos pela pessoa e tal como são vistos por ela"); c) o que não é percebido atua na zona de fronteira: não é psicológico, remete a uma ecologia psicológica; d) assim, o que não é percebido = não-psicológico; · o que não é conscientemente conhecido não é psicológico; as determina ções sociais não fazem parte da psicologia sequer para circunscrever a produção do que se denomina pessoa e meio; e) esta pessoa e este meio da Psicologia são "inocentes", sem determinações além das que definem a priori sua inter-relação e integração mútua numa totalidade. Parece-nos que, se este ponto de partida fenomenológico um tanto ingênuo já é quase incompatível com uma teorização relativa à Psicologia Individual ("a pessoa e seu ambiente"), terá ressonâncias ideológicas ainda mais graves na tentativa de constituir uma Psicologia Social ("o grupo e seu ambiente"). Estreitamente relacionadas à mesma questão estão as formulações sobre ecologia psicológica. Consiste elano estudo das relações entre variáveis psicológicas e não-psicológicas (operando na zona de fronteira). Lewin afirma que estas relações e a compreensão das mesmas são indispen sáveis para alcançar uma integração das Ciências Sociais: o psicólogo deve conhecer estes dados não-psicológicos para saber como determinam as condições limítrofes da vida do indivíduo (ou do grupo). Gostaríamos de assinalar: a) que Lewin recai numa relação de caráter um tanto mecânico, linear, entre "o psicológico" e "o restante". A relação se mantém aditiva (psicológico e não-psicológico) ou, quando muito, fala-se de maneira vaga em "integração"; b) tudo que não é psicológico (ex: ecologia social) é visto à maneira de uma "limitação externa", sendo identificado de uma maneira bastante empírica ("fatores" deste ou daquele tipo); c) o psicólogo teria de conhecer "o resto" para saber as condições limítrofes, mas este "resto" não entra em sua teorização. Esta se mantém dentro do que é captável corno "fenômeno", como "aparecimento à consciência", consciência esta instalada dentro de um campo de intencionalidade e significação imediata mente experienciável. 32 Podem-se perceber aqui as mesmas ressonâncias ideológicas identifica das quando consideramos a noção de espaço de vida: sujeito e mundo são definíveis a priori como regiões separadas, mas correlacionadas, num modelo de equilíbrio onde o externo é sempre "limite", e nunca "consti- · tuinte". Não há preexistências, sujeito e mundo se dão simultaneamente como correlativos para o psicólogo, que se vê preso ao campo fechado de suas interconexões. Em nossa perspectiva, é por limitação teórica e num plano estritamen te ideológico que tais relações são assim concebidas. Este discurso ideológi co a respeito do social ficará evidenciado com maior clareza na teorização lewiniana sobre a dinâmica de grupo. O CAMPO SOCIAL E A DINÂMICA DE GRUPO Nos últimos anos de vida, Lewin dedicou-se ao desenvolvimento de . uma Psicologia Social, havendo fundado, em 1945, o Research Center for Group Dynamics, atualmente situado na Universidade de Michigan. Perce be ele, nesta área de estudos, a mesma carência conceituai que apontara na Psicologia Individual, e seu trabalho pode ser visto como uma transposição, para a Psicologia Social, das posições básicas adotadas em relação à psicologia do indivíduo. Se concebermos o indivíduo e seu ambiente como formando o campo psicológico, o campo social será entendido de forma análoga, como uma totalidade dinâmica e estruturada em função da posição relativa das entidades que o compõem. Estas são, basicamente, o grupo e seu ambiente e, em termos mais analíticos, grupos, subgrupos,· membros, barreiras etc., assim como a distribuição de forças em todo o campo. Com relação ao conceito de grupo social, deve-se observar o novo enfoque de que o mesmo é objeto, com base em posições gestaltistas. Para Lewin, o grupo consiste numa totalidade dinâmica que não resulta da soma de seus integrantes, possuindo propriedades específicas enquanto totalida de. Distingue, assim, grupo social - definido pela interdependência de suas partes - e classe social - caracterizada pela semelhança entre seus membros em termos de sexo, idade, raça, nível sócio-econômico, atitudes etc. A partir das idéias de Lewin, o grupo passa a consistir em um objeto de estudo específico por parte de diversos pesquisadores, que vão conce bê-lo e a seu meio na