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Dissertação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 
 
JAQUELINE VITORIANO DA SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
 
REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO 
NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RIO DE JANEIRO 
2012
ii 
 
 
 
JAQUELINE VITORIANO DA SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO 
NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Saúde Coletiva do Instituto de 
Estudos em Saúde Coletiva da Universidade 
Federal do Rio de Janeiro, como requisito 
parcial para obtenção do diploma de mestre em 
Saúde Coletiva. Linha de pesquisa: História, 
Representações e Fundamentos Conceituais em 
Saúde. 
 
Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira 
 
 
 
RIO DE JANEIRO 
2012
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
S586 Silva, Jaqueline Vitoriano da. 
 Redução de danos: novas formas de governo de si e do outro 
 na política de saúde brasileira/ Jaqueline Vitoriano da Silva. – 
 Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 
 2012. 
 124 f.; 30cm. 
 
 Orientador: Arthur Arruda Leal Ferreira. 
 
 Dissertação (Mestrado) - UFRJ/Instituto de Estudos em 
 Saúde Coletiva, 2012. 
 
 Referências: f. 119-124. 
 
 1. Usuários de drogas. 2. Transtornos relacionados ao uso 
 de substâncias. 3. Saúde mental. 4. Controle comportamental. 
 5. Políticas públicas de saúde . 6. Atenção à saúde. I. 
 Ferreira, Arthur Arruda Leal. II. Universidade Federal do Rio de 
 Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III. Título. 
 
 CDD 363.45 
 
 
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JAQUELINE VITORIANO DA SILVA 
 
 
 
REDUÇÃO DE DANOS: NOVAS FORMAS DE GOVERNO DE SI E DO OUTRO 
NA POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA 
 
 
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Saúde Coletiva do Instituto de 
Estudos em Saúde Coletiva da Universidade 
Federal do Rio de Janeiro, como requisito 
parcial para obtenção do diploma de mestre em 
Saúde Coletiva. Linha de pesquisa: História, 
Representações e Fundamentos Conceituais em 
Saúde. 
 
 
Composição da Banca Examinadora: 
 
 
Dr. Arthur Arruda Leal Ferreira (UFRJ - Orientador) _____________________ 
Dr. André Martins Vilar de Carvalho (UFRJ) ___________________________ 
Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho (UFRJ) ___________________________ 
 
 
 
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AGRADECIMENTOS 
Primeiramente, gostaria de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de 
Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro que viabilizou a realização deste 
trabalho. 
Agradeço imensamente à minha mãe, principalmente pelo carinho e paciência que 
me dedicou durante todo o momento de realização deste trabalho. Obrigada por aguentar a 
saudade e pela torcida! 
Agradeço à Mercedes Carvalho (In Memoriam), pela força e incentivo que me deu 
no momento de partida para as terras cariocas. Personagem importantíssima para a história 
da Psicologia na Bahia. Estamos todos saudosos. 
À Tereza Calomeni, pela aconchegante receptividade na minha chegada no Rio e 
pelas excelentes aulas de Filosofia Contemporânea que me proporcionou na UFF. 
Ao Arthur, pela orientação tão companheira e acolhedora. 
Agradeço ao André pelo carinho e pela oportunidade de docência proporcionada. 
Agradeço ao meu tio Miguel e sua família por terem me recebido em seu lar nos 
meus primeiros meses fora de casa. 
Aos bons baianos que encontrei aqui. Valeu pelas noites regadas de boa música e 
pelo carinho de todos. 
Minha gratidão especial a Carlos. Obrigada por aparecer em minha vida. 
 
 
 
 
 
 
v 
 
 
 
RESUMO 
 
Nessa dissertação faremos uma reflexão acerca de como as transformações das 
diretrizes políticas de saúde voltadas para os usuários de drogas no Brasil podem ser 
lidas a partir da introdução de novas formas de governo de si e do outro. Desde o início 
do século XXI, o paradigma da redução de danos vem sendo adotado como política 
oficial do Ministério da Saúde para lidar com a questão das drogas, operando uma série 
de modificações em termos de intervenção, objetivos e formas de atenção neste campo, 
modificações estas, que serão o cerne da análise pretendida. Se, por um lado, sua 
adoção representa a superação das antigas formas de controle maciço sobre os corpos 
dos indivíduos, por outro, ela pode ter dado lugar a uma nova forma de gerenciamento 
da vida, mais próxima ao modelo liberal de gestão, que lança mão de uma forma de 
poder bastante sofisticada e, ao invés de encerrar o sujeito em espaços fechados e 
submetê-lo a processos ostensivos de vigilância e correção, faz-se valer de sua própria 
liberdade, investindo no incremento da sua auto-regulação e efetivando-se graças a sua 
articulação com a maneira como os indivíduos governam a si mesmos. Nosso objetivo, 
portanto, é levantar possíveis pontos de coadunação entre as estratégias de redução de 
danos, presentes na atual política de saúde brasileira, e o modelo de gestão liberal. 
Nosso estudo foi construído a partir de uma análise documental de portarias, leis, 
cartilhas, manuais e demais publicações produzidas pelo governo brasileiro que fazem 
menção à estratégia de redução de danos e que visam regulamentar as práticas 
profissionais dirigidas aos usuários de drogas. Utilizamos como referencial teórico o 
pensamento do filósofo francês Michel Foucault. Trabalhamos, primeiramente, com 
suas formulações a respeito da governamentalidade, ou seja, da forma de poder que se 
expressa pela correta condução da conduta alheia, apresentando seu processo de 
surgimento e desenvolvimento até chegar ao seu atual formato liberal. Em seguida, 
vi 
 
 
 
apresentamos as características das tecnologias de si sob as quais as atuais formas de 
gestão da vida estão assentadas. Segundo o filósofo, as tecnologias de si, hoje, 
instrumentalizam o exercício do poder através da busca, da produção e da revelação a 
um Outro de uma verdade sobre si, sujeitando a relação consigo mesmo ao olhar e a 
direção de um elemento externo. Por fim, expomos os principais pressupostos e práticas 
da redução de danos, acompanhamos seu processo de inserção nas políticas públicas 
brasileiras – pontuando sua relação com o setor da saúde mental – e apresentamos os 
possíveis pontos de convergência entre tal política e as estratégias liberais de governo, 
como a atuação em território, a pulverização de intervenções e o incremento da 
autonomia dos indivíduos, e sua relação com a forma como os indivíduos se relacionam 
consigo mesmos, como o aumento da auto-vigilância e da discursividade sobre si. 
Palavras-chave: redução de danos, governamentalidade, liberalismo, tecnologias de si. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
vii 
 
 
 
ABSTRACT 
 
This work presents a reflection about the transformations in the ways of oneself and 
others selves‟ govern provoked by shifts in Brazilian health politic destined to drugs 
users. Since the beginning of the 21
th
 century, the harm reduction paradigm has been 
adopted as official politic of the Health Ministry for deal the drugs questions, changing 
the manners of interventions, the objectives and the ways of attention in this field, 
transformations that will be the core of the our analysis. If, on the one hand, its adoption 
represents an overcoming over the old massif ways of individual‟s bodies control, on 
the other hand, it could had given ground to a new form of control of ife, near to the 
liberal forms of management, that utilize a very sophisticated shape of power and, 
instead of shutin the individuals in a closed place and submit them to a intensive 
process of surveillance and correction, take advantage of their liberty, investing in the 
promotion of their self-regulation and functioning in articulation with the manner that 
the persons govern themselves. So, our aim is to bring some possible points of 
convergence between the harm reduction strategies, present in the current Brazilian 
health politic, and the liberal forms of management. This study was building through a 
documental analysis of governmental orders, laws, manuals and others publications 
draw up by the Brazilian govern that made mention of the harm reduction strategies and 
that aim regulate the professional practices destined to drugs users. We utilized the 
theoretical approach of the French philosopher Michel Foucault. We worked first, with 
his formulations about the governamentality, that is, about the kind of power 
characterized by the correct management of the other conduct, exposing its process of 
emergence and development until arrive in its current liberal shape. Next, we exhibit the 
oneself technologies‟ features over which the current forms of life‟s govern is based. 
According to the philosopher, the oneself technologies, nowadays, assist the power‟s 
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practice through the search, the production, and the revelation of a truth about oneself, 
subjecting the relation with oneself to the examination and the administration of an 
external element. At last, we expose the most important practices of harm reduction, its 
insertion in the Brazilian public politics – point to the relationship with the mental 
health sector – and present the possible points of convergence between this politic and 
the liberal strategies of govern, like the territorial work, the pulverization of intervention 
and the promotion of the individual‟s autonomy, and its relationship with the manner 
that the persons relating with oneself, like the increase of self-surveillance and of the 
speech about oneself. 
Key-words: harm reduction, governamentality, liberalism, technologies of oneself.
ix 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 
 I – 1 - A governamentalidade ....................................................................... 
 1.1 - Uma breve introdução ............................................................................. 
 1.2 - As raízes da governamentalidade ............................................................ 
 1.2.1 - O poder pastoral .................................................................................... 
 1.2.2 - A razão de Estado do século XVI ......................................................... 
 1.2.3 - A arte de governar .................................................................................. 
 1.2.4 - A Polícia .................................................................................................. 
 1.3 - O século XVIII e seus importantes acontecimentos ...................................... 
 1.3.1 - O surgimento da população e o desbloqueio das artes de governar ....... 
 1.3.2 - O liberalismo ............................................................................................ 
 1.3.2.1 - O Dispositivo de segurança ............................................................ 
 1.4 - O liberalismo do século XX ........................................................................ 
 1.5 - A governamentalidade na atualidade: O governo da vida 
 pela liberdade ................................................................................................. 
II – 2 - As tecnologias de si .............................................................................. 
 2.1 - Localizando a problematização .............................................................. 
 2.2 - Subjetividade e Verdade ........................................................................ 
 2.3 - Um olhar para si ...................................................................................... 
 2.4 - As práticas .................................................................................................... 
 2.5 - Relação com o mestre .................................................................................... 
 2.6 - Sujeito do cuidado de si x Sujeito da obediência ......................................... 
 2.7 - O espaço da liberdade ............................................................................... 
III – 3. - A redução de danos ................................................................................ 
 3.1 - O Surgimento e as primeiras ações ............................................................. 
 3.2 - Pressupostos e práticas ............................................................................ 
 3.3 - A redução de danos no Brasil .................................................................... 
 3.3.1 - A Chegada .............................................................................................. 
 3.3.2 - A institucionalização e o aparato legal ................................................. 
 3.4 - A psiquiatria e os seus movimentos de contestação ................................ 
 3.4.1 - O terceiro movimento e a reformulação do serviço de saúde 
 mental brasileiro ................................................................................................. 
 3.5 - Novas formas de governo de si e do outro ............................................ 
 3.5.1 - Práticas psi e a Hermenêutica dos usuários ......................................... 
 
