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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro Biomédico Faculdade de Enfermagem Eugenio Fuentes Pérez Júnior Submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem no contexto neoliberal à luz de Pierre Bourdieu Rio de Janeiro 2019 Eugenio Fuentes Pérez Júnior Submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem no contexto neoliberal à luz de Pierre Bourdieu Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Enfermagem, Saúde e Sociedade. Orientadora: Prof.ª Dra. Helena Maria Scherlowski Leal David Rio de Janeiro 2019 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CBB Bibliotecária Adriana Caamaño CRB7/5235 Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte. _______________________________________ _________________________ Assinatura Data P438 Pérez Júnior, Eugenio Fuentes. Submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem no contexto neoliberal à luz de Pierre Bourdieu / Eugenio Fuentes Pérez Júnior. - 2019. 175 f. Orientadora: Helena Maria Scherlowski Leal David Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Enfermagem. 1. Enfermagem do trabalho. 2. Emprego. 3. Precarização do trabalho. 4. Saúde do trabalhador. 5. Neoliberalismo. 6. Dominação-Subordinação. 7. Bourdieu, Pierre, 1930-2002. I. David, Helena Maria Scherlowski Leal. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Enfermagem. III. Título. CDU 614.253.5 Eugenio Fuentes Pérez Júnior Submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem no contexto neoliberal à luz de Pierre Bourdieu Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Enfermagem, Saúde e Sociedade. Aprovada em 09 de setembro de 2019. Banca Examinadora: _________________________________________________ Prof.ª Dra. Helena Maria Scherlowski Leal David (Orientadora) Faculdade de Enfermagem - UERJ __________________________________________________ Prof.ª Dra. Norma Valéria Dantas de Oliveira Souza Faculdade de Enfermagem - UERJ __________________________________________________ Prof.ª Dra. Cristiane Helena Gallasch Faculdade de Enfermagem - UERJ __________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Luiz Coltro Antunes Universidade Estadual de Campinas __________________________________________________ Prof. Dr. José Augusto Pina Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro 2019 DEDICATÓRIA Dedico esta pesquisa a todos os trabalhadores de enfermagem que diariamente se dedicam em prol do cuidado aos seres humanos e, que mesmo experimentando pouca autonomia e reconhecimento se mantêm resistindo e acreditando na construção de uma enfermagem de excelência, e indispensável ao bem-estar das pessoas. A todos os parentes e amigos que me incentivaram e de alguma forma contribuíram para o meu crescimento. AGRADECIMENTOS À minha mãe Lucy de Mendonça Perez e ao meu pai Eugenio Fuentes Perez, pelo exemplo de luta e perseverança que sempre me deram, acreditando na educação como caminho para o meu crescimento pessoal. Sem dúvida nenhuma sem vocês não teria chegado até aqui! À minha avó Maria José Machado de Mendonça (in memória), que me preparou para enfrentar o mundo e vencer minhas limitações, sempre acreditando em meu potencial. Você com certeza é a razão de tudo isso. Quanta saudade! À minha madrinha e segunda mãe Antonieta Almeida Paredes, pelo amor, carinho e cuidado comigo, e por acompanhar sempre de perto cada passo da minha vida. Muito obrigado por ter me ensinar a ser sempre uma pessoa melhor a cada dia. Só você sabe como é especial para mim! À minha orientadora Prof.ª Dra. Helena Maria Scherlowski Leal David por toda paciência, generosidade em todas as etapas de minha formação como pesquisador. Aos Professores, Dra. Norma Valéria Dantas de Oliveira Souza, Dra. Cristiane Helena Gallasch, Dr. Ricardo Coltro Antunes, Dr. José Augusto Pina, Dra. Márcia Thereza Luz Lisboa e Dra. Clarissa Terenzi Seixas, minha gratidão pela disponibilidade de compartilhar seus conhecimentos enriquecendo a pesquisa e a minha formação. Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem UERJ, pela atenção e zelo no atendimento as minhas dúvidas e necessidades acadêmicas. A todos familiares e amigos que mesmo distante sempre estiveram na torcida pela minha conquista. Cada palavra de incentivo e coragem sempre serão lembradas. Muito obrigado pelo carinho de vocês! A todos os docentes e amigos do Departamento de Enfermagem Médico Cirúrgica da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro pelo apoio e incentivo. Aos docentes da área de Enfermagem Clínica da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro por todo carinho e suporte nos momentos de dificuldades. Sem o apoio de cada um de vocês não seria possível concluir esta jornada. Muito grato por todo carinho e consideração. Não basta saber ler que “Eva viu a uva”. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho. Paulo Freire RESUMO PÉREZ JÚNIOR, Eugenio Fuentes. Submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem no contexto neoliberal à luz de Pierre Bourdieu. 2019. 175f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. O objeto deste estudo são as relações de submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem no sistema capitalista neoliberal sob a ótica do pensador Pierre Bourdieu. Objetivos foram: identificar os fatores relacionados à precarização do trabalho de enfermagem que constituem em violência simbólica e material impetrada ao trabalhador; compreender como se processa a dominação e submissão do trabalhador de enfermagem diante das violências vivenciadas em seu cotidiano de trabalho à luz de pensamento de Pierre Bourdieu; analisar as repercussões da precarização da força de trabalho da enfermagem para a saúde do trabalhador. Estudo do tipo descritivo, exploratório de abordagem qualitativa, realizada em uma faculdade de Enfermagem no estado do Rio de janeiro. Participaram 22 enfermeiros que exerceram suas atividades há pelo menos um ano, em regime de contratação precarizado. A coleta de dados ocorreu nos meses de maio a junho de 2018, nos cursos de Pós-graduação de uma faculdade de Enfermagem pública no estado do Rio de Janeiro, através de entrevista semiestruturada. A técnica utilizada para tratamento das informações foi a triangulação de dados. A pesquisa obedeceu aos pressupostos e às exigências da Resolução número 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovada sob o número CAAE: 74414417.6.0000.5282. A triangulação dos dados fez emergir 4 categorias empíricas. Vivencias dos trabalhadores de enfermagem relacionada a reestruturação produtiva, dominação e submissão do trabalhador de enfermagem, resistênciados trabalhadores de enfermagem e mecanismos de contra resistência e repercussões da precarização deste sobre a saúde do trabalhador de Enfermagem. Conclui-se que há fatores relacionados com às transformações do mundo do trabalho vivenciados pelos trabalhadores no processo de precarização laboral que se constituem em violências simbólicas impetradas aos trabalhador e que funcionam como mediadoras para captação da subjetividade dos profissionais, conduzindo-os à aceitação de condições inadequadas de trabalho e de vida, contribuindo para a dominação e a submissão, além de utilizar o medo e a desesperança como elementos que imobilizam e desapropriam o trabalhador de suas formas de resistência. Palavras-chave: Enfermagem. Emprego. Capitalismo. Violência no trabalho. ABSTRACT PÉREZ JÚNIOR, Eugenio Fuentes. Submission, domination and resistance of nursing workers in the neoliberal context in the light of Pierre Bourdieu. 2019. 175f. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Faculdade de Enfermagem, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. The object of this study is the relations of submission, domination and resistance of the nursing workers in the neoliberal capitalist system under the perspective of Pierre Bourdieu's thought, whose objectives were: to identify the factors related to the precariousness of nursing work that constitute symbolic violence and material imposed on the worker; to understand how the domination and submission of the nursing worker is handled in the face of the violence experienced in his daily work in the light of Pierre Bourdieu's thinking; to analyze the repercussions of the precariousness of the nursing workforce on the health of the worker. This is a descriptive, exploratory, qualitative study, carried out at a Nursing School in the state of Rio de Janeiro. Twenty-two nurses who worked for at least one year participated in a precarious contracting regime. The data collection took place in the months of May to June 2018, in the graduate courses of a public nursing faculty in the state of Rio de Janeiro, through a semi-structured interview. The technique used to treat the information was the triangulation of data. The research obeyed the assumptions and requirements of Resolution number 466/2012 of the National Health Council and was approved under the number CAAE: 74414417.6.0000.5282. The triangulation of the data gave rise to four empirical categories. Experiences of nursing workers related to productive restructuring, domination and submission of the nursing worker, resistance of nursing workers and counter resistance mechanisms and repercussions of the precariousness of work on the health of the nursing worker. It is concluded that there are factors related to the transformations of the world of work experienced by the workers in the process of labor precarization that constitute symbolic violence imposed on the worker and that act as mediators to capture the subjectivity of the professionals, leading them to the acceptance of inadequate working and living conditions, contributing to domination and submission, and using fear and hopelessness as elements that immobilize and expropriate the worker from his forms of resistance. Keywords: Nursing. Job. Capitalism. Violence at work. