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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO JAQUELINE VITORIANO DA SILVA REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA RIO DE JANEIRO 2012 ii JAQUELINE VITORIANO DA SILVA REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do diploma de mestre em Saúde Coletiva. Linha de pesquisa: História, Representações e Fundamentos Conceituais em Saúde. Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira RIO DE JANEIRO 2012 S586 Silva, Jaqueline Vitoriano da. Redução de danos: novas formas de governo de si e do outro na política de saúde brasileira/ Jaqueline Vitoriano da Silva. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2012. 124 f.; 30cm. Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira. Dissertação (Mestrado) - UFRJ/Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2012. Referências: f. 119-124. 1. Usuários de drogas. 2. Transtornos relacionados ao uso de substâncias. 3. Saúde mental. 4. Controle comportamental. 5. Políticas públicas de saúde . 6. Atenção à saúde. I. Ferreira, Arthur Arruda Leal. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III. Título. CDD 363.45 iii JAQUELINE VITORIANO DA SILVA REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do diploma de mestre em Saúde Coletiva. Linha de pesquisa: História, Representações e Fundamentos Conceituais em Saúde. Composição da Banca Examinadora: Dr. Arthur Arruda Leal Ferreira (UFRJ - Orientador) _____________________ Dr. André Martins Vilar de Carvalho (UFRJ) ___________________________ Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (UFRJ) ___________________________ iv AGRADECIMENTOS Primeiramente, gostaria de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro que viabilizou a realização deste trabalho. Agradeço imensamente à minha mãe, principalmente pelo carinho e paciência que me dedicou durante todo o momento de realização deste trabalho. Obrigada por aguentar a saudade e pela torcida! Agradeço à Mercedes Carvalho (In Memoriam), pela força e incentivo que me deu no momento de partida para as terras cariocas. Personagem importantíssima para a história da Psicologia na Bahia. Estamos todos saudosos. À Tereza Calomeni, pela aconchegante receptividade na minha chegada no Rio e pelas excelentes aulas de Filosofia Contemporânea que me proporcionou na UFF. Ao Arthur, pela orientação tão companheira e acolhedora. Agradeço ao André pelo carinho e pela oportunidade de docência proporcionada. Agradeço ao meu tio Miguel e sua família por terem me recebido em seu lar nos meus primeiros meses fora de casa. Aos bons baianos que encontrei aqui. Valeu pelas noites regadas de boa música e pelo carinho de todos. Minha gratidão especial a Carlos. Obrigada por aparecer em minha vida. v RESUMO Nessa dissertação faremos uma reflexão acerca de como as transformações das diretrizes políticas de saúde voltadas para os usuários de drogas no Brasil podem ser lidas a partir da introdução de novas formas de governo de si e do outro. Desde o início do século XXI, o paradigma da redução de danos vem sendo adotado como política oficial do Ministério da Saúde para lidar com a questão das drogas, operando uma série de modificações em termos de intervenção, objetivos e formas de atenção neste campo, modificações estas, que serão o cerne da análise pretendida. Se, por um lado, sua adoção representa a superação das antigas formas de controle maciço sobre os corpos dos indivíduos, por outro, ela pode ter dado lugar a uma nova forma de gerenciamento da vida, mais próxima ao modelo liberal de gestão, que lança mão de uma forma de poder bastante sofisticada e, ao invés de encerrar o sujeito em espaços fechados e submetê-lo a processos ostensivos de vigilância e correção, faz-se valer de sua própria liberdade, investindo no incremento da sua auto-regulação e efetivando-se graças a sua articulação com a maneira como os indivíduos governam a si mesmos. Nosso objetivo, portanto, é levantar possíveis pontos de coadunação entre as estratégias de redução de danos, presentes na atual política de saúde brasileira, e o modelo de gestão liberal. Nosso estudo foi construído a partir de uma análise documental de portarias, leis, cartilhas, manuais e demais publicações produzidas pelo governo brasileiro que fazem menção à estratégia de redução de danos e que visam regulamentar as práticas profissionais dirigidas aos usuários de drogas. Utilizamos como referencial teórico o pensamento do filósofo francês Michel Foucault. Trabalhamos, primeiramente, com suas formulações a respeito da governamentalidade, ou seja, da forma de poder que se expressa pela correta condução da conduta alheia, apresentando seu processo de surgimento e desenvolvimento até chegar ao seu atual formato liberal. Em seguida, vi apresentamos as características das tecnologias de si sob as quais as atuais formas de gestão da vida estão assentadas. Segundo o filósofo, as tecnologias de si, hoje, instrumentalizam o exercício do poder através da busca, da produção e da revelação a um Outro de uma verdade sobre si, sujeitando a relação consigo mesmo ao olhar e a direção de um elemento externo. Por fim, expomos os principais pressupostos e práticas da redução de danos, acompanhamos seu processo de inserção nas políticas públicas brasileiras – pontuando sua relação com o setor da saúde mental – e apresentamos os possíveis pontos de convergência entre tal política e as estratégias liberais de governo, como a atuação em território, a pulverização de intervenções e o incremento da autonomia dos indivíduos, e sua relação com a forma como os indivíduos se relacionam consigo mesmos, como o aumento da auto-vigilância e da discursividade sobre si. Palavras-chave: redução de danos, governamentalidade, liberalismo, tecnologias de si. vii ABSTRACT This work presents a reflection about the transformations in the ways of oneself and others selves‟ govern provoked by shifts in Brazilian health politic destined to drugs users. Since the beginning of the 21 th century, the harm reduction paradigm has been adopted as official politic of the Health Ministry for deal the drugs questions, changing the manners of interventions, the objectives and the ways of attention in this field, transformations that will be the core of the our analysis. If, on the one hand, its adoption represents an overcoming over the old massif ways of individual‟s bodies control, on the other hand, it could had given ground to a new form of control of ife, near to the liberal forms of management, that utilize a very sophisticated shape of power and, instead of shutin the individuals in a closed place and submit them to a intensive process of surveillance and correction, take advantage of their liberty, investing in the promotion of their self-regulation and functioning in articulation with the manner that the persons govern themselves. So, our aim is to bring some possible points of convergence between the harm reduction strategies, present in the current Brazilian health politic, and the liberal forms of management. This study was building through a documental analysis of governmental orders, laws, manuals and others publications draw up by the Brazilian govern that made mention of the harm reduction strategies and that aim regulate the professional practices destined to drugs users. We utilized the theoretical approach of the French philosopher Michel Foucault. We worked first, with his formulations about the governamentality, that is, about the kind of power characterized by the correct management of the other conduct, exposing its process of emergence and development until arrive in its current liberal shape. Next, we exhibit the oneself technologies‟ features over which the current forms of life‟s govern is based. According to the philosopher, the oneself technologies, nowadays, assist the power‟s viii practice through the search, the production, and the revelation of a truth about oneself, subjecting the relation with oneself to the examination and the administration of an external element. At last, we expose the most important practices of harm reduction, its insertion in the Brazilian public politics – point to the relationship with the mental health sector – and present the possible points of convergence between this politic and the liberal strategies of govern, like the territorial work, the pulverization of intervention and the promotion of the individual‟s autonomy, and its relationship with the manner that the persons relating with oneself, like the increase of self-surveillance and of the speech about oneself. Key-words: harm reduction, governamentality, liberalism, technologies of oneself. ix SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... I – 1 - A governamentalidade ....................................................................... 1.1 - Uma breve introdução ............................................................................. 1.2 - As raízes da governamentalidade ............................................................ 1.2.1 - O poder pastoral .................................................................................... 1.2.2 - A razão de Estado do século XVI ......................................................... 1.2.3 - A arte de governar .................................................................................. 1.2.4 - A Polícia .................................................................................................. 