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Uma defesa da Lei Natural, por Douglas Bertoni Volcato

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Uma defesa da Lei Natural 
Por Douglas Bertoni Volcato
Introdução
Levando em conta que vivemos hoje em um mundo onde existe um
grave relativismo jurídico, em um mundo onde não possuímos um
“norte” definido para basearmos nossas ações, pois a qualquer
momento uma decisão subjetiva de algum ente mais poderoso pode vir
a mudar completamente o arcabouço técnico que possuímos
relacionado à legislação, certos problemas epistemológicos na base do
direito de cunho juspositivista, “aquilo que está escrito na lei deve ser
seguido”, me levaram a refletir sobre o assunto e a escrever este texto.
Aqui defenderei a existência de uma Lei Natural que, apesar das
diferentes definições utilizadas nos livros relacionando-a com a teoria
behaviorista ou com a religião, pode ser descoberta a partir da análise
racional da própria natureza do ser humano. Com base nisso elaboro
esta crítica a todos os defensores do juspositivismo e do sistema
legislativo que temos atualmente, tanto no âmbito acadêmico quanto
fora dele. 
A necessidade de uma Ética
Para entendermos o porquê da necessidade de uma Ética devemos,
primeiramente, levar em conta que a ação humana consiste
necessariamente no uso de um meio para se atingir um fim. Meio esse
que se constitui de um recurso material finito, escasso. Sendo assim, é
impossível que se realizem fins excludentes com um mesmo recurso ao
mesmo tempo (inclusive com o próprio corpo humano), sendo essa
escassez a causa de todos os tipos de conflitos entre indivíduos, sem
exceções. 
Caso os recursos não fossem escassos não haveria a necessidade de
estarmos aqui pensando em uma Ética, pois, deste modo, eu poderia
realizar todos os fins que quero de modo instantâneo, tendo
absolutamente todas as minhas necessidades atendidas, e os outros
indivíduos também. Porém, levando em conta que conflitos são gerados
a partir dessa impossibilidade de dois ou mais indivíduos utilizarem um
mesmo recurso escasso para fins excludentes ao mesmo tempo e que
a Ética deve ser uma norma universal e que evite conflitos quando
seguida (pois não podem existir contradições internas quando a Ética é
aplicada indefinidamente, caso contrário essa norma não seria uma
Ética por definição), podemos perceber que essa Ética deve ser uma
norma de propriedade privada, ou seja, um direito de controle exclusivo
sobre os recursos escassos pelos indivíduos, julgando apenas os meios
dessas ações humanas como válidos ou inválidos.
Tendo isso entendido, nos restarão as seguintes questões: Como
poderíamos elaborar uma argumentação coerente e racional como uma
proposta para resolver esses conflitos de maneira civilizada? E, mesmo
que consigamos responder essa primeira questão, como podemos
descobrir se essa proposta é Ética? 
O Agir Comunicativo 
Em sua teoria do Agir Comunicativo, o filósofo Jürgen Habermas,
demonstra a estrutura de nosso conhecimento como sendo
proposicional, isto é, nosso saber pode ser externalizado através de
enunciados linguísticos (assim como eu estou fazendo agora por meio
desse texto). Nosso conhecimento é externalizado de maneira explícita
em nossas externalizações verbais e implícita em nossas ações. Ao
externalizar uma proposição verbalmente está implícito que o indivíduo
possui uma pretensão de validade, assim como também está implícito
que a mesma pode ser criticada como não confiável pelos outros
indivíduos. Caso o indivíduo não manifestasse uma pretensão de
verdade, não assumisse que esta proposição pudesse ser
fundamentada, então o mesmo não manifestaria proposição alguma
pois não estaria pretendendo que os outros indivíduos a tomem como
verdadeira. Por exemplo, um sujeito faz a seguinte proposição: “A maçã
é vermelha”. Com isso ele levanta a pretensão transubjetiva de
verdade, ou seja, existe uma pretensão de que os outros sujeitos de
sua mesma categoria consigam também entender o significado dela e
reconheçam que é verdadeira. Levando em conta que as proposições
descritivas dizem respeito às características físicas de algo e que as
proposições normativas dizem respeito às regras, Habermas afirma
que, ao emitirem proposições descritivas ou normativas, os indivíduos
possuem pretensões transubjetivas de verdade e validade,
respectivamente, ou seja, está implícito que todos devem poder
entender este conhecimento quando externalizado. É constitutivo, uma
condição necessária, para a racionalidade da exteriorização que o
falante manifeste uma pretensão de validade criticável em favor de um
enunciado que possa ser tanto aceito quanto refutado pelo ouvinte.