 
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 
 
 
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INTRODUÇÃO 
 
Nessa dissertação faremos uma reflexão acerca de como as transformações das 
diretrizes políticas de saúde voltadas para os usuários de drogas no Brasil podem ser 
lidas a partir da introdução de novas formas de governo de si e do outro. Desde o início 
do século XXI, o paradigma da redução de danos vem sendo adotado como política 
oficial do Ministério da Saúde para lidar com a questão das drogas, operando uma série 
de modificações em termos intervenção, objetivos e formas de atenção neste campo, 
modificações estas, que serão o cerne da análise pretendida. 
A pesar de haver, no âmbito legislativo, o propósito de algumas ações 
preventivas, até meados da década de noventa as ações do governo estavam centradas 
prioritariamente na questão da repressão ao tráfico. Foram criados, entre o período de 
1980 e 1993, diversos órgãos de atuação no campo das drogas, como a Secretaria 
Nacional de Entorpecentes, o Sistema Nacional de Prevenção, Fiscalização e Repressão 
de Entorpecentes e o Conselho Federal de Entorpecentes, todos vinculados ao 
Ministério da Justiça (Conselho Federal de Psicologia, 2009). No domínio do Ministério 
da Saúde as ações eram norteadas por um modelo hospitalocêntrico, no qual, a atenção 
ao usuário era pautada na prática do internamento em hospitais psiquiátricos. Nesse 
modelo interventivo o usuário gozava de pouca autonomia em seu tratamento, sendo 
objetivado quase que passivamenteno conjunto de técnicas e ideais médicos 
configurados no espaço do confinamento asilar, tendo a abstinência como uma meta 
exclusiva a ser alcançada. 
Na segunda metade da década de noventa, diante do problema da disseminação 
do vírus HIV por usuários de drogas injetáveis, novas formas de atenção aos usuários de 
drogas começam a ser consideradas pelo governo. Estratégias que visassem à 
transformação dos hábitos dos indivíduos na relação com a droga, e não apenas a 
suspensão do uso, precisaram ser elaboradas e postas em prática. Tais intervenções 
deveriam ser arquitetadas de maneira que pudessem atingir um espectro muito mais 
amplo de indivíduos, não se restringindo àqueles que se encontravam encerrados em 
ambientes asilares e não se limitando às ações voltadas para a meta exclusiva da 
abstinência. Essas ações deveriam ter a capacidade de inserir novos comportamentos 
nos indivíduos, comportamentos esses que precisariam ser conservados de maneira ativa 
e autônoma pelos sujeitos no seu cotidiano. É ai que a redução de danos – estratégia até 
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então utilizada em outros países e aplicada de forma pontual por gestores locais e 
organizações não-governamentais – passa a ser oficialmente adotada em âmbito federal 
pelo governo brasileiro, através de ações executadas pela Coordenação Nacional de 
DST/AIDS. 
O Ministério da Saúde define redução de danos como um conjunto de estratégias 
para lidar com a questão das drogas que não adota a abstinência como meta obrigatória 
e imediata, mas que elabora ações para a diminuição dos danos ao usuário e aos 
indivíduos a ele vinculados (Brasil, 2010a). Dessa maneira, tais práticas pretendem 
alcançar indivíduos que não querem, não podem ou não conseguem interromper o uso 
das drogas. Dentre os seus princípios teoricamente defendidos estão: a tolerância, por 
conta do respeito às escolhas individuais; a diversidade, por abarcar em suas 
intervenções uma multiplicidade de tipos de usuários; e o pragmatismo, pelo fato de 
serem articuladas ações dentro do campo da possibilidade, ainda que determinado 
objetivo, identificado como ideal, não possa ser atingido. Como exemplos de medidas 
de redução de danos encontramos: a distribuição de seringa para usuários de drogas 
injetáveis, a substituição de uma droga por outra que ofereça menos riscos, a 
distribuição de preservativos, a indicação da ingestão de líquidos e alimentos para que 
sejam amenizados os danos ao corpo, a redução do consumo, a suspensão da utilização 
da droga em determinadas ocasiões e a interrupção total do uso. Nessa abordagem, o 
usuário, caso não interrompa o uso, deve construir ativamente modos mais saudáveis de 
uso da droga, diminuindo os riscos trazidos para a coletividade e para a saúde do 
próprio indivíduo. Uma das atividades fundamentais da redução de danos é o trabalho 
no território, onde o usuário é encontrado em sua própria realidade, possibilitando uma 
capilarização da intervenção e uma incorporação de novos elementos aos saberes 
anteriormente construídos. Nessa forma de cuidado não só os usuários são acionados, 
mas toda sua rede social, como familiares e comunidade do bairro. 
Atualmente, as práticas de redução de danos no Brasil não se restringem à esfera 
da saúde strictu senso. Desde 2003 após a aprovação da Política do Ministério da Saúde 
para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, a redução de danos sai do 
âmbito exclusivo da Coordenação de DST/AIDS e se torna a estratégia norteadora de 
todos os serviços de saúde. A partir de então, as intervenções dirigidas aos usuários de 
drogas devem ser executadas em articulação com diversos outros setores das ações 
governamentais, sobretudo os ligados a educação e a promoção de emprego e renda. 
12 
 
 
 