1.3 - O século XVIII e seus importantes acontecimentos ...................................... 1.3.1 - O surgimento da população e o desbloqueio das artes de governar ....... 1.3.2 - O liberalismo ............................................................................................ 1.3.2.1 - O Dispositivo de segurança ............................................................ 1.4 - O liberalismo do século XX ........................................................................ 1.5 - A governamentalidade na atualidade: O governo da vida pela liberdade ................................................................................................. II – 2 - As tecnologias de si .............................................................................. 2.1 - Localizando a problematização .............................................................. 2.2 - Subjetividade e Verdade ........................................................................ 2.3 - Um olhar para si ...................................................................................... 2.4 - As práticas .................................................................................................... 2.5 - Relação com o mestre .................................................................................... 2.6 - Sujeito do cuidado de si x Sujeito da obediência ......................................... 2.7 - O espaço da liberdade ............................................................................... III – 3. - A redução de danos ................................................................................ 3.1 - O Surgimento e as primeiras ações ............................................................. 3.2 - Pressupostos e práticas ............................................................................ 3.3 - A redução de danos no Brasil .................................................................... 3.3.1 - A Chegada .............................................................................................. 3.3.2 - A institucionalização e o aparato legal ................................................. 3.4 - A psiquiatria e os seus movimentos de contestação ................................ 3.4.1 - O terceiro movimento e a reformulação do serviço de saúde mental brasileiro ................................................................................................. 3.5 - Novas formas de governo de si e do outro ............................................ 3.5.1 - Práticas psi e a Hermenêutica dos usuários ......................................... CONCLUSÃO .......................................................................................................... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 10 18 18 22 22 25 27 29 31 31 34 38 42 46 49 49 52 56 60 65 67 71 74 74 78 80 80 83 90 93 99 107 114 119 10 INTRODUÇÃO Nessa dissertação faremos uma reflexão acerca de como as transformações das diretrizes políticas de saúde voltadas para os usuários de drogas no Brasil podem ser lidas a partir da introdução de novas formas de governo de si e do outro. Desde o início do século XXI, o paradigma da redução de danos vem sendo adotado como política oficial do Ministério da Saúde para lidar com a questão das drogas, operando uma série de modificações em termos intervenção, objetivos e formas de atenção neste campo, modificações estas, que serão o cerne da análise pretendida. A pesar de haver, no âmbito legislativo, o propósito de algumas ações preventivas, até meados da década de noventa as ações do governo estavam centradas prioritariamente na questão da repressão ao tráfico. Foram criados, entre o período de 1980 e 1993, diversos órgãos de atuação no campo das drogas, como a Secretaria Nacional de Entorpecentes, o Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão de Entorpecentes e o Conselho Federal de Entorpecentes, todos vinculados ao Ministério da Justiça (Conselho Federal de Psicologia, 2009). No domínio do Ministério da Saúde as ações eram norteadas por um modelo hospitalocêntrico, no qual, a atenção ao usuário era pautada na prática do internamento em hospitais psiquiátricos. Nesse modelo interventivo o usuário gozava de pouca autonomia em seu tratamento, sendo objetivado quase que passivamenteno conjunto de técnicas e ideais médicos configurados no espaço do confinamento asilar, tendo a abstinência como uma meta exclusiva a ser alcançada. Na segunda metade da década de noventa, diante do problema da disseminação do vírus HIV por usuários de drogas injetáveis, novas formas de atenção aos usuários de drogas começam a ser consideradas pelo governo. Estratégias que visassem à transformação dos hábitos dos indivíduos na relação com a droga, e não apenas a suspensão do uso, precisaram ser elaboradas e postas em prática. Tais intervenções deveriam ser arquitetadas de maneira que pudessem atingir um espectro muito mais amplo de indivíduos, não se restringindo àqueles que se encontravam encerrados em ambientes asilares e não se limitando às ações voltadas para a meta exclusiva da abstinência. Essas ações deveriam ter a capacidade de inserir novos comportamentos nos indivíduos, comportamentos esses que precisariam ser conservados de maneira ativa e autônoma pelos sujeitos no seu cotidiano. É ai que a redução de danos – estratégia até 11 então utilizada em outros países e aplicada de forma pontual por gestores locais e organizações não-governamentais – passa a ser oficialmente adotada em âmbito federal pelo governo brasileiro, através de ações executadas pela Coordenação Nacional de DST/AIDS. O Ministério da Saúde define redução de danos como um conjunto de estratégias para lidar com a questão das drogas que não adota a abstinência como meta obrigatória e imediata, mas que elabora ações para a diminuição dos danos ao usuário e aos indivíduos a ele vinculados (Brasil, 2010a). Dessa maneira, tais práticas pretendem alcançar indivíduos que não querem, não podem ou não conseguem interromper o uso das drogas. Dentre os seus princípios teoricamente defendidos estão: a tolerância, por conta do respeito às escolhas individuais; a diversidade, por abarcar em suas intervenções uma multiplicidade de tipos de usuários; e o pragmatismo, pelo fato de serem articuladas ações dentro do campo da possibilidade, ainda que determinado objetivo, identificado como ideal, não possa ser atingido. Como exemplos de medidas de redução de danos encontramos: a distribuição de seringa para usuários de drogas injetáveis, a substituição de uma droga por outra que ofereça menos riscos, a distribuição de preservativos, a indicação da ingestão de líquidos e alimentos para que sejam amenizados os danos ao corpo, a redução do consumo, a suspensão da utilização da droga em determinadas ocasiões e a interrupção total do uso. Nessa abordagem, o usuário, caso não interrompa o uso, deve construir ativamente modos mais saudáveis de uso da droga, diminuindo os riscos trazidos para a coletividade e para a saúde do próprio indivíduo. Uma das atividades fundamentais da redução de danos é o trabalho no território, onde o usuário é encontrado em sua própria realidade, possibilitando uma capilarização da intervenção e uma incorporação de novos elementos aos saberes anteriormente construídos. Nessa forma de cuidado não só os usuários são acionados, mas toda sua rede social, como familiares e comunidade do bairro. Atualmente, as práticas de redução de danos no Brasil não se restringem à esfera da saúde strictu senso. Desde 2003 após a aprovação da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, a redução de danos sai do âmbito exclusivo da Coordenação de DST/AIDS e se torna a estratégia norteadora de todos os serviços de saúde. A partir de então, as intervenções dirigidas aos usuários de drogas devem ser executadas em articulação com diversos outros setores das ações governamentais, sobretudo os ligados a educação e a promoção de emprego e renda. 