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Tabela 1 – Figura 1 – Tabela 2 – Figura 2 – Tabela 3 - Quadro 1- Produção científica de enfermagem sobre precarização do trabalho de enfermagem e sua repercussão para o serviço de enfermagem e a saúde dos trabalhadores, por ano de publicação. Rio de Janeiro, 2017.............................................................................................................. Produção sobre submissão e dominação do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Rio de Janeiro, 2017............................................. Mapeamento da produção de teses e dissertações sobre submissão e dominação do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal. Rio de Janeiro, 2017.................................................................. Esquema representativo da técnica de triangulação de dados. Rio de Janeiro, Brasil, 2017.................................................................................... Características laborais dos entrevistados. Rio de Janeiro, Brasil, 2018.... Demonstrativo de formação das categorias de análise segundo os núcleos de significação............................................................................................. 31 32 33 97 99 171 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABEn ANED BDTD BID BVS CAGED CAPES CGT CLT CNPq CNS CREMERJ CUT EPA FMI IBGE LILACS MTIC OIT OMC OSHA OSS PCB PNAD PSE PT PUBMED SCIELO Associação Brasileira de Enfermagem Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações Banco Internacional de Desenvolvimento Biblioteca Virtual em Saúde Cadastro Geral de Empregados e Desempregados Conselho Federal de Educação Central Geral dos Trabalhadores Consolidação das Leis Trabalhistas Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Conselho Nacional de Saúde Conselho Regional de Medicina Central Única dos Trabalhadores United States Environmental Protection Agency Fundo Monetário Internacional Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde Ministério do Trabalho Indústria e Comércio Organização Internacional do Trabalho Organização Mundial do Comércio Occupational Safety and Health Administration Organização Social de Saúde Partido Comunista Brasileiro Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Programa Seguro-emprego Partido dos Trabalhadores Free resource that is developed and maintained by the National Center for Biotechnology Information (NCBI), at the U.S. National Library of Medicine (NLM), located at the National Institutes of Health (NIH) Scientific Eletronic Library Online SUS TCLE UERJ UNE Sistema Único de Saúde Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Universidade do Estado do Rio de Janeiro União Nacional de Estudantes SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS........................................................................... 13 1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ..................................................................... 38 1.1 O contexto neoliberal........................................................................................... 38 1.1.1 A restruturação produtiva....................................................................................... 42 1.1.2 1.1.3 1.2 1.2.1 1.2.2 1.3 1.4 1.5 1.5.1 1.5.2 1.5.3 2 A precarização do trabalho..................................................................................... O processo de precarização do trabalho de enfermagem....................................... A teoria social e seus conceitos em Pierre Bourdieu......................................... Os conceitos de habitus e campo por Pierre Bourdieu........................................... O conceito de capital, poder simbólico e violência simbólica por Pierre Bourdieu................................................................................................................. O contexto histórico, econômico, social e cultural da Enfermagem................ Resistência dos trabalhadores no contexto neoliberal...................................... A saúde do trabalhador.......................................................................................A saúde do trabalhador no Brasil........................................................................... Riscos à saúde do trabalhador no ambiente hospitalar........................................... Riscos psicossociais e estresse ocupacional........................................................... MÉTODO.............................................................................................................. 48 50 53 55 60 65 69 80 83 87 89 91 2.1 Tipo de pesquisa................................................................................................... 91 2.2 Campo e participantes da pesquisa.................................................................... 92 2.2.1 Critérios de inclusão e exclusão............................................................................. 93 2.3 Aspectos éticos da pesquisa................................................................................. 94 2.4 Coleta de dados..................................................................................................... 94 2.5 3 3.1 3.2 3.3 3.4 Plano de análise.................................................................................................... RESULTADOS..................................................................................................... Características gerais dos participantes............................................................. 1ª Categoria – Vivencias dos trabalhadores de enfermagem relacionada a reestruturação produtiva..................................................................................... 2ª Categoria - Dominação e submissão do trabalhador de enfermagem......... 3ª Categoria - Resistencia dos trabalhadores de enfermagem e mecanismos de contra resistência............................................................................................. 96 99 99 100 129 139 3.5 4ª Categoria - Repercussões da precarização do trabalho sobre a saúde do trabalhador de Enfermagem............................................................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 139 145 REFERÊNCIAS .................................................................................................. APÊNDICE A – Carta de anuência para autorização de pesquisa........................ APÊNDICE B – Termo de consentimento livre e esclarecido............................. 150 168 169 APÊNDICE C - Roteiro para entrevista e coleta de dados................................... APÊNDICE D – Quadro das categoriais analíticas.............................................. ANEXO - Parecer consubstanciado do CEP..................................................... 170 171 172 13 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Motivações Este estudo tem por objeto as relações de submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem no sistema capitalista neoliberal sob a ótica do pensamento de Pierre Bourdieu. O interesse em estudar questões relacionadas à sujeição dos trabalhadores de enfermagem vem se desenvolvendo ao longo de minha trajetória profissional. Ou seja, no exercício profissional pude observar por diversas ocasiões, situações em que os trabalhadores de enfermagem, contratados através de vínculos temporários, assumiam posturas de subserviência diante de condições indignas de trabalho, como falta de condições para realização das tarefas, trabalho intenso e repetitivo, com número reduzido de profissionais e elevada carga de trabalho, além de baixos salários e insegurança devido à falta de estabilidade e ausência de garantias sociais e protetivas dos trabalhadores. Após concluir a Graduação em Enfermagem em 1995 venho exercendo minhas atividades profissionais por quase duas décadas na área gerencial e assistencial de enfermagem. Nesse período pude observar tanto no setor privado quanto no público uma crescente inserção dos trabalhadores de enfermagem nos postos de trabalho com vínculos de contratação temporários, por meio de terceirizações por cooperativas, fundações e Organizações Sociais de Serviços de Saúde (OSS). A contratação por vínculos não estáveis, principalmente no serviço público, tem sido utilizada com frequência pelas esferas municipal, estadual e federal como estratégia para reposição imediata da força de trabalho devido ao déficit de profissionais para atender às necessidades de saúde da população (SANTINI et al., 2017). O que se observa é a inserção de trabalhadores sem seus direitos trabalhistas garantidos e em condição de desigualdade com outros profissionais da mesma categoria admitidos por vínculos estáveis, ou seja, aqueles admitidos através de concursos públicos e regidos por legislação específica que garantiam maior estabilidade, segurança e direitos em relação aos demais. Como exemplo, pode-se citar a composição das equipes de enfermagem, principalmente nos serviços públicos, onde encontram-se enfermeiros e técnicos