Seguindo esse raciocínio, Habermas nos apresenta o conceito de
Mundo da Vida como sendo uma espécie de conjunto de certos
conceitos pressupostos a priori para nossa comunicação dentro de uma
comunidade de sujeitos. Assim os sujeitos podem chegar objetivamente
a um entendimento sobre o mundo e sobre o que deve ser feito nele a
partir da prática comunicativa. 
Pretensões tanto de validade quanto de verdade podem ser
fundamentadas ou criticadas, cumprindo com o pressuposto de
racionalidade. Essa racionalidade inerente a essa prática do discurso
revela-se no fato de que o indivíduo possui razões para acreditar que o
tal pressuposto possa ser fundamentado, e qualquer crítica refutada.
Assim Habermas denomina argumentação como sendo um tipo de
discurso onde os participantes tematizam pretensões controversas e
procuram resolvê-las ou criticá-las com argumentos – definindo também
argumento como sendo aquilo que contém razões que se ligam
sistematicamente à pretensão de validade de uma exteriorização
problemática.
Habermas define Discurso Teórico como sendo aquele que se preocupa
com a busca da verdade acerca de proposições ou da eficiência acerca
das ações, por exemplo, quando se afirma que uma caneca é laranja ou
que a mesma pode ser usada para tomar café. Já o Discurso Prático
seria aquele que se preocupa com a exteriorização da moral, isto é,
permite a troca de argumentos acerca da correção normativa,
constituindo um ambiente que permite a reflexão com base em
hipóteses sobre se uma determinada norma pode ser justificada de
modo imparcial, objetivo – dentro dessa esfera de validade, as normas
surgem em forma de pretensão para o recebimento de um consenso
geral e fortalecendo a busca pela verdade racionalmente. 
Em resumo, acerca da argumentação podemos fazer as seguintes
afirmações: 
a) Os participantes de uma argumentação têm de pressupor de maneira
geral que a estrutura de sua comunicação, em virtude de traços que
cabem descrever de maneira puramente formal, exclui toda e qualquer
coação, exceto a coação do melhor argumento;
b) Ao se considerar a argumentação um procedimento de busca coletiva
pela verdade, temos uma forma de interação especialmente
regulamentada, assim o processo de entendimento discursivo passa a
ser normatizado sob a forma cooperativa por meio de uma divisão de
trabalho entre os participantes;
c) A argumentação visa solucionar aquilo que foi posto como
problemático pelos participantes, solucionar conflitos/divergências.
Nos discursos teóricos e práticos os participantes não têm outra saída a
não ser pressupor e aceitar como válida essa situação de fala descrita
acima. Por estarmos falando nesse texto sobre a Ética, de como as
pessoas deveriam agir no espaço, levamos aqui em conta o Discurso
Prático.
O Trilema de Munchhausen 
Nessa tarefa de fundamentar uma Ética, podemos nos ver a frente do
Trilema de Munchhausen, cujo nos mostra que, independente de qual
seja a nossa justificativa racional baseada na lógica, sempre cairemos
em um trilema lógico: ou admitindo o regresso ao infinito, ou fazendo
um corte arbitrário na cadeia de derivação ou procedendo em círculos.
Realmente se definirmos fundamentar como sendo explicar por meiode
uma cadeia dedutiva, então é impossível escapar do trilema, porém
Habermas afirma que essa concepção dedutivista acerca do conceito
de fundamentação é totalmente reducionista e merece ser rejeitada.