12 Nessa nova política o indivíduo não é incitado a exercer uma autogestão apenas no trato com a sua saúde, ele é levado a engajar-se numa forma de vida mais responsável e autônoma em todos os aspectos da sua vida, sobretudo, através de sua inserção no mercado de trabalho que poderá prover a sua auto-manutenção na sociedade. As práticas de redução de danos devem encontrar seu lugar de maior aplicabilidade no campo da saúde mental, setor que vem substituindo os tradicionais dispositivos asilares – oferecidos aos usuários de drogas e demais indivíduos considerados portadores de algum transtorno mental – por serviços de portas abertas, assentados em estratégias de atuação no território, na busca ativa, na clínica ampliada e principalmente no incremento da autonomia e da responsabilidade dos usuários. Diante de tais transformações operadas nesse campo, esse trabalho traz como desafio a ampliação da discussão a respeito dos dispositivos de governo de si e do outro gerados a partir da incorporação dos princípios da redução de danos na política de saúde brasileira. Se, por um lado, sua adoção representa a superação das antigas formas de controle maciço sobre os corpos dos indivíduos, que eram então submetidos ao disciplinamento inflexível em ambiente asilar; por outro, ela pode ter dado lugar a uma nova forma de gerenciamento da vida, mais próxima ao modelo liberal de gestão que, como definido por Foucault, lança mão de uma forma de poder bastante sofisticada e, ao invés de encerrar o sujeito em espaços fechados e submetê-lo a processos ostensivos de vigilância e correção, faz-se valer de sua própria liberdade, investindo no incremento da sua auto-regulação e efetivando-se graças a sua articulação com a maneira como os indivíduos governam a si mesmos. Convidamos o leitor, portanto, a lançar um novo olhar sobre o processo de inserção dessa abordagem nas estratégias de saúde. Se normalmente olhamos para tal incorporação a partir da perspectiva do afastamento das antigas formas de poder, desejamos aqui, pensar nas possíveis novas formas de governo da vida que puderam ser implantadas. Sendo assim, o nosso objetivo é levantar possíveis pontos coadunação entre as estratégias de redução de danos, presentes na atual política saúde brasileira, e o modelo de gestão liberal. Para tanto, foi realizada uma análise documental das portarias, leis, cartilhas, manuais e demais publicações produzidas pelo governo brasileiro que fazem menção à estratégia de redução de danos e que visam regulamentar as práticas profissionais dirigidas aos usuários de drogas. Investigamos neste material como as 13 formas de governo do outro tem sido programadas, de que estratégias elas dispõem, e qual a sua relação com a forma como os indivíduos se relacionam consigo mesmos. A dimensão da questão da droga no Brasil hoje é indiscutível. A visibilidade dada ao problema do tráfico, a discussão acerca da presença da droga nos diferentes setores da população, as reflexões sobre as formas de uso dada a configuração da sociedade contemporânea, refletem a necessidade de discussão também a respeito das formas atuais de tratamento. Desde o início do século XXI a redução de danos é adotada como a estratégia oficial do governo e vem tentando ser implementada em todos os setores da saúde pública que lida com essa questão. Ao se discutir as novas formas de gestão de si e do outro colocadas em jogo com essa nova política, pretende-se ampliar a compreensão do fenômeno atualmente. O que se almeja aqui, não é estabelecer nenhuma crítica feroz a esse novo modelo de atenção e nem propor uma nova forma atuação. Tampouco, se pretende encorajar algum retorno aos nefastos dispositivos asilares, ainda remanescentes em nossa sociedade. Esperamos que esse estudo possa nos auxiliar na compreensão das implicações éticas e políticas trazidas por tais estratégias, através da apreensão dos novos perigos e desafios implicados. Teremos como auxílio nessa empreitada o pensamento e as obras produzidas pelo filósofo francês Michel Foucault. Para a compreensão do modo de gestão liberal, teremos como referencialteórico as publicações dos cursos do final da década de 1970, Segurança, Território e População e O Nascimento da Biopolítica. Nesses cursos o que se pretendia de início, em continuidade às obras anteriores, era elucidar as condições de aparecimento da forma de poder que tem como objeto a população. Nas obras anteriores, o autor havia trabalhado a ideia de como o controle da população passava necessariamente pelo gerenciamento dos processos biológicos da vida, como adoecimento, morte e sexualidade. Nesse contexto o autor trabalhara, sobretudo, o papel da polícia médica no século XVIII, o surgimento da medicina social e da higiene pública. No entanto, o que se sucedeu nas formulações seguintes foi um deslocamento significativo de suas análises. Foucault, nas duas obras acima referidas, passou a se dedicar à análise da racionalidade governamental que, como indicam Martins e Peixoto Júnior (2009), pode ser entendida como a “reflexão sobre a natureza e a atividade do governo”. Nesse momento o filósofo analisa a maneira como o Estado pensa a si, como organiza suas ações e como elabora um conhecimento preciso acerca de seus objetos, saber indispensável para a realização das metas pretendidas. Esse estudo não passa, 14 contudo, pelas teorias jurídicas ou filosóficas da soberania, nem pela história das instituições ou do poder público, o elemento perquirido pelo autor é a racionalidade concernente às tecnologias de gestão dos indivíduos colocadas em jogo para dar conta do gerenciamento da população que entraram em circulação a partir do século XVIII (Martins & Peixoto Júnior, 2009). Essas duas obras, anteriormente citadas, poderiam ser intituladas, afirma Foucault, como a “história da governamentalidade”. Sendo a governamentalidade entendida como o “conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos o dispositivo de segurança” (Foucault, 2001a, p. 291-292). A pesar de se dedicar ao estudo das reflexões teóricas operadas pelo Estado acerca de suas ações e objetivos perseguidos, o que o autor pretende ao examinar essa literatura é evidenciar o quanto a racionalidade adotada pelo Estado se reflete nos modos de agir dos indivíduos em sua cotidianidade, o quanto ela é traduzida na própria racionalidade adotada pelos indivíduos e, dessa forma, ele entende a racionalidade como aquilo que “orienta o conjunto da conduta humana” (Foucault, 2006c). Partindo dessa perspectiva, para o autor, são as próprias relações de poder imersas na trivialidade da vida que tornam possível ao Estado existir (Foucault, 2006b). O Estado propriamente dito, em seu funcionamento real, não se caracteriza por nenhuma instância transcendental ou metafísica, ele só ganha materialidade e realidade a partir dos comportamentos cotidianos dos indivíduos. É por isso que, para ele, se desejamos estabelecer alguma crítica e modificar o que chamamos de poder do Estado, são as diversas relações de poder presentes na sociedade que devem ser transformadas. Ou seja, são as diversas maneiras de se relacionar consigo e com o outro que devem ser alteradas. Nesse momento da obra, a concepção de poder do autor passa a ser caracterizada pela arte da condução da conduta alheia, como um conjunto de ações sobre ações possíveis, podendo ser analisadas em termos dos objetivos perseguidos, das modalidades instrumentais empregadas, das formas de institucionalização e dos graus de racionalização (Foucault, 1995). Não é um poder da ordem da lei, que constrange, que coage ou que bloqueia, é uma concepção de poder positiva, que, em sua atividade, conduz os indivíduos aos comportamentos desejados através de processos de 15 normalização. O poder aqui também não é da ordem da posse, onde alguns teriam o privilégio de adquiri-lo e outros seriam completamente destituídos desse direito. Concebido como a arte de conduzir condutas, como governo, o poder é tomado como intrínseco a uma multiplicidade de relações humanas, onde os indivíduos tentam conduzir a conduta dos outros. Melhor seria, sugere o autor, pensar em relações de poder, que abrigam sempre, dentro da sua própria dinâmica, a possibilidade das resistências, das liberdades, uma vez que operam no campo das possibilidades e são caracterizadas necessariamente por sua flexibilidade e por sua capacidade de modificação dos pólos de exercício do poder. E é por conta da perspectiva de poder elaborada nesse momento de sua obra que tal período fora sucedido pelas formulações de Foucault acerca das formas de relacionamento consigo mesmo estabelecidas pelos sujeitos – aspecto por nós também trabalhado. Se há, de um lado, um poder que age sobre os indivíduos, tentando interferir na sua conduta, há, por outro, um sujeito que se conduz, que é levado a se objetivar de determinada maneira dentro dessa relação de poder. Não há apenas um poder que age, há também um indivíduo que atua ativamente sobre si, estabelecendo algum tipo de relacionamento consigo mesmo. Esse governo de si mesmo é objeto de estudo das últimas análises empreendidas pelo autor e constituem o que se costuma denominar de período ético de sua obra, onde é elaborado o que ele chamou de histórico do cuidado de si ou das tecnologias de si. Para Foucault, as formas de governo do outro hoje estão assentadas em tecnologias de si associadas a práticas cristãs de decifração de si e confissão permanente a um Outro. A relação consigo está, dessa forma, sujeitada ao olhar de um elemento externo que é a peça chave para a decifração do sujeito e, consequentemente, o principal condutor do seu processo de transformação. Vemos ai, como o governo de si se integra com a prática de governo do Outro. Essa revelação permanente para o Outro tem como conseqüência a produção infindável de uma verdade sobre o sujeito, que é reiteradamente utilizada como ensejo para sua infinita necessidade de investigação e correção. Estabelece-se, então, um vínculo permanente entre governante e governado, desencadeando neste último, processos de subjetivação, ou seja, de constituição de si, a partir de injunções colocadas pelo primeiro. Para o filósofo, o sujeito ético típico da contemporaneidade é, portanto, caracterizado como o sujeito ético da obediência (Foucault, 2010). 