de enfermagem, admitidos por concursos públicos com direitos trabalhistas e sociais garantidos, 14 dividindo o mesmo ambiente laboral com profissionais de enfermagem contratados por vínculos temporários sem as mesmas garantias. Cabe ressaltar que durante minha prática observei que os profissionais de enfermagem contratados com vínculos temporários não tinham direito a afastamento do trabalho por motivo de doença, quando adoeciam e não compareciam ao trabalho eram demitidos. Os contratos não permitiam férias, nem a possibilidade de progressão da carreira. Além dessas questões, muitas vezes tinham suas escalas fixadas em finais de semana e feriados, e em postos de trabalho que exigiam maior demanda de esforço físico e mental, como setores de alta complexidade. Como gestor de enfermagem vivenciei as dificuldades de gerenciar o serviço de enfermagem em uma unidade hospitalar do Sistema Único de Saúde (SUS), em que a maioria da força de trabalho era composta por profissionais em regime precarizado de trabalho. Somente uma pequena proporção de trabalhadores estava sob o regime estatutário. Os trabalhadores sob o regime de precarização experimentavam insegurança quanto à manutenção do emprego, à multiplicidade de vínculos. Vivenciaram desigualdades em relação aos trabalhadores de mesmo cargo na instituição, aumento da carga horária de trabalho e consequentemente, isso resultava em desmotivação inclusive por causa de baixos salários. Os trabalhadores não estáveis como descrito por Zylberstajn, Stein e Zylberstajn (2017) em geral recebem menores salários que os demais, fato que acaba por contribuir para que o trabalhador tenha dois ou mais vínculos de trabalho como uma estratégia para aumentar sua renda. Os baixos salários e a multiplicidade de vínculos, por sua vez, acarretam impossibilidade do trabalhador para investir em sua qualificação e aperfeiçoamento, contribuindo para que vivencie cada vez mais a dificuldade de manter-se no mercado de trabalho. Estudos de Felli (2012) e Gomes et al. (2016) descrevem que falta de segurança na manutenção do emprego determinada pela não estabilidade do contrato de trabalho faz com que haja maior rotatividade de pessoal de enfermagem, pois diante de uma oportunidade melhor de trabalho o abandono do vínculo não estável ocorre quase que imediatamente, e isso repercute negativamente no processo de gestão do serviço de enfermagem e na qualidade do serviço prestado. Ao desenvolver atividades de gestão do serviço de enfermagem em uma unidade hospitalar de referência de atendimento de urgência, emergência e trauma cirúrgico pude observar que a falta de contratação por vínculo estável reforça a alta rotatividade dos trabalhadores de enfermagem. Tal condição, inclusive, constitui em um fator limitante para o 15processo de trabalho da enfermagem com vistas à assistência de qualidade, uma vez que a complexidade do serviço de enfermagem exige pessoal com habilidades e competências em termos de formação, especialização e treinamento constante. Além da dificuldade de manutenção de um grupo de trabalho treinado, a substituição frequente da força de trabalho acarreta prejuízos econômicos, devido à perda do investimento realizado no treinamento do profissional para a melhoria da qualidade e segurança do serviço prestado, com a saída constante de profissionais da instituição. Ainda no que concerne à instabilidade relacionada à manutenção do emprego é relevante destacar que diante da insegurança, os trabalhadores acabam por submeter-se a condições de trabalho indesejáveis, tais como carga horária excessiva, receber menores salários e vivenciar a desigualdade de direitos trabalhistas em comparação aos demais profissionais da mesma categoria. A admissibilidade de tal realidade laboral se dá pela necessidade de sua subsistência (ANTUNES, 2014; ANTUNES; POCHMANN, 2008; CASTEL, 2013; FELLI, 2012; GOMES et al., 2016; SOUZA; MENDES, 2016b). A convivência entre trabalhadores de enfermagem com vínculos estáveis trabalhando em conjunto com outros sob o regime de precarização permitiu observação de comportamentos distintos em cada um dos grupos. Via-se nos profissionais sob o regime precarizado de trabalho que mesmo diante de condições desiguais e desfavoráveis como já citadas, estes apresentavam uma postura de submissão às regras do trabalho, até o limite de suas capacidades físicas e emocionais. Ao passo que já os trabalhadores com vínculos estáveis eram mais resistentes à imposição de condições de trabalho adversas, embora em determinados momentos se apresentassem como agentes que perpetravam aos demais trabalhadores as mesmas condições que ora repudiavam, ou seja, reservavam as piores tarefas àqueles sem estabilidade. Via-se também alguns trabalhadores estáveis reivindicando e não aceitando a forma desigual de tratamento, a qual eram submetidos os trabalhadores não estáveis, principalmente no que se refere à impossibilidade de afastamento por doença e escalas de trabalho desiguais. Ao considerar que essas características observadas no cotidiano dos trabalhadores sem vínculos estáveis interferem no processo de trabalho, cabe ressaltar, também, que tais condições expõem os trabalhadores a situações de estresse ocupacional, contribuindo, assim, para sofrimento no trabalho, adoecimento e aumento no absenteísmo (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010; GONÇALVES et al., 2015; SELIGMANN-SILVA, 2011). Com o objetivo de melhor elucidar minhas inquietações sobre a submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem, sempre presentes como pano de fundo entre as 16 condições laborais, o processo de trabalho e seus impactos sobre os trabalhadores, ingressei no mestrado acadêmico onde desenvolvi a dissertação “Inovações tecnológicas em terapia intensiva: repercussões para a saúde do trabalhador de enfermagem e o processo de trabalho”. Pude me familiarizar com questões relacionadas aos fatores intervenientes às incorporações tecnológicas, à organização do trabalho, à influência da precarização sobre o trabalhador de enfermagem e ao processo de trabalho, de forma objetiva e subjetiva (PÉREZ JÚNIOR, 2012). O estudo sobre as inovações tecnológicas permitiu identificar que fatores relacionados às condições de trabalho e aos trabalhadores de enfermagem são importantes para a prática de enfermagem segura e de qualidade. No entanto, as questões relacionadas às condições inadequadas de trabalho, como falta de materiais, falta de manutenção preventiva e corretiva e alta rotatividade dos profissionais pela contratação temporária eram obstáculo para a capacitação e treinamento em serviço, pois, dificultavam o exercício profissional (PÉREZ JÚNIOR, 2012). Ao refletir sobre o tema da precarização, como aluno no curso de mestrado, pude verificar várias condições relacionadas à baixa valorização da força de trabalho na enfermagem. Contratações sem estabilidade, diminuição dos direitos dos trabalhadores, condições inadequadas de trabalho como: falta de insumos, sobrecargas e intensificação do trabalho são exemplos frequentes no dia a dia dos trabalhadores de enfermagem. Assim, essas questões relacionadas ao trabalho me causaram uma inquietação: por que trabalhadores de enfermagem mesmo diante de condições inadequadas e/ adversas de trabalho acabam por manter uma postura de subserviência? O que me motivou a aprofundar os estudos sobre as relações de submissão, dominação e resistência do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal. Com base nessa inquietação continuei meus estudos acadêmicos, e, através da leitura de estudos relacionados à precarização do trabalho, fui me aproximando da sociologia do trabalho por tratar-se de um ramo da sociologia que busca compreender as relações sociais e o mundo laboral. Participando das disciplinas oferecidas pelo Programa de Pós Graduação, na linha da saúde do trabalhador tive meu primeiro contato com obras Pierre Bourdieu e sua teoria social que descreve que a relação social se dá no interior de um segmento do social (campo), onde a dinâmica social é regida pelas lutas em que os indivíduos e grupos (agentes) procuram manter ou alterar as relações de força e a distribuição das formas de capital específico. 