Para solucionar esse problema, ele apresenta o PU (Princípio da
Universalização) como sendo o elemento que pode servir como uma
ligação entre proposições que não se relacionam de maneira
simplesmente dedutiva, logo não estaria sujeito ao trilema, pois esse
princípio possibilitaria a passagem da afirmação “x é uma regra
igualmente aceitável por todos os envolvidos” para “x é uma norma
válida”. 
Para o filósofo Karl-Otto Apel, o caminho para contornar esse trilema
seria o de analisar as condições que tornam possíveis a argumentação,
incorporando à Filosofia Transcendental a Pragmática e a
Intersubjetividade Linguística para assim derivar normas éticas. A partir
da teoria de Habermas, Apel acrescenta a existência de pressupostos a
priori, condições transcendentais da argumentação que podem ser
descobertas a partir de verdades axiomáticas, proposições que levariam
o proponente a uma contradição performativa caso o contrário daquilo
que está pressuposto fosse afirmado. A contradição performativa pode
acontecer entre aquilo que se faz e os pressupostos necessários do ato
que se pratica. Para exemplificar isso podemos utilizar a famosa frase
de Descartes, “penso, logo existo”, como tendo um axioma presente em
sua conclusão, uma verdade autoevidente que, caso o contrário fosse
afirmado por um indivíduo, o mesmo cairia em uma contradição
performativa pela própria proposição contrariar um pressuposto
necessário para o pronunciamento da mesma, a existência do indivíduo.
Como Habermas escreveu:
“Apel renova o modo de fundamentação transcendental com os meios
fornecidos pela pragmática linguística. Ao fazer isto, utiliza o conceito
da contradição performativa, que surge quando um ato de fala
constatativo se baseia em pressuposições não-contingentes cujo
conteúdo proposicional contradiz o enunciado asserido {...} Para o
enunciado (1) Eu não existo (aqui e agora), o falante ergue uma
pretensão de verdade; ao mesmo tempo, ao proferi-la, ele faz uma
inevitável pressuposição de existência cujo conteúdo proposicional
pode ser expresso pelo enunciado: (2) Eu existo (aqui e agora).” 
Aí entra o novo campo que Apel chama de Pragmática Transcendental,
a argumentação como sendo um princípio inevitável para a justificação
de normas. É justamente nessa reflexão sobre as condições que
encontramos as reivindicações intransponíveis de fala. Dentro do
escopo de uma justificação acerca desses pressupostos da
argumentação sobre as ações de fala, encontramos algo
necessariamente ligado às nossas pretensões de validade: a pretensão
da formação de um consenso sobre normas do discurso argumentativo
dentro de uma comunidade ideal de comunicação.
A Ética Argumentativa
Voltando à pergunta que fizemos no primeiro capítulo: Como
poderíamos elaborar uma argumentação coerente e racional como uma
proposta para a resolução dessa questão e, deste modo, derivarmos
uma Ética? 
O filósofo e economista Hans-Hermann Hoppe, com sua teoria da Ética
Argumentativa, fundamenta sua proposta a partir das ideias de
Habermas e Apel, fazendo também um link com a Praxeologia, o estudo
da ação humana. Realizando uma reflexão acerca da Pragmática
Transcendental, e entendendo que a argumentação é também uma
ação humana, Hoppe demostrou a pressuposição do controle exclusivo
do corpo humano como meio escasso necessário para sua realização.
Sendo a mesma uma ação humana de comunicação, uma
externalização discursiva que leva em conta um saber implícito,
motivada por uma razão e destinada a um propósito único, a
argumentação surge a partir de um desacordo interpessoal em relação
a uma pretensão de validade vinculada a uma proposição e visa a
resolução desse desacordo como método único de justificação. Sendo
a argumentação uma atividade específica de busca pela verdade entre
os indivíduos participantes, um meio livre de conflitos e coações, é
necessário que um indivíduo reconheça o outro como ente exterior que
possui autonomia sobre suas ações e sobre os recursos que ele
necessita para fazer as proposições, tornando possível tanto que ele
convença quanto que seja convencido apenas pela coação do melhor
argumento. Por conta disso, podemos deduzir a priori que o conceito de
autopropriedade (propriedade que os indivíduos possuem sobre seus
próprios corpos) está implícito na argumentação.