Nessa nova política o indivíduo não é incitado a exercer uma autogestão apenas no trato 
com a sua saúde, ele é levado a engajar-se numa forma de vida mais responsável e 
autônoma em todos os aspectos da sua vida, sobretudo, através de sua inserção no 
mercado de trabalho que poderá prover a sua auto-manutenção na sociedade. As 
práticas de redução de danos devem encontrar seu lugar de maior aplicabilidade no 
campo da saúde mental, setor que vem substituindo os tradicionais dispositivos asilares 
– oferecidos aos usuários de drogas e demais indivíduos considerados portadores de 
algum transtorno mental – por serviços de portas abertas, assentados em estratégias de 
atuação no território, na busca ativa, na clínica ampliada e principalmente no 
incremento da autonomia e da responsabilidade dos usuários. 
Diante de tais transformações operadas nesse campo, esse trabalho traz como 
desafio a ampliação da discussão a respeito dos dispositivos de governo de si e do outro 
gerados a partir da incorporação dos princípios da redução de danos na política de saúde 
brasileira. Se, por um lado, sua adoção representa a superação das antigas formas de 
controle maciço sobre os corpos dos indivíduos, que eram então submetidos ao 
disciplinamento inflexível em ambiente asilar; por outro, ela pode ter dado lugar a uma 
nova forma de gerenciamento da vida, mais próxima ao modelo liberal de gestão que, 
como definido por Foucault, lança mão de uma forma de poder bastante sofisticada e, ao 
invés de encerrar o sujeito em espaços fechados e submetê-lo a processos ostensivos de 
vigilância e correção, faz-se valer de sua própria liberdade, investindo no incremento da 
sua auto-regulação e efetivando-se graças a sua articulação com a maneira como os 
indivíduos governam a si mesmos. Convidamos o leitor, portanto, a lançar um novo 
olhar sobre o processo de inserção dessa abordagem nas estratégias de saúde. Se 
normalmente olhamos para tal incorporação a partir da perspectiva do afastamento das 
antigas formas de poder, desejamos aqui, pensar nas possíveis novas formas de governo 
da vida que puderam ser implantadas. 
Sendo assim, o nosso objetivo é levantar possíveis pontos coadunação entre as 
estratégias de redução de danos, presentes na atual política saúde brasileira, e o modelo 
de gestão liberal. Para tanto, foi realizada uma análise documental das portarias, leis, 
cartilhas, manuais e demais publicações produzidas pelo governo brasileiro que fazem 
menção à estratégia de redução de danos e que visam regulamentar as práticas 
profissionais dirigidas aos usuários de drogas. Investigamos neste material como as 
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formas de governo do outro tem sido programadas, de que estratégias elas dispõem, e 
qual a sua relação com a forma como os indivíduos se relacionam consigo mesmos. 
A dimensão da questão da droga no Brasil hoje é indiscutível. A visibilidade dada 
ao problema do tráfico, a discussão acerca da presença da droga nos diferentes setores 
da população, as reflexões sobre as formas de uso dada a configuração da sociedade 
contemporânea, refletem a necessidade de discussão também a respeito das formas 
atuais de tratamento. Desde o início do século XXI a redução de danos é adotada como 
a estratégia oficial do governo e vem tentando ser implementada em todos os setores da 
saúde pública que lida com essa questão. Ao se discutir as novas formas de gestão de si 
e do outro colocadas em jogo com essa nova política, pretende-se ampliar a 
compreensão do fenômeno atualmente. O que se almeja aqui, não é estabelecer 
nenhuma crítica feroz a esse novo modelo de atenção e nem propor uma nova forma 
atuação. Tampouco, se pretende encorajar algum retorno aos nefastos dispositivos 
asilares, ainda remanescentes em nossa sociedade. Esperamos que esse estudo possa nos 
auxiliar na compreensão das implicações éticas e políticas trazidas por tais estratégias, 
através da apreensão dos novos perigos e desafios implicados. 
Teremos como auxílio nessa empreitada o pensamento e as obras produzidas pelo 
filósofo francês Michel Foucault. Para a compreensão do modo de gestão liberal, 
teremos como referencialteórico as publicações dos cursos do final da década de 1970, 
Segurança, Território e População e O Nascimento da Biopolítica. Nesses cursos o que 
se pretendia de início, em continuidade às obras anteriores, era elucidar as condições de 
aparecimento da forma de poder que tem como objeto a população. Nas obras 
anteriores, o autor havia trabalhado a ideia de como o controle da população passava 
necessariamente pelo gerenciamento dos processos biológicos da vida, como 
adoecimento, morte e sexualidade. Nesse contexto o autor trabalhara, sobretudo, o papel 
da polícia médica no século XVIII, o surgimento da medicina social e da higiene 
pública. No entanto, o que se sucedeu nas formulações seguintes foi um deslocamento 
significativo de suas análises. Foucault, nas duas obras acima referidas, passou a se 
dedicar à análise da racionalidade governamental que, como indicam Martins e Peixoto 
Júnior (2009), pode ser entendida como a “reflexão sobre a natureza e a atividade do 
governo”. Nesse momento o filósofo analisa a maneira como o Estado pensa a si, como 
organiza suas ações e como elabora um conhecimento preciso acerca de seus objetos, 
saber indispensável para a realização das metas pretendidas. Esse estudo não passa, 
14 
 
 
 
contudo, pelas teorias jurídicas ou filosóficas da soberania, nem pela história das 
instituições ou do poder público, o elemento perquirido pelo autor é a racionalidade 
concernente às tecnologias de gestão dos indivíduos colocadas em jogo para dar conta 
do gerenciamento da população que entraram em circulação a partir do século XVIII 
(Martins & Peixoto Júnior, 2009). Essas duas obras, anteriormente citadas, poderiam ser 
intituladas, afirma Foucault, como a “história da governamentalidade”. Sendo a 
governamentalidade entendida como o “conjunto constituído pelas instituições, 
procedimentos, análises, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante 
específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de 
saber a economia política e por instrumentos técnicos o dispositivo de segurança” 
(Foucault, 2001a, p. 291-292). 
 A pesar de se dedicar ao estudo das reflexões teóricas operadas pelo Estado 
acerca de suas ações e objetivos perseguidos, o que o autor pretende ao examinar essa 
literatura é evidenciar o quanto a racionalidade adotada pelo Estado se reflete nos 
modos de agir dos indivíduos em sua cotidianidade, o quanto ela é traduzida na própria 
racionalidade adotada pelos indivíduos e, dessa forma, ele entende a racionalidade como 
aquilo que “orienta o conjunto da conduta humana” (Foucault, 2006c). Partindo dessa 
perspectiva, para o autor, são as próprias relações de poder imersas na trivialidade da 
vida que tornam possível ao Estado existir (Foucault, 2006b). O Estado propriamente 
dito, em seu funcionamento real, não se caracteriza por nenhuma instância 
transcendental ou metafísica, ele só ganha materialidade e realidade a partir dos 
comportamentos cotidianos dos indivíduos. É por isso que, para ele, se desejamos 
estabelecer alguma crítica e modificar o que chamamos de poder do Estado, são as 
diversas relações de poder presentes na sociedade que devem ser transformadas. Ou 
seja, são as diversas maneiras de se relacionar consigo e com o outro que devem ser 
alteradas. 
Nesse momento da obra, a concepção de poder do autor passa a ser caracterizada 
pela arte da condução da conduta alheia, como um conjunto de ações sobre ações 
possíveis, podendo ser analisadas em termos dos objetivos perseguidos, das 
modalidades instrumentais empregadas, das formas de institucionalização e dos graus 
de racionalização (Foucault, 1995). Não é um poder da ordem da lei, que constrange, 
que coage ou que bloqueia, é uma concepção de poder positiva, que, em sua atividade, 
conduz os indivíduos aos comportamentos desejados através de processos de 
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normalização. O poder aqui também não é da ordem da posse, onde alguns teriam o 
privilégio de adquiri-lo e outros seriam completamente destituídos desse direito. 
Concebido como a arte de conduzir condutas, como governo, o poder é tomado como 
intrínseco a uma multiplicidade de relações humanas, onde os indivíduos tentam 
conduzir a conduta dos outros. Melhor seria, sugere o autor, pensar em relações de 
poder, que abrigam sempre, dentro da sua própria dinâmica, a possibilidade das 
resistências, das liberdades, uma vez que operam no campo das possibilidades e são 
caracterizadas necessariamente por sua flexibilidade e por sua capacidade de 
modificação dos pólos de exercício do poder. 
E é por conta da perspectiva de poder elaborada nesse momento de sua obra que 
tal período fora sucedido pelas formulações de Foucault acerca das formas de 
relacionamento consigo mesmo estabelecidas pelos sujeitos – aspecto por nós também 
trabalhado. Se há, de um lado, um poder que age sobre os indivíduos, tentando interferir 
na sua conduta, há, por outro, um sujeito que se conduz, que é levado a se objetivar de 
determinada maneira dentro dessa relação de poder. Não há apenas um poder que age, 
há também um indivíduo que atua ativamente sobre si, estabelecendo algum tipo de 
relacionamento consigo mesmo. Esse governo de si mesmo é objeto de estudo das 
últimas análises empreendidas pelo autor e constituem o que se costuma denominar de 
período ético de sua obra, onde é elaborado o que ele chamou de histórico do cuidado 
de si ou das tecnologias de si. Para Foucault, as formas de governo do outro hoje estão 
assentadas em tecnologias de si associadas a práticas cristãs de decifração de si e 
confissão permanente a um Outro. A relação consigo está, dessa forma, sujeitada ao 
olhar de um elemento externo que é a peça chave para a decifração do sujeito e, 
consequentemente, o principal condutor do seu processo de transformação. Vemos ai, 
como o governo de si se integra com a prática de governo do Outro. Essa revelação 
permanente para o Outro tem como conseqüência a produção infindável de uma verdade 
sobre o sujeito, que é reiteradamente utilizada como ensejo para sua infinita necessidade 
de investigação e correção. Estabelece-se, então, um vínculo permanente entre 
governante e governado, desencadeando neste último, processos de subjetivação, ou 
seja, de constituição de si, a partir de injunções colocadas pelo primeiro. Para o filósofo, 
o sujeito ético típico da contemporaneidade é, portanto, caracterizado como o sujeito 
ético da obediência (Foucault, 2010). 
16 
 
 
 
 As obras que compõem essa fase são compreendidas pelos dois últimos volumes 
da História da Sexualidade e pelos cursos proferidos no início dos anos oitenta no 
Collège de France, como A Hermenêutica do Sujeito. Tal momento em seu pensamento, 
a pesar de ser considerado como uma nova etapa, devido a certo deslocamento em sua 
perspectiva, deve ser percebido como parte integrante do seu projeto total que é, como 
declara o próprio autor, compreender como os indivíduos entram nos jogos de verdade. 
Sendo a verdade considerada como o “conjunto das regras segundo as quais se distingue 
o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder” (Foucault, 
2001b, p. 13). Nesse momento o autor concentrou seu interesse nos processos de 
constituição do indivíduo a partir da perspectiva do próprio sujeito, defendendo que as 
tecnologias de si hoje tendem a instrumentalizar o exercício do poder através da busca, 
da produção e da revelação a um Outro de uma verdade sobre si. 
Parece que a pretensão de Foucault, ao examinar as relações de poder presentes 
em nossa sociedade, não é reduzir a realidade a tal unidade de análise, há além do poder 
uma série de variáveis passíveis de apreensão em cada fenômeno apreciado, fatores 
econômicos, aspectos simbólicos, crenças, relações de comunicação, etc. O que ele 
procurou fazer, ao evidenciar as relações de poder presentes em nossa sociedade,foi 
trazer à luz aquilo que toca os indivíduos, aquilo que eles fazem, e por isso mesmo, 
aquilo que é possível de se transformar. Como o próprio autor afirmou, o que se 
pretendeu fazer foi “decifrar uma camada da realidade de maneira tal que dela surjam as 
linhas de força e de fragilidade, os pontos de resistência e os pontos de ataque possíveis, 
as vias traçadas e os atalhos” (Foucault, 2006e, p.278). Para o autor, o poder não é algo 
onipotente e onisciente que nos transforma em infelizes coagidos, pelo contrário, 
afirma, se tantas formas de poder foram necessárias, se tantas transformações e 
reacomodações foram precisas, é justamente porque esse poder não é onipotente. Esse 
trabalho se vale, portanto, da adoção de uma perspectiva filosófica que, como sinaliza 
Ferreira (2005), sem dúvida alguma, tem um objetivo político ao instrumentalizar as 
lutas, graças à sua historicização crítica, à sua problematização da luta e de seus alvos, 
contextualizando-os espacial e temporalmente, e graças à sua “participação nas próprias 
lutas através da passagem pela alteridade e pela diferença” (Ferreira, 2005, pg. 30). 
Para atingirmos os objetivos pretendidos organizamos essa dissertação dividindo-
a em três capítulos. No primeiro, fizemos um histórico da evolução da 
governamentalidade buscando entender as raízes e as transformações ocorridas com 
17 
 