16 As obras que compõem essa fase são compreendidas pelos dois últimos volumes da História da Sexualidade e pelos cursos proferidos no início dos anos oitenta no Collège de France, como A Hermenêutica do Sujeito. Tal momento em seu pensamento, a pesar de ser considerado como uma nova etapa, devido a certo deslocamento em sua perspectiva, deve ser percebido como parte integrante do seu projeto total que é, como declara o próprio autor, compreender como os indivíduos entram nos jogos de verdade. Sendo a verdade considerada como o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (Foucault, 2001b, p. 13). Nesse momento o autor concentrou seu interesse nos processos de constituição do indivíduo a partir da perspectiva do próprio sujeito, defendendo que as tecnologias de si hoje tendem a instrumentalizar o exercício do poder através da busca, da produção e da revelação a um Outro de uma verdade sobre si. Parece que a pretensão de Foucault, ao examinar as relações de poder presentes em nossa sociedade, não é reduzir a realidade a tal unidade de análise, há além do poder uma série de variáveis passíveis de apreensão em cada fenômeno apreciado, fatores econômicos, aspectos simbólicos, crenças, relações de comunicação, etc. O que ele procurou fazer, ao evidenciar as relações de poder presentes em nossa sociedade,foi trazer à luz aquilo que toca os indivíduos, aquilo que eles fazem, e por isso mesmo, aquilo que é possível de se transformar. Como o próprio autor afirmou, o que se pretendeu fazer foi “decifrar uma camada da realidade de maneira tal que dela surjam as linhas de força e de fragilidade, os pontos de resistência e os pontos de ataque possíveis, as vias traçadas e os atalhos” (Foucault, 2006e, p.278). Para o autor, o poder não é algo onipotente e onisciente que nos transforma em infelizes coagidos, pelo contrário, afirma, se tantas formas de poder foram necessárias, se tantas transformações e reacomodações foram precisas, é justamente porque esse poder não é onipotente. Esse trabalho se vale, portanto, da adoção de uma perspectiva filosófica que, como sinaliza Ferreira (2005), sem dúvida alguma, tem um objetivo político ao instrumentalizar as lutas, graças à sua historicização crítica, à sua problematização da luta e de seus alvos, contextualizando-os espacial e temporalmente, e graças à sua “participação nas próprias lutas através da passagem pela alteridade e pela diferença” (Ferreira, 2005, pg. 30). Para atingirmos os objetivos pretendidos organizamos essa dissertação dividindo- a em três capítulos. No primeiro, fizemos um histórico da evolução da governamentalidade buscando entender as raízes e as transformações ocorridas com 17 essa tecnologia de poder que surgiu no século XVIII e hoje se caracteriza por apresentar, entre as suas modalidades, um modelo de gestão liberal. No segundo capítulo trabalhamos as produções teóricas foucaultianas concentradas no que se denomina período ético, a fim de compreender como se constituem as tecnologias de si sob as quais tal modelo de gestão está assentado. No terceiro, fizemos uma exposição dos principais pressupostos e práticas da redução de danos, acompanhamos seu processo de inserção nas políticas públicas brasileiras – pontuando sua relação com o setor da saúde mental – e por fim apresentamos os possíveis pontos de convergência entre tal política e as estratégias liberais de governo. 18 CAPÍTULO I 1. A governamentalidade 1.1 Uma breve introdução Para Foucault, desde o século XVIII vivemos no que ele denominou de “era da governamentalidade”. O que pretendia dizer o filósofo ao cunhar esse estranho neologismo, que revelaria uma interessante perspectiva a respeito da trama das relações de poder em que estaríamos envolvidos há quase duzentos anos? Para fazer uma costura de suas idéias e tornar mais inteligível esse conceito complexo, mas sem dúvida alguma bastante proveitoso, recorreremos às suas produções localizadas no final dos anos de 1970, buscando captar os pontos mais esclarecedores da sua obra, bem como as transformações analíticas mais importantes no decorrer desses estudos, condições necessárias para a problematização pretendidas no desenvolvimento desta dissertação. A construção do conceito de governamentalidade não se dá de maneira isolada nas formulações do autor, ela se caracteriza como mais um dentre os diversos deslocamentos operados pelo autor ao analisar a questão do Biopoder, ou seja, do poder que tem como alvo a vida e os corpos dos indivíduos (Foucault, 2006a). O Biopoder apresentou-se, primeiramente, sob o formato disciplinar, ainda no século XVII. A tecnologia da disciplina teria como alvo corpos individuais, circunscritos em espaços fechados, corpos meticulosamente esquadrinhados e vigiados, geridos através de processos maciços de normalização, que através de uma vigilância e controle permanentes visavam o ajustamento minucioso do indivíduo à norma desejada. Ela é centrada no corpo máquina e procura extrair deste a maior quantidade de energia possível 1 . A partir do século XVIII, contudo, o surgimento de um novo objeto de ação do poder, a população, coloca em jogo uma inusitada política de gestão dos indivíduos, a Biopolítica, que lança mão de estratégias peculiares de atuação e de novas formas de inteligibilidade em relação ao seu objeto, a saber, a vida. Essa nova tecnologia posta em jogo, nomeada por Foucault de Biopolítica, é centrada no corpo enquanto espécie e exerce o controle através da gestão dos processos biológicos como reprodução, morbidade, mortalidade e expectativa de vida. Ela tem como objeto os processos biológicos da espécie humana e considera os fenômenos de massa e de longa duração, 1 Para melhor apreciação da tecnologia de poder disciplinar ver: Foucault, M. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis, Editora Vozes, 1977. 19 utiliza-se de mecanismos como a estimativa estatística e tem como objetivo produzir a regulação e a homeostase da população, apresentando uma forma de poder sobre os indivíduos bastante diferente da tecnologia disciplinar. O surgimento da Biopolítica, vale lembrar, não significa o desaparecimento da tecnologia disciplinar, elas atuam, hoje, de maneira acoplada e complexificada. A Biopolítica é, contudo, a última ruptura significativa, para o autor, no tocante às relações de poder, apresentando desde seu surgimento algumas reacomodações e renovações. Ao atribuirmos à Disciplina adjetivos como antigo ou anterior, pretendemos somente marcar suas diferenças e sua anterioridade quanto ao surgimento, não o seu desaparecimento absoluto. O estudo da governamentalidade faz parte deste projeto de compreensão das formas de composição de um poder que tem como alvo uma população, e não somente os corpos individuais da disciplina. Esta população não é determinada por seu pertencimento a determinado espaço fechado, mas é constituída por todos os indivíduos inseridos na trivialidade da vida em sociedade. O que temos hoje, portanto, para Foucault, é uma tecnologia de poder que permite o governo de todos e de cada um simultaneamente. Ao tentar elucidar como se constitui esta tecnologia de gestão dos indivíduos surgida no século XVIII, a Biopolítica, Foucault vai produzindo sucessivas reacomodações do olhar para a melhor apreciação do seu objeto e traça um percurso que pode ser dividido, como sugere Farhi Neto (2010), em cinco momentos principais: vai (1) da análise da disseminação da medicina e das questões da saúde pelo tecido social, (2) passando pela articulação do conceito de raça à prática da guerra, (3) pela utilização do recurso de dispositivo de sexualidade, (4) pela relação do Estado com a garantia de segurança e prevenção dos riscos da população até (5) as reflexões liberais e neoliberais de governo que possibilitam a gestão dos indivíduos através do modelo da racionalidade econômica. A cada nova ponderação novos elementos são incorporados, compondo todos juntos um complexo mosaico que caracteriza as formas atuais de gestão da vida. A noção de governamentalidade é introduzida nestes dois últimos momentos, quando Foucault identifica como uma prática racionalizada de governo por parte do Estado – que começou a aparecer no século XVI a partir da formação dos Estados nacionais – pode encontrar somente no século XVIII seu ponto de apoio e solidificação, no momento em que a população se tornou permeável às técnicas de intervenção graças à sua transformação num dado discriminável, capaz de ser compreendido em suas 20 regularidades e em seus fenômenos específicos, quando ela passa a ser traduzível estatisticamente e compreendida enquanto um objeto específico nunca anteriormente apreciado. “A problematização da governamentalidade permitiu a Foucault estabelecer um diagnóstico significativo da época contemporânea, a partir da racionalização do poder político” (Candiotto, 2010, p. 40). Ao tornar-se uma perspectiva de análise, a população surge como o objetivo final do governo, que vai legitimar suas práticas em nomedo aprimoramento e aperfeiçoamento das condições de vida desta. O governo passa a se ocupar da melhoria de sua riqueza, de sua sorte, de sua saúde, de sua expectativa de vida, e, agindo em nome desta população vai colocá-la numa situação de duplo posicionamento: ela é tanto um objeto da intervenção estatal quanto um sujeito, um sujeito de necessidades e aspirações, que apresenta seus pontos de carência a partir da revelação de suas variáveis. O surgimento dessa política das populações colocou em jogo uma nova tecnologia de poder, denominada por Foucault de dispositivo de segurança, que funcionaria de uma maneira bastante diferente – apesar de atuar de forma conjunta – do mecanismo de poder disciplinar. A começar por sua relação com os eventos indesejáveis, o dispositivo de segurança não busca a todo custo eliminar determinados acontecimentos, uma vez que, uma análise afinada de sua conjuntura revela, por vezes, suas condições de inevitabilidade. Trata-se aqui de produzir um dispositivo que possa intervir nos diversos elementos da história do evento em questão, e não somente no seu ponto final, procurando reduzir os efeitos negativos e potencializar os positivos. A forma de normalização também se mostra diferente do modelo disciplinar. A norma é extraída a partir da observação e do exame da própria realidade, de onde se calcula uma média, uma normal. O estabelecimento da norma requer, portanto, um escrutínio, um estudo, uma avaliação da realidade, contrapondo-se à rígida imposição de um ideal como no modelo disciplinar. A operação aqui consiste em, através do estabelecimento de uma curva normal, tentar aproximar as normas mais desviantes da ideal, e não em uma implantação estática de um modelo de perfeição, cego às características “naturais” do objeto em questão. A assunção da população à categoria de análise tornou possível a constituição de um campo de saber específico do governo, a economia política, que vai concentrar sua análise na relação das variáveis populacionais com as demais variáveis anteriormente consideradas pelo governo, como riqueza e território. (Foucault, 1978). 