Concluímos, deste modo, que pode ser reconhecido pelo a priori da
argumentação que cada indivíduo possui a propriedade legítima de seu
próprio corpo, recurso do qual se apropriou naturalmente através de um
link objetivo direto, antes que qualquer outra pessoa. Possuindo, o
indivíduo, o direito de determinar os fins que ele almeja alcançar com a
ajuda desse meio que é o seu corpo, desde que isso não viole o mesmo
direito que outros indivíduos também possuem. Podemos perceber que
isso significa que os outros indivíduos possuem o dever de não interferir
nos fins que um indivíduo determina alcançar, utilizando o meio
escasso, seu corpo, para isso.
Além da autopropriedade, outro link objetivo que pode existir entre o
indivíduo e outros recursos escassos se dá pelo princípio da posse
primordial (também chamado de homesteading ou apropriação original),
que surge a partir da ação humana sobre recursos escassos não
apropriados anteriormente, isto é, para a obtenção de posse legítima
(ou propriedade privada) sobre um recurso escasso nunca antes
apropriado é necessário que um indivíduo se aposse do mesmo e junte
seu trabalho a isso, utilizando, demarcando e protegendo. Como Hoppe
escreveu:
“Essa propriedade sobre bens e lugares ‘apropriados originalmente’ por
uma pessoa implica seu direito de utilizar e transformar esses bens e
locais da maneira que mais lhe aprouver, desde que ela, com isso, não
altere forçosamente a integridade física dos bens e lugares
originalmente apropriados por outra pessoa. Em particular, uma vez que
um bem ou um local foi apropriado originalmente por uma pessoa que –
nas palavras de John Locke - ‘misturou seu trabalho’ a esse bem ou
local, então a propriedade desse bem ou local somente poderá ser
legada a terceiros através de uma transferência voluntária – contratual
– de um título de propriedade. {...} Se uma pessoa não pudesse adquirir
a propriedade sobre esses bens e espaços por meio de um ato de
apropriação original – isto é, estabelecendo um elo objetivo
(intersubjetivamente averiguável) entre ela própria e o bem e/ou espaço
específicos antes de qualquer outra pessoa – e se, ao invés disso, a
propriedade sobre esses bens ou espaços fosse concedida àqueles
que chegassem por último (retardatários), então uma pessoa só teria a
permissão de começar a utilizar qualquer bem após ter a autorização
do retardatário. Entretanto, como pode um retardatário conceder
autorizações àquele que chegou antes? Ademais, todo retardatário
teria, por sua vez, de obter a autorização de futuros retardatários, e
assim por diante. Ou seja: nem nós, nem nossos antepassados e nem
os nossos rebentos seriam capazes de sobreviver caso essa regra
fosse estabelecida e cumprida.”