 
 
essa tecnologia de poder que surgiu no século XVIII e hoje se caracteriza por 
apresentar, entre as suas modalidades, um modelo de gestão liberal. No segundo 
capítulo trabalhamos as produções teóricas foucaultianas concentradas no que se 
denomina período ético, a fim de compreender como se constituem as tecnologias de si 
sob as quais tal modelo de gestão está assentado. No terceiro, fizemos uma exposição 
dos principais pressupostos e práticas da redução de danos, acompanhamos seu 
processo de inserção nas políticas públicas brasileiras – pontuando sua relação com o 
setor da saúde mental – e por fim apresentamos os possíveis pontos de convergência 
entre tal política e as estratégias liberais de governo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
18 
 
 
 
CAPÍTULO I 
1. A governamentalidade 
1.1 Uma breve introdução 
Para Foucault, desde o século XVIII vivemos no que ele denominou de “era da 
governamentalidade”. O que pretendia dizer o filósofo ao cunhar esse estranho 
neologismo, que revelaria uma interessante perspectiva a respeito da trama das relações 
de poder em que estaríamos envolvidos há quase duzentos anos? Para fazer uma costura 
de suas idéias e tornar mais inteligível esse conceito complexo, mas sem dúvida alguma 
bastante proveitoso, recorreremos às suas produções localizadas no final dos anos de 
1970, buscando captar os pontos mais esclarecedores da sua obra, bem como as 
transformações analíticas mais importantes no decorrer desses estudos, condições 
necessárias para a problematização pretendidas no desenvolvimento desta dissertação. 
 A construção do conceito de governamentalidade não se dá de maneira isolada 
nas formulações do autor, ela se caracteriza como mais um dentre os diversos 
deslocamentos operados pelo autor ao analisar a questão do Biopoder, ou seja, do poder 
que tem como alvo a vida e os corpos dos indivíduos (Foucault, 2006a). O Biopoder 
apresentou-se, primeiramente, sob o formato disciplinar, ainda no século XVII. A 
tecnologia da disciplina teria como alvo corpos individuais, circunscritos em espaços 
fechados, corpos meticulosamente esquadrinhados e vigiados, geridos através de 
processos maciços de normalização, que através de uma vigilância e controle 
permanentes visavam o ajustamento minucioso do indivíduo à norma desejada. Ela é 
centrada no corpo máquina e procura extrair deste a maior quantidade de energia 
possível
1
. A partir do século XVIII, contudo, o surgimento de um novo objeto de ação 
do poder, a população, coloca em jogo uma inusitada política de gestão dos indivíduos, 
a Biopolítica, que lança mão de estratégias peculiares de atuação e de novas formas de 
inteligibilidade em relação ao seu objeto, a saber, a vida. Essa nova tecnologia posta em 
jogo, nomeada por Foucault de Biopolítica, é centrada no corpo enquanto espécie e 
exerce o controle através da gestão dos processos biológicos como reprodução, 
morbidade, mortalidade e expectativa de vida. Ela tem como objeto os processos 
biológicos da espécie humana e considera os fenômenos de massa e de longa duração, 
 
1
 Para melhor apreciação da tecnologia de poder disciplinar ver: Foucault, M. Vigiar e Punir: o 
nascimento da prisão. Petrópolis, Editora Vozes, 1977. 
19 
 
 
 
utiliza-se de mecanismos como a estimativa estatística e tem como objetivo produzir a 
regulação e a homeostase da população, apresentando uma forma de poder sobre os 
indivíduos bastante diferente da tecnologia disciplinar. 
O surgimento da Biopolítica, vale lembrar, não significa o desaparecimento da 
tecnologia disciplinar, elas atuam, hoje, de maneira acoplada e complexificada. A 
Biopolítica é, contudo, a última ruptura significativa, para o autor, no tocante às 
relações de poder, apresentando desde seu surgimento algumas reacomodações e 
renovações. Ao atribuirmos à Disciplina adjetivos como antigo ou anterior, 
pretendemos somente marcar suas diferenças e sua anterioridade quanto ao surgimento, 
não o seu desaparecimento absoluto. O estudo da governamentalidade faz parte deste 
projeto de compreensão das formas de composição de um poder que tem como alvo 
uma população, e não somente os corpos individuais da disciplina. Esta população não é 
determinada por seu pertencimento a determinado espaço fechado, mas é constituída por 
todos os indivíduos inseridos na trivialidade da vida em sociedade. O que temos hoje, 
portanto, para Foucault, é uma tecnologia de poder que permite o governo de todos e de 
cada um simultaneamente. 
Ao tentar elucidar como se constitui esta tecnologia de gestão dos indivíduos 
surgida no século XVIII, a Biopolítica, Foucault vai produzindo sucessivas 
reacomodações do olhar para a melhor apreciação do seu objeto e traça um percurso que 
pode ser dividido, como sugere Farhi Neto (2010), em cinco momentos principais: vai 
(1) da análise da disseminação da medicina e das questões da saúde pelo tecido social, 
(2) passando pela articulação do conceito de raça à prática da guerra, (3) pela utilização 
do recurso de dispositivo de sexualidade, (4) pela relação do Estado com a garantia de 
segurança e prevenção dos riscos da população até (5) as reflexões liberais e neoliberais 
de governo que possibilitam a gestão dos indivíduos através do modelo da racionalidade 
econômica. A cada nova ponderação novos elementos são incorporados, compondo 
todos juntos um complexo mosaico que caracteriza as formas atuais de gestão da vida. 
A noção de governamentalidade é introduzida nestes dois últimos momentos, 
quando Foucault identifica como uma prática racionalizada de governo por parte do 
Estado – que começou a aparecer no século XVI a partir da formação dos Estados 
nacionais – pode encontrar somente no século XVIII seu ponto de apoio e solidificação, 
no momento em que a população se tornou permeável às técnicas de intervenção graças 
à sua transformação num dado discriminável, capaz de ser compreendido em suas 
20 
 
 
 
regularidades e em seus fenômenos específicos, quando ela passa a ser traduzível 
estatisticamente e compreendida enquanto um objeto específico nunca anteriormente 
apreciado. “A problematização da governamentalidade permitiu a Foucault estabelecer 
um diagnóstico significativo da época contemporânea, a partir da racionalização do 
poder político” (Candiotto, 2010, p. 40). Ao tornar-se uma perspectiva de análise, a 
população surge como o objetivo final do governo, que vai legitimar suas práticas em 
nomedo aprimoramento e aperfeiçoamento das condições de vida desta. O governo 
passa a se ocupar da melhoria de sua riqueza, de sua sorte, de sua saúde, de sua 
expectativa de vida, e, agindo em nome desta população vai colocá-la numa situação de 
duplo posicionamento: ela é tanto um objeto da intervenção estatal quanto um sujeito, 
um sujeito de necessidades e aspirações, que apresenta seus pontos de carência a partir 
da revelação de suas variáveis. 
O surgimento dessa política das populações colocou em jogo uma nova tecnologia 
de poder, denominada por Foucault de dispositivo de segurança, que funcionaria de 
uma maneira bastante diferente – apesar de atuar de forma conjunta – do mecanismo de 
poder disciplinar. A começar por sua relação com os eventos indesejáveis, o dispositivo 
de segurança não busca a todo custo eliminar determinados acontecimentos, uma vez 
que, uma análise afinada de sua conjuntura revela, por vezes, suas condições de 
inevitabilidade. Trata-se aqui de produzir um dispositivo que possa intervir nos diversos 
elementos da história do evento em questão, e não somente no seu ponto final, 
procurando reduzir os efeitos negativos e potencializar os positivos. A forma de 
normalização também se mostra diferente do modelo disciplinar. A norma é extraída a 
partir da observação e do exame da própria realidade, de onde se calcula uma média, 
uma normal. O estabelecimento da norma requer, portanto, um escrutínio, um estudo, 
uma avaliação da realidade, contrapondo-se à rígida imposição de um ideal como no 
modelo disciplinar. A operação aqui consiste em, através do estabelecimento de uma 
curva normal, tentar aproximar as normas mais desviantes da ideal, e não em uma 
implantação estática de um modelo de perfeição, cego às características “naturais” do 
objeto em questão. A assunção da população à categoria de análise tornou possível a 
constituição de um campo de saber específico do governo, a economia política, que vai 
concentrar sua análise na relação das variáveis populacionais com as demais variáveis 
anteriormente consideradas pelo governo, como riqueza e território. (Foucault, 1978). 
21 
 