21 O que Foucault nos mostra, ao realizar seu estudo sobre a era da governamentalidade, é que desde que o poder se ocupou de gerir a vida da população, esta tem se constituído, em seus mais distintos âmbitos, enquanto um lugar de produção ilimitada de saber, implicando numa forma de controle que foi se tornando cada vez mais sutil e capilar, na medida em que regula os indivíduos através das verdades produzidas acerca destes. Essas verdades são reiteradamente pronunciadas, naturalizadas e consequentemente invisibilizadas. Vivemos, desde o século XVIII, circunscritos numa trama de poder que está assentada na produção constante de conhecimento acerca de seus objetos. A constituição dessa nova ciência, a economia política, saber próprio ao governo, tornou-o permeável a um regime de verdades, estabelecendo, desde então, uma demarcação entre o falso e o verdadeiro, instituindo-se os mecanismos válidos para estabelecer tal divisão, adotando-se determinados discursos e fazendo-os existir enquanto verdade e elegendo-se as instâncias aptas a enunciar os discursos legítimos (Castro, 2009). Há desde esse período até nosso tempo uma reivindicação permanente de cientificidade para pautar as ações do Estado. Desde o seu surgimento, a governamentalidade foi sofrendo constantes transformações e reacomodações, até assumir seu atual formato liberal, onde podemos identificar o que se chama de governo pela verdade. Partindo do ostensivo estado de polícia do início do século XVIII, passando pelo liberalismo do laissez-faire e chegando ao modelo liberal contemporâneo, a governamentalidade apresenta hoje uma forma de gestão bastante econômica, que dispensa os processos maciços de vigilância e correção ostensiva, e propõe aos sujeitos que se auto-gerenciem baseados nas verdades produzidas. Esta forma de poder predominante na contemporaneidade pressupõe uma posição ativa dos sujeitos, estabelecendo um intenso contato entre as tecnologias de si e do outro. Experimentamos hoje uma forma de poder bastante diluída que, como apontam Ferreira, Kaufman e Zapata (2009) se invisibiliza ao liberar os indivíduos das enclausurantes estruturas disciplinares e submetendo-os aos quase imperceptíveis grilhões da verdade. É uma forma de governo que ao se utilizar da auto-gestão dos indivíduos para exercer seu controle, torna bastante problematizável qualquer reflexão a respeito do exercício da liberdade no tempo atuais. Essa forma de governo que surgiu no século XVIII e se estendeu até o nosso tempo presente pôde se estabelecer, segundo Foucault, graças a dois eventos que lhes foram anteriores. Um deles é advento da tecnologia do poder pastoral, capaz de se 22 ocupar, simultaneamente, da coletividade e da individualidade de um bando. O outro foi a consolidação do Estado moderno no século XVI, quando houve um processo de racionalização dos atributos, objetivos e objetos desse Estado, momento em que este passou a se ocupar não mais prioritariamente da proteção territorial, mas da majoração e do ordenamento das forças produtivas dos entes governados. Passemos agora para o estudo mais detalhado das condições de surgimento e das trajetórias percorridas por essa forma de governo, para ao final podermos operar com mais clareza uma problematização acerca dessa forma de poder que hoje toma a liberdade como um instrumento do seu próprio exercício. 1.2 As raízes da governamentalidade 1.2.1 O poder pastoral Como dito anteriormente, Foucault identifica as raízes desse processo de governamentalização ocorrido no século XVIII em dois eventos que lhes foram anteriores. Um deles é o surgimento da tecnologia do poder pastoral, um procedimento de gestão dos indivíduos com efeitos individualizantes e totalizantes, que se originou lá na Antiguidade e que se faz presente até nossos dias atuais. Segundo o autor, a concepção de que a autoridade, seja ela de origem política ou divina, seria um pastor com função de guiar seu rebanho era totalmente estranha ao pensamento político grego. Para estes, a vinculação direta dos deuses era com a terra, estes a possuíam, e a forma como se dava essa posse era o que estabelecia a relação entre esses deuses e os homens. Na pastoral, por sua vez, a relação da divindade, ou do pastor que o representa, se dá diretamente com o próprio rebanho. A terra, nesse caso, é oferecida ou não, em detrimento dessa relação do indivíduo com Deus. Seus comportamentos, suas atitudes e seus pensamentos lhes tornarão merecedores ou não de uma terra fecunda e exuberante. Outra função inédita em relação ao pensamento político grego foi o papel agregador do pastor. Este guia, conduz e orienta um conjunto de indivíduos que em sua ausência se encontrariam necessariamente dispersos. Os sujeitos só se constituem enquanto grupo, enquanto rebanho, graças à presença e atuação do pastor, elemento agregador e fundador da instância da coletividade. Mais um contraste apresentado pela tecnologia pastoral é a propriedade salvadora do pastor, que vela atenciosamente para que cada um do rebanho esteja a salvo, bem alimentado e bem 23 cuidado. Os deuses gregos, é claro, também tinham o poder de salvar o povo, mas eles lhes davam uma terra fecunda, e assim garantiam o bem estar de todos de uma só vez. Não se tratava de uma salvação individualizada como na pastoral, onde há uma preocupação em vigiar cuidadosamente para que cada ovelha, uma a uma, esteja a salvo. É o pastor que serve de mediador entre as ovelhas e o bom pasto. A benevolência é uma característica essencial da atividade do pastor, ele atua devotamente pelo bem do seu rebanho, e exercer tal poder sobre os indivíduos é um dever, uma obrigação associada à devoção que lhes deve ser prestada (Foucault,2006d). Essas são, contudo, características da tecnologia pastoral correspondentes ao período pré-cristão, pertencentes ainda à civilização hebraica. Com o nascimento da religião cristã esse mecanismo de gestão dos indivíduos foi aprofundado, desenvolvido e fortalecido, e alguns dos temas hebraicos foram transformados e incrementados. A partir do exame de textos da literatura cristã dos primeiros séculos, Foucault percebe que o cristianismo ampliou a responsabilização do pastor para com o seu rebanho. Agora, além de ter a tarefa de estar atento a cada membro do rebanho, ele deve dedicar sua atenção a uma gama infinita das ações praticadas por eles, ocupando-se de tudo o que lhes diz respeito. O pastor zela, e é responsável, por todos os aspectos da vida dos indivíduos, ilimitadamente, indiscriminadamente, complexificando-se os laços morais entre ele e o seu rebanho. A religião cristã introduziu também o valor moral da obediência. Para os gregos a obediência era um meio através do qual se atingia determinados objetivos. Na busca para se alcançar determinados fins, era preciso, vez ou outra, exercer sobre suas paixões, certo controle, operado graças ao exercício da razão. Se ocorria de um grego obedecer a vontade de alguém, ele o fazia após ser racionalmente convencido. No cristianismo, contudo, a obediência torna-se uma virtude em si, para garantir a salvação, a ovelha deve obedecer prontamente e permanentemente seu superior. Mais uma transformação realizada foi a união de dois importantes instrumentos do mundo helênico: o exame de consciência e a direção de consciência. O exame de consciência visava proporcionar ao indivíduo a realização de uma contabilidade diária dos atos realizados, a fim de fazer uma auto-avaliação de sua progressão em direção à perfeição. A direção de consciência, por sua vez, consistia na transmissão de conselhos por parte de uma autoridade, solicitada pelos indivíduos em situações específicas, especialmente nas de dificuldade. O cristianismo uniu essas duas práticas. O exame de consciência deixa de ter a função de conscientização de si e passa a ser um meio para abertura para um outro, para um orientador de conduta, e a direção 24 de consciência torna-se contínua, e não mais utilizada apenas em situações especiais. Revelação permanente de suas verdades e orientação contínua de sua conduta por outrem são duas práticas introduzidas pela pastoral cristã na busca do aperfeiçoamento de sua arte da condução das almas. A pesar de marcar seu surgimento lá na Antiguidade, a tecnologia do poder pastoral passou durante toda a Idade Média por um período de latência e de difícil disseminação, encontrando