qualidade de campo social. Quanto às investigações do próprio Lewin, podemos destacar os se guintes aspectos: a) ênfase no estudo de microgrupos ou grupos face-a-face (5 a 7 elementos), justificada pelo insuficiente desenvolvimento do instru mental conceituai e metodológico; b) impossibilidade de generalização direta para unidades macroscópicas, apesar da abertura de perspectivas neste sentido pela via do conceito gestáltico de transponibilidade: o padrão 33 de um grupo complexo e extenso poderia ser transposto para um tamanho adequado, mantendo-se as características estruturais essenciais; c) estudo intensivo das relações entre o grupo e o indivíduo, identificando os significados que o primeiro pode ter para o último: terreno de sustentação, instrumento, totalidade da qual é parte, e parte do espaço de vida. Há destaque para a noção de conflito: o indivíduo pertence a diferentes grupos, com diferentes exigências (conceito de situação transvariante); a divergência indivíduo-grupo pode atingir certos limites (conceito de espaço de movimento livre); d) definição de campo social como espaço social (grupo e seu ambiente) considerados dinamicamente, o que implica uma distribuição de forças: a mudança social exige uma ação sobre um processo em nível de equilíbrio (processo estacionário e equilíbrio quase estacioná rio), alterando a constelação de forças; e) definição de hábitos sociais como resistências à mudança, em virtude da criação de um campo de forças adicional pela constância histórica, o que tende a manter o nível atual do sistema. Valores e instituições tornam-se interesses adquiridos, e quanto maior o valor social de um padrão de grupo, maior a resistência a um afastamento deste n(vel; f) vinculação entre a resistência à mudança individual e grupal: modificando-se a intensidade do valor de um padrão de grupo, a resistência individual é praticamente eliminada, visto que ela é mantida pelos limites admissíveis de desnível indivíduo-grupo. Esta temática de intervenção e mudança está ligada à aspiração de Lewin, de transformar a Psicologia Social em uma ciência experimental. Por seu caráter específico, a pesquisa experimental é aqui denominada pesquisa-ação (action-research) ou laboratórios sociais (workshops). O pró prio método de pesquisa é um método para provocar transformações sociais, na tentativa de aplicar o método experimental a situações reais de grupo. A pesquisa-ação lida notadamente com dois tipos de problemas, considerados indissociáveis: estudo das leis gerais da vida dos grupos e · diagnóstico de uma situação específica. Tem início com a organização de grupos cujos participantes são, simultaneamente, sujeitos e objetos da experiência. O planejamento tem como ponto de partida uma idéia geral referente a um objetivo, que de início nem sempre é muito claro, mas que serve de guia para elaborar um plano global para atingi-lo. No decorrer do processo, as etapas anteriores são reexaminadas em função dos resultados obtidos, dando-se ênfase aos aspectos subjetivos, à elaboração da percep ção da situação pelos indivíduos em suas inter-relações dinâmicas. Isto permite o início de um novo ciclo de planejamento, ação e averiguação dos resultados, em que estão envolvidos tanto os pesquisadores quanto os participantes. Para concluir, deve-se assinalar que, também·com referência à temática da motivação, as pesquisas de Lewin se ligaram, em sua última fase, aos 34 estudos sobre dinâmica de grupo. A ênfase é posta, então, sobre as forças que atuam sobre o indivíduo, embora não correspondam a necessidades dele próprio. Constituem forças induzidas por outras pessoas (família, grupo profissional), sendo muitas delas impessoais: não refletem o desejo de pessoas determinadas, mas correspondem aos valores do grupo e da sociedade em geral. Neste último sentido, abre-se uma via para o estudo das ideologias de grupo, que, facilmente incorporadas de maneira inconsciente, passam a determinar a conduta de seus integrantes. ANÁLISE CRITICA Quem quer que se dedique ao estudo dos grupos sociais não pode deixar de reconhecer que as pesquisas atualmente realizadas neste campo têm seus fundamentos nos esforços desenvolvidos por Lewin no sentido de integrar as Ciências Sociais e, principalmente, de lhes fornecer um instru mental científico produtivo. Do mesmo modo, em meio ao ecletismo das fontes teóricas de que