 
 
O que Foucault nos mostra, ao realizar seu estudo sobre a era da 
governamentalidade, é que desde que o poder se ocupou de gerir a vida da população, 
esta tem se constituído, em seus mais distintos âmbitos, enquanto um lugar de produção 
ilimitada de saber, implicando numa forma de controle que foi se tornando cada vez 
mais sutil e capilar, na medida em que regula os indivíduos através das verdades 
produzidas acerca destes. Essas verdades são reiteradamente pronunciadas, 
naturalizadas e consequentemente invisibilizadas. Vivemos, desde o século XVIII, 
circunscritos numa trama de poder que está assentada na produção constante de 
conhecimento acerca de seus objetos. A constituição dessa nova ciência, a economia 
política, saber próprio ao governo, tornou-o permeável a um regime de verdades, 
estabelecendo, desde então, uma demarcação entre o falso e o verdadeiro, instituindo-se 
os mecanismos válidos para estabelecer tal divisão, adotando-se determinados discursos 
e fazendo-os existir enquanto verdade e elegendo-se as instâncias aptas a enunciar os 
discursos legítimos (Castro, 2009). Há desde esse período até nosso tempo uma 
reivindicação permanente de cientificidade para pautar as ações do Estado. 
Desde o seu surgimento, a governamentalidade foi sofrendo constantes 
transformações e reacomodações, até assumir seu atual formato liberal, onde podemos 
identificar o que se chama de governo pela verdade. Partindo do ostensivo estado de 
polícia do início do século XVIII, passando pelo liberalismo do laissez-faire e chegando 
ao modelo liberal contemporâneo, a governamentalidade apresenta hoje uma forma de 
gestão bastante econômica, que dispensa os processos maciços de vigilância e correção 
ostensiva, e propõe aos sujeitos que se auto-gerenciem baseados nas verdades 
produzidas. Esta forma de poder predominante na contemporaneidade pressupõe uma 
posição ativa dos sujeitos, estabelecendo um intenso contato entre as tecnologias de si e 
do outro. Experimentamos hoje uma forma de poder bastante diluída que, como 
apontam Ferreira, Kaufman e Zapata (2009) se invisibiliza ao liberar os indivíduos das 
enclausurantes estruturas disciplinares e submetendo-os aos quase imperceptíveis 
grilhões da verdade. É uma forma de governo que ao se utilizar da auto-gestão dos 
indivíduos para exercer seu controle, torna bastante problematizável qualquer reflexão a 
respeito do exercício da liberdade no tempo atuais. 
Essa forma de governo que surgiu no século XVIII e se estendeu até o nosso 
tempo presente pôde se estabelecer, segundo Foucault, graças a dois eventos que lhes 
foram anteriores. Um deles é advento da tecnologia do poder pastoral, capaz de se 
22 
 
 
 
ocupar, simultaneamente, da coletividade e da individualidade de um bando. O outro foi 
a consolidação do Estado moderno no século XVI, quando houve um processo de 
racionalização dos atributos, objetivos e objetos desse Estado, momento em que este 
passou a se ocupar não mais prioritariamente da proteção territorial, mas da majoração e 
do ordenamento das forças produtivas dos entes governados. Passemos agora para o 
estudo mais detalhado das condições de surgimento e das trajetórias percorridas por essa 
forma de governo, para ao final podermos operar com mais clareza uma 
problematização acerca dessa forma de poder que hoje toma a liberdade como um 
instrumento do seu próprio exercício. 
 
1.2 As raízes da governamentalidade 
1.2.1 O poder pastoral 
Como dito anteriormente, Foucault identifica as raízes desse processo de 
governamentalização ocorrido no século XVIII em dois eventos que lhes foram 
anteriores. Um deles é o surgimento da tecnologia do poder pastoral, um procedimento 
de gestão dos indivíduos com efeitos individualizantes e totalizantes, que se originou lá 
na Antiguidade e que se faz presente até nossos dias atuais. 
Segundo o autor, a concepção de que a autoridade, seja ela de origem política ou 
divina, seria um pastor com função de guiar seu rebanho era totalmente estranha ao 
pensamento político grego. Para estes, a vinculação direta dos deuses era com a terra, 
estes a possuíam, e a forma como se dava essa posse era o que estabelecia a relação 
entre esses deuses e os homens. Na pastoral, por sua vez, a relação da divindade, ou do 
pastor que o representa, se dá diretamente com o próprio rebanho. A terra, nesse caso, é 
oferecida ou não, em detrimento dessa relação do indivíduo com Deus. Seus 
comportamentos, suas atitudes e seus pensamentos lhes tornarão merecedores ou não de 
uma terra fecunda e exuberante. Outra função inédita em relação ao pensamento político 
grego foi o papel agregador do pastor. Este guia, conduz e orienta um conjunto de 
indivíduos que em sua ausência se encontrariam necessariamente dispersos. Os sujeitos 
só se constituem enquanto grupo, enquanto rebanho, graças à presença e atuação do 
pastor, elemento agregador e fundador da instância da coletividade. Mais um contraste 
apresentado pela tecnologia pastoral é a propriedade salvadora do pastor, que vela 
atenciosamente para que cada um do rebanho esteja a salvo, bem alimentado e bem 
23 
 
 
 
cuidado. Os deuses gregos, é claro, também tinham o poder de salvar o povo, mas eles 
lhes davam uma terra fecunda, e assim garantiam o bem estar de todos de uma só vez. 
Não se tratava de uma salvação individualizada como na pastoral, onde há uma 
preocupação em vigiar cuidadosamente para que cada ovelha, uma a uma, esteja a salvo. 
É o pastor que serve de mediador entre as ovelhas e o bom pasto. A benevolência é uma 
característica essencial da atividade do pastor, ele atua devotamente pelo bem do seu 
rebanho, e exercer tal poder sobre os indivíduos é um dever, uma obrigação associada à 
devoção que lhes deve ser prestada (Foucault,2006d). 
Essas são, contudo, características da tecnologia pastoral correspondentes ao 
período pré-cristão, pertencentes ainda à civilização hebraica. Com o nascimento da 
religião cristã esse mecanismo de gestão dos indivíduos foi aprofundado, desenvolvido 
e fortalecido, e alguns dos temas hebraicos foram transformados e incrementados. A 
partir do exame de textos da literatura cristã dos primeiros séculos, Foucault percebe 
que o cristianismo ampliou a responsabilização do pastor para com o seu rebanho. 
Agora, além de ter a tarefa de estar atento a cada membro do rebanho, ele deve dedicar 
sua atenção a uma gama infinita das ações praticadas por eles, ocupando-se de tudo o 
que lhes diz respeito. O pastor zela, e é responsável, por todos os aspectos da vida dos 
indivíduos, ilimitadamente, indiscriminadamente, complexificando-se os laços morais 
entre ele e o seu rebanho. A religião cristã introduziu também o valor moral da 
obediência. Para os gregos a obediência era um meio através do qual se atingia 
determinados objetivos. Na busca para se alcançar determinados fins, era preciso, vez 
ou outra, exercer sobre suas paixões, certo controle, operado graças ao exercício da 
razão. Se ocorria de um grego obedecer a vontade de alguém, ele o fazia após ser 
racionalmente convencido. No cristianismo, contudo, a obediência torna-se uma virtude 
em si, para garantir a salvação, a ovelha deve obedecer prontamente e permanentemente 
seu superior. Mais uma transformação realizada foi a união de dois importantes 
instrumentos do mundo helênico: o exame de consciência e a direção de consciência. O 
exame de consciência visava proporcionar ao indivíduo a realização de uma 
contabilidade diária dos atos realizados, a fim de fazer uma auto-avaliação de sua 
progressão em direção à perfeição. A direção de consciência, por sua vez, consistia na 
transmissão de conselhos por parte de uma autoridade, solicitada pelos indivíduos em 
situações específicas, especialmente nas de dificuldade. O cristianismo uniu essas duas 
práticas. O exame de consciência deixa de ter a função de conscientização de si e passa 
a ser um meio para abertura para um outro, para um orientador de conduta, e a direção 
24 
 