De qualquer modo, caso esse direito legítimo de uso a partir de um link
objetivo entre os indivíduos e os recursos escassos por meio do
primeiro uso fosse criticado, lembrando que o corpo humano também é
um recurso escasso, o crítico deveria levar em conta os seguintes
cenários possíveis:
a) Um indivíduo (ou um grupo de indivíduos) é dono de tudo – Esta
ideia jamais poderia representar uma Ética, pois, além de ir contra o
PU, sua defesa cairia em umacontradição performativa por estar
negando que indivíduos são unidades autônomas de tomada de
decisão sobre seus próprios corpos, pressuposto reconhecido na
argumentação. Caso se considerasse que A pode legitimamente tomar
decisões sobre B, então este último estaria reduzido à categoria de
escravo, um meio a ser explorado, não podendo fazer o mesmo sobre o
indivíduo A. Considerando A e B indivíduos com direitos diferentes, um
superior e um inferior, ao defender essa ideia estaria se afirmando que
existiriam “leis” diferentes para cada um, sendo algo inexplicável como
uma Ética, pois não é aplicável igualmente a todos os seres na
categoria de “animal racional”. Para que uma regra possa ser
considerada Ética é preciso que seja universalmente aplicável a todos;
b) Todos são donos de tudo – Embora esta alternativa passe no teste
do PU, seu defensor também cairia em uma contradição performativa
por estar negando o pressuposto da autopropriedade. Neste caso,
levando em conta que todos os indivíduos são donos de absolutamente
todas as coisas, para que pudesse ocorrer o uso de um recurso
escasso teria de se obter o aval de todos seus donos, algo que jamais
seria possível visto que para o pedido de permissão já seria necessário
o uso de algum recurso escasso, mesmo que do próprio corpo da
pessoa, ou seja, uma impossibilidade praxeológica do “comunismo
universal";
c) Ninguém é dono de nada – Assim como as alternativas acima, a
defesa desta cai em uma contradição performativa, pois, quando um
cético afirma que ninguém pode ser dono de nada ou que não existe
nenhuma Ética, o mesmo acaba tendo de pressupor, no mínimo, as
regras de uma argumentação;
d) Propriedade Privada – Cada um é dono de si mesmo e de qualquer
outro recurso com o qual possuir um link direto, o ponto de vista
defendido neste texto. Caso um link indireto pudesse ser admitido o
próprio propositor cairia em uma contradição performativa, pois também
teria de admitir que indivíduos poderiam se tornar donos de recursos
por meio de simples mandatos, sem a necessidade de contato com o
recurso em questão, negando assim a autopropriedade necessária para
a argumentação, pois, para ser coerente, deveria levar em conta que
um indivíduo poderia se tornar proprietário do corpo de outro apenas
por mandato de fala.
Com base nisso, podem ser feitas cinco proposições descritivas acerca
da Ética Argumentativa:
a) Todas as tentativas de afirmar pretensões de validade a uma
proposição ocorre e são justificadas no curso de uma argumentação; 
b) Para que se afirme pretensões de validade é necessário a
argumentação, assim toda tentativa de justificar uma Ética sobre como
nossas ações devem ser no mundo é necessariamente através de uma
argumentação; 
c) Na argumentação está implícito como condição formal, ou
constitutiva a priori, o reconhecimento do direito de autopropriedade dos
indivíduos;
d) Caso uma pessoa argumentasse contra o direito de autopropriedade
ela cairia em uma contradição performativa, contradizendo o
pressuposto pragmático transcendental da própria argumentação;
e) Concluímos que a Ética Argumentativa é a pressuposição
pragmática-transcendental-praxeológica da argumentação.
Para argumentar os indivíduos seguem a Ética Argumentativa, é um
juízo de valor implícito nesta ação, que por si só é a Ética da
propriedade privada. Esta Ética deve ser seguida, e todas as outras
normas derivadas a partir desta norma primeira, pois qualquer tentativa
de justificar que a propriedade privada pode ser violada cairia em uma
contradição performativa, o que seria totalmente contrário à busca por
aquilo que é válido, objetivo racional e civilizado presente na própria
argumentação.