somente nos séculos XV e XVI um contexto favorável a sua efetivação e difusão, inclusive por terrenos para além das fronteiras da instituição religiosa. Tal período de latência deve-se ao fato de que para que haja a implementação dessa forma de gestão da vida se faz necessário, segundo Foucault, a experiência de um ambiente essencialmente urbano, um ambiente bem diferente da pobreza e do ruralismo que encontramos durante boa parte do período medieval. Outro fator desfavorável foi a condição cultural da sociedade na época. O pastorado das almas é uma técnica complexa que exige, tanto por parte do pastor quanto por parte do rebanho, certos hábitos reflexivos sobre as atitudes humanas e suas implicações quase que totalmente ausentes na sociedade da época. Os séculos XV e XVI reuniram, contudo, duas situações cruciais para o fortalecimento, manifestação e disseminação das práticas pastorais. A primeira delas se situou no próprio cenário religioso, a partir do movimento da Reforma. Esse movimento de contestação à forma religiosa hegemônica, a saber, a doutrina católica, encorajou e provocou a elaboração de uma série modos alternativos de se pensar e de se efetuar a condução das almas. Foi uma época em que se procurava avidamente por outras maneiras de se conduzir e ser conduzido, procuravam-se novas estratégias, novos guias, novos objetivos, novos métodos. Essa conjuntura, denominada de crise do pastorado, longe de esmaecê-la e fazê-la desaparecer, multiplicou, dispersou e valorizou as formas de manifestação dessa tecnologia de poder. Nesse contexto, portanto, a associação entre o conduzir-se e a condução por parte de outrem foi amplamente fortalecida e consolidada. A outra situação que favoreceu a disseminação das práticas pastorais foi a formação do Estado moderno e sua transformação quanto ao exercício do poder político. Nesse momento, como veremos mais detalhadamente a seguir, houve uma grande modificação em relação aos objetos do exercício político, saindo de um governo assentado prioritariamente na gestão do território e passando para um governo 25 preocupado com o gerenciamento dos indivíduos. Essa atenção à conduta dos homens favoreceu a valorização da racionalidade pastoral e contribuiu para sua disseminação por todo corpo social. O Estado, agora ocupado com a administração da vida cotidiana, pega emprestado do pastorado grande parte de suas técnicas e estratégias de governo. E dessa forma “a tecnologia do poder pastoral encontrou apoio numa multiplicidade de instituições: ora no aparelho do Estado, ora na polícia, em empreendimentos privados e sociedades para o bem estar, ou na medicina e na família.” (Caliman, 2002, p. 73). Com a formação do Estado moderno, portanto, não assistimos a uma ruptura total entre as formas de governo políticas e as anteriormente executadas pela Igreja. Há, pelo contrário, uma forte vinculação entre religião e política, que não se dá exatamente por uma relação oficial entre as instituições do Estado e da Igreja, mas pela presença da tecnologia pastoral. Graças a sua preservação o governo político pôde lançar mão, até os dias atuais, de um método de gestão da vida que, perspicazmente, governa a todos e a cada um simultaneamente, e que gere a coletividade ao mesmo tempo em que é capaz de examinar as singularidades de cada membro do rebanho. Façamos agora, um estudo da racionalização das propriedades e atribuições conferidas ao Estado moderno em seu momento de consolidação, das características da arte de governar que lhe foram correspondentes e da consequente formação da doutrina da polícia já no século XVIII para que possamos então, compreender o solo sobre o qual se assenta a eclosão da governamentalidade atual. 1.2.2 A razão de Estado do século XVI Foi no século XVI que, como sabemos, o continente europeu sofreu um decisivo processo de estabilização das fronteiras, ocasionando a formação, quase definitiva, dos estados nacionais como os conhecemos hoje. Nesse contexto, novas configurações do poder político e inéditas atribuições estatais começam a se configurar. O governo que anteriormente se dedicava à ampliação do território e à defesa de suas fronteiras começa, então, a se ocupar da majoração e organização de suas forças internas. Em busca de tentar definir o que viria a ser esse então incipiente Estado e de estabelecer a singularidade dessa forma de governo em relação às outras, uma série de autores elaboram uma inédita racionalização acerca das atribuições do poder político, construindo o que eles definiram como razão de Estado. Essa razão de Estado buscava, 26 por um lado, teorizar sobre os vínculos e instituições que de certa forma já se faziam presentes, e ao mesmo tempo, tinha por meta construir, edificar e solidificar o recente Estado que iniciava a sua existência; devia, portanto, fazê-lo existir e tomar corpo. Ela versava sobre o que ele era e sobre o que devia ser. Essa nova razão de Estado não devia se basear em nenhuma lei divina ou da Natureza, ela devia criar um sistema de leis próprias baseadas na observação e racionalização da natureza do seu próprio objeto, a saber, o próprio Estado.Algumas definições a respeito da razão de Estado elaboradas na época foram examinadas por Foucault e podem ser trazidas aqui. Para o italiano Palazzo tratava-se de “uma regra ou uma arte que nos dá a conhecer os meios para obter a integridade, a tranquilidade ou a paz da república”. Para Chemnitz é “certo cuidado político que se deve ter em todos os negócios públicos, em todos os conselhos e em todos os desígnios, e que deve tender unicamente à conservação, à ampliação e à felicidade do Estado”. Segundo Foucault, a pesar das diversas elaborações produzidas, podemos encontrar quatro pontos comuns a todas as definições construídas. Primeiramente podemos destacar a já mencionada ausência de qualquer referência a leis de ordem natural ou divina. A razão de Estado só deve referir-se a seu próprio conjunto de inteligibilidade. Em segundo lugar, destaca-se o fato de estas teorizações se constituírem tanto enquanto uma descrição da essência de um Estado já dado, quanto como um conjunto de saberes ao qual se deve recorrer para que se preserve a obediência aos seus preceitos. Outro ponto vem a ser o fato de todas essas reflexões visarem o aperfeiçoamento e a ampliação de características já presentes no Estado e não a transformação deste. Por fim, pode-se perceber, aponta Foucault, a unicidade do propósito da razão de Estado, que vem a ser o próprio Estado. Se existem referências a algo como a perfeição ou a felicidade, elas sempre dizem respeito ao Estado. A única finalidade da razão de Estado é o próprio Estado (Foucault, 2008a). Alguns temas da pastoral são reelaborados nessa razão de Estado e merecem a nossa atenção. A questão da salvação toma outro objeto. A pastoral buscava salvar cada um dos indivíduos, mesmo que pra isso, de certa forma, se colocasse em risco todo o rebanho. O pastor, em busca de livrar da fome uma única ovelha perdida, seria capaz de comprometer a segurança de todo o rebanho indo à sua busca. Já na razão de Estado, o que deve ser salvo é o Estado em sua totalidade. Pode-se até mesmo, em nome desta salvação, em defesa desta sociedade, lesar o indivíduo que venha perturbar a 27 sua tranquilidade. Além de outro objeto, a salvação toma também outro destino. O pastor buscava garantir a salvação de suas ovelhas numa existência que viria após a vida terrena, em outro mundo, em outro tempo. Já na razão de Estado do século XVI, o que se pretende é livrar os indivíduos dos males que são experimentados na terra. Doença, pobreza, desemprego, acidente, todas essas moléstias são ocasionadas e sofridas nesta vida. O tema da obediência é também visto por outro ângulo. Para os teóricos da razão de Estado as sedições e as revoltas são vistas como normais, como esperadas, como intrínsecas à vida pública. Elas são vistas como mais um elemento a se governar, e não como algo totalmente intolerável e inadmissível, devendo-se, portanto estudá-las, gerenciá-las e amenizá-las. A produção da verdade encontra-se, por sua vez, igualmente transformada nessa razão de Estado. No pastorado, cada ovelha revelava suas verdades para o pastor, que as avaliava de acordo com leis divinas, doutrinariamente estabelecidas e historicamente solidificadas. Já na razão de Estado ao governante não interessa tanto conhecer as leis universais quanto os elementos relacionados ao fortalecimento desse Estado. Interessa ao governo saber sobre as características do próprio Estado, sobre sua realidade. Importava saber a respeito das mortes, dos nascimentos, das riquezas possuídas, como minas e florestas. “Não mais, portanto, corpus de leis ou habilidade em aplicá-las quando necessário, mas conjunto de conhecimentos técnicos que caracterizam a realidade do próprio Estado” (Foucault, 2008a, p. 365). 