 
 
de consciência torna-se contínua, e não mais utilizada apenas em situações especiais. 
Revelação permanente de suas verdades e orientação contínua de sua conduta por 
outrem são duas práticas introduzidas pela pastoral cristã na busca do aperfeiçoamento 
de sua arte da condução das almas. 
A pesar de marcar seu surgimento lá na Antiguidade, a tecnologia do poder 
pastoral passou durante toda a Idade Média por um período de latência e de difícil 
disseminação, encontrando somente nos séculos XV e XVI um contexto favorável a sua 
efetivação e difusão, inclusive por terrenos para além das fronteiras da instituição 
religiosa. Tal período de latência deve-se ao fato de que para que haja a implementação 
dessa forma de gestão da vida se faz necessário, segundo Foucault, a experiência de um 
ambiente essencialmente urbano, um ambiente bem diferente da pobreza e do ruralismo 
que encontramos durante boa parte do período medieval. Outro fator desfavorável foi a 
condição cultural da sociedade na época. O pastorado das almas é uma técnica 
complexa que exige, tanto por parte do pastor quanto por parte do rebanho, certos 
hábitos reflexivos sobre as atitudes humanas e suas implicações quase que totalmente 
ausentes na sociedade da época. 
Os séculos XV e XVI reuniram, contudo, duas situações cruciais para o 
fortalecimento, manifestação e disseminação das práticas pastorais. A primeira delas se 
situou no próprio cenário religioso, a partir do movimento da Reforma. Esse movimento 
de contestação à forma religiosa hegemônica, a saber, a doutrina católica, encorajou e 
provocou a elaboração de uma série modos alternativos de se pensar e de se efetuar a 
condução das almas. Foi uma época em que se procurava avidamente por outras 
maneiras de se conduzir e ser conduzido, procuravam-se novas estratégias, novos guias, 
novos objetivos, novos métodos. Essa conjuntura, denominada de crise do pastorado, 
longe de esmaecê-la e fazê-la desaparecer, multiplicou, dispersou e valorizou as formas 
de manifestação dessa tecnologia de poder. Nesse contexto, portanto, a associação entre 
o conduzir-se e a condução por parte de outrem foi amplamente fortalecida e 
consolidada. 
A outra situação que favoreceu a disseminação das práticas pastorais foi a 
formação do Estado moderno e sua transformação quanto ao exercício do poder 
político. Nesse momento, como veremos mais detalhadamente a seguir, houve uma 
grande modificação em relação aos objetos do exercício político, saindo de um governo 
assentado prioritariamente na gestão do território e passando para um governo 
25 
 
 
 
preocupado com o gerenciamento dos indivíduos. Essa atenção à conduta dos homens 
favoreceu a valorização da racionalidade pastoral e contribuiu para sua disseminação 
por todo corpo social. O Estado, agora ocupado com a administração da vida cotidiana, 
pega emprestado do pastorado grande parte de suas técnicas e estratégias de governo. E 
dessa forma “a tecnologia do poder pastoral encontrou apoio numa multiplicidade de 
instituições: ora no aparelho do Estado, ora na polícia, em empreendimentos privados e 
sociedades para o bem estar, ou na medicina e na família.” (Caliman, 2002, p. 73). 
Com a formação do Estado moderno, portanto, não assistimos a uma ruptura total 
entre as formas de governo políticas e as anteriormente executadas pela Igreja. Há, pelo 
contrário, uma forte vinculação entre religião e política, que não se dá exatamente por 
uma relação oficial entre as instituições do Estado e da Igreja, mas pela presença da 
tecnologia pastoral. Graças a sua preservação o governo político pôde lançar mão, até os 
dias atuais, de um método de gestão da vida que, perspicazmente, governa a todos e a 
cada um simultaneamente, e que gere a coletividade ao mesmo tempo em que é capaz 
de examinar as singularidades de cada membro do rebanho. Façamos agora, um estudo 
da racionalização das propriedades e atribuições conferidas ao Estado moderno em seu 
momento de consolidação, das características da arte de governar que lhe foram 
correspondentes e da consequente formação da doutrina da polícia já no século XVIII 
para que possamos então, compreender o solo sobre o qual se assenta a eclosão da 
governamentalidade atual. 
 
1.2.2 A razão de Estado do século XVI 
Foi no século XVI que, como sabemos, o continente europeu sofreu um decisivo 
processo de estabilização das fronteiras, ocasionando a formação, quase definitiva, dos 
estados nacionais como os conhecemos hoje. Nesse contexto, novas configurações do 
poder político e inéditas atribuições estatais começam a se configurar. O governo que 
anteriormente se dedicava à ampliação do território e à defesa de suas fronteiras 
começa, então, a se ocupar da majoração e organização de suas forças internas. Em 
busca de tentar definir o que viria a ser esse então incipiente Estado e de estabelecer a 
singularidade dessa forma de governo em relação às outras, uma série de autores 
elaboram uma inédita racionalização acerca das atribuições do poder político, 
construindo o que eles definiram como razão de Estado. Essa razão de Estado buscava, 
26 
 
 
 
por um lado, teorizar sobre os vínculos e instituições que de certa forma já se faziam 
presentes, e ao mesmo tempo, tinha por meta construir, edificar e solidificar o recente 
Estado que iniciava a sua existência; devia, portanto, fazê-lo existir e tomar corpo. Ela 
versava sobre o que ele era e sobre o que devia ser. Essa nova razão de Estado não devia 
se basear em nenhuma lei divina ou da Natureza, ela devia criar um sistema de leis 
próprias baseadas na observação e racionalização da natureza do seu próprio objeto, a 
saber, o próprio Estado.Algumas definições a respeito da razão de Estado elaboradas na época foram 
examinadas por Foucault e podem ser trazidas aqui. Para o italiano Palazzo tratava-se de 
“uma regra ou uma arte que nos dá a conhecer os meios para obter a integridade, a 
tranquilidade ou a paz da república”. Para Chemnitz é “certo cuidado político que se 
deve ter em todos os negócios públicos, em todos os conselhos e em todos os desígnios, 
e que deve tender unicamente à conservação, à ampliação e à felicidade do Estado”. 
Segundo Foucault, a pesar das diversas elaborações produzidas, podemos encontrar 
quatro pontos comuns a todas as definições construídas. Primeiramente podemos 
destacar a já mencionada ausência de qualquer referência a leis de ordem natural ou 
divina. A razão de Estado só deve referir-se a seu próprio conjunto de inteligibilidade. 
Em segundo lugar, destaca-se o fato de estas teorizações se constituírem tanto enquanto 
uma descrição da essência de um Estado já dado, quanto como um conjunto de saberes 
ao qual se deve recorrer para que se preserve a obediência aos seus preceitos. Outro 
ponto vem a ser o fato de todas essas reflexões visarem o aperfeiçoamento e a 
ampliação de características já presentes no Estado e não a transformação deste. Por 
fim, pode-se perceber, aponta Foucault, a unicidade do propósito da razão de Estado, 
que vem a ser o próprio Estado. Se existem referências a algo como a perfeição ou a 
felicidade, elas sempre dizem respeito ao Estado. A única finalidade da razão de Estado 
é o próprio Estado (Foucault, 2008a). 
 Alguns temas da pastoral são reelaborados nessa razão de Estado e 
merecem a nossa atenção. A questão da salvação toma outro objeto. A pastoral buscava 
salvar cada um dos indivíduos, mesmo que pra isso, de certa forma, se colocasse em 
risco todo o rebanho. O pastor, em busca de livrar da fome uma única ovelha perdida, 
seria capaz de comprometer a segurança de todo o rebanho indo à sua busca. Já na razão 
de Estado, o que deve ser salvo é o Estado em sua totalidade. Pode-se até mesmo, em 
nome desta salvação, em defesa desta sociedade, lesar o indivíduo que venha perturbar a 
27 
 
 
 
sua tranquilidade. Além de outro objeto, a salvação toma também outro destino. O 
pastor buscava garantir a salvação de suas ovelhas numa existência que viria após a vida 
terrena, em outro mundo, em outro tempo. Já na razão de Estado do século XVI, o que 
se pretende é livrar os indivíduos dos males que são experimentados na terra. Doença, 
pobreza, desemprego, acidente, todas essas moléstias são ocasionadas e sofridas nesta 
vida. O tema da obediência é também visto por outro ângulo. Para os teóricos da razão 
de Estado as sedições e as revoltas são vistas como normais, como esperadas, como 
intrínsecas à vida pública. Elas são vistas como mais um elemento a se governar, e não 
como algo totalmente intolerável e inadmissível, devendo-se, portanto estudá-las, 
gerenciá-las e amenizá-las. A produção da verdade encontra-se, por sua vez, igualmente 
transformada nessa razão de Estado. No pastorado, cada ovelha revelava suas verdades 
para o pastor, que as avaliava de acordo com leis divinas, doutrinariamente 
estabelecidas e historicamente solidificadas. Já na razão de Estado ao governante não 
interessa tanto conhecer as leis universais quanto os elementos relacionados ao 
fortalecimento desse Estado. Interessa ao governo saber sobre as características do 
próprio Estado, sobre sua realidade. Importava saber a respeito das mortes, dos 
nascimentos, das riquezas possuídas, como minas e florestas. “Não mais, portanto, 
corpus de leis ou habilidade em aplicá-las quando necessário, mas conjunto de 
conhecimentos técnicos que caracterizam a realidade do próprio Estado” (Foucault, 
2008a, p. 365). 
 