17 Com apoio dos estudos e reflexões realizados na disciplina: Pierre Bourdieu e a produção social da cultura, do conhecimento e da informação comecei a perceber a importância dos estudos desse autor sobre a construção da realidade social. Outrossim, percebi também como a adequação de é condição sine qua non para compreender dinâmica social relacionada à submissão, dominação e resistência dos trabalhadores de enfermagem presentes na realidade do trabalho. Objeto e a contextualização do problema As transformações ocorridas no mundo a partir do desenvolvimento tecnológico e científico promoveram mudanças no trabalho e nas organizações. A necessidade de organizações mais flexíveis, adaptadas para atender novas exigências do mercado globalizado e competitivo influenciaram as relações laborais, acirrando a exploração dos trabalhadores com novas formas de inserção no mercado, impactando nas dinâmicas sociais, no processo de trabalho e na saúde dos trabalhadores (OLIVEIRA et al., 2016). O desenvolvimento científico e tecnológico ocorrido no século XVIII, provocou transformações socioeconômicas e políticas que atingiram a classe trabalhadora. A Revolução Industrial na França, Inglaterra e, tardiamente na Alemanha promoveu o surgimento de uma nova fase do capitalismo marcada pela introdução de máquinas no processo de produção. Logo, que passaram a substituir a força de trabalho humana com objetivos de produzir em larga escala, com menor custo e, consequente, obtenção de maior lucro (MONTAÑO, 2010). A principal característica do sistema capitalista de produção é a acumulação de riquezas e, para tal, alguns autores da economia clássica foram inovadores em suas épocas ao desenvolverem estratégias de organização e controle do trabalho com vistas a obtenção de lucro. Frederick Winslow Taylor e Henry Ford, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, instituíram formas de controle do trabalho e da produção através do domínio do tempo de execução das tarefas e pela inserção, no caso de Ford, das esteiras de produção. Ambos promoveram a produção em grande escala aumentando a acumulação de riquezas pela exploração do trabalho (RIBEIRO, 2012; SENNETT, 2014; SOUZA; MENDES, 2016). Com a crise do sistema do taylorista e fordista, nos anos 1970, juntamente com a crise estrutural do capitalismo, os detentores do capital buscaram novas estratégias para lucratividade como aincorporação de algumas características do modelo japonês, que, nesta 18 época, despontou como modelo vitorioso ao apresentar crescimento econômico por meio da reformulação dos processos de produção mesmo em meio à crise do sistema capitalista. O modelo conhecido como toyotismo apresentou-se como uma saída à queda do nível de produtividade e ao aumento da obtenção de lucro através da flexibilização das relações de trabalho e da produção (RIBEIRO, 2015). Como características da reformulação do trabalho promovidas pelo toyotismo e a inserção tecnológica temos a adoção de práticas como: part time, ou contratação por horas e/ ou pequenos períodos, diminuindo o custo da mão de obra, o método kanban que permite um controle sobre os detalhes de uma produção, como informações sobre quando, quanto e o que produzir e o just in time, sistema de produção caracterizado pela produção sobre demanda (RIBEIRO, 2012, 2015). Como consequência da reformulação do processo produtivo verifica-se que as relações de trabalho também sofreram modificações, tais como: a flexibilização, a liberalização e a precarização do trabalho que promoveram: diminuição dos direitos dos trabalhadores, acirrando as lutas pelos direitos do trabalho, à diminuição da oferta do emprego e aumento do desemprego, aumento da duração da jornada de trabalho, diminuição dos salários e a disseminação de práticas que articulam os pressupostos da liofilização organizacional, através da eliminação, transferência, terceirização e enxugamento de unidades produtivas, da empresa enxuta (lean production), as condições de baixa (ou nenhuma) proteção do trabalhador, que despontam como resultado dessa nova configuração do trabalho (ANTUNES, 2012, 2014; ANTUNES; PRAUN, 2015). Neste contexto, o crescente desenvolvimento tecnológico e a inserção de equipamentos cada vez mais avançados impactaram as organizações exigindo reformulações e adequações constantes na gestão laboral, tendo como foco principal a exploração da força de trabalho como meio para a diminuição dos custos da produção, expansão do mercado e maior lucratividade (CASTEL, 2013). O desenvolvimento das tecnologias mais avançadas como os computadores, os circuitos eletrônicos, a microeletrônica, o microchip, a nanotecnologia etc. somados ao grande desenvolvimento das tecnologias de produção, informação e biotecnologia, nos séculos seguintes contribuíram para expansão dos mercados consumidores bem como a quebra das barreiras protecionistas dos mercado nacionais, que teve início no século XX (ARRUDA, 2012). O processo de globalização e internacionalização do mercado, ocorrido a partir dos anos 1970, propagou a necessidade de uma reestruturação no modo de produção do sistema 19 capitalista. A crise mundial do capitalismo exigiu a substituição dos modelos de produção taylorista-fordista por outros modelos mais flexíveis, ajustáveis ao novo modelo de produção e acumulação de capitais (LAINO, 2008). A crise do capitalismo alavancou a adoção de medidas políticas e econômicas para a reestruturação do sistema de acumulação de capitais, conhecido como neoliberalismo. Essas doutrinas políticas e econômicas têm por base: a mínima participação estatal na economia, a pouca intervenção do governo no mercado, principalmente promovendo a redução da proteção social do trabalho, a adoção de políticas de privatização de empresas estatais, a livre circulação de capitais, a desburocratização do estado, a diminuição do tamanho do estado exceto no que diz respeito aos aparelhos de repressão, o aumento da produção, ou seja, a desregulamentação do mercado e do trabalho e a ampla defesa dos princípios econômicos do capitalismo, tornando as empresas mais flexíveis (ANTUNES, 2012, 2014; ANTUNES; PRAUN, 2015; LAINO, 2008; SOUZA; MENDES, 2016b). A flexibilização das organizações caracteriza-se por uma série de estratégias implementadas a partir da reestruturação produtiva, que tem por objetivo alterar as regulamentações do mercado e das relações de trabalho dentre as quais está a precarização do trabalho (SOUZA; MENDES, 2016b). Para Castel (2013), a precarização do trabalho é um processo decorrente da evolução do capitalismo moderno que diante das novas exigências tecnológicas e econômicas apresenta três aspectos importantes: a desestabilização dos trabalhadores estáveis, a instalação na precariedade de diferentes trabalhadores e o aumento do desemprego. A precarização da força de trabalho no contexto da acumulação flexível do capital é caracterizada por contratos de trabalho não regulamentados, trabalhos informais, modalidades diferenciadas de emprego como terceirizações e contratos temporários, todos com redução dos direitos e garantias sociais dos trabalhadores. Ademais, a precarização caracteriza-se pela descontinuidade do trabalho, a incapacidade dos trabalhadores no controle sobre as tarefas, a falta de proteção do trabalhador e a baixa remuneração (ANTUNES, 2012, 2014; ANTUN I ; MACHADO; PENA, 2011; OLIVEIRA et al., 2016). No Brasil, a reestruturação produtiva ganha maior visibilidade a partir da década de 1990 com a implementação da agenda neoliberal estabelecida pelos países centrais e imposta aos países em desenvolvimento para manutenção do sistema capitalista. A reforma política, social e econômica adotada no país, sob a égide de promover o desenvolvimento, adotou as seguintes exigências do capital internacional: a abertura do comércio, a desregulamentação dos processos produtivos e das relações de trabalho, incentivando a flexibilização das 20 organizações e tendo a precarização do trabalho como principal estratégia de exploração da força de trabalho (ANTUNES, 2012, 2014; MONTAÑO, 2010). A herança deixada ao Estado brasileiro pela ditadura militar, devido à falta de investimentos externos, o baixo crescimento do país após 1974 e a crise da dívida externa com graves consequências econômicas e sociais favoreceu a adoção do ideário neoliberal com a imposição de ajustes macroestruturais. Ajustes que culminaram em fragmentação do trabalho, adoção de contratos por terceirização, redução da interferência do Estado na economia, redução de postos de trabalhos, diminuição da proteção jurídica nas relações de trabalho, retração das organizações sindicais e substituição das políticas universalistas por políticas focalizadas e implementadas através de parcerias público-privadas sob o argumento de serem essas mais eficientes (ANTUNES, 2012; ANTUNES; SILVA, 2004; VIEIRA; CHINELLI, 2013). Nas décadas seguintes, o processo de reestruturação política e econômica brasileira desenvolveu-se afetando todos os setores de produção até a atualidade. O setor saúde também sofre direta e indiretamente com as alterações advindas da reestruturação produtiva neoliberal, uma vez que age de forma nociva nos vínculos de trabalho, principalmente pelo enxugamento da máquina pública, diminuindo a oferta e a qualidade do serviço prestado (AMORIM et al., 2012). O setor saúde é um importante ramo da economia brasileira gerando mais de 10% da massa salarial do setor formal, em torno de 3,9 milhões de postos de trabalho. O uso intensivo e diversificado de mão de obra é outra característica marcante do setor, e a esfera pública representa o seu maior empregador. No entanto, devido à inserção de trabalhadores por meio de outras modalidades que não o concurso público, como estipulado pela Constituição Federal de 1988, o Sistema Único de Saúde enfrenta um grave problema, isto é, a precarização do trabalho em áreas essenciais que deveriam ser estruturadas por profissionais qualificados e inseridos diretamente nele. No entanto, verifica-se um considerável volume de contratações de serviços por terceirizações (MACHADO; VIEIRA; OLIVEIRA, 2012). Sabe-se que o direito à saúde para todo brasileiro foi consolidado após a Constituição Federalde 1988, por meio do SUS, regulamentado pela lei n. 8.080/90. Sua idealização e construção consiste em uma conquista social decorrente do movimento de reforma sanitária desencadeado durante a redemocratização do Estado e que trouxe avanços à saúde pública brasileira, especificamente no âmbito de sua organização (SCHIMITH et al., 2017). Nesta perspectiva de ordem social, o atual sistema de saúde foi concebido em consonância com um 21 conjunto de necessidades sociais de saúde as quais imprimem um caráter ético-moral que defendem a saúde como direito de todo cidadão. A fim de que se cumpra a premissa de