1.2.3 A arte de governar Um dos pontos que mais interessam a respeito dessa razão de Estado é a análise da nova arte de governar que ela dá ensejo. Segundo Foucault (2001a) entre os séculos XVI e XVII ocorre a explosão de uma série de manuais de governo que propunham aos governantes novas formas de se gerir os indivíduos, através de novos meios, com novos objetivos e com outras justificativas. Todas essas literaturas encontravam um ponto de repulsa em comum, a obra O Príncipe, de Maquiavel, contemporânea a esses manuais. Nesta obra o príncipe é definido a partir de uma relação de exterioridade com o seu reinado, ele não faz parte do mesmo, ele apenas o possui. Tendo recebido suas terras por herança ou aquisição em guerras, sua relação com o seu principado é constantemente ameaçada, seja pelos inimigos externos, que procuram apropriar-se do seu patrimônio, seja pelos súditos internos que, não enxergando nenhuma vinculação natural entre eles e 28 o governante, não vem motivo algum para obedecerem espontaneamente ao seu governo. Trata-se, portanto, de uma relação bastante frágil, onde o objetivo do poder é exatamente fortalecer esse ameaçado laço entre o príncipe e seu principado, que é formado por dois elementos vistos separadamente, o território os indivíduos. É questionando essa centralidade da conservação do principado tido como posse que a nova arte de governar assenta suas reflexões. Examinando um dos principais textos dessa literatura, a obra de Guillaume de La Perrière intitulada Miroir politique contenant diverses manières de gouverner, Foucault extrai alguns dos elementos centrais da nova arte de governar. Um dos pontos mais significativos é a nova concepção do que vem a ser o governante, aqui não só o príncipe, o monarca ou o juiz são admitidos como diretores de conduta, fala-se igualmente em governo da casa, da família, do convento, etc. O governante maquiavélico, o príncipe, era único e exterior ao seu principado. Já os governantes da arte de governar revelam-se múltiplos, variados, espalhados nas diversas relações presentes no corpo social, eles são diversos e encontram-se em relação de imanência com o Estado. São igualmente governantes, o pai, o padre, o mestre de ofício, o professor. Foucault encontra no autor La Mothe Le Vayer, uma interessante tipologia das formas de governo presentes na sociedade. Para ele haveria o governo de si mesmo, definido pela moral, o governo da família, denominado como economia e o governo do Estado, que viria a ser a política. Ainda que se apresentem assim separadas, para Le Vayer existiria uma ligação essencial entre essas formas de governo. Haveria, para ele, uma continuidade ascendente, proporcionada pela pedagogia, que dizia que um bom governante de Estado deveria saber governar com qualidade a si mesmo e a sua família. E a continuidade descendente, garantida pela polícia, segundo a qual o bom governo do Estado refletiria a correta gestão dos pais em relação a sua família e dos indivíduos em relação a si mesmos. O saber da economia, ou seja, da adequada maneira de governar os indivíduos no interior da família, ocuparia uma posição estratégica nessa arte de governar, devendo ser transposta para a gestão de todo o Estado. Devia-se, portanto, para os autores da época, governar o Estado da mesma maneira como se governa a família. Outra singularidade em relação à produção maquiavélica diz respeito ao objeto da ação do governo. Para os autores dessa arte de governar não se trata de gerir o território e os indivíduos separadamente, e sim de gerir corretamente os homens em relação com as coisas, entendendo-se por coisas, os meios de subsistência, as riquezas, o território, 29 os modos de pensar, de agir, de trabalhar. E essa gestão adequada de cada coisa deve visar um fim especifico. Não se trata mais da obediência a uma única lei soberana visando um bem comum, transcendental, cada objeto a ser governado possui uma finalidade específica para as quais se devem elaborar estratégias também específicas. A paciência, a sabedoria e a diligência são também qualidades inéditasatribuídas ao bom governante. Em oposição ao príncipe maquiavélico que impõe sofregamente o seu poder, o novo governante deve ser tranqüilo, paciente, ele deve, bem como o zangão, “reinar sobre a colméia sem a necessidade do ferrão”, palavras do próprio La Perrière exemplificadas por Foucault (2008a). Essa paciência é assegurada por dois elementos, a sabedoria e a diligência. A primeira garante a paciência do governante devido ao conhecimento adquirido a respeito dos governados e das corretas estratégias formuladas para orientá-los, já a segunda, permite a paciência do governante graças à natural aceitação da ação do governo por parte dos súditos, uma vez que este mostra, em sua atuação, estar sempre a serviço dos governados. Através dessa nova arte de governar assistimos, portanto, a quatro movimentos importantes: a distribuição da função de governo para todo o corpo social e a preocupação com sua correta realização; a capilarização do poder estatal para diversas áreas da vida dos indivíduos; a atribuição de finalidades específicas para cada objeto gerido; e uma certa sutilização do poder estatal garantida pela sabedoria e diligência do governante em oposição a impositiva soberania maquiavélica. Todas essas transformações ocorridas no poder governamental foram, de certa maneira, perpetuadas até o tempo presente, sendo fortalecidas e incrementadas de diferentes formas. 1.2.4 A Polícia Em articulação com as reflexões a respeito das razões de Estado e na esteira das formulações acerca das pertinências das suas ações é elaborada, em torno dos séculos XVII e XVIII, a primeira técnica de governo que expunha com precisão as metas, os objetos e os caminhos a serem percorridos pelo poder estatal, trata-se da polícia. A grande meta da polícia podia ser resumida, para Foucault (2008a), como a ampliação das forças do Estado, preservando, contudo, a sua ordem e o seu controle. Para exercer tal crescimento das forças fazia-se necessário, de antemão, conhecer quais as potencialidades desse Estado, quais suas possibilidades de expansão, quais caminhos os levavam ao enriquecimento, a opulência, para que em seguida se desenvolvesse tais 30 capacidades. Para Justi, um dos formuladores da idéia da polícia, tratava-se de “leis e regulamentos que dizem respeito ao interior do Estado e procuram consolidar e aumentar o poderio desse Estado, que procuram fazer um bom uso das forças”. Para Turquet, que em suas teorizações colocou a polícia ao lado dos três grandes ofícios do bom governo que já se encontravam em funcionamento – justiça, exército e finanças – caberia a esta inculcar nos indivíduos funções morais como a modéstia, a lealdade, a caridade bem como dirigir suas atitudes em relação as suas riquezas, ao seu trabalho e ao seu consumo. Buscava-se, desse modo, aprimorar determinadas áreas da vida dos indivíduos de modo que esse desenvolvimento se coadunasse com o fortalecimento do Estado. Ela deve se ocupar, segundo a apreciação de Foucault, de cinco grandes áreas. Primeiro do número de homens, ela deve procurar contabilizar o número de habitantes e, considerando-os a força matriz do Estado, deve multiplicar o seu contingente, multiplicando consequentemente a força da nação. À polícia, cabe ocupar-se também das necessidades da vida, como a moradia, alimentação, vestimentas, assegurando-se de que aos indivíduos sejam oferecidos esses elementos sem escassez e com qualidade. Ela deve zelar também pela saúde dos sujeitos, garantindo-os enquanto força produtiva apta ao trabalho, não somente em situações especiais com as epidemias, mas em seus diversos hábitos diários. É nesse momento que nasce a atenção aos elementos do meio capazes de alterar os estados de saúde dos indivíduos como o ar ou a água, constrói-se, a partir de então, toda uma política do espaço urbano preocupada com as questões da saúde. A polícia deve cuidar também da ocupação dos homens, deve por para trabalhar os sujeitos capazes, fazendo-os realizar as atividades importantes para o Estado. E deve, por último, atentar para os problemas concernentes à circulação, seja de homens, ao conter a vagabundagem e ao impedir que os bons operários se dirijam para outros reinos, seja de mercadorias, ao cuidar das vias, dos rios e das praças. Qual é, portanto, o objeto da polícia? Para Foucault o grande objeto dessa polícia é homem, o homem em ação, em todas as suas possíveis relações. É o homem que nasce, que morre, que adoece, que se cura, que se alimenta, que trabalha, que vagabundeia, esse é o ponto de atuação do governo. Essa forma de controle da vida é caracterizada pelo estado de polícia, que a tudo governa. Para De Lamare, outro formulador da idéia de polícia do século XVIII, o Estado deve velar pelo vivo, cabe a este cuidar para que os homens sobrevivam, e por isso deve se ocupar do indispensável, 31 para que vivam, e por isso deve estar atento ao que é útil, e mais do que isso deve permitir que façam sempre algo a mais do que viver e sobreviver, devem gerar força para o Estado, delegando a este, portanto, o cuidado também ao que é supérfluo. Ao regular a vida dos homens em relação a tudo o que os circunda a polícia torna o indivíduo o ponto nevrálgico da ação do governo, que direciona o simples viver para os interesses do Estado. E dessa maneira, “governando os corpos o Estado governa a tudo.” (Veiga-Neto, e Lopes, 2007, p. 954) Temos, então, o solo preparado para a eclosão da governamentalidade em meados do século XVIII. Temos em circulação a tecnologia do poder pastoral, uma forma de poder individualizante, que se ocupa da condução da conduta alheia, que é capaz de gerir uma coletividade ao mesmo tempo em que é atenta a singularidade e cada um, e que se faz possível graças à atenção e à impressão da marca pessoal de cada indivíduo. Há, por outro lado, o poder totalizante do Estado, que através da polícia e da arte de governar, distribui a função de governo por todo o tecido social, capilariza seu poder de ação para diversas áreas da vida e comportamentos dos sujeitos e atrela as atividades humanas ao aumento da sua potência. O processo de governamentalização analisado por Foucault tem como ponto de partida, portanto, a ocupação racionalizada por parte do Estado da vida dos indivíduos em relação aos diversos elementos que os circundam, e a adoção da tarefa de condução de suas condutas. A gestão governamental, contudo, só se faz presente na segunda metade do século XVIII, quando a população aparece enquanto categoria de análise e alvo do poder, quando a economia política se torna a principal forma de saber do Estado e quando o dispositivo de segurança surge como nova tecnologia de poder. 