1.2.3 A arte de governar 
Um dos pontos que mais interessam a respeito dessa razão de Estado é a análise 
da nova arte de governar que ela dá ensejo. Segundo Foucault (2001a) entre os séculos 
XVI e XVII ocorre a explosão de uma série de manuais de governo que propunham aos 
governantes novas formas de se gerir os indivíduos, através de novos meios, com novos 
objetivos e com outras justificativas. Todas essas literaturas encontravam um ponto de 
repulsa em comum, a obra O Príncipe, de Maquiavel, contemporânea a esses manuais. 
Nesta obra o príncipe é definido a partir de uma relação de exterioridade com o seu 
reinado, ele não faz parte do mesmo, ele apenas o possui. Tendo recebido suas terras por 
herança ou aquisição em guerras, sua relação com o seu principado é constantemente 
ameaçada, seja pelos inimigos externos, que procuram apropriar-se do seu patrimônio, 
seja pelos súditos internos que, não enxergando nenhuma vinculação natural entre eles e 
28 
 
 
 
o governante, não vem motivo algum para obedecerem espontaneamente ao seu 
governo. Trata-se, portanto, de uma relação bastante frágil, onde o objetivo do poder é 
exatamente fortalecer esse ameaçado laço entre o príncipe e seu principado, que é 
formado por dois elementos vistos separadamente, o território os indivíduos. 
É questionando essa centralidade da conservação do principado tido como posse 
que a nova arte de governar assenta suas reflexões. Examinando um dos principais 
textos dessa literatura, a obra de Guillaume de La Perrière intitulada Miroir politique 
contenant diverses manières de gouverner, Foucault extrai alguns dos elementos 
centrais da nova arte de governar. Um dos pontos mais significativos é a nova 
concepção do que vem a ser o governante, aqui não só o príncipe, o monarca ou o juiz 
são admitidos como diretores de conduta, fala-se igualmente em governo da casa, da 
família, do convento, etc. O governante maquiavélico, o príncipe, era único e exterior ao 
seu principado. Já os governantes da arte de governar revelam-se múltiplos, variados, 
espalhados nas diversas relações presentes no corpo social, eles são diversos e 
encontram-se em relação de imanência com o Estado. São igualmente governantes, o 
pai, o padre, o mestre de ofício, o professor. Foucault encontra no autor La Mothe Le 
Vayer, uma interessante tipologia das formas de governo presentes na sociedade. Para 
ele haveria o governo de si mesmo, definido pela moral, o governo da família, 
denominado como economia e o governo do Estado, que viria a ser a política. Ainda 
que se apresentem assim separadas, para Le Vayer existiria uma ligação essencial entre 
essas formas de governo. Haveria, para ele, uma continuidade ascendente, 
proporcionada pela pedagogia, que dizia que um bom governante de Estado deveria 
saber governar com qualidade a si mesmo e a sua família. E a continuidade 
descendente, garantida pela polícia, segundo a qual o bom governo do Estado refletiria a 
correta gestão dos pais em relação a sua família e dos indivíduos em relação a si 
mesmos. O saber da economia, ou seja, da adequada maneira de governar os indivíduos 
no interior da família, ocuparia uma posição estratégica nessa arte de governar, devendo 
ser transposta para a gestão de todo o Estado. Devia-se, portanto, para os autores da 
época, governar o Estado da mesma maneira como se governa a família. 
Outra singularidade em relação à produção maquiavélica diz respeito ao objeto da 
ação do governo. Para os autores dessa arte de governar não se trata de gerir o território 
e os indivíduos separadamente, e sim de gerir corretamente os homens em relação com 
as coisas, entendendo-se por coisas, os meios de subsistência, as riquezas, o território, 
29 
 
 
 
os modos de pensar, de agir, de trabalhar. E essa gestão adequada de cada coisa deve 
visar um fim especifico. Não se trata mais da obediência a uma única lei soberana 
visando um bem comum, transcendental, cada objeto a ser governado possui uma 
finalidade específica para as quais se devem elaborar estratégias também específicas. A 
paciência, a sabedoria e a diligência são também qualidades inéditasatribuídas ao bom 
governante. Em oposição ao príncipe maquiavélico que impõe sofregamente o seu 
poder, o novo governante deve ser tranqüilo, paciente, ele deve, bem como o zangão, 
“reinar sobre a colméia sem a necessidade do ferrão”, palavras do próprio La Perrière 
exemplificadas por Foucault (2008a). Essa paciência é assegurada por dois elementos, a 
sabedoria e a diligência. A primeira garante a paciência do governante devido ao 
conhecimento adquirido a respeito dos governados e das corretas estratégias formuladas 
para orientá-los, já a segunda, permite a paciência do governante graças à natural 
aceitação da ação do governo por parte dos súditos, uma vez que este mostra, em sua 
atuação, estar sempre a serviço dos governados. Através dessa nova arte de governar 
assistimos, portanto, a quatro movimentos importantes: a distribuição da função de 
governo para todo o corpo social e a preocupação com sua correta realização; a 
capilarização do poder estatal para diversas áreas da vida dos indivíduos; a atribuição de 
finalidades específicas para cada objeto gerido; e uma certa sutilização do poder estatal 
garantida pela sabedoria e diligência do governante em oposição a impositiva soberania 
maquiavélica. Todas essas transformações ocorridas no poder governamental foram, de 
certa maneira, perpetuadas até o tempo presente, sendo fortalecidas e incrementadas de 
diferentes formas. 
 
1.2.4 A Polícia 
Em articulação com as reflexões a respeito das razões de Estado e na esteira das 
formulações acerca das pertinências das suas ações é elaborada, em torno dos séculos 
XVII e XVIII, a primeira técnica de governo que expunha com precisão as metas, os 
objetos e os caminhos a serem percorridos pelo poder estatal, trata-se da polícia. A 
grande meta da polícia podia ser resumida, para Foucault (2008a), como a ampliação 
das forças do Estado, preservando, contudo, a sua ordem e o seu controle. Para exercer 
tal crescimento das forças fazia-se necessário, de antemão, conhecer quais as 
potencialidades desse Estado, quais suas possibilidades de expansão, quais caminhos os 
levavam ao enriquecimento, a opulência, para que em seguida se desenvolvesse tais 
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capacidades. Para Justi, um dos formuladores da idéia da polícia, tratava-se de “leis e 
regulamentos que dizem respeito ao interior do Estado e procuram consolidar e 
aumentar o poderio desse Estado, que procuram fazer um bom uso das forças”. Para 
Turquet, que em suas teorizações colocou a polícia ao lado dos três grandes ofícios do 
bom governo que já se encontravam em funcionamento – justiça, exército e finanças – 
caberia a esta inculcar nos indivíduos funções morais como a modéstia, a lealdade, a 
caridade bem como dirigir suas atitudes em relação as suas riquezas, ao seu trabalho e 
ao seu consumo. Buscava-se, desse modo, aprimorar determinadas áreas da vida dos 
indivíduos de modo que esse desenvolvimento se coadunasse com o fortalecimento do 
Estado. 
Ela deve se ocupar, segundo a apreciação de Foucault, de cinco grandes áreas. 
Primeiro do número de homens, ela deve procurar contabilizar o número de habitantes 
e, considerando-os a força matriz do Estado, deve multiplicar o seu contingente, 
multiplicando consequentemente a força da nação. À polícia, cabe ocupar-se também 
das necessidades da vida, como a moradia, alimentação, vestimentas, assegurando-se de 
que aos indivíduos sejam oferecidos esses elementos sem escassez e com qualidade. Ela 
deve zelar também pela saúde dos sujeitos, garantindo-os enquanto força produtiva apta 
ao trabalho, não somente em situações especiais com as epidemias, mas em seus 
diversos hábitos diários. É nesse momento que nasce a atenção aos elementos do meio 
capazes de alterar os estados de saúde dos indivíduos como o ar ou a água, constrói-se, a 
partir de então, toda uma política do espaço urbano preocupada com as questões da 
saúde. A polícia deve cuidar também da ocupação dos homens, deve por para trabalhar 
os sujeitos capazes, fazendo-os realizar as atividades importantes para o Estado. E deve, 
por último, atentar para os problemas concernentes à circulação, seja de homens, ao 
conter a vagabundagem e ao impedir que os bons operários se dirijam para outros 
reinos, seja de mercadorias, ao cuidar das vias, dos rios e das praças. 
Qual é, portanto, o objeto da polícia? Para Foucault o grande objeto dessa polícia 
é homem, o homem em ação, em todas as suas possíveis relações. É o homem que 
nasce, que morre, que adoece, que se cura, que se alimenta, que trabalha, que 
vagabundeia, esse é o ponto de atuação do governo. Essa forma de controle da vida é 
caracterizada pelo estado de polícia, que a tudo governa. Para De Lamare, outro 
formulador da idéia de polícia do século XVIII, o Estado deve velar pelo vivo, cabe a 
este cuidar para que os homens sobrevivam, e por isso deve se ocupar do indispensável, 
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para que vivam, e por isso deve estar atento ao que é útil, e mais do que isso deve 
permitir que façam sempre algo a mais do que viver e sobreviver, devem gerar força 
para o Estado, delegando a este, portanto, o cuidado também ao que é supérfluo. Ao 
regular a vida dos homens em relação a tudo o que os circunda a polícia torna o 
indivíduo o ponto nevrálgico da ação do governo, que direciona o simples viver para os 
interesses do Estado. E dessa maneira, “governando os corpos o Estado governa a 
tudo.” (Veiga-Neto, e Lopes, 2007, p. 954) 
 Temos, então, o solo preparado para a eclosão da governamentalidade em meados 
do século XVIII. Temos em circulação a tecnologia do poder pastoral, uma forma de 
poder individualizante, que se ocupa da condução da conduta alheia, que é capaz de 
gerir uma coletividade ao mesmo tempo em que é atenta a singularidade e cada um, e 
que se faz possível graças à atenção e à impressão da marca pessoal de cada indivíduo. 
Há, por outro lado, o poder totalizante do Estado, que através da polícia e da arte de 
governar, distribui a função de governo por todo o tecido social, capilariza seu poder de 
ação para diversas áreas da vida e comportamentos dos sujeitos e atrela as atividades 
humanas ao aumento da sua potência. O processo de governamentalização analisado por 
Foucault tem como ponto de partida, portanto, a ocupação racionalizada por parte do 
Estado da vida dos indivíduos em relação aos diversos elementos que os circundam, e a 
adoção da tarefa de condução de suas condutas. A gestão governamental, contudo, só se 
faz presente na segunda metade do século XVIII, quando a população aparece enquanto 
categoria de análise e alvo do poder, quando a economia política se torna a principal 
forma de saber do Estado e quando o dispositivo de segurança surge como nova 
tecnologia de poder. 
 