manutenção da ordem social prevista na constituição e que no âmbito da saúde, além da assistência desta, envolver a seguridade e assistência social, é imprescindível a atuação da enfermagem enquanto prática social. Neste contexto o trabalho da enfermagem é um componente fundamental nos sistemas de saúde, considerando a complexidade e as expectativas em torno das demandas de saúde da população. Sua abrangência envolve ações de promoção da saúde, prevenção, tratamento, reabilitação e monitoramento, além de controle de doenças crônicas, tanto em nível local, regional e nacional quanto internacional. Portanto, compreende ações que são construídas nos campos social e político (BACKES et al., 2014). Ainda no que diz respeito ao papel social do trabalhador de enfermagem, cabe ressaltar que a enfermagem no espaço nacional, assim como no internacional, vem ampliando seu espaço de atuação e assumindo cada vez mais posições decisivas e proativas no que se refere às necessidades de cuidado da população em suas diferentes dimensões. Assim, o cuidado de enfermagem é, portanto, um componente fundamental no sistema de saúde local, que apresenta seus reflexos a nível regional e nacional (BACKES et al., 2012). Backes et al. (2012, p.224) descrevem que “o cuidado de enfermagem se configura como prática social empreendedora pela inserção ativa e proativa nos diferentes espaços de atuação profissional, principalmente, pelas possibilidades interativas e associativas com os diferentes setores e contextos sociais” Souza e Mendes (2016), ao tratar do serviço de enfermagem no âmbito do sistema de saúde, descrevem que o trabalho de enfermagem é uma prática social do setor de serviços constituindo-se no âmbito do trabalho em saúde. Também é realizado nos diversos meios em que o processo de cuidado se faz necessário ao ser humano, utilizando como instrumento as práticas desenvolvidas nos pilares da clínica com objetivo de prevenir agravos, promover a saúde, atenção e reabilitação. No entanto, a prática de enfermagem depende diretamente da inserção de seus trabalhadores no sistema de saúde, porém a falta de políticas públicas consistentes para disponibilizar e regular a oferta de trabalho no SUS contribui para flexibilização das relações de trabalho na área pública. Nas últimas décadas, a adoção de modalidades de contratação de profissionais de saúde com vínculos não estáveis no serviço público. Desta forma, trabalhadores são contratados pelo órgão público, por meio de um vínculo temporário ou 22 informal, ou, ainda, através de terceirizações, ou organizações sociais de serviços (MORICI; BARBOSA, 2013). O trabalhador de enfermagem também foi afetado pela reestruturação do trabalho na saúde. A empregabilidade da equipe de enfermagem apresentou aumento após a expansão do SUS, mas acompanhada de uma maior precarização das relações de trabalhos e acarretando a multiplicidade de vínculos e o comprometimento dos direitos trabalhistas (SILVA et al., 2013). Os trabalhadores da saúde, principalmente os de enfermagem, convivem rotineiramente com duplas ou triplas jornadas de trabalho, exercendo suas atividades com baixos salários e sem seus direitos trabalhistas garantidos. Somado a isso, vivem a constante ameaça de perda do emprego, condições tais que intensificam a submissão desses trabalhadores no processo de precarização e admissibilidade de condições indignas de trabalho (MACHADO; VIEIRA; OLIVEIRA, 2012). A precarização do trabalho por suas características de dominação do trabalhador através da insegurança, incerteza, sujeição, competição, proliferação da desconfiança e do individualismo, sequestro do tempo e da subjetividade acaba por afetar as demais dimensões da vida do trabalhador. Além de produzir desestabilização e vulnerabilidade social, com perda da autoestima, corrosão dos sistemas de valores e, em alguns casos, acarreta adoecimento físico e mental (FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010). As repercussões da precarização sobre as relações do trabalho são mediadas no âmbito político pela objetivação do ideário neoliberal através da redefinição do papel dos Estados Nacionais, especialmente no que tange às mudanças realizadas na regulamentação jurídica das relações de trabalho, tendo como diretrizes o baixo investimento público, a descentralização e regressão dos direitos sociais, contribuindo assim para a vulnerabilidade social do trabalhador. Neste contexto, a adoção do ideário neoliberal no campo político permite a execução de estratégias como: a redução da força de trabalho, a regulação do mercado através de livres negociações, a contratação por vínculos sem garantias sociais, com remuneração mais baixa e com maior carga horária, corroborando, assim, com a precarização do trabalho (ANTUNES, 2012, 2014; BREWER et al., 2012; JONES; SHERWOO I I ; MACHADO; PENA, 2011). No campo econômico, a adoção da pragmática neoliberal, utilizando-se da precarização tem promovido a superexploração da força de trabalho determinada pela coexistência entre baixos salários, jornadas de trabalho prolongadas, sobrecarga de trabalho com fortíssimo aumento no ritmo e na intensidade, diminuição da força de trabalho e aumento 23 no desemprego estrutural. Em tais condições acirra-se a competição entre os trabalhadores; há a proliferação do individualismo e barateamento da força de trabalho traduzida em baixos salários, reforçando com isso, a submissão do trabalhador diante do risco de ter sua subsistência ameaçada pela falta de emprego (ANTUNES, 2012, 2004, 2014; ANTUNES; POCHMANN, 2008; FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010; PINA; STOTZ, 2015). A livre regulação do mercado sobre o trabalho, proporcionada principalmente pela política de mínima intervenção do estado como esfera reguladora de proteção do trabalhador, é outra repercussão econômica da precarização que subordina o emprego às demandas geradas pelo capitalismo. Desse modo, o trabalhador tem sua subsistência e a manutenção de suas condições de vida dependentes de mediações do mercado de trabalho, externas à sua vontade (LAINO, 2008; MI ; MACHADO; PENA, 2011). Ainda no contexto econômico, ressalta-se que tais mediações da precarização impõem ao trabalhador a noção de “trabalho livre” do sistema do capital ou seja, o trabalhador mesmo destituído do controle do processo produtivo, recebe pela alienação de sua capacidade de trabalho, por um determinado tempo, um salário para reconstituir e manter sua capacidade produtiva e dessa forma garante a continuidade da oferta da força de trabalho sempre que o capital dela demandar, tendo por base a separação do indivíduo que trabalha e suas condições de trabalho, condição imprescindível para que o trabalhador possa vender sua força de trabalho. Desta forma, torna o ser que trabalha a mais miserável das mercadorias (CEOLIN, 2014). Esta noção de que o trabalhador pode escolher livremente trabalhar ou não, é incorreta na medida em que não considera que diante da falta de emprego a única escolha possível e a de aceitar o trabalho nas condições em que são oferecidos ou o desemprego. Assim, é nessa tensão entre liberdade de escolha e necessidade de subsistência e que se produzem as formas de exploração, submissão.No campo social, as influências políticas e econômicas da precarização sob a égide do modelo neoliberal promoveram além da restruturação da produção a restruturação das classes sociais. O crescente desemprego e as perdas dos direitos sociais, contribuíram para intensificar as lutas de classes, ou seja, entre a chamada classe dominante, detentora do capital e a proletária assalariada, que tem sua subsistência baseada na venda de sua força de trabalho (ALVES, 2011a; LAINO, 2008; MONTAÑO, 2010; MUSTAFA; BENATTI, 2010). Ressalta-se nesse contexto a compreensão do sociólogo Rui Braga, pois descreve a classe 24 proletária precarizada como a fração mais mal paga e explorada do proletariado urbano (NETO, 2013). Além das questões coletivas, a restruturação das relações entre trabalho e capital promoveram nos trabalhadores o estímulo ao individualismo e a competitividade sem limites. No que se refere à empregabilidade, os trabalhadores são submetidos tanto às exigências do mercado de trabalho quanto à especialização, à capacitação permanente e à multifuncionalidade. Desta forma, a precarização promove uma divisão de duas categorias de trabalhadores: os que estão aptos a atender as exigências do mercado e os que não possuem qualificações e acabam excluídos, formando, assim, um grande contingente de desempregados (ANTUNES, 2014; ANTUNES; POCHMANN, 2008; FRANCO; DRUCK; SELIGMANN- SILVA, 2010). Outro aspecto relevante no contexto social e que tem repercussões sobre a subjetividade dos trabalhadores é a questão da desfiliação social proposta pelo sociólogo francês Robert Castel (2013). Ao analisar a restruturação das relações de trabalho e o contexto social, o sociólogo aponta que esse processo tem contribuído para o desenvolvimento da sociedade assalariada que depende da venda de sua força de trabalho para a subsistência, configurando uma nova questão social, marcada pela substituição do trabalho estável pela precarização do trabalho e pelo desemprego. Neste aspecto, Castel apresenta a vulnerabilidade social e desfiliação como consequências das transformações do mundo do trabalho: O trabalhador vulnerável, consistem na verdade, naquele empregado que pode ser demitido a partir de qualquer necessidade da empresa e se tornar como consequência um desfiliado, caso