1.3 O século XVIII e seus importantes acontecimentos 1.3.1 O surgimento da população e o desbloqueio das artes de governar Até meados do século XVIII toda essa arte de governar elaborada pelos autores dos séculos XVI e XVII encontrava-se bloqueada. Essa arte de conduzir condutas, capaz de produzir o necessário conhecimento acerca dos seus objetos e competente em encontrar as finalidades específicas para cada alvo do poder, essa arte que se mostra diligente e hábil na correta orientação dos comportamentos dos indivíduos, não havia encontrado até então um contexto favorável a sua disseminação. É somente a partir do 32 século XVIII, com o aparecimento da população enquanto unidade de análise e alvo do poder, que essa forma de governo idealizada anteriormente pode se solidificar, se desenvolver e perdurar até os dias atuais. É bem verdade que durante as elaborações realizadas acerca da razão de Estado e do aparelho da polícia, podia-se perceber uma referência implícita à população, mas os autores ainda não se referiam diretamente a esta categoria, ainda não haviam elaborado esse conceito de maneira explícita. A quem, naqueles textos,era necessário salvar? À população. A desobediência de quem devia ser gerida? A da população. Sobre a opinião e atitudes de quem é preciso agir? Da população. Todavia, o ambiente de instabilidade e crises vivenciado até então – provocado, por exemplo, pela guerra dos 30 anos, pelas crises dos meios de subsistência e pelas sublevações ocorridas do ambiente urbano e rural – atrelado a um funcionamento institucional ainda marcado pelo modo soberano de poder impediram o desenvolvimento da arte de governar (Foucault, 2001a). Por um lado muitas necessidades militares e econômicas. Por outro, um modelo político e econômico, a exemplo do mercantilismo, que funcionava ainda no registro da soberania, sendo baseado, portanto, em regulamentos, leis e ordens muito mais voltadas para o fazer morrer e deixar viver do que para administração e majoração da vida, caracterizada, então, pelo fazer viver e deixar morrer (Foucault, 2002). Mas é no século XVIII que as artes de governar encontram um contexto favorável ao seu desbloqueio. A abundância monetária vivenciada por diversos países e o crescimento da produtividade agrícola garantiram a atmosfera de expansão e crescimento necessária. A explosão demográfica e o surgimento de questões ao nível populacional garantiram, por sua vez, a necessidade da saída do esquema de pensamento e de gestão baseados nos moldes da soberania. A observação dos fenômenos específicos da população, bastante tributária da forma de atenção e intervenção experimentadas no estado de polícia, provocou a elaboração desta categoria de análise de maneira destacada. A estatística torna-se o instrumento fundamental para o desbloqueio das artes de governar ao revelar de maneira inédita as regularidades e especificidades dos fenômenos populacionais. Doenças mortes, nascimentos, acidentes, uma nova perspectiva de olhar se origina abrindo consequentemente um novo campo de ação. A ascensão da população à campo de atuação e de análise desloca a centralidade do modelo familiar enquanto forma de governo. Níveis de mortalidade, epidemias, flutuações no mercado de trabalho, endemias, revelam que a população apresenta fenômenos específicos, não equivalentes aos acontecimentos familiares. A família deixa 33 de exercer o papel de modelo para gestão, e passa a ocupar um papel também importante, o de instrumento do governo. A partir desse momento grande parte das solicitações de comportamentos dirigidas à população se utiliza da família enquanto elemento estratégico de penetração e ressonância na vida cotidiana, “quando se quiser obter alguma coisa da população – quanto aos comportamentos sexuais, à demografia, ao consumo, etc. – é pela família que se deverá passar.” (Foucault, 2001a, p.289). Outro fator importante para o desbloqueio das artes de governar foi o fato de os fenômenos populacionais se constituírem enquanto um campo legítimo de atuação do governo, garantindo, portanto, a diligência e a presteza necessárias ao exercício do poder típicas da racionalidade razão de Estado. É em nome da melhoria das variáveis populacionais, da melhoria de sua saúde, de sua riqueza, de sua longevidade, que o governo atua, seja diretamente através de campanhas, seja indiretamente, ao intervir em variáveis relacionadas aos comportamentos dos indivíduos, provocando assim, alterações de comportamentos, tanto conscientes quanto inconscientes por parte destes. O saber produzido a partir das observações dos movimentos populacionais garante ainda a paciência necessária ao governante ao assegurar uma intervenção cautelosa, pautada num planejamento e num conhecimento seguro a respeito dos entes governados. A compreensão desses fenômenos permite a importante construção de um saber próprio ao governo, uma nova ciência, a economia política, que vai estar atenta a todas as relações entre as variáveis populacionais e as demais variáveis consideradas pelo Estado, como riqueza, capacidade produtiva, recursos naturais, etc. Mais do que isso, a economia política irá transformar-se verdadeiramente num tipo de intervenção típica dessa nova forma de governo que começa a se manifestar, marcando definitivamente a passagem da arte de governar fundamentada no quadro da soberania para uma nova arte, pautada essencialmente na gestão via técnicas de governo (Foucault, 2001a). Inicia-se, então, a era da governamentalidade, que foi definida como “o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança” (Foucault, 2001a, p.291- 292). 34 1.3.2 O liberalismo Após perceber a importância da eclosão da unidade de análise populacional, Foucault continua seus estudos a respeito da forma de racionalização operada pelo Estado dada a presença dessa nova categoria e identifica uma importante transformação, ocorrida na segunda metade do século XVIII, que modifica a maneira como o Estado pensa a si e as suas estratégias utilizadas para alcançar seus objetivos. Trata-se da influência do pensamento fisiocrata, doutrina da economia política de cunho liberal, que a partir da análise do problema da escassez do cereal vivenciada na Europa, constrói uma crítica ao Estado de polícia até então vigente e funda uma nova razão de Estado (Foucault, 2008a). Essa nova razão de Estado é marcada pela presença do liberalismo, modelo político-econômico que, desde o século XVIII até os dias atuais, vem ganhando força e se desenvolvendo, caracterizando-se como o modus operandi típico das sociedades ocidentais e se constituindo como uma verdadeira técnica de governo. Até então, o pensamento mercantilista, fundamentado no estado de polícia, defendia o baixo preço dos cereais e dos salários dos cultivadores visando o maior escoamento possível das exportações e, consequentemente, um maior acúmulo de ouro. Para evitar que os camponeses estocassem os cereais em momentos de raridade – ou seja, em momentos em que os cereais já estavam com os preços elevados e estes buscavam elevar ainda mais esse valor – provocando a escassez, os mercantilistas lançavam mão de uma série de procedimentos de controle das atividades dos camponeses. Limitações de preços, proibição de estocagem, restrições no cultivo, eram essas as políticas adotadas pelo governo para evitar a escassez de cereais. Segundo a análise fisiocrata, esse modo de operar estava fadada ao fracasso. O baixo preço do cereal, e portanto, o baixo lucro dos camponeses, provocava a diminuição do cultivo e consequentemente a vulnerabilidade da colheita à qualquer oscilação climática, o que tornava a situação da escassez um problema recorrente. Ou seja, o que os fisiocratas perceberam foi que a própria política mercantilista voltada para evitar o problema da escassez acabava fatalmente por provocá-la. Partindo dessa tese, a sugestão fisiocrata diante do problema dos cereais veio a ser a seguinte: deixando que os preços subam e desçam livremente haverá um momento em que ele se estabilizará naturalmente num preço ideal, num preço justo. O próprio mercado, prescindindo da intervenção estatal, se torna o lugar de revelação da verdade, uma vez que ele tem a capacidade de se auto- regular naturalmente. Nesse processo de auto-regulação, de natural condução ao estado 35 de equilíbrio, pode haver, e muito provavelmente haverá, momentos de raridade de cereais, momentos de escassez, ela não será completamente combatida, será considerada como um período natural ao movimento de estabilização de preços. Nesse processo são até mesmo previstas algumas mortes por conta da fome até que o sistema se restabeleça e volte e fornecer a quantidade de alimento necessária para a
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