lançam mãos os psicoterapeutas de grupo, desponta quase que invariavelmente a referência aos conceitos lewinianos.Na verda de, se o grupo deve ser tomado como objeto de teorização e de interven ção, não há como fazê-lo na ausência de uma concepção que fundamente sua especificidade enquanto distinto de um somatório de integrantes. E, nesta linha, as idéias de Lewin aparecem como embasamento quase que obrigatório. No entanto, se a referência fica assim compreensível, nem por isso se torna isenta de objeções. Pode-se perceber claramente que, na elaboração de sua Psicologia Social, Lewin propõe implicitamente um certo paradigma do social que consideramos bastante contestável. Esta contestação serve de conclusão a este capítulo, e tem por base os seguintes argumentos: a) Ao distinguir grupo social e classe social, define esta última pela seme lhança entre seus elementos. A diferenciação se funda, portanto, em uma Sociologia empirista-positivista, dando-se ilusoriamente como pres suposto que qualquer sociologia aceita tal definição. Para fundar a especificidade de seu objeto, Lewin omite, portanto, uma série de desen volvimentos teóricos, nos quais uma concepção estrutural é aplica da à própria totalidade social. b) Ao distinguir macrogrupos e microgrupos, o próprio Lewin recai nas distinções meramente fenotípicas que tanto critica. A restrição aos microgrupos é vista em certos momentos como apenas prática (não teórica), podendo supostamente desaparecer com o desenvolvimento de técnicas apropriadas. O discurso faz supor que não há qualidades dife rentes nem mediações entre os macro e os microgrupos, mas apenas uma dificuldade a nível tecnológico. Isto surpreende, pois, em outros mo mentos, Lewin aponta a falta de um instrumental conceituai bem 35 desenvolvido (nova restrição a uma sociologia e uma psicologia empiris tas) e a impossibilidade de generalização direta para os macrogrupos a partir dos microgrupos (logo, dificuldade teórica). Paradoxalmente, a solução por ele encontrada parece repousar na noção gestaltista de transponibilidade dos padrões. Volta-se, pois, a desconhecer a especifi cidade do objeto teórico, mediante apelo a uma noção tão vaga como a de Gestalt. c) A teorização sobre o campo . social segue a direção orientada pela psicologia do indivíduo, sendo a referência sociológica apenas negativa. Temos, assim: espaço de vida - espaço social; o indivíduo e seu meio - o grupo e seu meio; equilíbrio do indivíduo - equilíbrio do grupo; tensão individual - tensão grupal; campo psicológico - campo social; ecologia psicológica - ecologia social etc. Coerente com sua postura inicialmente fenomenológica, o social é, para Lewin, primordialmente um quase-social (social conforme percebido). Não desejamos de Lewin, é claro, uma Sociologia. Mas é preciso notar que se a Psicologia Social pode-se instalar na mediação individual-social, não poderá fazê-lo pela mera ampliação de conceitos psicológicos que, inicialmente, desconhe cem a Sociologia. Tal mediação ganharia sentidos bastante distintos ca so indivíduo e sociedade não fossem concebidos, como faz Lewin, na qualidade de entidades separadas a reunir mediante um campo de intencionalidade e significações. d) Na teorização sobre o campo social, Lewin recai na mesma dificuldade epistemológica anteriormente assinalada: uma permanente oscilação entre critérios fenomenológicos e critérios constructivos. É exemplar, neste caso, o tema da motivação. Não vemos bem o sentido da distinção entre motivos próprios do indivíduo (conscientes? ) e motivos induzidos ou impessoais (não conhecidos conscientemente? ), a não ser reafirman do a ambigüidade epistemológica do acoplamento de descrições e cons truções. Ao produzir sua Psicologia Social, mais uma vez Lewin hesita entre representar uma realidade conforme vivenciada e produzir conceitualmente seu objeto. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPITULO li (1) Lewin, K. :-- "EI conflicto entre las perspectivas aristotelicas y galilea nas en la psicologia contemporanea", in Lewin, K. - Dinamica de la Personalidad, Morata, Madrid, 1969, p. 11-52. (2)Garcia Roza, L. A. - Psicologia Estrutural em Kurt lewin, Vozes, Petrópolis, 1972, p. 34-39. Neste trabalho pode-se encontrar uma bibliografia bastante completa da produção conceituai de Kurt Lewin. 36
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