esta ruptura do vínculo com o mercado de trabalho seja duradoura o suficiente para impactar as relações sociais mais amplas que cercam este trabalhador e que significam a sua outra ponta de integração e coesão social (laços familiares, de parentesco, redes de amizade, etc) (BRANDÃO, 2009, p.147). Para Alves (2011) a precarização do trabalho contemporâneo seria não apenas um processo de degradação das atividades e do profissional como força de trabalho, mas do indivíduo, por meio de um novo metabolismo social do trabalho que se utiliza da fragilidade das relações como estratégia para tonar-se domável, complacente e submissa à força de trabalho. Assim, compreender a dimensão da barbárie social contida no processo de precarização do trabalho e nas condições da crise estrutural do capital poderá contribuir para esclarecer a submissão dos trabalhadores de enfermagem em condições tão adversas. Precarização vem sendo tratada na literatura como o processo decorrente da crise do capitalismo e caracterizada pela desregulamentação do estado sobre o trabalho e com prejuízos ao processo de trabalho e a saúde dos trabalhadores (ALVES et al., 2015; BILA, 25 2008; BREWER et al., 2012; DRUCK, 2011; FARIA; DALBELLO-ARAUJO, 2011; FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010; GOIS, 2010; GONÇALVES, 2013; GONÇALVES et al., 2015; GUIMARÃES, 2009; JONES; SHERWOOD, 2014; PÉREZ JÚNIOR, 2012; RIBEIRO et al., 2014; SANTOS, 2007; SOUZA, 2015; VIEIRA; CHINELLI, 2013). Poucos estudos dedicaram-se a analisar as relações de poder, de submissão e dominação no contexto da precarização do trabalho. O estudo de Pereira (2000) concluiu que o hospital é o local onde imperam as relações de dominação, sendo a mais frequente a forma simbólica. No entanto, ressalta-se que o estudo se refere às relações entre profissionais de saúde e usuários do serviço. Busanello (2012) descreve que a submissão hierárquica e de valores que o enfermeiro está subordinado ao sistema produtivo neoliberal evidenciou-se em uma relação de alienação e opressão, resultando nos comportamentos de autoproteção, de redundância e de dominação dos trabalhadores de enfermagem. Observa-se que como consequência do modelo neoliberal e de precarização do trabalho sobre o processo produtivo foram identificadas repercussões negativas. Na saúde dos trabalhadores de enfermagem, por exemplo verifica-se: estresse, taquicardia, hipertensão arterial sistêmica, sonolência, esgotamento físico e mental, depressão, fadiga, cefaleia, dor epigástrica, irritabilidade (GONCALVES et al, 2014). Outro aspecto relevante no que diz respeito aos impactos gerados pelas contratações temporárias e com baixos salários sobre a saúde mental dos trabalhadores é a deterioração das relações interpessoais, pois esse modelo de contratação presente na precarização acarreta alta rotatividade de pessoal e a necessidade de novos treinamentos aos recém contratados, aumentando o retrabalho daqueles trabalhadores que permanecem. E esta situação, vivida continuamente, acaba por contribuir para o desgaste e o tensionamento das relações interpessoais, pois, rompe-se a solidariedade entre os trabalhadores (GONCALVES et al, 2015). A precarização do trabalho ao possibilitar a degradação das condições deste pelos baixos investimentos, pela sobrecarga, intensificação e redução da força de trabalho, além do aumento da carga horaria trabalhada, tem contribuído em demasia para o adoecimento físico e mental dos trabalhadores. Ou seja, aumentam a ocorrência de acidentes de trabalho (SELIGMANN-SILVA,2011). Diante da contextualização do objeto apresentado e de alguns pressupostos iniciais emergiram as seguintes questões que nortearam este estudo: Como os trabalhadores de enfermagem permanecem trabalhando em condições inadequadas, sem recompensas ou 26 reconhecimentos, desgastando seus corpos e sua saúde? Que condições contribuem para que os trabalhadores de enfermagem se sujeitem a situações inadequadas de trabalho? Como os trabalhadores de enfermagem se organizam coletivamente para melhorar as condições de trabalho? Quais as repercussões da precarização do trabalho para os trabalhadores de enfermagem. No intuito de melhor compreender como se produzem as relações sociais neste contexto tão adverso e complexo utilizou-se o pensamento de Bourdieu. A escolha dos postulados teóricos e filosóficos de Pierre Bourdieu para a análise da realidade fundamentou- se pelo fato de tratar-se de um importante cientista social contemporâneo que possui uma vasta obra e pesquisas sobre as relações e determinações sobre os fenômenos sociais (BOURDIEU, 1983c). Pierre Bourdieu foi um importante sociólogo e pensador francês, um dos mais proeminentes intelectuais da modernidade no âmbito das ciências humanas denominado e reconhecido como um polemista. Considerado um autor de leitura intrincada, difícil e em certos pontos até mesmo incompreensível ele foi autor de uma série de obras que contribuíram para renovar o entendimento da Sociologia e da Etnologia no século XX. Bourdieu fez críticas aos que considerava servos do poder, afrontou o fundamentalismo de mercado que, na sua visão, distorce a lógica dos campos de produção cultural. Assim, sua teoria impulsionou e inovou os estudos na sociologia ao defender a praxiologia como uma opção para a análise sociológica que, por sua vez, é capaz de fazer reflexões sobre as diversas e distintas sociedades (MARTINEZ, 2015; NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002; SANTIAGO, 2012; VALLE, 2007). Pierre Bourdieu foi um dos principais intelectuais do século XX e um dos maisimportantes sociólogos contemporâneos. Foi Professor de sociologia no Colége de France, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e diretor da revista Actes de a Recherch em Sciences Sociales. Suas contribuições foram inúmeras para o pensamento contemporâneo, sempre com enfoque nas questões de educação, cultura, arte e, em seus últimos anos de vida, nos estudos de comunicação e de política. A respeito do vasto alcance de suas contribuições para o estudo das realidades sociais e suas mediações destacam-se três conceitos: campo, habitus e capital simbólico, centrais na análise das práticas sociais, suas relações de poder e os limites e regras de atuação individuais e coletivas (ASSUNÇÃO, 2016; MARTINEZ; TOZETTO, 2016; SANTIAGO, 2012; WACQUANT, 2002). Os conceitos de campos, habitus, capital simbólico, poder simbólico e violência simbólica serão imprescindíveis para a investigação proposta neste estudo. Para 27 compreendermos a construção das relações de submissão e dominação do trabalhador de enfermagem admitir-se-á o campo da saúde como base para a análise das relações sociais por tratar-se de um campo social (conforme estabelecido por Bourdieu) em que não só estão inseridos os agentes da enfermagem como os demais agentes envolvidos na saúde: médicos, administradores, fisioterapeutas, nutricionistas, entre outros. Ressalta-se que o campo social, adotado nessa pesquisa, é o campo da saúde. Na perspectiva de Bourdieu, o campo é o local onde as estruturas (regras, comportamentos, leis, definições de papeis e valores) estão estabelecidas ou estruturadas; onde há constante luta entre os agentes do campo para manutenção das regras estruturadas, e, consequente manutenção do poder dos grupos que controlam essas regras, ou contrapondo-se a essas estruturas em busca de reconhecimento e poder (BOURDIEU, 1976, 2004a, 2005; GARCIA, 1996). É nesse campo de relações, e/ou disputas que pretende-se investigar a construção das relações de submissão e dominação do trabalhador de enfermagem no contexto neoliberal. Outro aspecto relevante a ser considerado é o fato de que a prática social se constrói com base nas estruturas e regras estabelecidas e consolidadas no campo. Bourdieu, durante sua trajetória, buscou desenvolver sua teoria de acordo com o conhecimento praxiológico que constitui-se da relação dialética entre o agente e a sociedade. Não ignora, dessa forma, os conhecimentos objetivista e subjetivista, porém, retoma de cada um suas contribuições, integrando-os ao invés de contrapô-los um ao outro (ALMEIDA, 2005; MARTINEZ, 2015; MARTINEZ; TOZETTO, 2016; THIRY-CHERQUES, 2006; WACQUANT, 2002). Para Bourdieu essa prática social só se explica através do habitus, que pode ser tratado como resultado de um trabalho de inculcação pela prática, em que o agente social interioriza, de modo sistemático e coerente, as estruturas de relações de poder, a partir do lugar e da posição que no campo ocupa e exterioriza em práticas as disposições que antes interiorizou (BOURDIEU, 1983a; CODATO; MORAES, 2006; MONTAGNER, 2006; THIRY- CHERQUES, 2006). Neste sentido, por meio da identificação do habitus dos agentes, podemos investigar as relações estabelecidas e as bases em que foram originadas, bem como as relações de poder nelas contidas. Além do habitus, um fator que interfere diretamente na posição dos agentes no campo é o capital. Em suas análises, Pierre Bourdieu chamou a atenção para o fato de que os agentes são dotados de diferentes capitais que são acumulados no decorrer de sua trajetória. Toda via, não se trata só de capitais no sentido econômico (BONAMINO et al., 2010). O capital pode ser diferenciado em: econômico, cultural, social, e simbólico, este último relacionado aos 28 rituais característicos de cada grupo social, as chamadas regras de boa conduta (ALMEIDA, 2005). Bourdieu considera diferentes sistemas simbólicos, o mito, a língua, a arte, a ciência e a ideologia