1.3 O século XVIII e seus importantes acontecimentos 
1.3.1 O surgimento da população e o desbloqueio das artes de governar 
Até meados do século XVIII toda essa arte de governar elaborada pelos autores 
dos séculos XVI e XVII encontrava-se bloqueada. Essa arte de conduzir condutas, capaz 
de produzir o necessário conhecimento acerca dos seus objetos e competente em 
encontrar as finalidades específicas para cada alvo do poder, essa arte que se mostra 
diligente e hábil na correta orientação dos comportamentos dos indivíduos, não havia 
encontrado até então um contexto favorável a sua disseminação. É somente a partir do 
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século XVIII, com o aparecimento da população enquanto unidade de análise e alvo do 
poder, que essa forma de governo idealizada anteriormente pode se solidificar, se 
desenvolver e perdurar até os dias atuais. É bem verdade que durante as elaborações 
realizadas acerca da razão de Estado e do aparelho da polícia, podia-se perceber uma 
referência implícita à população, mas os autores ainda não se referiam diretamente a 
esta categoria, ainda não haviam elaborado esse conceito de maneira explícita. A quem, 
naqueles textos,era necessário salvar? À população. A desobediência de quem devia ser 
gerida? A da população. Sobre a opinião e atitudes de quem é preciso agir? Da 
população. Todavia, o ambiente de instabilidade e crises vivenciado até então – 
provocado, por exemplo, pela guerra dos 30 anos, pelas crises dos meios de subsistência 
e pelas sublevações ocorridas do ambiente urbano e rural – atrelado a um 
funcionamento institucional ainda marcado pelo modo soberano de poder impediram o 
desenvolvimento da arte de governar (Foucault, 2001a). Por um lado muitas 
necessidades militares e econômicas. Por outro, um modelo político e econômico, a 
exemplo do mercantilismo, que funcionava ainda no registro da soberania, sendo 
baseado, portanto, em regulamentos, leis e ordens muito mais voltadas para o fazer 
morrer e deixar viver do que para administração e majoração da vida, caracterizada, 
então, pelo fazer viver e deixar morrer (Foucault, 2002). 
Mas é no século XVIII que as artes de governar encontram um contexto favorável 
ao seu desbloqueio. A abundância monetária vivenciada por diversos países e o 
crescimento da produtividade agrícola garantiram a atmosfera de expansão e 
crescimento necessária. A explosão demográfica e o surgimento de questões ao nível 
populacional garantiram, por sua vez, a necessidade da saída do esquema de 
pensamento e de gestão baseados nos moldes da soberania. A observação dos 
fenômenos específicos da população, bastante tributária da forma de atenção e 
intervenção experimentadas no estado de polícia, provocou a elaboração desta categoria 
de análise de maneira destacada. A estatística torna-se o instrumento fundamental para 
o desbloqueio das artes de governar ao revelar de maneira inédita as regularidades e 
especificidades dos fenômenos populacionais. Doenças mortes, nascimentos, acidentes, 
uma nova perspectiva de olhar se origina abrindo consequentemente um novo campo de 
ação. A ascensão da população à campo de atuação e de análise desloca a centralidade 
do modelo familiar enquanto forma de governo. Níveis de mortalidade, epidemias, 
flutuações no mercado de trabalho, endemias, revelam que a população apresenta 
fenômenos específicos, não equivalentes aos acontecimentos familiares. A família deixa 
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de exercer o papel de modelo para gestão, e passa a ocupar um papel também 
importante, o de instrumento do governo. A partir desse momento grande parte das 
solicitações de comportamentos dirigidas à população se utiliza da família enquanto 
elemento estratégico de penetração e ressonância na vida cotidiana, “quando se quiser 
obter alguma coisa da população – quanto aos comportamentos sexuais, à demografia, 
ao consumo, etc. – é pela família que se deverá passar.” (Foucault, 2001a, p.289). 
Outro fator importante para o desbloqueio das artes de governar foi o fato de os 
fenômenos populacionais se constituírem enquanto um campo legítimo de atuação do 
governo, garantindo, portanto, a diligência e a presteza necessárias ao exercício do 
poder típicas da racionalidade razão de Estado. É em nome da melhoria das variáveis 
populacionais, da melhoria de sua saúde, de sua riqueza, de sua longevidade, que o 
governo atua, seja diretamente através de campanhas, seja indiretamente, ao intervir em 
variáveis relacionadas aos comportamentos dos indivíduos, provocando assim, 
alterações de comportamentos, tanto conscientes quanto inconscientes por parte destes. 
O saber produzido a partir das observações dos movimentos populacionais garante 
ainda a paciência necessária ao governante ao assegurar uma intervenção cautelosa, 
pautada num planejamento e num conhecimento seguro a respeito dos entes 
governados. A compreensão desses fenômenos permite a importante construção de um 
saber próprio ao governo, uma nova ciência, a economia política, que vai estar atenta a 
todas as relações entre as variáveis populacionais e as demais variáveis consideradas 
pelo Estado, como riqueza, capacidade produtiva, recursos naturais, etc. Mais do que 
isso, a economia política irá transformar-se verdadeiramente num tipo de intervenção 
típica dessa nova forma de governo que começa a se manifestar, marcando 
definitivamente a passagem da arte de governar fundamentada no quadro da soberania 
para uma nova arte, pautada essencialmente na gestão via técnicas de governo 
(Foucault, 2001a). Inicia-se, então, a era da governamentalidade, que foi definida como 
“o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos 
e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que 
tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por 
instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança” (Foucault, 2001a, p.291-
292). 
 
 
34 
 
 
 
1.3.2 O liberalismo 
Após perceber a importância da eclosão da unidade de análise populacional, 
Foucault continua seus estudos a respeito da forma de racionalização operada pelo 
Estado dada a presença dessa nova categoria e identifica uma importante transformação, 
ocorrida na segunda metade do século XVIII, que modifica a maneira como o Estado 
pensa a si e as suas estratégias utilizadas para alcançar seus objetivos. Trata-se da 
influência do pensamento fisiocrata, doutrina da economia política de cunho liberal, que 
a partir da análise do problema da escassez do cereal vivenciada na Europa, constrói 
uma crítica ao Estado de polícia até então vigente e funda uma nova razão de Estado 
(Foucault, 2008a). Essa nova razão de Estado é marcada pela presença do liberalismo, 
modelo político-econômico que, desde o século XVIII até os dias atuais, vem ganhando 
força e se desenvolvendo, caracterizando-se como o modus operandi típico das 
sociedades ocidentais e se constituindo como uma verdadeira técnica de governo. 
Até então, o pensamento mercantilista, fundamentado no estado de polícia, 
defendia o baixo preço dos cereais e dos salários dos cultivadores visando o maior 
escoamento possível das exportações e, consequentemente, um maior acúmulo de ouro. 
Para evitar que os camponeses estocassem os cereais em momentos de raridade – ou 
seja, em momentos em que os cereais já estavam com os preços elevados e estes 
buscavam elevar ainda mais esse valor – provocando a escassez, os mercantilistas 
lançavam mão de uma série de procedimentos de controle das atividades dos 
camponeses. Limitações de preços, proibição de estocagem, restrições no cultivo, eram 
essas as políticas adotadas pelo governo para evitar a escassez de cereais. Segundo a 
análise fisiocrata, esse modo de operar estava fadada ao fracasso. O baixo preço do 
cereal, e portanto, o baixo lucro dos camponeses, provocava a diminuição do cultivo e 
consequentemente a vulnerabilidade da colheita à qualquer oscilação climática, o que 
tornava a situação da escassez um problema recorrente. Ou seja, o que os fisiocratas 
perceberam foi que a própria política mercantilista voltada para evitar o problema da 
escassez acabava fatalmente por provocá-la. Partindo dessa tese, a sugestão fisiocrata 
diante do problema dos cereais veio a ser a seguinte: deixando que os preços subam e 
desçam livremente haverá um momento em que ele se estabilizará naturalmente num 
preço ideal, num preço justo. O próprio mercado, prescindindo da intervenção estatal, se 
torna o lugar de revelação da verdade, uma vez que ele tem a capacidade de se auto-
regular naturalmente. Nesse processo de auto-regulação, de natural condução ao estado 
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de equilíbrio, pode haver, e muito provavelmente haverá, momentos de raridade de 
cereais, momentos de escassez, ela não será completamente combatida, será considerada 
como um período natural ao movimento de estabilização de preços. Nesse processo são 
até mesmo previstas algumas mortes por conta da fome até que o sistema se restabeleça 
e volte e fornecer a quantidade de alimento necessária para a

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