“A razão nos mostra que todos nascem naturalmente iguais, i.e., com
igual direito às suas pessoas, e também com igual direito à sua
preservação {...} e dado que todo homem é proprietário de sua própria
pessoa, o trabalho de seu corpo e de suas mãos é propriamente seu,
ao qual ninguém tem direito a não ser ele mesmo; portanto se segue
que quando remove qualquer coisa do estado que a natureza proveu e
deixou, ele mistura seu trabalho a ela e acrescenta algo a ela que era
seu, e assim a torna sua propriedade {…}. Portanto, todo homem tendo
o direito natural à (ou sendo o proprietário de) sua própria pessoa e
suas próprias ações e seu trabalho, o que nós chamamos de
propriedade, certamente se segue que nenhum homem pode ter o
direito à pessoa ou à propriedade de outro: E se todo homem tem o
direito à sua pessoa e propriedade; ele também tem o direito de
defendê-las {...} e assim tem o direito de punir toda afronta a sua
pessoa e a sua propriedade.” Reverendo Elisha Williams (1744)
O Estoppel
Para finalizar, antes da conclusão, falarei um pouco sobre o princípio do
Estoppel e como ele pode ser utilizado na prática para a formulação de
julgamentos justos baseados na Pragmática Transcendental e na
propriedade privada. Tendo demonstrado que a Ética da propriedade
privada é um princípio ético evidentemente comprovável, esse deve ser
levado em conta para a aplicação correta da justiça, pois, sendo o ato
de aplicar uma pena também uma ação humana, os princípios éticos
devem ser considerados para que a mesma seja considerada válida
objetivamente.
Esse tema da justificação da pena sempre foi considerado bastante
importante para as pessoas civilizadas, tendo sua preocupação voltada
para a legitimidade da punição e para a descoberta de meios eficazes
de executar esta ação. Sendo a punição a aplicação de uma certa
quantidade de força física contra um indivíduo em resposta a algo que
ele tenha feito ou deixado de fazer anteriormente, se faz necessário a
sua devida justificação pois, caso contrário, a mesma não poderia ser
considerada uma punição por definição, mas uma prática aleatória de
violência. Obviamente, caso o réu concordasse com a pena imposta a
ele, então nenhuma justificação seria necessária, porém, como isso
geralmente não acontece, uma justificação objetiva deve ser feita.
O Estoppel é um princípio da justiça common-law que, quando invocado
pelo juiz, impede o acusado de alegar algo caso as ações
anteriormente praticadas pelo mesmo sejam inconsistentes com essa
alegação. Este princípio nada mais é do que uma forma de aplicar a
exigência da consistência dos participantes da discussão, pois, levando
em conta que a argumentação é uma atividade que busca a verdade,
quaisquer alegações contraditórias e incoerentes devem ser
desconsideradas pelo simples fato de não poderem jamais representar
a verdade, e qualquer tentativa de defesa do contrário cairia em uma
contradição performativa por pressupor consistência na defesa de um
ponto.
Digamos, por exemplo, que o indivíduo A foi contratado para reformar a
parte externa de uma casa e, por engano, reforma a casa do vizinho ao
lado. Ao chegar em casa, o indivíduo B, que não contratou o serviço, vê
o que está sendo feito e nada faz, esperando ganhar uma reforma
grátis. Ao ser questionado sobre o pagamento, após a conclusão do
serviço, o indivíduo B se recusa a pagar, o que acarreta no início de um
processo judicial. O indivíduo B poderia alegar não ter um contrato
físico com o indivíduo A, o que seria verdade, porém, neste caso, o juiz
poderia dizer que o indivíduo B está impedido (stopped) de alegar tal
coisa por isso ser inconsistente em relação à sua ação anterior de
permitir que a casa fosse reformada, ação similar a um contrato, tendo
o indivíduo A confiado de boa fé nisso, sendo contraditório com a
proposição de que o contrato nunca existiu.
No caso de um assassino ser julgado, o mesmo poderia ocorrer: alegar
que assassinatos são errados é contraditório em relação a sua ação de
ter matado alguém. Caso o assassino alegasse que assassinatos sãocertos, então não poderia contestar sua punição. Caso o assassino
alegasse que sua visão agora é de que assassinatos são errados, isso
ainda assim denunciaria seu crime, pois a alegação de que
assassinatos são errados é inconsistente com a alegação de que
assassinos não devem ser punidos. Para o assassino, basicamente,
seria impossível argumentar que o mesmo possui o direito à vida, ou
seja, o mesmo não poderia reclamar caso fosse morto, preso ou
escravizado.