como instrumentos de conhecimento e construção que influenciam o mundo social. Descreve que essas estruturas são estruturadas, e, por meio delas, o campo social é também estruturado, assim como os agentes sociais que detêm maior capital simbólico acumulado exerçam uma forma de poder (BOURDIEU, 2007a, 2007b; GARCIA, 1996). O poder conferido aos agentes sociais, neste sentido, é denominado por Bourdieu como poder simbólico que tende a estabelecer e manter a ordem de forma a perpetuar o consenso no campo social e o poder nas mãos dos agentes dominantes (BOURDIEU, 2007a). A partir de todo o descrito, fica claro que a sociedade compreendida por Bourdieu é dividida entre grupos dominantes e grupos dominados (FERNANDES, 2010). Continuando sua análise, Bourdieu aponta que a dominação nos campos sociais se dá pela consumação da violência simbólica perpetrada pelos agentes dominantes sobre os dominados. Caracteriza que a violência simbólica é aquela à qual os agentes dominados não a reconhecem como violência, mas como uma ordem social inerente à realidade social. Desta forma, é sumamente inconsciente e age tanto a partir daqueles que sofrem como também naqueles que a exercem na medida em que uns e outros são em parte inconscientes ao exercê-la ou de sofrê-la (BOURDIEU, 2007a, 2016; BURAWOY, 2010; FERNANDES, 2010; MARTINEZ; TOZETTO, 2016). Pierre Bourdieu (2011), ao tratar do poder simbólico e da violência simbólica apresenta uma crítica às ideias neoliberais e à globalização. Considera que são estratégias de produção e reprodução simbólica voltadas a manter os ideais econômicos de acumulação de capitais no atual sistema financeiro. Bourdieu explica ainda que os sistemas simbólicos são responsáveis por produções simbólicas que funcionam como instrumentos de dominação: “É assim que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber para a domesticação dos dominados”. (B UR I U 2011, p. 11). É diante desse contexto e com base nos postulados de Pierre Bourdieu sobre a construção, produção e reprodução de sistemas simbólicos e sua utilização como instrumento para construção de valores, e através deles imprimir a dominação simbólica, que se assume este referencial filosófico como o fio condutor dessa pesquisa. 29 Com base nos questionamentos realizados, define-se como objeto de estudo a submissão, dominação e resistência do trabalhador de enfermagem no contexto neoliberal à luz de Pierre Bourdieu. O presente estudo apresenta como pressuposto central ou tese a ser defendida, a compreensão de que: o sistema capitalista baseado na acumulação flexível do capital utiliza- se de estratégias como a precarização do trabalho que impetram violência material e simbólica ao trabalhador de enfermagem, dificultando sua capacidade de reação às condições degradantes do trabalho. Objetivos do estudo A fim de se responder as questões que norteiam o presente estudo e confirmar ou refutar a tese formulada. Tem-se como objetivos a) identificar os fatores relacionados à precarização do trabalho de enfermagem que se constituem em violência simbólica e material impetrada ao trabalhador; b) compreender o processo de dominação e submissão do trabalhador de enfermagem diante das violências vivenciadas em seu cotidiano de trabalho à luz de pensamento de Pierre Bourdieu; c) analisar como os trabalhadores de enfermagem se mobilizam coletivamente no contexto de precarização do trabalho. d) analisar as repercussões da precarização da força de trabalho da enfermagem para a saúde do trabalhador. A produção do conhecimento na área da Enfermagem Para melhor delineamentodo estudo faz-se necessário a realização do levantamento da produção bibliográfica sobre a submissão e dominação do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal sob a ótica do pensamento de Pierre Bourdieu. 30 Em revisão integrativa sobre produção da enfermagem a respeito da precarização do trabalho de enfermagem e sua repercussão para o serviço de enfermagem e a saúde dos trabalhadores, publicados no período de 2010 a março de 2017, identificaram-se 2.220 artigos, e, após a leitura de seus resumos, foram analisados quanto à abordagem acerca da temática proposta. Foram selecionados doze artigos que apresentavam relação com o objeto desse estudo, sendo oito de produção nacional e quatro internacionais. A busca foi realizada na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e que inclui as seguintes bases de dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Scientific Eletronic Library Online (SCIELO); Base de Dados do portal de periódicos do Conselho Federal de Educação (CAPES); U.S. National Library of Medicine (PubMed) e Science Direct Online. A coleta de dados foi realizada entre os meses de janeiro de 2016 a março de 2017. Foram utilizados os seguintes descritores: seguridade and enfermagem, condições de trabalho and enfermagem e internacionalidade and enfermagem, seguido dos seus correspondentes na língua inglesa: social walfare and nursing, working conditions and nursing e internationality and nursing. Adotou-se como critérios para seleção dos artigos: os disponíveis na integra, de autoria de enfermeiros, publicados nos idiomas português, inglês e espanhol. Excluíram-se os artigos encontrados em mais de uma Base de Dados e os de acesso indisponível ou inconsistentes com o objeto de estudo proposto. Ao analisar a produção do conhecimento da enfermagem no que refere à precarização do trabalho constata-se que, no período de 2010 a 2013, houve uma produção inexpressiva sobre o tema com a publicação de apenas um artigo em cada ano, conforme tabela 1. A maior concentração da produção ocorre nos anos de 2014 e 2015 com quatro artigos em cada ano, mostrando que o tema é atual e pouco estudado na área da enfermagem. Dos doze artigos relacionados não se encontrou nenhum artigo que abordasse a dominação do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal sob a ótica do pensamento de Pierre Bourdieu. 31 Tabela 1- Produção científica de enfermagem sobre precarização do trabalho de enfermagem e sua repercussão para o serviço de enfermagem e a saúde dos trabalhadores, por ano de publicação, Rio de Janeiro, 2017. Ano Nº de artigos publicados 2010 01 2011 01 2012 01 2013 01 2014 04 2015 04 Fonte: O autor, 2017. A análise da produção demonstrou que alguns estudos apontam que a precarização do trabalho em saúde e da enfermagem tem seu início concomitante com a reforma política ocorrida no Brasil na década de 1990. E de forma sistemática e apoiada pela ideologia liberal, implementou-se a flexibilização a partir da Reforma do Estado, pois adotou um modelo administrativo baseado na mínima intervenção do estado com regulamentação das relações, principalmente trabalhista pelo mercado (ALVES et al., 2015; BREWER et al., 2012; GONÇALVES et al., 2015; JONES, SHERWOOD 2014; RIBEIRO et al., 2014). Ao tratar dos impactos da precarização sobre o processo de trabalho da enfermagem os estudos de Druck (2011); Faria e Dalbello-Araujo (2011); Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010); Pérez Júnior (2012); Vieira e Chinelli (2013) apontam: aumento da carga de trabalho e aos baixos salários, a escassez de material, a inadequação do quantitativo dos recursos humanos, a contratação de trabalhadores não concursados e a inadequação da planta física. Além de apontar que os profissionais sob o regime de precarização convivem rotineiramente em condições relacionadas à perda dos seus direitos e seguridade, que fomemtam a submissão desses trabalhadores à exploração e a aceitar condições indignas de trabalho diante da ameaça de perda do trabalho. Para ampliação da análise acerca da produção de conhecimento sobre o tema, realizou- se busca na biblioteca digital brasileira de teses e dissertações (BDTD), esta por sua vez, organiza em um único banco de dados as informações sobre as teses e dissertações produzidas no país e por brasileiros no exterior dentro de programas de pós-graduação stricto sensu. 32 Utilizou-se como descritores: neoliberalismo e enfermagem; precarização e enfermagem; violência simbólica e enfermagem; submissão e enfermagem; globalização e enfermagem. A busca retornou um total de 435 trabalhos, entre teses e dissertações que após a verificação na íntegra de seus conteúdos e sua relação com a temática foram selecionados 11 trabalhos para análise, conforme demonstrado na figura 1. Figura1- Produção sobre submissão e dominação do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Rio de Janeiro, 2017. Fonte: O autor, 2017. As obras foram analisadas em seus resumos objetivando-se verificar a adesão de seu conteúdo à temática da submissão e dominação do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal e foram então selecionados 14 trabalhos que tratavam diretamente da temática. No entanto apenas 11 produções tinham como autores profissionais enfermeiros, as quais foram selecionadas para análise. Os trabalhos selecionados foram analisados na íntegra, buscando assim, identificar seus resultados, os quais são apresentados tabela 2 abaixo: 33 Tabela 2- Mapeamento da produção de teses e dissertações sobre submissão e dominação do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal. Rio de Janeiro, 2017.) ANO TÍTULO AUTOR TIPO INSTITUIÇÃO 2000 Poder, violência e dominação simbólicos em um serviço público de saúde que atende a mulheres em situação de gestação, parto e puerpério Pereira, WR Tese USP 2005 Supervisão, flexibilização e desregulamentação no mercado de trabalho: antigos modos de controle, novas