Assim como a restituição daquilo que foi tirado do proprietário original,
do custo objetivo do dano causado, uma punição ao réu também deve
ser feita, podendo a punição servir para várias coisas diferentes: sanar
o desejo de “vingança” da vítima, aumentar a quantia recebida pela
vítima (podendo ser considerado uma espécie de indenização pelos
problemas causados, pelos gastos com o processo e pelo tempo
perdido) ou até mesmo fazer o réu refletir sobre sua conduta (evitando
que a mesma se repita). Levando em conta que a punição é
necessariamente o uso da força contra um indivíduo, a mesma
necessita sempre obedecer a um critério de proporcionalidade de
acordo com o motivo do processo para que possa ser devidamente
justificada, pois, caso contrário, este uso da força não mais poderia ser
considerado como uma punição, mas uma prática de violência, e seria o
praticante desta força também um criminoso.
Dado que o criminoso, em certos casos, pode ter colocado a vítima em
uma situação onde um tipo de pena poderia recuperar menos a vítima
do que outros tipos de penas, o agressor é impedido (stopped) de
reclamar caso a vítima decida escolher outro tipo de pena, sujeita ao
princípio da proporcionalidade. A vítima poderia abominar a violência
causada a ela pelo criminoso, violência essa que não poderia recuperá-
la totalmente ou até mesmo fazê-la se sentir pior caso fosse usada para
punir o agressor. Portanto, caso a vítima escolhesse uma maneira
diferente de usar a força (por exemplo, recebendo uma certa quantia
em dinheiro ou em bens), o réu ficaria impedido de argumentar contra a
pena caso não conseguisse explicar de que modo a mesma excederia o
princípio da proporcionalidade em relação ao crime cometido. Mesmo
que seja extremamente difícil determinar com precisão qual a exata
quantidade de força que deveria ser aplicada em certos casos, de
acordo com o princípio da proporcionalidade, o réu deve ser
responsabilizado pelo conflito por ele criado, e a vítima restituída, para
que a justiça seja feita.
Conclusão
Podemos resumir o princípio ético defendido nesse texto como sendo o
princípio da propriedade privada. Caso esse princípio seja seguido à
risca dentro de uma sociedade podemos perceber a priori que conflitos
serão evitados, pois os recursos escassos, causadores dos conflitos,
utilizados pelos indivíduos como meios para se atingir fins em suas
ações, agora são passíveis de possuírem controle legítimo por entes
privados.
Seguindo esse raciocínio, podemos também deduzir a priori que
qualquer ideia que não leve em conta a Ética da propriedade privada
como princípio, como demonstrado ao longo do texto, não pode ser
racionalmente justificável. Quaisquer ideias que preguem o controle de
indivíduos sobre outros são, e sempre serão, eticamente indefensáveis,
ideias de arranjos sociais baseados na Ditadura, na Monarquia, no
Comunismo, no Socialismo, no Nazismo, no Fascismo, no Sindicalismo
ou na Democracia, em qualquer uma de suas formas.
Como consequência da aplicação desse princípio da propriedade
privada teríamos necessariamente uma sociedade libertária (também
chamada de anarcocapitalista) baseada na soberania do indivíduo
sobre seu próprio corpo, no princípio da apropriação original e nos
contratos entre entes privados. A validade desse princípio não pode ser
negada, pois, caso contrário, estaria se argumentando em favor da
inconsistência, caindo em contradição performativa e demonstrando,
deste modo, estar errado. 
Bibliografia:
1. Teoría de la acción comunicativa, por Jürgen Habermas
2. Habermas e Apel: a fundamentação pragmática da Ética do Discurso,
por Júnia Diniz Focas
3. A Ética do Discurso em Habermas, por Lacombi Lauss
4. A Ética da Liberdade, por Murray Rothbard
5. A Ética e a Economia da Propriedade Privada, por Hans-Hermann
Hoppe
6. A Ética Argumentativa Hoppeana, por Vinícius Scheffel
7. Pena e proporcionalidade – A Abordagem do Estoppel, por Stephan
Kinsella
8. Law as Institutionalized Reason? On the Alexy’s discoursetheoretic
concetrion of Law, por Carsten Bäcker

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