incertezas nos vínculos de trabalho da enfermagem Baraldi, S Tese USP 2007 O conflito nas relações no trabalho no contexto da flexibilização e reforma do estado: a terceirização às avessas Santos, ALPJ Dissertação FIOCRUZ 2008 A banalização da injustiça social no cotidiano de trabalho: a propósito da violência no trabalho e ameaça à saúde do trabalhador Bila, NIGFA Dissertação URFN 2009 As políticas de gestão do trabalho e da educação em saúde: limites e possibilidades diante da flexibilização do trabalho no sistema único de saúde Guimarães, TCF Dissertação FIOCRUZ 2010 A precarização do trabalho do enfermeiro na estratégia saúde da família: contribuição ao debate Gois, PS Dissertação UFRN 2011 A flexibilização das relações de trabalho da enfermagem no hospital universitário da universidade federal do espírito santo (1988-1998) Alves, SMP Dissertação UFES 2012 A produção de subjetividade do enfermeiro para a tomada de decisões no processo de cuidar em enfermagem Busanello, J Tese FURG 2013 A subjetividade do profissional da saúde pós- reestruturação produtiva Gomes, D Tese UFSC 2014 O modelo neoliberal e suas repercussões para a saúde do trabalhador de enfermagem Gonçalves, FGA Dissertação UERJ 2015 A interpretação do trabalho em enfermagem no capitalismo financeirizados: um estudo na perspectiva teórica do fluxo tensionado Souza, HS Dissertação USP Fonte: O autor, 2017 Ao analisar as pesquisas selecionadas identificou-se que apenas quatro estudos de doutorado abordaram a temática da precarização e da submissão do trabalhador, dos quais três o realizaram sob o enfoque dos impactos na subjetividade. Pereira (2000), ao analisar a dominação e o poder nas relaçõesno serviço de saúde hospitalar, identifica que esse espaço está imerso em relações de dominação e que o poder simbólico perpetrado através da violência simbólica é a forma de dominação predominante nas relações entre profissionais e 34 usuários. Ressalta-se que o estudo teve como objeto as relações de dominação dos usuários pelos profissionais. Já os estudos de Baraldi (2005), Busanello (2012) e Gomes (2013) identificaram que a relação entre a produção de subjetividade do enfermeiro e a tomada de decisões é mediada pelo sistema capitalista através da submissão hierárquica e de valores acarretando estresse e adoecimento. Esses estudos apontam que imposições na tomada de decisões, determinadas pela organização do trabalho e não pelo julgamento livre do profissional constituem-se em uma forma de violência praticada sobre os trabalhadores de enfermagem. Além disso, capturam sua subjetividade e promovem a dominação do trabalhador pelo sistema. Diversos estudos têm se debruçado sobre a temática das modificações promovidas pela adoção das ideias neoliberais através das políticas de estado mínimo e precarização do trabalho. E seus resultados apontam de forma quase unânime para a existência de relações conflituosas devido às diferenças entre trabalhadores precarizados e não precarizados no mesmo espaço, a sobrecarga de trabalho, a tensão e o estresse entre os trabalhadores, a ansiedade diante da insegurança, a desproteção social, a desestruturação dos serviços, a alta rotatividade e baixa autonomia dos trabalhadores e, por fim, o acirramento da exploração do trabalho (BILA, 2008; GOIS, 2010; GONÇALVES, 2013; GUIMARÃES, 2009; SANTOS, 2007; SOUZA, 2015). A partir da análise desta produção observa-se que são escassos os trabalhos sobre a temática, e os poucos estudos realizados no âmbito da enfermagem não examinaram as lacunas de conhecimento que demostram quais mediações estão presentes entre o sistema produtivo e o trabalho real que conduzem o trabalhador à dominação e à submissão. Justificativa do estudo A crise do capitalismo e o surgimento do pensamento neoliberal tem promovido, desde o final da década de 1970, um acirramento da precarização estrutural do trabalho em escala global. O resultado de tal processo tem sido a adoção de privatizações, por parte das estruturas governamentais, impulsionadas pela razão econômica imposta pelos capitais financeirizados (bancos e multinacionais) contribuindo para a perda dos direitos trabalhistas conquistados pelas lutas sociais e do estado de segurança social em todas as partes do mundo (ANTUNES, 2014; ANTUNES; ALVES, 2004; OLIVEIRA et al., 2013a). 35 A nova divisão internacional do trabalho, caracterizada pela lioflização organizacional (ANTUNES, 2014) pela empresa enxuta e a perda parcial ou total da proteção do trabalho tem proporcionado a exposição do trabalhador à precarização e à intensificação do trabalho. A exigência do trabalhador multifuncional, polivalente e individualista, além da submissão a uma série de mecanismos de gestão pautados na pressão psicológica voltada para o aumento da produtividade e a diminuição drástica dos limites entre atividade laboral e espaço da vida privada promovem o desemprego estrutural e tem repercutido negativamente na saúde física e mental dos trabalhadores (ANTUNES; PRAUN, 2015). Neste contexto, estudar as relações de submissão e dominação do trabalhador de enfermagem no sistema capitalista neoliberal sob a ótica do pensamento de Pierre Bourdieu poderá auxiliar na compreensão dos fatores relacionados à submissão dos trabalhadores de enfermagem diante das violências simbólicas perpetradas pela precarização do trabalho e desta forma fornecer subsídios para uma ampla discussão em relação ao enfrentamento. Relevância e contribuições O estudo é relevante porque poderá ampliar a compreensão teórica com base na análise empírica a respeito da configuração do trabalho de enfermagem em suas práticas e realidades diárias a partir das vivências dos trabalhadores assalariados e submetidos ao sistema de exploração por meio de trabalhos precarizados. No Brasil, como em todo o mundo, os trabalhadores de enfermagem sob o regime da precarização convivem rotineiramente em condições relacionadas à perda dos seus direitos e seguridade social. Convivem também com condições de trabalho que fortalecem a submissão destes à exploração do sistema capitalista, aceitando, inclusive, condições indignas de trabalho e sem condições de exercer suas atividades profissionais com segurança e qualidade (FARIA; DALBELLO-ARAUJO, 2011). Acredita-se que a melhor compreensão das mediações existentes entre a relação do processo produtivo e o trabalho concreto poderá auxiliar na reflexão sobre novas possibilidades de enfrentamento às condições adversas vivenciadas pelos trabalhadores de enfermagem no contexto neoliberal. Outro aspecto relevante reside no fato de melhor compreender as repercussões do processo produtivo baseado nos fundamentos neoliberais sobre a saúde dos trabalhadores, e, a 36 partir desse ponto poder contribuir com reflexões que possam favorecer medidas que minimizem os afastamentos e absenteísmos provocados pelo adoecimento para a redução dos impactos econômicos e sociais para a instituição. Desta forma, concomitantemente, diminui- se a sobrecarga gerada aos demais trabalhadores pela redução da força de trabalho devido ao absenteísmo, bem como incentivar o debate sobre a precarização do trabalho na enfermagem. Assim, sua relevância profissional e social aponta para a melhoria das condições de trabalho do profissional, para os cuidados prestados e automaticamente, refletindo em uma assistência segura e eficaz. A proposta deste estudo apresentada ao curso de doutorado da faculdade de enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e inserido na linha de pesquisa do programa de pós-graduação stricto sensu: Trabalho, Educação e Formação Profissional em Saúde e Enfermagem e no grupo de pesquisas: “ onfigurações do mundo do trabalho, saúde dos trabalhadores e enfermagem” certificado pelo diretório de grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq) propõe contribuir da seguinte maneira: 1. estabelecer, com base em uma abordagem teórica crítica, a partir da sociologia de Bourdieu, reflexão e análise à respeito das formas de submissão, dominação e resistência do trabalhador de enfermagem como categoria profissional e prática social. 2. com a transferência dos conhecimentos mediante a divulgação dos resultados em eventos e publicação de artigos, processo que já vem sendo realizado e que tem despertado grande interesse por parte dos ouvintes em eventos de que tenho participado; 3. inserção de conteúdos relativos à análise crítica da precarização do trabalho e seus riscos à saúde do trabalhador no ensino da graduação e especialização, pois a formação ainda tem se voltado para os aspectos técnicos e assistenciais, com pouca ênfase nos riscos inerentes à inserção do trabalhador ao processo de trabalho precarizado; 4. ampliação do acervo de banco de dissertações e teses do Programa de Pós- Graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da UERJ, na linha de pesquisa “ Trabalho Educação e Formação em Saúde e nfermagem” 5. ampliação da produção de conhecimento de enfermagem sobre precarização dominação do trabalhador de enfermagem na perspectiva de 37 Pierre Bourdieu no grupo de pesquisa: configurações do mundo do trabalho, saúde dos trabalhadores e enfermagem do Programa de Pós- Graduação em Enfermagem da Faculdade de Enfermagem da UER 38 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 1.1. O contexto neoliberal A concepção de ideário neoliberal foi formulada pela primeira vez em 1947 por Friedrich August von Hayek, economista e pensador austríaco, nascido
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